'Os anos de cadeia foram muito bons para mim'



"Os anos de cadeia foram muito bons para mim"

ALEXANDRA LUCAS COELHO

Como se sobrevive ao Tarrafal? Luandino Vieira escreveu cinco livros e milhares de cartas, trabalhou madeira, fez cestos, cuidou da horta, das galinhas e da biblioteca. Encheu 24 cadernos com os erros gramaticais dos presos e deu-lhes aulas com frases de Guimarães Rosa. A PIDE achava que havia "amizade" entre ele e o último director. Luandino diz que não, mas respeita-o.

No Tarrafal, Luandino Vieira escreveu sobre o que tinha vivido antes. Agora vai escrever sobre o que aprendeu no Tarrafal. Será "uma história de Angola".

Trinta e cinco anos depois de fechar como campo de presos políticos - a 1 de Maio de 1974 -, o Tarrafal ainda pode ser uma terra arável na cabeça dos homens que lá não perderam a vida.

Portugal foi isto, fez isto, há sobreviventes e muito está por contar.

Luandino não costuma fazê-lo. Aceitou esta entrevista - feita segunda-feira, ao longo de uma manhã, no Grémio Literário, em Lisboa - antes de ir apanhar o avião para Cabo Verde, onde hoje está, com antigos camaradas de presídio, no simpósio sobre o Tarrafal que decorreu desde terça.

Já de Cabo Verde, disse que terá ainda coisas a acrescentar sobre o Tarrafal, em sequência a esta entrevista.

Nascido português em Lagoa de Furadouro, Ourém, a 4 de Maio de 1935, José Vieira Mateus da Graça fez-se angolano "pela sua participação no movimento de libertação nacional" de Angola, diz sempre a badana dos seus livros.

Foi preso antes da guerra colonial, em 1959. Voltou a ser preso, e condenado a 14 anos de prisão, por "actividades subversivas contra a segurança externa do Estado", em 1961. Com dois camaradas poetas, António Jacinto e António Cardoso, andou de cadeia em cadeia, em Angola. Em 1964 foram transferidos para o Tarrafal, de onde Luandino saiu em liberdade condicional em 1972.

P-Como foi a viagem para o Tarrafal?

LV-Foi a última viagem do Kwanza, um velho navio que andou no transporte de colonos nos anos 30. Viemos na enfermaria transformada em prisão. E deixavam-nos sair meia hora, uma hora por dia para tomar ar no convés. Foi assim durante os dias que demorou até São Vicente.

P-Quantos dias?

LV-Dez, oito, não me recordo. Depois escrevi isto nas cartas para a minha mulher. Habituei-me a escrever no Tarrafal todos os dias, então as cartas eram muito grandes. Como a regalia era escrever de 15 em 15 dias, além de fazer uma letra muito pequenina e certa, como ainda hoje conservo, escrevia dos dois lados, e tentava pôr o máximo de informação, para poder recordar-me quando saísse. Adoptei um sistema de escrever uma coisa anódina que desperta na memória o facto por trás daquilo. Se for procurar uma carta de 1965 em que falo da beleza da luz a entrar pelas grades do refeitório, sei que foi o dia em que o Ilídio Machado foi mandado para a cela disciplinar porque o director perguntou-lhe: "Então, a sopa está boa, senhor Ilídio?" E ele disse: "Está quente, está quente."

P-O que levava consigo para o Tarrafal?

LV-A roupa e os livros que estávamos autorizados a ter em Luanda [nas prisões de onde vinham]. Eu estava a estudar italiano e quimbundo, trazia uma gramática de quimbundo, a do [José Luís] Quintão, e trazia um livro de texto e uma gramática de italiano.

P-Passou a viagem a escrever?

LV-Não, penso que não escrevi. O hábito que ainda tenho é primeiro viver, e depois, quando me atribuo tempo de tranquilidade, tomo notas. Esta entrevista, eu logo à noite vou tomar notas.

Esse processo é que me permitiu guardar, porque me obrigava a gravar na cabeça. Claro que a grande maioria das coisas perdeu-se. E pode ser que eu já estivesse a ver como queria guardar. Então às vezes conto coisas que não são rigorosamente verdade, só no sentido de que há um facto verdadeiro por trás.

P-Primeiras impressões do Tarrafal?

LV-Eu fiquei chocado. Era tudo muito seco, árido. Aquela montanha à volta, aquela planície, só com umas árvores muito esqueléticas, raquíticas, todas inclinadas para o mesmo lado, porque o vento as obriga.

P-Ficaram na caserna com os outros angolanos?

LV-Primeiro ficámos só os três, que é o que eles chamavam "período de adaptação". Depois juntaram-nos à caserna dos angolanos.

Eram uns 80 angolanos. E 100 guineenses, com quem eles não se cruzavam.

Não, porque se eles saíam de tarde, os angolanos saíam de manhã, e na semana seguinte era o contrário.

P-Durante anos viveu nessa caserna com dezenas de homens. Como se organizavam?

LV-O mais interessante desse tempo é que estavam uns da FNLA, outros da UNITA, outros do MPLA. Só no MPLA é que havia algumas actividades que incluíam um certo grau de organização.

A maioria dos presos era protestante. À hora do culto, havia leitura da Bíblia, cânticos, era nitidamente um momento em que cada um se encontrava com o que tinha levado todos ali. Os trechos escolhidos falavam sempre do exílio, do regresso à terra prometida.

P-Havia pastores.

LV-Havia. E membros de família, pais e filhos, sobrinhos e tios.

P-Operários, professores...

LV-... analfabetos. E estávamos todos juntos.

P-Homens de 20 anos e de 70.

LV-E isso dava origem a situações muito interessantes de viver no mesmo espaço. O pai ver o filho nu ou o filho ver o pai. A questão do banho, porque o sítio era aberto. Mas não havia nada escrito, nenhuma organização formal. Eram mais as lealdades familiares, profissionais que faziam o convívio e organizavam o espaço. Na caserna estávamos todos arrumados e quem quisesse trocava o local da cama. A gente falava um com o outro: "Porque eu ali não estou bem..." Tinha janelas de vidro, a gente fechava quando havia muito vento. Vento havia sempre, era preciso fechar por causa do pó. Mas água e casa de banho, quando chegámos, não havia. Havia só uns penicos altos que ficavam no interior da caserna, e todos os dias de manhã nós despejávamos. Porque isso era organização da própria caserna, as faxinas, varrer, limpar, despejar. Todos os dias duas, três pessoas faziam isso, era uma escala. Um tomava conta das escalas e outro fazia de ecónomo, porque todas as semanas podíamos mandar fazer compras à vila - os que tinham dinheiro, que vinha nas cartas da família. Fazíamos a lista, o dentífrico, o sabão, as coisas que eram permitidas.

"Eu punha a água dos mais-velhos"

P-Como se lida com isso, viver anos num sítio onde não pode fechar uma porta? Cria-se uma privacidade interior?

LV-Penso que sim, mas no aspecto físico a habituação é rápida.

Eu não tinha nenhum tabu em estar com mais-velhos ou mais-novos, mas os que eram religiosos, sobretudo os protestantes, têm normas de conduta, pai e filho, mais-velho e mais-novo, e deve ter sido muito difícil. E digo isto porque uma coisa que fez com que eu aprendesse muito com os mais-velhos foi o facto de me chamarem para o chuveiro. Aquilo era uma lata, era preciso encher no chão com 20 litros de água e depois pendurar num gancho no telhado, para depois se abrir uma torneirinha. Mas quando já se estava a tomar banho, era preciso pôr mais água. E eu costumava sempre pôr a água para os mais-velhos Fernando Pascoal da Costa, Sebastião Gaspar Domingos, Adão Domingos Martins, tendo eles filhos e sobrinhos no campo, gente jovem. A mim isso era-me permitido. Eu punha e ficava a conversar: "Ó senhor Pascoal, e isto, e isto, e tal." Na brincadeira dizia: "Pois é, o branco é que tem de estar agora a pôr a água, ó senhor Pascoal!" E ele: "Anda lá, anda lá, põe lá água." Aquelas brincadeiras que fazíamos uns com os outros.

Quando o intendente Vigário chegou [o segundo director do Tarrafal que Luandino teve] e começou a dizer que queria fazer obras, nós reivindicámos logo isso. Então fizeram um tanque dentro da caserna, uns lavatórios.

P-Mas não havia solidão. Isso era um problema?

LV-Criei o hábito de, todos os dias, quando estávamos com a caserna aberta, a minha vida ser no exterior. Fazia tudo quanto podia, tudo quanto fosse trabalho. Aprendi coisas de marcenaria com os meus colegas marceneiros, aprendi a fazer cestos, aprendi artesanato de palha com o Fabelo Malonguiça, que era da UPA-FNLA. E, como andava muito à volta do campo, eu via os soldados portugueses a olhar para mim. Deviam pensar que eu era maluco, andar para trás e para diante, a falar sozinho. O falar sozinho era ir lendo mentalmente, em voz alta, o que já estava a escrever na cabeça. De maneira que, quando nos fechavam, eu tinha três tipos de actividade. Escrever três ou quatro linhas desse dia para a carta...

P-Como se fosse um diário.

LV-Respondendo à carta da minha mulher, todos os dias um bocadinho.

A luz apagava-se às nove horas. Se de manhã podíamos estar ao ar livre, eu escrevia à tarde, se à tarde podíamos estar ao livre, eu escrevia de manhã. Isso era uma actividade. Depois, quando andava a escrever [livros], escrevia. E conseguimos autorização para dar aulas no interior da caserna: alfabetização, instrução primária, primeiro e segundo ciclo.

P-Como funcionava?

LV-Quem tinha o terceiro ciclo ensinava os do segundo, nas matérias que soubesse. Por exemplo, o [poeta] António Jacinto era guarda-livros, como se dizia, e transmitia conhecimentos de contabilidade. E as pessoas estudavam também por si próprias. Alguns fizeram o primeiro ciclo, foi-lhes dada autorização, foram fazer exame à Cidade da Praia e obtiveram muito boas notas.

P-O que é que o Luandino fazia?

LV-Eu dava instrução primária. Às vezes tinha problemas, porque tinha de riscar aquela palavra que não existia, mas depois copiava para o meu caderno de termos literários. Devo um termo ao que também foi meu mestre marceneiro, Bernardo Loureiro, que já faleceu, era da FNLA. Numa redacção sobre os meios de transporte, ele escreveu que podiam ser rodoviários, ferroviários e "fluviários". Então copiei os "fluviários" para o meu caderno número 12. E no Livro dos Rios [o mais recente livro de Luandino] está lá "fluviários".

P-Porquê número 12?

LV-Porque fiz 24 cadernos. Os mais belos erros da língua portuguesa, copiados, ouvidos. Daqueles caderninhos escolares que tinham 20 páginas, de uma linha só. Só copiando o que ouvia, o que eles escreviam, o que fui encontrando de violações da norma.

P-Que é feito desses cadernos?

LV-Uns tenho em casa. Outros, com transcrições de músicas populares angolanas, em quimbundo e português urbano, desapareceram. Emprestei-os a alguém para uma exposição sobre o Liceu Vieira Dias [o "pai" da música popular angolana, que estava com Luandino no Tarrafal]. Em alguns desses cadernos havia o atrevimento do pentagrama, da notação musical. Nenhum de nós sabia música. Eu não sabia, e o Liceu era um músico de ouvido. Lembro-me que a certa altura pensámos mandar vir um manual de solfejo. Porque começámos essa tarefa, tentar escrever a música das canções populares cuja letra eu já tinha nos cadernos.

P-Os cadernos vinham de onde?

LV-Punha nas compras. Vinha uma barra de sabão Clarim, um dentífrico Couto, dois cadernos escolares, ou um caderno de papel de cartas, envelopes, tudo isso era autorizado.

"Estive quase a desesperar"

P-Escreveu desde o primeiro ano da cadeia?

LV-No primeiro e segundo anos não tive grande apetência. Tive até muita dificuldade em voltar à escrita. No Antigamente, na Vida [um dos livros de histórias feitos no Tarrafal] foi escrito depois de eu ter sofrido um bom bocado, sobretudo no ano de 67-68, em que eu estive quase a desesperar. Não era exterior, os meus colegas não davam conta disso, cada um tinha os seus problemas, mas isso passou para as histórias. Por exemplo, a criação de uma figura feminina meio onírica numa das histórias, Memória narrativa ao sol de Kinaxixi. Hoje leio e percebo exactamente por que é que aquilo saiu.

P-E porquê?

LV-Porque eu estava numa situação de total carência. Estive um ano e tal sem notícias da família, porque entretanto minha mulher em Luanda continuava ligada aos grupos da oposição. E sempre com exposições [dirigidas a todas as instâncias, sobre a prisão de Luandino], e às tantas começaram a cercear-me a correspondência.

P-Mas há um momento antes. Em 65, o seu livro Luuanda ganha o Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores. Como soube?

LV-Por um telegrama: "Parabéns pelo prémio. Abraço, Ferreira." Aquilo foi ao director, ele deixou entrar, mas não me disseram nada. Não percebi que raio de prémio era. "Mas eu não joguei na lotaria, alguém jogou na lotaria por mim? Prémio?" Porque não líamos jornais, não tínhamos rádio, nenhuma informação. Depois recebi um cartão de Lisboa, de umas amigas que me escreviam, e soube que me tinha sido atribuído o Grande Prémio de Novelística. E depois, de Lisboa, várias pessoas mandaram postais de parabéns, e os recortes dos jornais afectos ao regime, que lançaram imediatamente uma campanha, que resultou naquela acção, de destruição da Sociedade Portuguesa de Escritores e de prisão do júri.

P-A direcção da cadeia não lhe disse nada?

LV-Guardou tudo! Porque de início pensou: "Isto vai enchê-lo de ânimo, portanto não lhe vamos entregar nada." Quando começaram aquelas notícias, debates na televisão, depoimentos na rádio, pessoas que supostamente tinham vindo do Norte de Angola e me tinham visto a fazer isto e aquilo, a serrar pessoas, a matar. A designação era de "terrorista". O material nos jornais era de tal ordem que o director achou que eu ia ficar com o moral em baixo. Chamou-me e disse: "Olhe, eu andei a guardar isto, mas tome lá. O senhor ganhou o prémio, veja lá o bonito sarilho que arranjou."

P-Como ficou o seu ânimo?

LV-Para escrever? Teve um efeito muito positivo.

P-Escreveu Nós, os do Makulusu [um romance sobre a guerra colonial] entre 16 e 23 de Abril de 1967. Um jacto.

LV-Esse livro andava dentro de mim há muito tempo. Eu não encontrava era forma. Sabia que aquilo era uma coisa que me doía, e quando as coisas me doem eu tenho que escrever.

P-Escreveu-o numa semana.

LV-Não podia fazer outra coisa, vivia obcecado. Vinha para fora, sentava-me debaixo de uma árvore e ia escrevendo, escrevendo. Nessa semana ficou tudo escrito e corrigido. Foi um sonho que eu tive.

P-Foi antes da fase má?

LV-Já no início. O que se consubstanciou nessa fase foi a acumulação de tudo, devido a estar sem notícias. E depois os factos exteriores, a invasão da Checoslováquia...

P-Como souberam?

LV-Montámos um pequeno sistema, quando íamos à Cidade da Praia, à consulta. A gente inventava doenças e mais doenças, e alguns estavam mesmo doentes, e íamos a consultas, porque depois de 1965 a política em relação aos presos era de "recuperação" e o regime prisional abrandou. Também a vigilância da Cruz Vermelha, das instâncias internacionais obrigava a qualquer coisa que se parecesse com um sistema de saúde. E todas as semanas um alferes médico fazia o que tinha de fazer com os militares destacados no Tarrafal, mas também via os presos. A mentalidade de um alferes médico era diferente. Muitos conseguiam ir fazer uma radiografia à cidade, ou era a questão dos olhos, dos dentes. E como todas as semanas havia duas saídas para a Praia, passou a haver uma ida regular de presos às consultas.

P-E podiam comprar jornais?

LV-Não, não. Nem sair do hospital! Ficávamos ali fechadinhos. Mas conseguiu montar-se um sistema em que, ao chegar, encontrávamos já os recortezinhos mais interessantes [deixados por uma enfermeira cúmplice e alguns ajudantes]. E depois era questão de os fazer entrar e circular no campo.

P-Como é que os levavam para o campo?

LV-Eu tinha um par de botas e, como o meu pai era sapateiro, aprendi um pouco da arte. As botas tinham sola de borracha, abri-a e consegui fazer um fundo falso. Os outros traziam de outra maneira, mas eu ia à casa de banho, descalçava-me, tirava a palmilha, punha ali os papelinhos.

P-E foi assim que soube da invasão da Checoslováquia.

LV-Nesse ano, as notícias que nos abalaram foram a invasão da Checoslováquia, a morte do Che Guevara e a morte do Hoji-Ya-Henda [nome de guerra de José Mendes de Carvalho], o jovem comandante que no Leste estava a comandar a guerrilha do MPLA. Todos nós tínhamos a noção de que ele iria ser possivelmente um grande dirigente. Isso, somado aos anos de cadeia e à falta de notícias, eu estive a ponto de soçobrar. Pensei que nunca mais íamos sair dali.

P-A que é que se agarrou?

LV-A uma certa tranquilidade pessoal. Acho que por muito mal que eu esteja há sempre coisas piores que sucedem aos outros. Se me dou conta de que estou mal, é sinal de que estou bem. Enquanto me fui dando conta disso... Agora, tinha medo de estar a perder uma coisa fundamental que é vivermos a nossa juventude.

P-A escrita salvou-o?

LV-Salvar é muito forte, mas foi um mecanismo de defesa.

P-Era uma acção.

LV-Era a maneira de estar a fazer qualquer coisa, responder a perguntas que me punha.

P-Uma rotina é fundamental?

LV-Foi fundamental. Embora eu tentasse sempre incluir coisas que fossem fazendo diferença. Quando apareceu a biblioteca, ofereci-me para a organizar. Quando estava organizada, ofereci-me para bibliotecário. Quando foi partida em capela e biblioteca, ofereci-me para ajudar o padre à missa, porque tinha feito isso em criança com a minha mãe, na missão de São Paulo [em Luanda]. Quando foi possível criar galinhas, ofereci-me para tratar das galinhas, e fizemos uma horta. Depois, aprender a trabalhar a madeira, e fazer cestos. Estava eu a fazer uns passarinhos de madeira, quando me vieram dizer que ia para Lisboa, em liberdade condicional.

P-A biblioteca surge quando?

LV-No meio do campo havia uma casa de cimento que tinha sido de madeira, que era para escola, biblioteca e capela. Uma mesa, uns bancos corridos, uma parte separada onde ficaria o altar. E depois a Gulbenkian mandou uma biblioteca básica de língua portuguesa, em 1965, 66. Eram vários caixotes com livros, que ficaram muito tempo a ser penteados pela censura do campo. Mas, a certa altura, ou deixavam entrar aquilo ou não deixavam entrar a biblioteca. Então, Namora, Redol, os livros da Agência Geral de Ultramar, a colecção dos arquivos de Angola onde estavam publicados os documentos históricos do museu... Muita coisa que deu logo pano para mangas. Toda a gente começou a ler.

P-Foi uma festa.

LV-Uma festa. Montou-se um sistema de requisições, o preso vinha com o guarda, entregava o livro, trocava-o. E depois o padre passou a dizer missa ali.

O jantar era por volta das seis e meia, faziam a chamada, encerravam-nos, e das oito às nove é que era leitura, jogar as cartas, conversar, uma pessoa ia para a cama do outro, ficava a conversar, e os cultos. Às nove acabava a luz, tudo a dormir.

P-O que leu no Tarrafal de marcante?

LV-O Delfim, do José Cardoso Pires. El Siglo de las Luces, do Carpentier, que só entrou porque o padre deu autorização. Os Arquivos de Angola, com a transcrição dos documentos todos, Carta do rei do Congo, Carta de Doação de Dom Sebastião a Paulo Dias de Novais. Aqueles volumes sobre Portugal feitos pela Agência Geral, Alto Douro, Minho, com fotografias e as descrições todas, que eu não sabia nada de Portugal, nunca tinha visto.

P-Guimarães Rosa?

LV-Só o Grande Sertão Veredas. Em certa altura eu ditava uns trechos pequeninos a partir do Grande Sertão e tinha um aluno da quarta classe que sabia de cor Guimarães Rosa. Dizia algumas daquelas frases. Eram tão bonitas que ele dizia.

P-Então usava-o para dar aulas?

LV-Às vezes ditava frases como: "Soletrei anos e meio, meante a cartilha, memória e palmatória." E perguntava: "O que é que isso quer dizer?" "Quer dizer que o professor lhe batia."

"Nunca me zanguei com ninguém"

P-Nunca viu castigos, espancamentos?

LV-Não.

P-Nem soube?

LV-Não, no período em que estive lá.

P-Quem eram os seus amigos?

LV-Dava-me com toda a gente, convidavam-me para cantar quando eu dizia que queria cantar em quimbundo. Não me zanguei com ninguém, muito embora tivesse havido ocasiões em que as relações entre certos presos eram tensas. De respeito, mas não conviviam.

P-Por razões políticas?

LV-Não, pelo efeito do isolamento. Do ponto de vista físico, o que mais atacou os presos foi uma doença hemorroidal, e do ponto de vista psíquico, a mania da perseguição. A situação em que estávamos, as depressões, às vezes as notícias nas cartas, e depois um dito, uma frase, um riso, eram interpretados como sendo uma indirecta. Mas não tive conflitos. Não saí do campo com relações cortadas com ninguém.

P-Como eram as suas relações com os directores?

LV-Nenhum me tratou com falta de respeito humano.

P-Não tem razão de queixa?

LV-Não, de nenhum.

P-Que memória guarda de Eduardo Vieira Fontes, o último?

LV-Penso que ainda está vivo. Só se pode analisar a acção dele pensando que era da escola colonial e que tinha uma formação católica arreigada, a ponto de ter feito cursos de cristandade. Então ele chegou, com a missão que aquele campo tinha, quebrar psicologicamente, e estava perfeitamente convencido da bondade da missão, de que era para nosso bem. Mas convicto! Quase todos os dias entrava na cozinha, vistoriava tudo. Claro que não alterava o menu, o campo seguia a sua rotina, arroz com atum.

P-Era o que comiam?

LV-Estivemos nove meses a comer atum todos os dias. Almoço e jantar. Quando não era com arroz, era com mandioca. Atum fresco, pescava-se ali. Pão ao pequeno-almoço e café com leite. Fruta éramos nós que comprávamos. A sopa era aguada. Ele via e tentava melhorar sempre, dizia ele, as condições, quer no posto médico, quer na alimentação.

Com esse perfil, era muito rigoroso no cumprimento do regulamento. Mas era um indivíduo muito inteligente. Tinha um tipo de comportamento com os políticos e outro com os cabo-verdianos no campo de baixo.

P-Presos de delito comum.

LV-E mesmo com os presos políticos tinha um comportamento diferente com os presos de Angola e com os de Cabo Verde. Quando às vezes falo com os meus colegas de Cabo Verde, eles dizem: "Ele connosco não era assim."

P-Como?

LV-Bonzinho, simpático, acolhedor, humano, respeitador. Chegava e dizia: "Meus senhores, estejam à vontade."

P-Com os angolanos.

LV-Com os angolanos.

P-Com todos ou diferenciava?

LV-Não, não, isso nunca o vi fazer. E estávamos ali brancos, negros, mestiços, camponeses, analfabetos, gente letrada.

Mas, por exemplo, conseguiu levar de visita o escritor cabo-verdiano Manuel Lopes, e o alcance para os presos de Cabo Verde foi passar-lhes uns sermões, mas a nós, não, foi lá vangloriar-se: "Meus senhores, eu hoje trago-vos aqui um grande escritor de Cabo Verde!" Trazer ali um grande escritor de Cabo Verde, ele autoridade do Estado Novo, era exemplo. E estávamos, dos angolanos, Pacavira, Mendes de Carvalho, o Cardoso, Jacinto, Luandino...

Foi fazendo perguntas, nós íamos respondendo.

P-A PIDE refere explicitamente que Manuel Lopes é autorizado a visitar Luandino Vieira e Carlos Lineu.

LV-Pois, o Lineu é de Cabo Verde.

P-Exacto. Então o Manuel Lopes não entra na caserna dos angolanos para falar consigo?

LV-Não, ficamos a conversar todos, os escritores sobretudo. E toda a gente à volta.

P-O Vieira Fontes esteve sempre presente?

LV-Entrou e saiu com ele.

P-Por que é que Vieira Fontes autoriza essa visita?

LV-O Manuel Lopes deu um sermão aos presos cabo-verdianos.

P-A dizer o quê?

LV-"Vocês são malucos", se calhar. "Metidos nisto", um sermão no género de os recuperar.

P-Então era uma operação do Vieira Fontes?

PV-Acho que sim. Não sei se foi o Vieira Fontes que se lembrou e o convidou, ou se foi alguém que propôs essa operação. Mas no caso de Angola não fez sermão. Conversámos de literatura.

A PIDE não gosta dessa visita e isso aparece nos relatórios. O Vieira Fontes, que está vivo, nos EUA, e foi entrevistado por José Pedro Castanheira, diz no último Expresso que a PIDE "não metia o bedelho" no que se passava no Tarrafal. Ele próprio tem processo na PIDE e há estes relatórios em relação a ele.

P-Ficou com ideia de que ele teria más relações com a PIDE?

LV-Não, não fiquei.

P-A sua mulher visitou-o apenas uma vez?

LV-Uma vez.

P-Em que ano?

LV-1970.

P-Isso era bastante raro.

LV-Muitíssimo. Implicava seis anos de luta por uma visita e o argumento é que eu tinha deixado o meu filho com três meses e ele tinha nove anos. E portanto havia a questão da figura do pai.

Então a sua mulher vem com o seu filho Xexe...

Ficou não sei quantas semanas na vila do Tarrafal, em casa de Dona Eulália, nha Beba.

P-Quem é?

LV-No Tarrafal quando se fala de nha Beba... Vai fazer 100 anos para o ano. Vamos fazer uma festa com foguete, banda de música e tudo. Minha mulher ficou em casa dela e tínhamos duas visitas por semana nas duas semanas ou três que esteve lá.

P-Podiam ficar sozinhos?

LV-Não, não. Visita com o chefe dos guardas a assistir à conversa e tudo.

O Vieira Fontes estava a tentar a sua libertação. Isso também está nos relatórios da PIDE.

Porque na visita que a minha mulher fez ao Tarrafal esteve em casa do Vieira Fontes, falou com mulher dele, expôs as suas razões.

P-Ao recusar um pedido dele para a sua libertação, a PIDE diz que "há algum tempo" que o director mostra interesse em Luandino e fala na "amizade que dispensa ao recluso". Há indicações de que houve um esforço pelo menos desde 1970 para a sua libertação.

LV-Isso eu não sabia.

"Compreendo o director do Tarrafal"

P-Os irmãos Justino e Vicente Pinto de Andrade enviam uma mensagem a Vieira Fontes pelo Expresso dizendo que não guardam ressentimento. Se lhe enviasse uma mensagem seria nesse sentido?

LV-Não guardo nenhum ressentimento ao Eduardo Vieira Fontes. Compreendo perfeitamente o homem e compreendo-o na função que estava ali exercer. E eu estava no meu lugar.

P-Mas é possível falar numa amizade?

LV-Não, não, não. Escrevi-lhe três ou quatro postais. Por altura do Natal ou por agradecimento pelo modo como tinha tratado a minha família durante a visita. Penso que em todos esses postais está aquilo que devo a qualquer pessoa. Não é amizade, é o respeito e a gratidão pelas coisas que fazia - e que podia deixar de fazer.

P-O Luandino era um mito desde o Luuanda. Sentia que beneficiava por pertencer a uma elite intelectual, pela sua própria aura?

LV-Não. Sentia que beneficiava do facto de ser escritor, mas isso era partilhado com mais dois ou três. E beneficiava por algo que não era em mim deliberado, o modo como trato toda a gente. É evidente que tomo em conta a função que estão a exercer, mas aquele mínimo de respeito humano eu nunca ultrapasso. Em termos humanos, eu tratava o Vieira Fontes como tratava nho Pina, o cozinheiro, nho Alcuíno, o [guarda que tratava do correio, a quem os presos chamavam] pombo-correio, como tratava qualquer pessoa.

De tal modo que lá no Tarrafal as pessoas lembram-se de mim, acho que são minhas amigas. Fiz amizade com uma senhora que começou por me vender as bananas à porta.

P-Havia gente que ia vender à porta?

LV-No princípio. Abriam o portão e nós comprávamos as bananas, e isso. Depois permitiram-nos receber leite. Essa mulher forneceu-me meio litro de leite durante oito anos porque tinha uma boa vaca, dava um litro e meio. Uma vez em que eu disse que havia vacas que davam 20 litros, ela chamou-me mentiroso: "Não pode ser, eu tenho uma das melhores vacas do Tarrafal e dá um litro e meio." Foi muito importante na minha vida, essa senhora cabo-verdiana, nha Ana. Ela arriscou tudo, e no fundo é por causa dela que hoje sou escritor, porque os manuscritos das histórias que escrevi no Tarrafal, foi através dela que os pus cá fora. Quando saí, revistaram-me tudo e eu não tinha nada. E quando cheguei cá fora, ela tinha tudo guardadinho em casa dela.

P-Como lhe podia passar os manuscritos?

LV-Porque construí a relação com ela ao longo de oito anos. E tive que ir conquistando a confiança dos guardas e dos chefes e dos directores, ao ponto de me permitirem, em vez de receber, oferecer meia quarta de milho a ela no Natal.

P-Os manuscritos iam com o milho?

LV-Como eu não tinha milho, tinha de comprar milho no comerciante. Na lista das compras, pedia duas quartas de milho, ou três, com balaio [cesto]. Vinha, era vistoriado, entregavam-me. Então no fundo do balaio, o papelão canelado com as folhas, tudo colado. Como já tinha conquistado a confiança do chefe dos guardas, no dia de Natal ia ao gabinete: "Senhor Bonança, está aqui o balaio, faça favor o senhor de vistoriar, porque é chato fazer isso na frente de nha Ana, que vem com os meninos para receber a prenda." [Voz do guarda:]: "Não tá nada aqui?" [Voz de Luandino:] "Faça favor de ver." Viu e já ficou lá o balaio.

P-Com os manuscritos no papelão.

LV-A partir daí era um balaio totalmente inocente. Depois quando [a senhora chegou], eu disse: "Quero entregar pessoalmente." [Voz do guarda:] "Vai lá." [Voz de Luandino:] "Nha Ana, bom Natal, para os meninos." [Voz de nha Ana]: "Ah o senhor não precisava..." Levou, chegou a casa, tirou o milho, os papelões, e viu os papéis todos. Guardou.

P-Mas já sabia?

LV-Não, mas é alfabetizada, viu, guardou. Dias depois, quando veio trazer o leite, eu disse: "Guarde-me os papéis."

P-Quantas vezes fez esse truque?

LV-Várias vezes. Pus tudo cá fora.

"A Cruz Vermelha não falou comigo"

P-Consultou o seu processo na PIDE?

LV-Não, não tenho curiosidade.

P-Num relatório, o Vieira Fontes diz que a Cruz Vermelha só teve palavras de elogio nas duas visitas que fez ao campo. Isto significa que os presos não tinham queixas ou que não foram sinceros?

LV-Sei que a Cruz Vermelha visitou o campo, mas comigo não falaram. Se falaram com alguém, não sei quem. Vi a Cruz Vermelha, sim, visitou a capela, o refeitório, a casa onde se lavava a roupa, viu todas as estruturas do campo. Uma das vezes, penso que eu estava na biblioteca, viu a biblioteca, eles disseram: "Este é o bibliotecário."

P-Mas não o entrevistou?

LV-Não, não.

P-E não entrevistou outros camaradas seus?

LV-Que me lembre, não.

[Depois desta entrevista, Luandino telefonou do Tarrafal para acrescentar isto, de que entretanto se lembrara: "Não nos deixaram falar com a Cruz Vermelha sem a presença do director, porque não falámos inglês. Alguém disse: 'Mas o Graça [último apelido de Luandino] fala inglês...' O director não aceitou e eles foram-se embora. Da segunda vez, não me recordo."]

Não houve conversas com a direcção depois dessas visitas?

LV-Eu não tive. É uma coisa que a minha memória não esqueceria.

P-O Tarrafal modificou-o?

LV-Não.

P-Não deixou que o modificasse?

LV-Em mim, obrigou a sedimentar aquilo que já era, de maneira muito forte. Podia ter dado para o contrário. Eu podia ter ficado uma pessoa egoísta, amarga, com urgência em viver tudo ou ter tudo ou usufruir tudo, mas como já entrei sem nada, apesar de ser um privilegiado na sociedade onde vivia, se não entrei formado, entrei com os materiais todos da formação. O que o campo fez foi endurecer isso.

Considero que os meus anos de cadeia foram muito bons para mim. Estou a dizer do ponto de vista estritamente individual.

P-Porque o fortaleceram?

LV-Às vezes, de uma maneira quase leviana, costumo dizer que quem entra bom sai melhor, quem entra mau sai pior. O que é uma injustiça fantástica, mas em mim não consigo ler de outro modo. É por isso que me custa falar do Tarrafal. Não guardo ressentimentos a nada nem a ninguém e procuro perceber o que é que daquele tempo foi bom.

P-A sua vida seguinte, de que não vamos falar nesta entrevista, é a militância na construção de um Estado, de Angola. A forma como isso aconteceu foi muito determinada pelo que viveu no Tarrafal?

LV-Foi.

P-De que forma?

LV-Ainda hoje acredito que é possível aquilo com que sonhávamos. Aprendi no Tarrafal que nem que dure 50 anos, 60 anos, a situação actual é apenas um desviozinho no curso da História. Claro que gostava de ver tudo isso em vida minha...

P-Então, paciência e determinação.

LV-Paciência, determinação e um bocado de modéstia em relação à capacidade de modificar as coisas. O voluntarismo em si já é...

P-Uma arrogância?

LV-É, em relação à paciência que se tem de ter. Mas é necessário. É preciso sacudir a árvore. Se as maçãs estão verdes, elas não caem. Mas é preciso sacudir antes que elas apodreçam e caiam no chão.

P-Isso também é aprendizagem do Tarrafal?

LV-É. Era preciso ter muita paciência. Eu eduquei um pardal, que é um pássaro livre por natureza. Fiz amizade e, ao fim de quase dois anos, vinha e pousava-me no ombro. O cozinheiro dizia que eu era bruxo. E foi uma operação de paciência. Eu sentava-me sempre no mesmo sítio, a fazer a mesma coisa, a comer a mesma coisa, bagos de mancarra [amendoim], que era o meu suplemento diário para o ferro. Comia, comecei a atirar, e claro que as aves vêm, até que o mesmo pássaro começou a vir. Então, é reduzir a distância da comida, ganhar a confiança até ele vir comer ali. Depois a passagem mais difícil - não sei o que tem a mão humana que não há bicho nenhum que não tenha medo dela -, até comer na minha mão. E depois, naturalmente, eu podia fazer assim [faz um gesto], que ele vinha comer.

P-Isso é uma aprendizagem também para organizar militantes.

LV-Nunca pensei nisso dessa maneira [ri-se]. Mas a paciência dá para tudo.

P-Agora vai escrever?

LV-Depois deste colóquio do Tarrafal, vou entrar em fase de escrita, não vou terminar a Trilogia dos Rios [de que já saiu um volume e sairá em breve outro], e vou fazer um romance.

P-Que vai ser...?

LV-Sobre tudo quanto aprendi no campo. O que escrevi no campo era sobre a curta coisa que tinha aprendido na curta vida que tinha. E agora é sobre o que os meus companheiros me ensinaram no campo de concentração do Tarrafal.

P-Ou seja?

LV-É sobre a história de Angola.

P-De trás para a frente?

LV-Não sei. Gostava de a contar de trás para a frente. Só sei que a partir de Julho vou de novo tentar.

PÚBLICO – 01.05.2009

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