Moçambique para todos



VAMOS REMOVER A ARMA DA BANDEIRA DE MOÇAMBIQUE

Por Joaquim A.C. do Castelo

I. Preâmbulo

Este ano, Moçambique celebrou 39 anos de independência num momento conturbado pelo conflito político-militar na zona Centro do País ora terminado, e pelo ressurgimento massivo do crime violento armado e sequestros, particularmente na capital do país, Maputo. A maioria de todos, estes tristes acontecimentos foi protagonizada com recurso à arma de fogo e, coincidentemente com recurso a arma de assalto Kalashnikov. Relativamente ao conflito armado entre irmãos que havia sido ultrapassado com a assinatura dos Acordos de Roma em 1992, este eclodira mais uma vez certamente devido à incapacidade das partes – Governo (FRELIMO) e RENAMO – de se entenderem e se tolerarem mutuamente. Quanto ao crime violento com recurso a armas de fogo e a sequestros, entre muitos factores que devem ter contribuído para o seu alastramento, destaca-se (para mim) o do uso de discursos incendiários que encorajam a procura de riqueza a todo o custo sem metodologias específicas e, principalmente à própria insígnia da nossa bandeira, uma arma de fogo que imortaliza o poder das armas e, particularmente, da Kalashnikov (uma arma construída primariamente para a eliminação de vidas humanas).

Porém depois de conversações aturadas no Centro Internacional de Conferências Joaquim Chissano (CICJC) entre os representantes do Governo (FRELIMO) e os do partido RENAMO, os nossos líderes (Presidente Armando Emílio Guebuza e Afonso Macacho Marceta Dhlakama) mais uma vez conseguiram dar um passo crucial rumo ao fim das hostilidades militares, instruindo os seus negociadores para alcançassem e assinassem o Acordo de Cessação das Hostilidades, em 24 de Agosto de 2014, sendo a seguir homologado na Sexta-feira, dia 5 de Setembro do ano em curso pelo Chefe de Estado, Armando Guebuza, e o líder da Renamo, Afonso Dhlakama e subsequentemente transformado em lei por consenso, pela Assembleia da República, em 8 de Setembro de 20014.

No acto da homologação deste último acordo, o discurso das partes centrou-se na elevação da visão de um Moçambique mais seguro, próspero e, acima de tudo, pacífico. Esta visão tem a sua raiz num Moçambique mais inclusivo, em que em vez das forças de defesa e segurança pertencerem a um único partido (a FRELIMO) serão verdadeiramente constituídas por elementos vindos pelo menos das duas maiores forças políticas neste momento, a FRELIMO e a RENAMO, pese ainda as restantes forças políticas e vivas da sociedade moçambicana permanecerem fora deste cenário. Se a receita correcta para Moçambique é permitir que as forças de Defesa e Segurança sejam de origem partidária (o que para mim não é aceitável), então para criar um certo equilíbrio comportamental é melhor que elas sejam pelo menos de dois partidos nacionais do que serem monopolizadas pelo partido no poder.

Por tudo que acaba de ser mencionado nos parágrafos anteriores, pode-se depreender que 2014 foi um ano cheio de êxitos e conquistas em Moçambique. O país conseguiu consolidar a paz e reconciliação e, na área económica, o ano 2014 foi aquele em que Moçambique registou maiores progressos macroeconómicos assinaláveis, a receber mais investimentos estrangeiros e a descobrir mais recursos naturais. Porém, mais uma vez, não podemos esquecer que a coisa mais preciosa que aconteceu em Moçambique no ano 2014 foi o ressurgimento e subsequente aparente fortalecimento da Paz.

Para os apóstolos da desgraça que sempre acreditaram e apregoaram o desenvolvimento económico sem o desenvolvimento humano (trickle down economics, ou a economia das migalhas indirectas para o povo) fica o recado: a Paz e o Desenvolvimento são duas faces da mesma moeda. Por isso, é dever de todo o cidadão moçambicano incluindo “os individualistas”que só querem toda a riqueza e o desenvolvimento de Moçambique apenas para si e sua elite oportunista, redobrar esforços com vista a evitar todas as mensagens, linguagem e, acima de tudo, a desencorajar o uso de símbolos capazes de incitar à violência entre irmãos, sem demagogia nem complexos de superioridade (os psicólogos chamam-nos de complexos de inferioridade, porque só quem se sente inferior é que os exibe para compensar a sua inferioridade fazendo-se passar por superior). Assim, a prevenção de futuros conflitos em Moçambique deve ser operacionalizada através da combinação da arquitectura dos autores da Assinatura do Acordo Geral de Paz de 1992, e os signatários da homologação do Acordo de Cessação de Hostilidades, com a ajuda e contribuições de toda a sociedade civil (e não apenas a sociedade civil fantoche) Académicos, líderes políticos, religiosos e comunitários, não deixando de lado os homens e mulheres de negócios e, como é óbvio, todo o povo moçambicano.

Neste processo, devemos tentar – primeiro – identificar os pontos ‘quentes’ potenciais e, com a ajuda de todos, reflectir sobre estes. Eu já fiz a minha parte e identificou o nosso símbolo da “pátria amada”, a Kalashnikov na nossa bandeira, como um ponto quente que não só pode influenciar a nossa visão pró-guerra e crime violento armado no “solo pátrio”, como também pode servir para moldar a consciência e psicologia dos mais novos susceptíveis de pensar que só com uma arma na mão se pode progredir na vida.

Dado que Moçambique está hoje no caminho certo porque depois de muita experiência com conflitos armados, já nos apercebemos da importância da convivência pacífica à medida que escrevemos o nosso próprio futuro colectivo a partir das nossas experiências positivas e negativas do passado através da nossa capacidade de lidar com conflitos complexos, torna-se necessário sermos corajosos no sentido de podermos identificar e, onde possível, neutralizar os possíveis focos de contínuo conflito. É nesta óptica que depois de ter identificado a Kalashnikov como um dos pontos quentes que podem perigar a nossa paz, sugiro: VAMOS TIRAR (REMOVER) A CLASHNIKOV da nossa bandeira, pois não devemos ficar de braços cruzados perante o perigo eminente que ela representa.

II. Porquê Remover a Kalashnikov da nossa Bandeira?

Para começar, dado que na realidade muitos dos cidadãos que constituem uma nação nunca chegarão a conhecer-se uns aos outros, a ouvir falar sobre outros, nem mesmo a encontrar-se, nas suas obras sobre o nacionalismo, Benedict Anderson (2006) define uma nação como algo imaginado, pois “nas mentes de cada cidadão reside a imagem da comunhão da cidadania”. Então, símbolos fortes são aqueles que mantêm plantada firmemente tal comunidade imaginária na mente e nos corações dos cidadãos duma nação. Seguindo esta lógica, símbolos nacionais fortes são os que, nas palavras de David Kertzer (1984):

“…Possuem uma qualidade palpável e permitem que o povo encare conceitos como coisas. Esta asserção é evidente nas metáforas que ajudam a definir o universo político. De igual modo, uma bandeira não deve ser apenas um pedaço de pano decorado, mas sim devem corporizar uma nação; de facto, a nação é definida tanto pela sua bandeira assim como uma bandeira é definida pela nação.”

A Kalashnikov, uma arma automática vulgarmente conhecida por AK 47, foi fabricada em 1947, pelo russo Mikhail Kalashnikov. Em função das suas características, conservação sob condições precárias, baixo custo de produção, disponibilidade, facilidade no seu uso e eficácia, a Kalashnikov tornou-se, e ainda hoje é, uma das armas mais usadas e conhecidas no mundo, e para além da Rússia, é também produzida noutros países incluindo o Irão e Israel.

Logo após o seu fabrico em 1947, “…os soldados russos primeiro dispararam com raiva durante a supressão do levantamento da Hungria.” Até hoje, em todo o mundo incluindo Moçambique, a Kalashnikov é uma arma que simboliza a repressão, crime e, acima de tudo, ditadura. Segundo o jornalista investigativo de New York Times, C.J. Chivers (2002), a Kalashnikov é a arma escolhida por qualquer força de ocupação e pela maioria de grupos terroristas e ditaduras.

Nos Estados Unidos da América, as vendas da versão civil de AK 47 conhecida pelo nome Saiga tendem a subir anualmente. Neste país (E.U.A) a AK 47 é uma arma imensamente popular entre os caçadores desportivos, particularmente devido a facilidade do seu acesso e preço baixo. Isto não acontece apenas nos Estados Unidos da América como também na Europa onde a posse de pequenas armas de fogo é mais burocrática.

A Kalashnikov é igualmente usada em quase todas as zonas de conflito político-militar em África, na Ásia e no Médio Oriente, para não mencionar a América do Sul onde a Kalashnikov é a arma preferida no mundo do crime e do narcotráfico.

Em suma, pesando em média apenas 4 quilos, a AK-47 ou AKM (Kalashnikov) é muito usada por rebeldes, terroristas e bandidos, dada a facilidade de aquisição, manuseamento e limpeza. Esta arma tem um raio de acção útil acima de 1,5Km, embora com alcance eficaz de 600m e pode disparar cerca de 600 tiros por minuto.

Em Moçambique, a Kalashnikov já esteve nos dois lados da Guerra Civil e hoje, é ela a arma responsável pela morte de centenas senão milhares de moçambicanos tanto pelos bandidos comuns como por opositores ao regime e, pela polícia moçambicana cuja única linguagem é a violência armada.

Tomando em consideração as palavras de David Kertzner acima citadas, pode-se dizer que Moçambique de nenhuma forma é definido pela sua bandeira, ou seja, a Bandeira Nacional não define o nosso país. Moçambique e o seu povo possuem outras características e atributos mais nobres do que a Kalashnikov, uma arma estrangeira que decora um pedaço de pano que se faz passar por bandeira nacional. Como símbolo, a Kalashnikov apenas define um grupo de pessoas encontradas na FRELIMO e não Moçambique como nação tão pouco o seu povo. Por isso, apoquenta-me que a Kalashnikov seja celebrada como o símbolo do meu país, Moçambique, e que o partido no poder, a FRELIMO, insista em fazer de Moçambique o único país no mundo que se sente obcecado com a ostentação pública duma arma de assalto que não foi por si produzida e muito menos inventada e cujo inventor (vide Figura 1) morreu em 23 de Dezembro de 1994 sem nunca ter recebido quaisquer benefícios financeiros pela sua invenção, colocando-a na bandeira Nacional que, em princípio, deve representar todos os moçambicanos e não apenas os membros e simpatizantes da FRELIMO, partido no poder, e os seus apetites egocêntricos.

Quanto às razões que podem ser dadas à pergunta “Porquê Remover a Kalashnikov da Bandeira Nacional?” feita no início desta secção, a primeira é porque uma Kalashnikov na bandeira é tão ameaçadora e insultuosa para o povo de Moçambique como a Suástica de Adolfo Hitler foi e ainda é para o povo Judeu. Foi pela Kalashnikov que muitos moçambicanos foram assassinados tanto pelas então FPLM como pela RENAMO, publicamente fuzilados, e humilhados; é por ela que a FRELIMO e seus acólitos confundem Nação com partido, com a Kalashnikov servindo como um símbolo de orgulho e relíquia para os membros deste partido, o que é antidemocrático pois a democracia é mutuamente inclusiva. Para provar estas declarações da frase anterior, basta lembrar que mesmo depois da introdução da política multipartidária no país, a FRELIMO veio muitas vezes ao público dizer que a FRELIMO é o povo e que o povo é a FRELIMO, negando assim a diversidade de opiniões, escolha e a liberdade de opção política e ideológica em Moçambique, ao mesmo tempo que paradoxalmente apregoa a unidade nacional.

A segunda razão, é porque em vez de encontrar outros motivos, e existem muitos, para resgatar a dignidade (e se for o caso, a história) do povo moçambicano, a FRELIMO prefere colocar maior ênfase no poder das armas, particularmente na Kalashnikov, pelo facto de ter sido esta que este partido usou quando movimento de libertação. Ao proceder desta forma, pretende: (i) negar que houve muitos outros factores, incluindo a revolta interna de moçambicanos, o embargo de armas contra Portugal, o isolamento do governo português depois do Massacre de Wiriamu, a doença de Salazar em 1968 e sua substituição por Marcelo Caetano, a guerra de resistência em todas as ex-colónias portuguesa, o Movimento das Forças Armadas, os Acordos de Lusaca que contribuíram para a queda do regime colonial; (ii) manter o povo moçambicano cativo à luta armada de libertação nacional, uma vez que para este partido apenas o factor luta armada da FRELIMO “foi o único que contribuiu para a descolonização de Moçambique, o que não constitui toda a verdade.”

A terceira, mais sinistra, é porque a FRELIMO nunca conseguiu transformar-se de movimento de libertação para partido político civil, optando por exibir a arma principalmente para recordar ao povo os fuzilamentos em massa que o país sofreu, a luta dos 16 anos mais dois, e acima de tudo para subjugar o povo moçambicano ameaçando-o com armas de fogo. Esta última razão é que também faz com que o governo da FRELIMO não consiga retirar a Kalashnikov das mãos da polícia civil que sempre enverga esta arma de guerra mortífera, embaraçando assim todos os moçambicanos amantes da paz e assustando os visitantes que vezes sem conta chegam a pensar que estamos num estado de sítio, mas sem vergonha sem remorsos para os governantes.

A quarta e última razão é que no continente africano para além de Moçambique, a Libéria, Angola e o Sudão foram os países da África que mais receberam carregamentos de Kalashnikovs provenientes da Albânia, Egipto, Hungria, Alemanha e Bulgária e, segundo o Guinness – o livro dos recordes – a AK-47 é hoje a arma de fogo mais usada no mundo. Uma em cada 5 no mundo é uma kalashnikov. Em suma, como diz Roberto Saviano, a AK-47 matou mais do que a bomba atómica de Hiroshima e Nagasáqui, mais do que o SIDA, mais do que a peste bubónica, mais do que a malária, mais do que todos os atentados fundamentalistas, mais do que o somatório dos mortos de todos os terramotos. Estima-se que a Kalashnikov tenha sido responsável pela morte de pelo menos, 7 milhões de pessoas em todo o mundo.

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Figura Nº. 1: Mikhail Timofeevich Kalashnikov, em russo: Михаил Тимофеевич Калашников foi um militar russo, notável por ter projectado e inventado a Kalashnikov. 

1. Será que não podemos comemorar a nossa luta armada?

Sim, é verdade que somos um país fundado com base em violência armada: (i) lutamos pela independência usando armas de fogo e, apesar da multiplicidade dos factores que levaram com que Portugal sucumbisse às exigências dos nativos das suas colónias para a sua independência, a violência (luta armada) desempenhou um papel preponderante; (ii) ajudamos os nossos vizinhos e aliados usando a violência armada (ZANU no Zimbabwe, NRM no Uganda e ANC na África do Sul); encorajamos o exercício democrático (Guerra Civil dos 16 anos + 2) usando a violência armada. Com a excepção dos acordos de cessação de hostilidades assinados recentemente, na essência está claro que somos (tanto o governo da FRELIMO como a RENAMO) proponentes da forma mais desumana de resolver conflitos entre povos, irmãos e nações— o uso de armas de fogo, e não existe nenhuma sombra de dúvidas sobre isso.

Com o devido respeito para todos os leitores que tiverem a oportunidade de ver esta reflexão, pessoalmente já não consigo ver a razão que leva com que Moçambique continue a ostentar uma arma de fogo, particularmente uma Kalashnikov com uma baioneta inserida, numa altura em que estamos supostamente em paz. Como disse acima, é sobejamente sabido que esta é a arma eleita por malfeitores e criminosos crónicos neste país e pelo mundo fora. Muitos moçambicanos acreditam que vivemos, pelo menos aparentemente, numa democracia multipartidária, sendo assim inválido o argumento de que a razão da Kalashnikov é para não nos esquecermos da FRELIMO, o que seria um paradoxo em democracia. É decepcionante pensar que as pessoas que estiveram na luta pela independência de Moçambique hoje sejam tão ignorantes ao ponto de se sentirem felizes e realizadas com a presença duma AK-47 na nossa Bandeira Nacional.

Enquanto existem países com um passado mais violento do que o nosso (Vietname, Camboja, Sri Lanka, Nigéria ‘a Guerra Civil da Biafra’, Ruanda, Libéria, etc., etc., e mesmo os Estados Unidos da América na sua guerra civil, estes não usam a arma de fogo como um símbolo do seu “orgulho nacional” ao ponto de a incorporarem no seu hino nacional como nós fizemos, no trecho que diz…“Vejo o sonho ondulando na bandeira…”); lembre-se que o que ondula na nossa bandeira é uma Kalashnikov (AK-47 (Avtomat Kalashnikova – 1947, em russo), uma arma de assalto feita para matar seres humanos. E todas as manhãs nas escolas, ao entoarem o Hino Nacional, as nossas crianças repetem a mesma melodia, o que indirectamente influencia a sua estrutura de valores e, consequentemente, o seu comportamento pois começam logo a estabelecer uma relação entre a Kalashnikov na nossa bandeira com liberdade e, porque todos os “libertadores” em Moçambique são ricos, com a riqueza fácil.

Mais ainda, até é possível que algumas pessoas pensem e admitam que para se conseguir ser um “verdadeiro” moçambicano é necessário venerar a arma de fogo – e porque não tentar ter uma? Chega-se a esta assunção porque quase todos os crimes violentos que acontecem no território moçambicano são protagonizados por jovens desempregados e ansiosos em ser ricos, ou “psicologicamente perturbados” (apesar de não me lembrar ter visto qualquer diagnóstico do perfil de criminosos em Moçambique, feito pela polícia ou por entidades do serviço Nacional de Saúde).

Mais uma vez, questiona-se a inteligência daqueles que preferem manter uma AK 47 (Kalashnikov) com uma baioneta inserida, na nossa Bandeira como um símbolo nacional. A quem será que a Kalashnikov representa? Aos “libertadores da pátria”, muitos dirão. Mas será que Moçambique é apenas um país dos que participaram nos 10 anos de luta pela independência? Se a resposta for sim, então os restantes moçambicanos terão que repensar o seu futuro e reinventar um Moçambique que pertença a todos.

III. A história da campanha de remoção da arma da Bandeira Nacional

Para quem atentamente acompanha o desenrolar dos acontecimentos político-militares em Moçambique, está claro que no fim da Guerra Civil de 16 anos, a FRELIMO e a RENAMO – no âmbito do Acordo Geral de Paz de 1992 – entraram num pacto para ultrapassarem os principais nós de estrangulamento identificados ao longo das negociações de paz de Roma e com eles as inimizades e animosidades que opunham as partes.

Entre as questões imediatas que deviam ser tratadas pelas partes figurava a mudança do Hino Nacional e dos símbolos nacionais pois a Bandeira de Mozambique como a conhecemos hoje nasceu em 1983, oito anos depois da independência de Moçambique altura em que a FRELIMO governava como partido único. A bandeira que vigorou entre 1975 e 1983 vem ilustrada na figura 2, abaixo. Como vem acima mencionado, depois da bandeira na Figura 2, em 1983 esta foi mudada para dar origem à actual bandeira, ilustrada na figura 3 desta mesma página.

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Figura Nº. 2.: Primeira Bandeira de Moçambique independente, portanto da República Popular de Moçambique.

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Figuras Nº. 3 e 4: Bandeira da República de Moçambique e o Emblema Nacional

Como se pode ver, enquanto a bandeira ostenta a Kalashnikov, o emblema nacional ostenta também, para além do livro e da Kalashnikov e enxada, uma maçaroca que é inegavelmente um dos instrumentos que constam no emblema e símbolo do partido FRELIMO. Com a nova realidade multipartidária não fazia tanto em 1999 como não faz hoje, nenhum sentido manter uma bandeira e um emblema nacionais ostentando os símbolos e ideais de um só partido único, a FRELIMO. Para mim, impor a continuidade destes símbolos é a máxima expressão da ditadura de um partido que nunca sonhou viver em democracia e que, apesar de ter introduzido a economia do mercado, a sua gestão económica centra-se num capitalismo do Estado à mistura de corrupção e exclusão social.

Continuando, valendo-se da então nova Constituição de 1990, as duas partes concordaram introduzir um novo Hino Nacional e, com ele, novos símbolos nacionais ou, como reza o Artigo 13 da Constituição da República de 2005, “o emblema”.

1. A Primeira Tentativa de Mudança dos Símbolos Nacionais

Na sequência de concertações entre as bancadas parlamentares da primeira legislatura multipartidária, em Setembro de 1999, e em pleno período eleitoral, a Assembleia da República começou a trabalhar em torno da revisão do Hino Nacional e dos símbolos nacionais. No dia 02 de Setembro de 1999, a Assembleia da República lançou um concurso para o desenho da nova bandeira nacional e o respectivo emblema.

O lançamento deste concurso foi possível depois do maior partido da oposição em Moçambique, ter veementemente negado apoiar a emenda constitucional então prevista pela Assembleia da República sem primeiro mudar a bandeira e os símbolos nacionais de supremacia militar do partido FRELIMO caracterizados pela presença de uma Kalashnikov, um símbolo do comunismo, e a maçaroca e cores da FRELIMO na bandeira nacional. O concurso estava aberto para todos os cidadãos e cidadãs Moçambicanos/as artistas gráficos e o público em geral, e tinha as 12:00 horas do dia 16 de Setembro como fim do prazo de entrega das propostas. Um júri composto por cinco membros (3 da FRELIMO e dois da RENAMO) foi encarregue de avaliar as propostas submetidas. Foram registadas 199 propostas. Porém, no dia 20 de Setembro de 1999,. Porém Assembleia da República que considerou todas as propostas como medíocres.

2. A Segunda Tentativa Falhada de Mudança dos Símbolos Nacionais

Com a emenda constitucional de 2004, a RENAMO reforçou as suas exigências de ver uma nova bandeira nacional e um novo emblema. Com vista a poder convencer a RENAMO a aceitar a revisão constitucional, foi lhe garantida também a revisão dos símbolos nacionais sem a que a RENAMO não apoiaria nenhuma emenda constitucional naquele ano. Por outras palavras, sem a garantia dos seus pares da FRELIMO para a revisão dos símbolos nacionais, a RENAMO jamais iria aceitar a revisão constitucional de 2004 e a FRELIMO sozinha não poderia reunir os dois terços de votos necessários para a revisão da constituição. Revista a Constituição da República em 2004, no seu artigo 302 estabeleceu:

“ …As alterações da Bandeira Nacional e do Emblema da República de Moçambique são estabelecidas por Lei, no prazo de um ano, a contar da entrada em vigor da Constituição e aprovada nos termos do nº 1 do artigo 295 duma lei que entrou em vigor depois da divulgação dos resultados que deram vitória a Armando Emílio Guebuza.”

O optimismo e a esperança que se alimentavam naquele momento são reflectidos na citação que se segue do jornalista português Paulo de Anunciação, do jornal “O Público” então baseado em Maputo, no seu artigo com o título ‘Moçambique Engaveta o Socialismo’:

“Moçambique está a rever os seus símbolos revolucionários. Para já, vai mudar o hino nacional encomendado por Samora Machel. A bandeira também poderá não sobreviver. E se a colonial rua Nossa Senhora de Fátima em Maputo agora é de Kenneth Kaunda, também foi sugerido que a avenida Lenine passe a ser de Churchill.”

Porém, o projecto não teve progressos assinaláveis pois o mesmo foi-se arrastando a passo de camaleão até a saída do então presidente da República Joaquim Alberto Chissano e só viria a ser retomado em 2005, com Guebuza como o novo Presidente do país.

Em Abril de 2005, a Assembleia da República criou uma (outra) Comissão Especial composta por 15 elementos e presidida por Hermenegildo Gamito. No dia 16 de Junho de 2005, esta Comissão Especial lançou o segundo concurso público para a alteração dos símbolos nacionais, i.e., a bandeira e o emblema nacionais, adoptados depois da independência do país em 1975. Por outras palavras, o objectivo do concurso era, mais uma vez, a recolha de propostas de alteração da bandeira e dos símbolos nacionais.

No âmbito deste novo concurso, “os concorrentes deveriam apresentar propostas que transmitissem algumas mensagens de amplo significado para a vida do povo moçambicano, como seja, o sangue derramado pelo povo na luta pela liberdade; a unidade nacional; a paz, democracia e justiça social e as riquezas do país...” Foram apresentadas 169 propostas à Assembleia da República mas, no acto da sua entrega, nenhuma delas foi aberta. Apenas o presidente do Júri, Hermenegildo Gamito, prometeu avaliar as postas duma “forma objectiva”. Porém, depois da avaliação das primeiras propostas pelo júri, nenhuma foi seleccionada.

2. Movimento para a mudança dos símbolos nacionais

Apesar de não ter havido até aqui nenhuma organização que se tivesse pronunciado contra os símbolos da Pátria impostos pela FRELIMO, Entre as instituições que estavam contra o antigo Hino nacional e os símbolos actuais da Bandeira Nacional e a favor da sua mudança, destacava-se a própria Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO). Expressando a posição do seu partido, o seu líder Afonso Dhlakama, uma vez disse a jornalistas: “…os actuais símbolos nacionais foram adoptados pela Frelimo, no ano da proclamação da independência, em 1975, numa altura em que estava banida a existência de outros partidos, encontrando-se já desajustados, por força da introdução da constituição multipartidária de 1990.”

Outros contribuintes para a remoção da Kalashnikov da bandeira nacional incluem o jurista Custódio Duma, hoje Presidente da Comissão Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), órgão criado pela Lei 33/200, no seu artigo da internet, “Peço um voto para tirar a Kalashnikov da Bandeira”, escrito em 2009, o político Manuel de Araújo, e muitos outros indivíduos anónimo que falaram comigo, incluindo o Presidente do PDD/AD, Raúl Manuel Domingos que lamenta o facto de se gasto muito dinheiro em vão no projecto de alteração dos símbolos nacionais. Directamente ou indirectamente estas pessoas entendem que evidentemente, o partido FRELIMO parece orgulhar-se com a distinção dúbia de Moçambique ser o único país no mundo a ostentar uma arma “moderna” (Kalashnikov) na sua bandeira como seu símbolo nacional.

Para citar as suas próprias palavras, uma outra personalidade da vida pública moçambicana que se pronunciou contra os actuais símbolos da nossa pátria, o ex-candidato presidencial Carlos Jeque, disse:

“Tanto a bandeira como o emblema nacional foram concebidos na era de um governo do partido único. Hoje, o contexto é outro e o emblema poderia ser dispensado com a excepção das cores da bandeira – amarela, branca, verde e vermelha – estas não deviam ser tocadas.”

Através do seu artigo “Mancha negra na nossa bandeira”, Edy Adão Matavele escreveu uma carta ao Director duma publicação electrónica expressando a sua preocupação sobre a presença duma arma de fogo, Kalashnikov, na bandeira nacional. Devido à relevância desta carda, passo a transcrevê-la na íntegra:

“Mancha negra na nossa bandeira

SR. DIRECTOR!

Agradeço desde já a publicação desta reflexão nesta página que é de todos os moçambicanos. Julgo que não serei o primeiro, quiçá, não seja o último moçambicano a dissertar sobre este assunto, mas tal como os que já o fizeram, considero-o tão pertinente como pontual.

Maputo, Segunda-Feira, 24 de Setembro de 2012:: Notícias

O que me provoca “convulsões no estômago” é o facto de apresentarmos na nossa bandeira uma AK47 (Avtomat Kalashnikov 1947, com cerca de 100 milhões de exemplares que já tiraram a vida de mais de sete milhões de pessoas), vulgarmente tratada entre nós como AKM.

Fica desde já o aviso de que não pretendo aqui, de forma alguma, diminuir a importância que este instrumento teve na libertação e construção desta pátria. Mas, ao tomarmos em conta o simbolismo que a bandeira representa para um povo, se considerada um objecto que por si só caracteriza e identifica os povos, é muito provável que, mesmo antes de se saber, por exemplo, onde fica Moçambique ou quem será o chefe de Estado deste país, se conheça a bandeira deste, dado que a bandeira constitui um instrumento de fundação da nação, de soberania, é a representação máxima de um Estado, quer no seu território quer além deste, é o BI de todos os moçambicanos. O que significa que a sua apresentação deve representar a cultura e ideologia do povo.

Confesso que via com muita graça o facto de apresentarmos uma arma na nossa bandeira, mas a reflexão chamou-me à razão, até porque já tive de responder a várias perguntas desagradáveis por esse facto, perguntas decorrentes da indignação das pessoas, justificada pelo significado sanguinário que uma arma representa.

Reconheço a pertinência e importância que a AK47 teve e continua a ter para os moçambicanos, está mais do que claro que ela faz parte de nós, não reconhecê-la seria amputar a nossa própria história. Portanto, a lei causal que condicionou este facto pode ser perfeitamente incontestável, também este não é o cerne da questão, elemento questionável à partida é a causalidade de este símbolo permanecer num contexto explicitamente diferente. Somos um povo que resistiu secularmente para libertar a pátria, somos um povo que precisou de empunhar armas para construir a moçambicanidade, fizemo-lo com bravura. Somos heróis? Claro que somos! Mas não somos o único povo no mundo que o fez ou que ainda o faz e nem por isso esses povos decidiram colocar armas nas suas bandeiras (até porque, de acordo com o conhecimento que tenho, apenas dois países envergam armas nas suas bandeiras, e um deles é o nosso). A interpretação que nós, moçambicanos, temos para esse facto é bem diferente de quem não conhece a nossa história, pois para este fica a sensação de violência, fica com a impressão de que somos um povo beligerante e intolerante que usa armas de fogo para resolver os seus diferendos, armas que significaram e que ainda significam banho de sangue em várias paragens do mundo.

Mas nós, como um povo culto, inteligente e de valores culturais consagrados na PAZ e que, acima de tudo, teve tristes experiências com armas de fogo, não precisamos ser confundidos. Podemos ultrapassar este imbróglio, da mesma forma que o fizemos com o hino, que não era de consenso para todos os moçambicanos.

Sendo assim, julgo que este momento, em que comemoramos 20 anos de paz e 50 do jubileu da frente que libertou a pátria, constitui uma oportunidade soberana de trazer à tona este debate. O que proponho é uma forma (não me perguntem qual) de demonstrar a nossa bravura, contar esse episódio da nossa história ao mundo, sem ter, necessariamente, de apresentar uma arma na nossa bandeira, até porque agora estamos em outras frentes, a nossa guerra é outra. Esta não precisa de armas de fogo, precisa, sim, de moçambicanos adestrados para livrarem o país da pobreza que já não é absoluta…”

Apesar de não ter havido um movimento formal assim designado, a oposição aos símbolos nacionais (neste momento apenas a bandeira e o emblema, pois o Hino Nacional já fora alterado) era indirectamente constituído por pessoas que não tinha nenhum relacionamento entre si, mas que estavam a favor da mudança dos símbolos nacionais. Assim, enquanto muitos cidadãos alimentavam a esperança de ver a sua bandeira nacional sem a Kalashnikov, a FRELIMO trabalhava contra a mudança dos símbolos nacionais instrumentalizando vários segmentos da sociedade moçambicana.

Porém, a oposição parlamentar continuava a argumentar que num país civilizado, e não restam dúvida que eles acreditavam que Moçambique era um país civilizado, a bandeira nacional não deve exibir uma arma de fogo. Nas palavras proferidas por Eduardo Namburete do partido RENAMO nessa altura e citado pelo jornal The New Zealand Herald, “dado que os símbolos da pátria foram adoptados numa realidade diferente, a realidade actual não justifica que a arma na bandeira constitua um símbolo nacional; deve haver símbolos que se adaptam a nova realidade de um país multipartidário como o nosso.”

1. Movimento para a inviabilização da mudança dos símbolos nacionais

Enquanto os debates na Assembleia da República prosseguiam, paralelamente e com a ajuda dos veteranos da luta de libertação nacional Marcelino dos Santos e Lina Magaia, a FRELIMO estava a mobilizar um certo segmento da sociedade civil no sentido de protestar contra a alteração dos símbolos nacionais. Ao longo do mês de Novembro de 2005, os membros do partido no poder realizaram uma campanha em todo o país com vista a “consciencializarem” a população dizendo que remover a Kalashnikov da Bandeira Nacional seria um retrocesso e uma traição aos ideais defendidos durante a luta de independência. Este movimento que visava inviabilizar a mudança dos símbolos nacionais pode ser melhor entendido com base nos seguintes depoimentos dos membros da FRELIMO contra a mudança dos símbolos nacionais:

• Lina Magaia (Antiga Deputada da FRELIMO na AR): “Não posso aceitar a alteração dos símbolos nacionais. Esta questão é como o que se passa entre um filho e a sua mãe. Moçambique nasceu da luta armada de libertação nacional e tais fundamentos vêm reflectidos na bandeira”.

• António Hama Thai: “A Bandeira nacional e o respectivo emblema da República de Moçambique são referências históricas que não queremos abdicar.”

• Manuel Tomé (Ex-Secretário-geral da FRELIMO): "Não quero esvaziar essa discussão de maneira antecipada, mas essa bandeira nacional representa nossa unidade nacional; foi com base nesta bandeira que unimos a população contra o colonialismo."

• Joaquim Chissano: “Se a única estrela que está na bandeira tivesse que representar o comunismo, então os Estados Unidos da América que têm muitas estrelas na sua bandeira seriam o país mais comunista do mundo.

• Edson Macuácua (Secretário para a Mobilização): Depois da reprovação da mudança dos símbolos nacionais pela maioria parlamentar da FRELIMO (156 votos contra os 79 da RENAMO), Edson Macuácua rematou: “…não existem razões sociais, históricas e políticas que justifiquem a mudança dos actuais símbolos nacionais".

• A bancada da FRELIMO votou a favor da soberania do povo e da história do país"...a RENAMO perdeu uma oportunidade de se reconciliar com o país".

A intervenção mais determinante deste movimento para a inviabilização da mudança dos símbolos nacionais foi a do Marcelino dos Santos, veterano da luta de libertação nacional, que exigiu que a Comissão Especial fosse dissolvida. Marcelino dos Santos organizou grupos tais como a Organização da Juventude Moçambicana (OJM), a OMM, a “mulher dinâmica, um braço civil da FRELIMO”, para defender a não mudança dos símbolos nacionais argumentando que o trabalho da Comissão Especial da Assembleia da República era apenas um esforço vão que iria gastar rios de dinheiro que tanta falta fazia para executar estratégias de combate à pobreza, etc…Um exemplo de tais depoimentos é o da Associação da Mulher Dinâmica:

`Não entendemos como (os Deputados) podem ser influenciados por um punhado de indivíduos ambiciosos que só querem usufruir das conquistas do povo. Não entendemos como aceitam as tentativas de mudar o curso da história de um povo. A mulher dinâmica nega veementemente a mudança da Bandeira e do Emblema´, lê-se na referida mensagem.”

Outras organizações que se insurgiram à mudança dos símbolos nacionais incluem o Fórum de Concertação Sindical, em representação da Organização dos Trabalhadores de Moçambique - Central Sindical (OTM-CS), Confederação Nacional dos Sindicatos Independentes e Livres de Moçambique - CONSILMO, Sindicato Nacional de Jornalistas (SNJ), Sindicato Nacional de Professores (ONP-SNPM) e Associação dos Aposentados de Moçambique (APOSEMO) que depois de terem “reflectido sobre o processo de mudança dos símbolos nacionais, decidiu realizar uma manifestação pública em repúdio da revisão dos símbolos nacionais, nomeadamente a Bandeira e o Emblema.

Mesmo depois de tantos protestos de personalidade ligadas ao partido no poder e até manifestações públicas contra a mudança dos símbolos nacionais (bandeira e emblema), os trabalhos da Comissão Especial continuaram e em 30 de Setembro de 2005, um júri constituído por 5 personalidades: três do grupo parlamentar da Frelimo, nomeadamente Júlio Carrilho (arquitecto), Sansão Cossa (arquitecto) e Nelson Saúte (escritor e membro do Conselho de Administração dos CFM), e duas personalidades da bancada da Renamo-UE apresentou (Bernabé Lucas Nkomo (escritor e pesquisador na área de Ciências Sociais) e Xavier José Maria Mbeve (escritor) avaliou as propostas submetidas e escolheu uma proposta— a submetida pelo arquitecto José Forjaz como a proposta vencedora. O vencedor ganhou os cerca de 8.500 euros previstos e o segundo e terceiro classificados receberam 5.000 euros e 3.500 euros, respectivamente, de acordo com os termos de referência do concurso então divulgados. 

Porém, em Dezembro de 2005, a Assembleia da República rejeitou a moção da oposição para a remoção da arma de assalto Kalashnikov AK-47 da bandeira nacional. O voto para alteração da bandeira nacional e os respectivos símbolos foi de 155 votos da FRELIMO contra e 79 votos da RENAMO a favor. Mais uma vez, havia-se perdido uma rica oportunidade de desmilitarizar as mentes moçambicanas.

Muitos analistas externos encaram esta atitude como uma falha do partido FRELIMO de efectivamente se transformar de um movimento de libertação com aderência e ideologia restritas para um partido político normal inclusivo, um problema que existe em toda a África. Ainda hoje, existem muitas perguntas sobre como um povo sistematicamente martirizado por conflitos armados que mataram milhões de cidadãos conseguem sentir-se em paz com imagens de arma imortalizadas na sua bandeira.

Hoje, em plena campanha eleitoral, não vi ainda nenhum concorrente a abordar esta questão da relação entre a glorificação da arma de fogo na nossa bandeira e o crime violento armado no nosso país. Mais ainda, nem sequer o Bispo Anglicano Don Dinis Sengulane, patrono da iniciativa “transformação de armas em enxadas” alguma vez veio ao público repudiar a exibição de uma arma de fogo na bandeira de Moçambique como um símbolo da nossa pátria…Porque será? Sei que alguém irá argumentar que a arma na bandeira não comete nenhum crime, mas que sim as pessoas o cometem. Tal argumento seria inválido senão falacioso pois a Kalashnikov mata e uma submissão a ela causa um condicionamento crónico ao comportamento violento, como veremos a seguir.

IV. Os Efeitos da Exibição de Armas de Fogo

O efeito das armas é um fenómeno que evidencia que a presença de armas ou imagens de armas conduz as pessoas, particularmente aquelas anteriormente expostas a elas, a um comportamento agressivo. No seu estudo realizado há mais de 40 anos (em 1967), denominado “Weapons as Agressions-Eliciting Stimuli”, na Revista de Personalidade e Psicologia Social (Journal of Personality and Social Psychology) Leonardo Berkowitz e Anthony LePage citam um estudo realizado na Universidade de Wisconsin, Estados Unidos da América, em que os investigadores explicavam a relação existente entre um estímulo normalmente associado à agressão (como armas ou a presença das suas imagens) e respostas agressivas por parte das pessoas expostas…particularmente àquelas já preparadas para lidar com armas. A conclusão do estudo foi que “…a presença de armas ou mesmo de imagens de armas pode levar com que as pessoas se comportem mais agressivamente.”

Apesar de haver muitos estudos de investigadores em psicologia que criticaram o efeito das armas de fogo no comportamento agressivo, portanto criminal, os resultados dos estudos de Berkowitz e LePage, assim como os de Craig Anderson et al, nunca foram exactamente replicados, mas os efeitos da exposição à armas de fogo no comportamento agressivo e crime foram várias vezes confirmados em muitos contextos por diferentes equipas de investigadores, alguns dos quais concluíram que a explicação básica deste efeito básico de armas no comportamento agressivo envolve uma iniciação, ou efeito primórdio, que inclui o facto de que mesmo a menção frequente de armas de fogo pode causar um comportamento agressivo nos seres humanos.

Acredita-se assim neste contexto, que a identificação de uma arma pode automaticamente aumentar a exibição de um pensamento direccionado à agressividade e, como resultado, um comportamento violento. Muito recentemente, para replicar os estudos que levaram a esta conclusão, foram realizados dois estudos em que os investigadores usaram um exercício de pronúncia de palavras para testar a sua hipótese. Assim, as duas experiências dos investigadores consistiam em tentativas múltiplas em que um estímulo primordial (com arma ou sem arma) era seguido por uma palavra (agressiva e não agressiva) que tinha que ser lida o mais rapidamente possível. Na experiência 1, o principal estímulo era constituído por palavras enquanto na experiência 2 era constituído por imagens de armas. Ambas experiências concluíram que a mera identificação de armas provocava pensamentos relacionados com a agressividade.

Desde que em 1967 Berkowitz e LePage demonstraram que a presença de armas (um rifle e um revólver) produziram uma agressividade mais retaliativa contra o/a antagonista do que a presença de raquetes de badminton, foram realizados muitos outros estudos para replicar a exactidão dos resultados dos seus estudos, mas sem nenhum sucesso (Page & Sneidt, 1971). Porém, até hoje, nenhum estudo conseguiu desacreditar esta ligação completamente. Hoje, mais de quarenta anos mais tarde, existem mais do que suficientes evidências fortificando a relação entre a presença de armas ou mesmo de imagens de armas e o comportamento agressivo.

Por exemplo, muito recentemente, um estudo publicado pela revista Pediatrics indica que a presença de violência com recurso a armas de fogo em filmes classificados como PG-13 (Parental Guidance, uma classificação usada nos Estados Unidos da América para filmes destinados a maiores de 13 com supervisão de um adulto) mais do que triplicou desde 1985, ano em que foi introduzida esta classificação. Paralelamente, os autores do estudo concluem que, mesmo que os jovens que assistem a estes filmes não usem armas de fogo, por causa da crescente popularidade dos filmes classificados como PG-13, aqueles estão expostos a uma representação de armas e violência excessiva, o que poderá aumentar a adopção de comportamentos agressivos. E, invariavelmente, os comportamentos agressivos saldam-se na violência e crime.

1. Violência e/ou Crimes Violentos em Moçambique

Antes de mais, acho necessário definir os termos violência e crime e/ou crime violento. Enquanto o Congresso dos Estados Unidos da América define a violência como uma ofensa cujo elemento é o uso, ou ameaça de uso da força física contra alguém ou contra a propriedade alheia, o crime é definido como qualquer outra ofensa que é felonia e que, pela sua natureza, envolve um risco substancial em que se usa a força física contra alguém ou contra a propriedade do alheio na consumação da ofensa. O Federal Bureau of Investigation (FBI) dos Estados Unidos da América, define o Crime Violento como um crime composto por quatro ofensas, nomeadamente assassinato e homicídio voluntário, violação sexual forçada, roubo e assalto agravado. Aqui em Moçambique, e de acordo com um artigo colhido do blogue do Sociólogo Carlos Serra, num documento elaborado pela sede do Partido FRELIMO em Maputo e publicado na revista TEMPO na sua edição de 19 de Outubro de 1980, o crime é simplesmente definido como “…um mal social que importa combater,” atribuindo-o ao sistema colonial então decadente, e a outras razões como reza a seguinte citação da Circular da “Sede Nacional da FRELIMO” de 11 de Agosto de 1976 publicada pela Revista acima mencionada:

“0s criminosos, os bandidos, sejam eles, ladrões, assassinos, violadores de mulheres ou outros, são inimigos do povo, são inimigos da Revolução. São elementos reaccionários, são elementos contra-revolucionários.

São reaccionários porque ao roubarem os bens do Povo, ao assassinarem ou maltratarem trabalhadores ao abusarem das mulheres, (sic) agridem os mais elementares princípios do nosso Povo Trabalhador, atacando assim a linha política da FRELIMO.”

Porém, legalmente, a definição do crime, particularmente do crime violento, sugere que o mesmo resulta do comportamento de pessoas que, intencionalmente, ameaçam e atentam contra a integridade física doutras pessoas ou contra a propriedade alheia, e na realidade conseguem consumar as suas intenções. Independentemente do uso ou não de armas, apenas o grau dos danos causados à vítima do crime poderão determinar a seriedade de um crime. A página U.S. enfatiza que os crimes violentos contra indivíduos e sua propriedade “ …são tipicamente perpetrados com ódio, ou por um elevado grau de desconsideração da importância da vida da vítima…”, um aspecto que pode alterar a severidade de um crime aos olhos da justiça. Nesta perspectiva, legalmente o criminoso é uma pessoa que fez algo ilegal. Mas psicologicamente, o criminoso é definido de várias formas:

• O Dr. William Glasser (Médico) aplicou o termo “Escolha Racional” para interpretar o criminoso. E muitos criminologistas subscrevem a esta teoria pois acreditam que as pessoas escolhem ser criminosas. Esta abordagem sugere que o criminoso é uma pessoa racional. Também conhecida como a Teoria da Escolha Racional esta abordagem mantém que “as pessoas são livres de escolher entre seguir um comportamento criminal ou “convencional” (Siegel, 2005).

Quanto as razões que levam alguém a ser criminoso, evocam-se as necessidades pessoais, incluindo, ódio, vingança, necessidade, zanga, ciúmes, luxúria, vaidade e emoção. De acordo com Burke (2001) nesta teoria de “Escolha Racional” existem três modelos comportamentais: actor racional, actor predestinado e actor vitimado. O mais interessante de todos estes modelos é o de actor predestinado pois este mantém que um criminoso predestinado não consegue controlar os seus instintos tão pouco os seus ambientes sociais, o que o induz a cometer crimes. Nesta perspectiva, a única forma de resolver o problema de “criminosos predestinados” seria a de alterar o seu ambiente biológico, psicológico e sociológico. Finalmente, o modelo de “actor vitimado” propõe que os crimes são resultantes da desigualdade social…

• Para o falecido psicólogo britânico Hans J. Eysenck, pai teoria de personalidade e crime, o “comportamento criminal resulta de uma interacção entre certas condições ambientais e as características do sistema nervoso central” (Bartol & Bartol, 2005). Esta teoria não é uma das mais populares pois sugere que existe uma predisposição genética que leva alguém a enveredar por um comportamento anti-social. Os apóstolos de Eysenk acreditam que o criminoso possui uma moldura fisiológica única que, em conjugação com um certo tipo de ambiente, leva à criminalidade. Note-se aqui que Eysenk nunca chegou a sugerir que as pessoas criminosas nasciam como tal, mas defendia que a combinação de factores fisiológicos, ambientais e neurobiológicos é que eram responsáveis por transformar alguém num criminoso. Em suma, para Eysenk, coloca a sua teoria nas seguintes palavras:

“Não é a criminalidade em si que é nata; são certas peculiaridades do sistema nervoso central e autonómico que reagem com o meio ambiente, com a socialização e com muitos outros factores ambientais, para aumentar a probabilidade de alguém se comportar duma certa forma anti-social (Eysenk & Gudjonsson, 1989).”

2. Como as armas de fogo incentivam crime e violência

Para além de moldar o comportamento violento nas pessoas, a presença de uma arma de fogo na nossa bandeira inflaciona a prevalência da violência em Moçambique, cultivando a impressão de que Moçambique é um país em que só se chega ao poder, ou se consegue alcançar riqueza, com recurso a uma arma de fogo. O medo de ser deixado atrás pode ser um grande factor motivador para alguns jovens ganharem o apetite de esgrimirem armas de fogo, e tornar-se mais agressivos por pensarem “é desta vez; tenho a minha arma e vou tornar-me rico também.”

Apesar de não possuirmos psicólogos capazes de reflectirem sobre a questão da arma na bandeira de Moçambique, existem muitas evidências comprovando que de facto algumas crianças expostas a armas (e as nossas são sobejamente expostas), sofrem de ansiedade, depressão e uma desordem chamada stress pós-traumático, perturbações de sono, pesadelos e isolamento social. Estes sintomas podem ser comparados com os que uma criança exposta a violência dos órgãos de comunicação social (filmes violentos, etc.) pode experimentar.

Aliás, Moçambique não é o único país no mundo com problemas de experiências com a presença de armas (fisicamente ou em forma de imagens). Na sua abordagem com base na saúde, a Organização Mundial de Saúde (2004) possui estatísticas que revelam que “todos os anos, meio milhão de pessoas morrem de causas relacionadas com armas de fogo e que destas 200.000 pessoas morrem de violência interpessoal e crime e não da guerra e conflito armado. No âmbito desta abordagem da OMS, milhões de outras pessoas ficam feridas acabando por contrair uma incapacidade mental ou física.

Enquanto não consegui identificar nenhum estudo recente sobre o nível do crime com recurso à arma de fogo no nosso país, a OCISA conseguiu apurar que em 2008, foram reportados 40.312 crimes violentos (Procuradoria Geral da República) ou 27.254 crimes (Polícia da República de Moçambique. A maioria destes crimes foi com recurso a armas de fogo.

A seguir, eis uma tabela de Crimes em Moçambique, de acordo com

Em Moçambique circulam, a qualquer momento, mais de 1 milhão de armas de fogo nas mãos de moçambicanos. Mais adiante, procederei à estratificação das armas em Moçambique de acordo com os seus portadores.

Relativamente a relação entre a submissão às armas de fogo e a prevalência do crime violento em Moçambique, torna-se importante ler a seguinte constatação de Themba Shabangu do Instituto IDASA, que diz (o itálico é meu):

“Em Moçambique (e África do Sul), o grau e tipo de violência que os infractores usam quando cometem um crime é bastante preocupante e inexplicável. Durante roubos aos domicílios ou assaltos à viaturas, os infractores violam mulheres. Disparam para as crianças que choram durante o roubo. Usam armas e outros objectos para cometer crimes interpessoais e de aquisição. O uso da violência e armas, particularmente em situações em que a vítima não está resistindo e tão pouco constitui uma ameaça para os meliantes, serve para aumentar o medo do crime e insegurança.”

A tabela 1 que se segue ilustra o número de armas nas mãos de moçambicanos desde o ano 2000. Apesar de os autores dos dados recolhidos para a constituição desta tabela não mencionarem a marca específica das armas nas mãos de cidadãos moçambicanos e outras pessoas residentes no país, não restam dúvidas de que a maioria destas armas é de marca Kalashnikov.

Tabela 1: Armas nas mãos de civis em Moçambique:

|Mapa de estatísticas sobre a existência de armas de fogo em Moçambique |

| |Taxa de Armas nas |Taxa de Armas nas Mãos |Número de Portadores de|Número de Portadores de |Número das Armas |

| |Mãos de Civis por |de Civis num universo de|Armas de Fogo com |Armas de Fogo com |Licenciadas |

| |cada 100 |178 países. Número de |Licença de Porte de |Licença de Porte de Arma|(2005) |

| |Moçambicanos/as |Armas nas mãos de |Arma |em Cada 100 Moçambicanos| |

| | |Privados | |em 2009 | |

|1.000.000 |5.1 |Nº. 99 |4.000 |0.02 |7.000 |

Qual é a explicação desta relação? Uma resposta óbvia é que as armas sempre foram associadas como a agressão e, aqui em Moçambique, com o poder. Assim, a presença de uma arma na bandeira do nosso país aumenta a acessibilidade de pensamentos associados com a agressividade que, por seu turno, podem motivar um comportamento criminoso. A ideia de que a ctivação de um conceito na memória semântica aumenta a acessibilidade de conceitos relacionados ao conceito inicial chama-se a activação da generalização, um conceito demonstrado em vários estudos experimentais. Segundo Anderson, Benjamin e Bartolow que testaram esta hipótese, se esta activação da generalização do efeito das armas for correcta, então a presença de uma arma na nossa bandeira é capaz de incitar os/as cidadãos/ãs à violência.

Em Moçambique, para além de todo o povo, com particular ênfase nas crianças e adolescentes nas escolas, ser exposto (submisso) à arma de fogo na sua bandeira, o partido FRELIMO frequentemente evoca a luta armada de libertação nacional como tendo sido a única forma que levou ao derrube do regime colonial português em Moçambique, esquecendo-se até doutras foças vivas que tanto em Moçambique como noutras colónias portuguesas passiva- ou activamente se opunham ao colonialismo nos seus territórios nacionais, e doutros esforços das agências das Nações Unidas e foros tais como os recentemente celebrados Acordos de Lusaka, e a revolta das mães portuguesas sobre a morte dos seus filhos no ultramar (Angola, Guiné Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde), para não citar mais exemplos. Recentemente, vimos que para fazer valer as suas reclamações sobre a exclusão social e a Lei Eleitoral, o maior partido da oposição em Moçambique, a Resistência Nacional Moçambicana, recorreu mais uma vez às armas. Nos exemplos aqui mencionados, pretende-se dar primazia ao uso das armas como o único instrumento útil e viável para a resolução de conflitos, remetendo os outros métodos incluindo o diálogo ao segundo plano.

Voltarei num futuro muito breve para mostrar a relação entre a arma na nossa bandeira e a proliferação do crime violento armado em Moçambique. Irei, igualmente, comparar a bandeira de Moçambique com a da Hezbollah, a única organização no mundo que usa a arma como seu símbolo, um feito muito lamentável senão triste.

Referências

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Bartol, Anne M. and Bartol, Curt A. (2005). Criminal behavior: A psychosocial approach. Upper Saddle River, New Jersey: Pearson Prentice Hall.

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Burke, Roger Hopkins. (2001). An introduction to criminological theory. Criminal Justice Review, 377-381.

Eysenck, H. J., and Gudjonsson, G. H. (1989). The causes and cures of criminality. New York: Plenum.

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Webb, David, A. History of Forensic Psychology. accessed June 15, 2008

Wiebe, Richard P. (2004). Biology and behavior. Criminal Justice Review, 29, 196-205.

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