A crônica de Machado de Assis: leituras necessárias para ...



A CRÔNICA DE MACHADO DE ASSIS: LEITURAS NECESSÁRIAS PARA UMA LEITURA POSSÍVEL

Lúcia Granja – Universidade Paulista/Faculdades Padre Anchieta

RESUMO: Esse trabalho pretende apresentar a criação de uma possível rede de interlocução entre as leituras empreendidas pelo público-leitor dos principais periódicos cariocas, ao final da década de 1870. Isso será feito por meio da análise da crônica semanal escrita por Machado de Assis para o periódico O Cruzeiro. A própria crônica machadiana dá início a essa relação intertextual, à medida que as notícias que comenta, muitas vezes, foram publicadas em outros dois jornais da época, de maior circulação e mais importantes que O Cruzeiro, tais como a Gazeta de notícias e O Jornal do Comércio. Em seguimento, o trabalho pretende criar uma possibilidade de interpretação para o diálogo de leituras entre cronista e público-leitor, subjacente à leitura da própria crônica, e estabelecido a partir dela.

O jornal O Cruzeiro apareceu no Rio de Janeiro em 1º de janeiro de 1878. Junto com ele, Iaiá Garcia, romance de Machado de Assis, que saiu em folhetim entre 1º de janeiro e 2 de março de 1878. Nesse jornal, Machado publicou algumas fantasias, um conto, um diálogo em verso, um artigo, a famosa crítica a O primo Basílio e, o que nos interessa mais vivamente neste texto, as crônicas da série “Notas semanais”, entre 2 de junho e 1º de setembro de 1878. São quatorze crônicas longas, saídas aos domingos, as quais versavam sobre as variedades da semana. Elas compunham o “Folhetim do Cruzeiro”, título deste espaço do jornal, o rodapé da primeira página, que ocupava mais ou menos um quarto dela, quarenta e oito linhas divididas em sete colunas. “Há heranças onerosas”[1] diz-nos ELEAZAR, pseudônimo de Machado, no início da primeira crônica da série. Ao substituir SIC, Carlos de Laet, nosso escritor afirma que a responsabilidade do folhetim dominical era “onerosa e perigosa”, pois “a crônica não se contenta da boa vontade; não se contenta sequer do talento; é-lhe precisa uma aptidão especial e rara, que ninguém melhor possui, nem em maior grau, do que o meu eminente antecessor”[2].

Retórica à parte, e deixando de lado também o elogio machadiano a seu antecessor, pretendemos mostrar que Machado teve, como jornalista, a “aptidão especial e rara” de promover o debate de idéias, de “sacudir” o leitor de seu texto, exigindo sua participação ativa no processo de leitura. Essa atitude do jornalista, que não é estranha ao ficcionista, não nasceu no final da década de 1870, fase conhecida como a da “grande virada” da obra machadiana. Já em 1859, Machado escreveu um artigo “O jornal e o livro”, que publicou no Correio Mercantil, em 10 e 12 de janeiro, no qual demonstrava acreditar na “missão civilizadora” da leitura, especificamente, nesse caso, associada à amplitude democrática dos jornais:

O jornal é a verdadeira forma da república do pensamento. É a locomotiva intelectual em viagem para mundos desconhecidos, é a literatura comum, universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das idéias e o fogo das convicções.

O jornal apareceu trazendo em si o gérmen de uma revolução. Essa revolução não é só literária, é também social, é econômica, porque é um movimento da humanidade abalando todas as suas eminências, a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo literário, do mundo econômico e do mundo social.[3]

Em “Machado de Assis: um mestre da leitura”[4], Marisa Lajolo discute como o texto machadiano conteria um dos aspectos do projeto literário do escritor, que incluía a formação dos leitores empíricos, ao longo de cinco décadas. Isso pode explicar como desde o início, mas, principalmente, na obra mais madura, o narrador de Machado passou a contar com um leitor ativo como peça fundamental para o entendimento de seu texto. O ápice desse processo, salvo engano, poderíamos identificar em Dom Casmurro, de 1900. Assim sendo, também nas crônicas da série “Notas semanais”, de O Cruzeiro, o leitor é chamado a tomar parte do texto machadiano por meio de, pelo menos, duas formas diferentes de participação: por um processo direto, em que o leitor era nomeado diretamente no texto e chamado a tomar posição em relação às palavras até mesmo agressivas do narrador, processo, aliás, que o narrador ficcionista de Machado utilizaria, como se sabe, a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas [5]; por um processo, por outro lado, por meio do qual o leitor era chamado a participar do texto - e, cremos, isso se dava constante e quase naturalmente -, reconstruindo a rede de interlocução do folhetim machadiano, procedimento, esse também, caro à ficção do escritor. No jornal, esse processo dava-se por meio da recuperação da cadeia de notícias que se havia constituído em matéria para a crônica dominical. A hipótese maior, para além do universo de leitura instaurado pela crônica de Machado, é mostrar como o folhetim-variedades do domingo, durante boa parte do século XIX, trazia à luz, com sua publicação, uma rede dialógica[6] construída desde a ocorrência de um fato e publicação de uma notícia, a qual incluía várias leituras e formas de leitura: as leituras do cronista e as leituras de seus leitores; a leitura que cada periódico havia feito dos acontecimentos até transformá-los em notícias; no fim da cadeia, a síntese analítica que a leitura da crônica empreendia em relação a elas.

Nesse sentido, quem lê os jornais do século XIX, logo percebe que era comum a citação de outros periódicos no corpo dos textos do jornal. Sem entrar em questões de mercadologia, que, com certeza, seriam anacrônicas dentro dessa discussão, tal procedimento parece revelar um sistema de leituras, por parte dos assinantes e leitores diretos ou indiretos dos jornais, o qual incluía os mesmos sujeitos e vários periódicos. No Rio de Janeiro pouco letrado do XIX, o assinante de O Cruzeiro certamente não deixava de ler o mais grave Jornal do Comércio ou “os grandes jornais da Corte”, na expressão de Werneck Sodré [7], como a Gazeta de Notícias ou O País, vice-versa em relação aos assinantes desses jornais, os quais, muito provavelmente, eram também os leitores de O Cruzeiro. Como se sabe, o espaço de diálogo entre os periódicos ia do grave ao cômico, uma vez que os jornais e revistas ilustradas traziam caricaturas de outros periódicos, ou a partir de matérias deles, comentários jocosos etc. Um exemplo disso, para restringirmo-nos ao universo de O Cruzeiro e da Gazeta de Notícias, dá-nos a Revista Ilustrada. Como sabemos, O Cruzeiro publicava, como folhetim, de janeiro a março, Iaiá Garcia de Machado; enquanto isso, a Gazeta publicava o romance Mota Coqueiro ou a Pena de Morte, de José do Patrocínio. Embora diversos, a Revista Ilustrada de 10 de fevereiro publicou uma paródia cheia de humor nomeada Iaiá Coqueiro, assinada por “Frei Fidélis, o casamenteiro”. Além do diálogo evidente entre os diversos meios escritos, não podemos deixar de notar que o romance de Machado trazia boa repercussão ao jornal O Cruzeiro, uma vez que publicar um folhetim na Gazeta já era, nessa época, sinônimo de repercussão entre os leitores, pela circulação do jornal. Iaiá Garcia, porém, no recém-nascido O Cruzeiro, ia sendo lido e comentado, tendo, inclusive, recebido edição separada do jornal, na mesma época, conforme nos mostra o anúncio colhido à seção de classificados de O Cruzeiro, em 7 de abril de 1878, um mês depois, portanto, do encerramento da publicação do romance em folhetim:

Yayá Garcia

por Machado de Assis

Este famoso romance, que tanta aceitação obteve dos leitores do “Cruzeiro”, saiu agora à luz em um nítido volume de mais de 300 páginas.

Vende-se nessa tipografia, rua do Ourives n.º 51 e em casa do Srs. A. J. Gomes Brandão, rua da Quitanda, n.º 90; B. L. Garnier, rua do Ouvidor, n.º 65; E. de H. Laemmert, rua do Ouvidor, n.º 66; Livraria Luso-Brasileira, rua da Quitanda, n.º 24; Livraria Imperial, rua do Ouvidor n.º 81; Livraria Econômica, rua sete de setembro, n.º 88; Livraria Acadêmica, rua da Uruguaiana, n.º 33.

PREÇO 2$000.[8]

Estabelecida, assim, a existência de uma rede de diálogo entre os vários jornais e revistas da Corte, voltemos novamente as atenções ao leitor do folhetim-variedades e observemos como o narrador machadiano exigiu-o ativamente. O texto saído em 16 de junho de 1878 versava sobre as comemorações dos dias santos durante o mês de junho. Reproduzimos abaixo a segunda parte dessa crônica:

Venhamos à boa prosa, que é o meu domínio. Vimos o lado poético dos foguetes; vejamos o lado legal.

Os dias passam, e os meses, e os anos, e as situações políticas, e as gerações e os sentimentos, e as idéias. Cada olimpíada traz nas mãos uma nova andaina do tempo.

O tempo que a tradição mitológica nos pinta com alvas barbas, é pelo contrário um eterno rapagão, rosado, gamenho, pueril; só parece velho àqueles que já o estão; em si mesmo traz a perpétua e versátil juventude.

Duas coisas, entretanto, perduram no meio da instabilidade universal: 1.° - a constância da polícia, que todos os anos declara editalmente ser proibido queimar fogos, por ocasião das festas de S. João e seus comensais; 2.° - a disposição do povo em desobedecer às ordens da polícia. A proibição não é simples vontade do chefe; é uma postura municipal de 1856. Anualmente aparece o mesmo edital, escrito com os mesmos termos; o chefe rubrica essa chapa inofensiva, que é impressa, lida e desrespeitada. Da tenacidade com que a polícia proíbe, e da teimosia com que o povo infringe a proibição, fica um resíduo comum: o trecho impresso e os fogos queimados.

Se eu tivesse a honra de falar do alto de uma tribuna, não perdia esta ocasião de expor longa e prudhommescamente o princípio da soberania da nação, cujos delegados são os poderes públicos; diria que, se a nação transmitiu o direito de legislar, de judiciar, de administrar, não é muito que reservasse para si o de atacar uma carta de bichas[9]; diria que, sendo a nação a fonte constitucional da vida política, excede o limite máximo do atrevimento empecer-lhe o uso mais inofensivo do mundo, o uso do busca-pé.

Levantando a discussão à altura da grande retórica, diria que o pior busca-pé não é o que verdadeiramente busca o pé, mas o que busca a liberdade, a propriedade, o sossego, todos esses pés morais (se assim me pudesse exprimir), que nem sempre soem caminhar tranqüilos na estrada social; diria, enfim, que as girândolas criminosas não são as que ardem em honra de um santo, mas as que se queimam para glorificação dos grandes crimes.

Que tal? Infelizmente não disponho de tribuna, sou apenas um pobre-diabo, condenado ao lado prático das coisas; de mais a mais míope, cabeçudo e prosaico. Daí vem que, enquanto um homem de outro porte vê no busca-pé uma simples beleza constitucional, eu vejo nele um argumento mais em favor da minha tese, a saber, que o leitor nasceu com a bossa da ilegalidade. Note que não me refiro aos sobrinhos do leitor, nem a seus compadres, nem a seus amigos; mas tão-somente ao próprio leitor. Todos os demais cidadãos ficam isentos da mácula, se a há.

Que um urbano, excedendo o limite legal das suas atribuições, se lembre de pôr em contato a sua espada com as costas do leitor é fora de dúvida que o dito leitor bradará contra esse abuso do poder; fará gemer os prelos; mostrará a lei maltratada na sua pessoa. Não menos certo é que, assinado o protesto, irá com a mesma mão acender uma pistola de lágrimas; e se outro urbano vier mostrar-lhe polidamente o edital do chefe, o referido leitor aconselhar-lhe-á que o vá ler à família, que o empregue em cartuchos, que lhe não estafe a paciência. Tal é a nossa concepção da legalidade; um guarda-chuva escasso, que, não dando para cobrir a todas as pessoas, apenas pode cobrir as nossas; noutros termos, um pau de dois bicos.

Agora, o que o leitor não compreende é que esse urbano excessivo no uso das suas atribuições, esse subalterno que transgride as barreiras da lei, é simplesmente um produto do próprio leitor; não compreende que o agregado nada mais representa do que as somas das unidades, com suas tendências, virtudes e lacunas. O leitor (perdoe a sua ausência), é um estimável cavalheiro, patriota, resoluto, manso, mas persuadido de que as coisas públicas andam mal, ao passo que as coisas particulares andam bem; sem advertir que, a ser exata a primeira parte, a segunda forçosamente não o é; e, a sê-lo a segunda, não o é a primeira. Um pouco mais de atenção daria ao leitor um pouco mais de eqüidade.

Mas é tempo de deixar as cartas de bichas[10]

A crônica apresenta-nos mais do que uma lição de compostura e cidadania em seu leitor. No trecho, observamos como ela equipara o leitor e o cidadão, exigindo daquele que lê, e que, portanto, pode ter conhecimento do edital de proibição em relação aos fogos de artifício, a postura cidadã de reconhecer a soberania da nação, respeitando-lhe o direito das decisões legais, judiciais, etc., ao observá-las na prática, no cumprimento e respeito a essas decisões e determinações. Por detrás da associação do leitor ao cidadão está o ideal que Machado nos apresenta desde os textos da juventude, o de que a leitura civiliza e educa. Com um público-leitor reduzido no Rio de Janeiro da época, fica claro que o leitor do jornal está em interseção com o leitor do edital do chefe de polícia e Machado usa a tribuna do jornal, que o narrador da crônica, retoricamente, diz não existir, para buscar o “pé moral” daqueles que deveriam, por privilégio de entendimento, respeitar a liberdade, a propriedade, o sossego. É claro que a discussão aqui é mais ampla do que pode parecer a princípio. Não se trata de convencer o leitor a deixar de soltar fogos de artifícios – ou de achar razão ou não na determinação da polícia-, mas de respeitar, como dissemos, as determinações públicas, sem confundi-las com as decisões privadas, ou, ainda, saber que não é possível que uma dessas instâncias da vida social, a pública e a privada, ande bem se a outra também não andar. Essa educação do leitor pode se dar, ao que parece, pelo constrangimento causado pelas palavras públicas e privilegiadas do jornalista, que pretendem mudar a concepção distorcida de legalidade que ele atribui ter o leitor, -“um guarda-chuva escasso, que, não dando para cobrir todas as pessoas, apenas pode cobrir as nossas(...)”-, e, por extensão, a população em geral. Do alto de uma dos espaços possíveis de tribuna naquela sociedade, dos mais privilegiados, o narrador fala moral e politicamente à sociedade e exige daqueles que lêem as primeiras atitudes para uma necessária mudança. Que ele seja “míope” e “cabeçudo”, vá lá; mas está longe do prosaísmo que se atribui e de ser um “pobre-diabo”.

Um outro aspecto da participação ativa do leitor dos jornais, conforme exigida pela crônica machadiana, encontramos na crônica de 9 de junho de 1878, quando fica clara a rede do noticiário que o folhetim-variedades retoma ao tecer seus comentários da semana. Assim sendo, o trecho abaixo poderia nos mostrar que a matéria da crônica de Machado envelheceu definitivamente, tornando-a, em alguns casos, ininteligível ao leitor de hoje. No entanto, veremos que, o mais que o leitor dos dias atuais se coloque na posição do leitor do século XIX, o mais ele poderá compreender o folhetim de Machado, de modo a poder usufruir o gosto da leitura dessas pequenas narrativas curtas, na fronteira entre ficção e história miúda. Daí a importância dos trabalhos de edição crítica e conseqüente valorização desses textos[11]. A crônica de 9 de junho traz uma estranha história, uma alegoria sobre a gravidez do paço municipal da Vila de Sant’Anna do Macacu, o atual município de Cachoeira do Macacu, na região fluminense dos Lagos.

“Lembram-se de haver ardido o paço municipal de Macacu? Dizer-se agora que o incêndio não foi devido à combustão espontânea, nem a imprudência do paço, mas só e somente a oculto propósito. De quem e para que? Sobre esse ponto, acrescenta-se que as duas parcialidades políticas da vila se acusam mutuamente do desastre; não sei com que razões, mas acusam-se; é o que se diz. O caso seria gravíssimo, se fosse verdadeiro, porque indicaria a introdução de uma nova arma no arsenal dos partidos: o petróleo. A realidade, porém, é outra: a causa é toda pessoal, simpática e santa.

Em primeiro lugar, o paço municipal de Macacu não ardeu. Supôs-se que ardera, por não ser encontrado, de manhã, no lugar do costume. A suposição era verossímil, conhecidos os hábitos sedentários do paço, e o amor que dedicava à vila natal; mas, força é dizer que houve precipitação em afirmar uma hipótese, apenas verossímil, e de nenhum modo averiguada.

Que destino teria, entretanto, o paço? Para este ponto chamo eu a atenção das almas sensíveis. Saiba-se que esse paço, másculo na aparência, tinha conseguido até hoje dissimular o sexo, pois era e é nada menos que uma bela quadragenária. A fim de se poupar às seduções e conseqüentes perigos, disfarçou os encantos sob a estamenha de uma municipalidade interior. Nunca, em tão largos anos, pôde ser suspeitada a dissimulação. Os gamenhos de Macacu, baldos às vezes de corações disponíveis, mal suspeitavam que ali palpitava um, e vasto, e virgem. Os partidos revezavam-se sem dar pela coisa; e a bela incógnita parecia destinada ao eterno mistério.

Ultimamente, por motivos que não vem ao caso narrar, o paço municipal de Macacu sentiu em seu ser uma grande revolução: era mãe! Não se descreve a dupla sensação que este fato lhe produziu. Júbilo, primeiramente; depois terror. Complicação do natural com o social. Que admira? A vila é recatada e de bons costumes; o paço, pela austeridade de seu proceder, granjeara a universal estima. Ameaçava-o agora a execração universal. Sob a impressão do primeiro momento, o paço teve idéia de atirar-se ao rio; venceu porém, o instinto materno; essa quase Medéia por antecipação (como os leilões), fez-se uma simples Agar.

Como se aproximasse o termo da gestação, urgia buscar um sítio ermo, secreto, remoto, sem curiosidades nem murmúrios, onde a criança pudesse nascer tranqüilamente. Com tais requisitos, o mais próprio lugar era a nossa rua do Ouvidor. Esta rua chega a irritar um homem pelo excesso de descuriosidade. Nenhum dos seus transeuntes quer saber nada de nenhuma outra criatura humana; nunca ali circula o mínimo boato, e quando se inventa alguma coisa é sempre um rasgo de virtude. Tem acontecido dizer-se de dois cônjuges separados, que são o mais unido casal do mundo, e de um gatuno, que é cópia fiel de S. Francisco de Sales. Os olhos andam pregados no chão; ninguém perscruta os pés das moças e suas imediações. O todo da rua dá idéia de um corredor de convento.

Uma noite, o paço municipal saiu de Macacu, envolvido no capote menos municipal que encontrou à mão, com um chapéu derrubado, e umas barbas postiças, e encaminhou-se para esta corte, onde aliás não pôde chegar; a criança nasceu no meio da jornada. Pessoa que a viu diz que é singularmente robusta.

O incêndio era pois, uma calúnia, um aleive, uma inverdade, se me é lícito usar este barbarismo. Era uma maneira de julgar pelas aparências; era mais alguma coisa. Se delato o erro da infeliz, é porque há fortes esperanças de o santificar pelo matrimônio. Assim, não prejudico a situação profundamente municipal do paço, e arredo de sobre a cabeça dos partidos a suspeita de terem traduzido em macacuense as doutrinas da comuna. As fraquezas do coração pode absolvê-las a igreja; a história é que não tem bênçãos para o erro político. Sabia-o Macacu; saiba-o o universo inteiro.”[12]

O que quereria Machado dizer com essa história? É preciso retroceder à primeira aparição do incêndio nas crônicas de “Notas semanais”, precisamente na semana anterior à publicação da historieta. Em 2 de junho de 1878, Machado fala da combustão do paço e ironiza: “(...) Sobre as causas do desastre perde-se a imaginação em conjecturas, sendo a mais verossímil de todas a da combustão espontânea”[13]. Ainda que possa ser a origem de alguns incêndios, a combustão espontânea, com certeza, não poderia ser tão “espontânea” em se tratando de política.

Sem voltar aos jornais da época, não chegaríamos a entender, ou a formular uma hipótese aceitável, para a alegoria da gravidez do paço. Quando, na semana anterior, Machado comenta o incêndio, não havia notícias sobre ele nos principais jornais cariocas. Isso nos leva a crer que a notícia do incêndio tivesse chegado a Machado por telegrama ou oralmente, mas não fora transformada ainda em matéria escrita pelos jornais. Muito provavelmente, o público-leitor também compartilhasse da informação sobre o incêndio.

A primeira notícia impressa aparece em 5 de junho, terça-feira, na primeira página do Jornal do Comércio:

Sant’anna do Macacu – O Sr. Chefe da polícia da província do Rio de Janeiro, que por ordem da presidência fora a esta vila, como noticiamos, proceder a um inquérito relativamente ao paço da câmara municipal, achou ali a jurisdição prevenida pelo juiz municipal e regressou à capital. Na vila supunha-se geralmente que o incêndio não fora casual e ambas as parcialidades políticas imputavam reciprocamente uma a outra o fato criminoso.[14]

Como vimos, ela nos conta que o chefe da polícia fora impedido de proceder ao inquérito e que, em Macacu, os partidos políticos se acusavam mutuamente pelo incêndio. Observemos que no primeiro parágrafo acima citado da crônica, Machado retoma quase literalmente o texto da notícia saída em 4 de junho: “...as duas parcialidades políticas da vila se acusam mutuamente do desastre”[15] e “ambas as parcialidades políticas imputavam reciprocamente uma a outra o fato criminoso”[16]. Porém, isso ainda não é suficiente para que compreendamos a ironia que Machado construirá. Ambos, o leitor do século XIX e o leitor atual, precisam ter lido o Jornal do Comércio do dia 4 de junho, além da edição já referida do dia 5 de junho, para formular uma hipótese plausível para a referida historieta:

Municipalidade de Sant’anna do Macacu –

- Escreveram-nos

O promotor público da Comarca de Nova Friburgo, por ordem do presidente da província, denunciou no dia 31 de maio, o Dr. Cyrillo de lemos Nunes Fagundes, presidente da Câmara Municipal de Sant’Anna do Macacu, pelos crimes de desobediência e; e aos vereadores da mesma câmara(...)por prevaricação[17].

“Prevaricação” vem a ser, agora, juntamente com o texto que consta da crônica de Machado, e que ele retomara praticamente à notícia do Jornal do Comércio, as nossas chaves de interpretação. Na edição de O Cruzeiro de 7 de junho de 1878, fala-se em “dinheiros sumidos” na vila de Macacu, e que isso já havia sido denunciado anteriormente pelo Jornal do Comércio. É possível entender, então, a estranha história que Machado conta a respeito da “gravidez” do paço municipal. Como havia uma certa confusão e obscuridade na investigação do incêndio, além de irregularidades no paço municipal de Macacu, o cronista toma “prevaricar” - termo que aparece nos jornais, para a ação dos vereadores, na acepção de “cometer abuso de poder, provocando injustiças e causando prejuízo ao Estado ou a outrem” -, como “transgredir a moral e os bons costumes” ou “cometer adultério”. Assim sendo, narra a não verossímil história da gravidez e fuga do paço como a verdadeira causa do “desaparecimento” do paço municipal de Macacu. Esse procedimento acentua o “gravíssimo”( palavra usada pelo narrador da crônica) caso da acusação mútua do desastre pelos partidos da vila, uma vez que, sendo um incêndio criminoso o mais plausível motivo do fogo e desaparecimento do paço, essa nova “arma no arsenal dos partidos”, usar o “petróleo”, trazia justamente o “gravíssimo” da questão: a possibilidade de a corrupção e as más ações políticas serem acobertadas por esse tipo criminoso de destruição de evidências e conseqüente “encerramento” do caso. Machado exigia que o leitor do XIX articulasse todas essas informações de leitura para alertá-lo e, mais uma vez, ao público em geral tanto quanto fosse possível, para a possibilidade de os desmandos e abusos do poder público, se não esclarecidos pela atitude exigente do leitor-cidadão, pedindo licença ao leitor de hoje para o uso da expressão tão coloquial, “acabarem em pizza”.

Vimos, assim, como a publicação da crônica fazia repetir reversamente a rede dialogal das leituras, notícias e acontecimentos, pois as do cronista, expressas como uma escolha de leitura para os fatos, faziam voltar ao início da cadeia, à medida em que propunham um diálogo novo com as leituras que o público-leitor fizera. Verificamos, então, uma possível explicação para um mecanismo de funcionamento das leituras dos jornais na segunda metade do XIX, proposta a partir da leitura da crônica dominical. Nesse processo, não podemos deixar de acentuar que um procedimento literário do texto machadiano, a vontade de instrução e modificação de seu leitor, matiza com tons fortes um usual mecanismo da leitura dos jornais da época, a revisitação das páginas já lidas do jornal, procedimento que, sem dúvida, confere a essa leitura, a das publicações periódicas da época, peculiaridades essenciais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. 3. Ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Univeersitária, 1981.

BRAYNER, Sônia. "As metamorfoses machadianas". In: Labirinto do espaço romanesco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: MEC, 1979.

GRANJA, Lúcia. Machado de Assis, escritor em formação. À roda dos jornais. Campinas; São Paulo: Mercado de Letras; FAPESP, 2000.

LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1994.

MACHADO DE ASSIS. A Semana ( 1892-1893). Edição, Introdução e Notas de John Gledson. São Paulo: Hucitec, 1996.

MACHADO DE ASSIS. Bons dias !. Edição, Introdução e Notas de John Gledson. São Paulo; Campinas: Hucitec; Editora da UNICAMP, 1990.

MACHADO DE ASSIS. Obras completas, 31 vols. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1938.

MACHADO DE ASSIS. “O Cruzeiro”. In: Obras completas. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc,1950, vol. 23.

MACHADO DE ASSIS. Obra completa, 7ª edição, ed. Afrânio Coutinho, 3 vols. Rio de Janeiro, Aguilar, 1986.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

JORNAIS ( todos publicados no Rio de Janeiro)

Gazeta de Notícias, janeiro a junho de 1878.

Ilustração Brasileira, março de 1878.

Jornal do Comércio, janeiro a junho de 1878.

O Cruzeiro, janeiro a setembro de 1878.

-----------------------

[1] Machado de Assis. “Notas semanais”. In: O Cruzeiro, 2 de junho de 1878.

[2] ibidem

[3] MACHADO DE ASSIS, “ O jornal e o livro”, Obra Completa, Aguilar, 1986. Vol III, p. 945.

[4] Marisa LAJOLO, Do mundo da leitura para a leitura do mundo, pp 77-85.

[5] A respeito desse assunto, conferir, entre outros: Sônia BRAYNER. "As metamorfoses machadianas", Labirinto do espaço romanesco. Lúcia GRANJA, Machado de Assis, escritor em formação. À roda dos jornais.

[6] Retomamos aqui os conceitos de Bakhtin referentes à polifonia, ou à idéia de que não existe apenas um responsável por um enunciado. No caso de Machado, o narrador constrói, quase sempre explicitamente, a imagem do leitor, poderíamos dizer, um leitor implícito a seu texto. Esse, com as devidas mediações, seria o ponto de partida para a mudança de atitude do leitor empírico, em contato com o texto machadiano, uma vez que ele se deve envolver ativamente com o texto narrativo, a fim de fruí-lo com a necessária inteligência no processo de leitura.

[7] Nelson Werneck Sodré, História da imprensa no Brasil, p. 246.

[8] O Cruzeiro, “Classificados”. Rio de Janeiro, 7 de abril de 1878, p. 4.

[9] As “castas de bichas” eram um tipo de fogo de artifício, queimado, na época, por ocasião das festas juninas.

[10] Machado de Assis. “Notas semanais”. In: O Cruzeiro, 16 de junho de 1878.

[11] Nesse ponto, não podemos deixar de nos referir ao pioneirismo dos trabalhos de John Gledson e à nossa pesquisa atual. Vimos editando, em pareceria com John Gledson, as crônicas que Machado de Assis escreveu para O Cruzeiro, entre 2 de junho e 1º de setembro de 1878. A natureza dessa edição é, como a dos trabalhos anteriores de Gledson, estabelecer o texto definitivo da crônica machadiana, sem erros ou imprecisões textuais, a partir da leitura do jornal, fonte primária em que foram publicadas essas “revisões da semana”. A maior intenção é, a partir daí, organizar notas explicativas às várias situações e comentários da crônica, uma vez que esses assuntos deixam o leitor de hoje em dia em desvantagem com relação ao leitor da época, pois sabemos que é da natureza da crônica, texto na fronteira entre a elaboração literária e a referência informativa cotidiana, envelhecer junto com os assuntos miúdos dos quais trata. A edição anotada das crônicas de Machado, e de quaisquer crônicas que despertem interesse do pesquisador e do leitor atual, dentro da perspectiva de resgate da viabilização da leitura e entendimento desses textos, garante a legibilidade dessas crônicas, as quais, se, por um lado, carregam em si o caráter efêmero do próprio veículo em que são publicadas, o jornal, por outro lado, vão deixando registradas análises, idéias, leituras do cronista em relação aos assuntos que torna matéria de sua conversa semanal com seu público-leitor. No caso das crônicas de Machado, e de quaisquer outros cronistas do século XIX, essa questão se torna ainda um pouco mais complicada, devido às características especiais de duração do jornal nas mãos de seus leitores, naquela época. Sem dúvida, o texto que seria para nós, hoje em dia, objeto de uma leitura rápida, de um “passar de olhos” em meio à extensão e variedade dos textos dos jornais em seus vários cadernos, naquela época, ocupava mais o tempo e a atenção dos leitores.

[12] Machado de Assis. “Notas semanais”. In: O Cruzeiro, 9 de junho de 1878

[13] Machado de Assis. “Notas semanais”. In: O Cruzeiro, 2 de junho de 1878.

[14] Jornal do Comércio, “Noticiário”. Rio de Janeiro, 5 de junho de 1878, p. 1.

[15] Machado de Assis. “Notas semanais”. In: O Cruzeiro, 9 de junho de 1878.

[16] Jornal do Comércio, “Noticiário”. Rio de Janeiro, 5 de junho de 1878, p. 1.

[17] Jornal do Comércio, “Noticiário”. Rio de Janeiro, 4 de junho de 1878, p. 1.

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download

To fulfill the demand for quickly locating and searching documents.

It is intelligent file search solution for home and business.

Literature Lottery

Related searches