Jornalismo Esportivo: 110 Anos Sob Pressão ... - Intercom

Intercom ? Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunica??o XXX Congresso Brasileiro de Ci?ncias da Comunica??o ? Santos ? 29 de agosto a 2 de setembro de 2007

Jornalismo Esportivo: 110 Anos Sob Press?o (Uma hist?ria de acusa??es de sensacionalismo, suborno, inven??o de not?cias e rela??es prom?scuas com fontes e anunciantes)1

Mauricio Jos? Stycer (Mestrando em Sociologia na Universidade de S?o Paulo)2

Resumo A pr?tica do jornalismo esportivo brasileiro ? marcada pela recorr?ncia de alguns graves problemas, apontados por expoentes da ?rea, desde meados do s?culo XX at? o in?cio do s?culo XXI. Por meio dos textos de Thomaz Mazzoni, Jo?o Saldanha e Juca Kfouri, entre outros, ? poss?vel perceber como esta ? uma especialidade sob constante press?o e praticada por jornalistas com pouco prest?gio interno em suas publica??es. Palavras-chave: imprensa; jornalismo esportivo; sociologia do jornalismo; futebol.

1 Trabalho apresentado no VII Encontro dos N?cleos de Pesquisa em Comunica??o ? NP de Jornalismo 2 Jornalista profissional desde 1986. At? novembro de 2006 era redator-chefe da revista CartaCapital. Desde 2005, ? aluno de mestrado no Programa de Sociologia na FFLCH da USP.

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A chegada de um novo di?rio esportivo ?s bancas, em 25 de outubro de 1997, alterou de forma significativa a situa??o deste segmento de mercado. Em poucos meses de vida, o Lance! tornou-se o di?rio esportivo mais popular do pa?s, testemunhou em 2001 o fechamento do seu principal concorrente em S?o Paulo, A Gazeta Esportiva, e viu o seu ?nico concorrente no Rio de Janeiro, o Jornal dos Sports, enfrentar sucessivas tentativas de revigoramento, at? hoje sem sucesso3. Ao completar oito anos de vida, no final de 2005, o Lance! comemorava o fato de ser um dos dez jornais mais vendidos em banca no pa?s, com uma circula??o di?ria, m?dia, de 128 mil exemplares.

Com o apoio das Organiza??es Globo, s?cia minorit?ria do jornal, e de tr?s fundos de investimento (Icatu, Dynamo e Bozano Simonsen), o Lance! apresentou-se ao mercado como um empreendimento "moderno" e "profissional" (em oposi??o ? estrutura familiar da maioria das empresas de m?dia do pa?s). No discurso de seu fundador, Walter de Mattos Jr., o jornal atribu?a-se a tarefa de renovar a forma de gerir neg?cios de m?dia no pa?s bem como de "modernizar" o jornalismo esportivo praticado ent?o na imprensa, considerado "velho" e "ultrapassado"4.

Esta comunica??o destina-se a verificar qual era, de fato, a situa??o do jornalismo esportivo e o status dos profissionais que atuavam no meio ? ?poca em que o Lance! chegou ao mercado. Cumpre advertir que, diferentemente do futebol, que ? hoje objeto de investiga??o em diferentes centros universit?rios do Pa?s e j? exibe uma razo?vel bibliografia, constru?da ao longo dos ?ltimos 25 anos, sobre os seus mais variados aspectos, s?o poucos os estudos dedicados ao jornalismo esportivo, em particular. Cento e doze anos depois da primeira partida de foot-ball disputada oficialmente no pa?s5, esta especialidade, me parece, ainda n?o foi estudada de forma proporcional ao espa?o que ocupa na imprensa brasileira. At? onde fui capaz de ir com esta pesquisa, travei conhecimento de apenas dois estudos acad?micos de f?lego que buscam, de alguma forma, entender e tipificar o jornalismo esportivo.

O jornalista Ouhydes Jo?o Augusto da Fonseca ? autor de um trabalho pioneiro, apresentado em 1981, mas nunca publicado, no qual faz um hist?rico do desenvolvimento da especialidade na imprensa brasileira, apresenta depoimentos e

3 Em fevereiro de 2007, o Jornal dos Sports declarava uma circula??o de 15 mil exemplares/dia. "Her?is da resist?ncia", Meio & mensagem, Especial Marketing Esportivo, 26 de fevereiro de 2007, p?g. 25. 4 Trabalhei no Lance! desde o in?cio do projeto, em agosto de 1997, at? abril de 1998. Esta experi?ncia ajudou a embasar a minha disserta??o de mestrado, Hist?ria do Lance! ? Projeto e pr?tica de jornalismo esportivo, a ser apresentada ao Programa de P?s-Gradua??o em Sociologia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ci?ncias Humanas da Universidade de S?o Paulo, em 3 de agosto de 2007. 5 S?o Paulo Railway versus Cia. de G?s, disputado em 14 de abril de 1895.

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dados que explicitam as dificuldades iniciais dos profissionais da ?rea e denuncia, como veremos, problemas ?ticos envolvidos na pr?tica profissional6. As profundas mudan?as que ocorreram no mercado desde a realiza??o da disserta??o tornam o trabalho de Fonseca, por?m, insuficiente para explicar as atuais peculiaridades do campo.

O antrop?logo Luiz Henrique de Toledo ? autor de um estudo mais atual, ainda que n?o dedicado exclusivamente ao jornalismo esportivo, no qual prop?e um modelo de an?lise dos diversos significados culturais do futebol, a partir de tr?s realidades dentro do campo esportivo, vividas por aqueles que ele chama de profissionais (jogadores, t?cnicos, dirigentes, ju?zes, preparadores, m?dicos etc), especialistas ("a cr?nica esportiva") e torcedores7. Toledo subdivide a "fala especialista" em tr?s perspectivas: a que se legitima por um discurso emocional, afinado com o dom?nio do torcedor, a que se dedica ?s pol?micas estritamente t?cnicas (normalmente vocalizadas por ex-jogadores que se tornaram "comentaristas") e a que enfatiza os aspectos pol?ticos do futebol. Ao fazer um hist?rico da atua??o dos especialistas no campo, o antrop?logo exp?e algumas clivagens que opuseram essas diferentes perspectivas, em particular a quest?o do clubismo e do bairrismo, que coloca o especialista diante do dilema de ser objetivo e eq?idistante ou dar vaz?o ? emo??o. E, ainda que tamb?m trate de s?rios problemas ?ticos envolvidos na pr?tica profissional, como a liga??o de jornalistas em negocia??es de jogadores, a ?nfase do pesquisador em sua "jornada esportiva" parece ser mostrar como a "dimens?o da emo??o (...) consiste num plano simb?lico estruturante que permeia as rela??es entre os atores combinados, ao qual est?o sujeitos os pr?prios especialistas"8.

Al?m do estudo de Toledo, tamb?m ? necess?rio mencionar a recente comunica??o do professor de jornalismo Jos? Carlos Marques, apresentada na Intercom, sobre o estigma relacionado ? pr?tica do jornalismo esportivo, que nos ajuda a compreender alguns dos problemas da especialidade9. Por fim, vale citar tr?s obras recentes que sinalizam um interesse do mercado editorial de livros para-did?ticos pelo jornalismo esportivo. S?o textos escritos por jornalistas com reconhecida atua??o no meio, destinados a estudantes universit?rios. Embora n?o aprofundem a discuss?o, s?o

6 O. Fonseca. O "cartola" e o jornalista: Influ?ncia da pol?tica club?stica no jornalismo esportivo de S?o Paulo, disserta??o de mestrado, apresentada ao Departamento de Jornalismo da Escola de Comunica??es e Artes da USP, 1981. 7 L.H. Toledo. L?gicas no futebol, p?g. 15. 8 Idem, p?g. 174. 9 J.C. Marques. O estigma de ser jornalista esportivo. Apresentada ao XXVI Congresso Brasileiro da Intercom, Belo Horizonte, 2003.

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valiosos por mostrar como o profissional "de dentro" enxerga o pr?prio trabalho. ? o

caso de Paulo Vinicius Coelho, autor de um dos volumes, que trabalhou na primeira

equipe do Lance!, bem como na revista Placar e no canal especializado em esportes ESPN10, e tamb?m de Mauro Beting, Elias Awad, Jos? Eduardo de Carvalho e Denise

Mir?s, co-autores de outro, que s?o conhecidos jornalistas esportivos em atividade em diferentes ve?culos no meio11. Igualmente, a experi?ncia de Patr?cia Rangel na ?rea a

ajudou a redigir um volume explicitamente paradid?tico, que se prop?e a ser um manual para candidatos ao m?tier12.

O jornalismo esportivo, como se sabe, se desenvolveu no Brasil

concomitantemente ? populariza??o do futebol. Desde o in?cio, foi uma especialidade

menos relevante dentro do jornalismo, nitidamente subalterna em rela??o ao jornalismo

pol?tico, por exemplo, e atra?a profissionais com menos habilidades e ambi??es que os

redatores pol?ticos e/ou liter?rios. No depoimento de Adriano Neiva (1907-1990),

jornalista esportivo e historiador, conhecido como De Vaney, vislumbra-se a situa??o

desse profissional no in?cio do s?culo XX: As fun??es n?o eram fixas nem, muito menos, compensadoramente remuneradas. A maioria dos "cronistas" trabalhava de gra?a, s? para ter o ensejo de escrever em jornal, j? que essa era a sua inclina??o, e para poder, principalmente, defender o seu clube, porque, naquele tempo, tal como hoje, o "cronista" tinha seu clube preferido, com a diferen?a de que, antes, ?quela ?poca, ningu?m fazia segredo disso. Pelo contr?rio: eram comuns os escudos ? lapela dos "cronistas" e indispens?vel a sua presen?a nas comemora??es dos triunfos. O redator profissional, mas que fazia da imprensa um simples "bico", tanto podia ser "cronista" de esportes no domingo, como redator policial na segunda-feira, cr?tico teatral na ter?a, rep?rter de rua na quarta, observador pol?tico na quinta ou ? o que n?o era raro ? tudo isso ao mesmo tempo... N?o havia especializa??o13.

A comprovar o que escreveu Ruy Castro sobre o trabalho dos rep?rteres

esportivos no Rio de Janeiro em 1927 ("N?o fosse pelo lanche que os clubes ofereciam nos dias de treino, alguns desses rep?rteres morreriam de fome"14), De Vaney se

recorda que os jornalistas de esporte n?o recebiam sal?rios regulares, mas viviam ? base

10 P.V. Coelho. Jornalismo esportivo. 11 S. Vilas Boas (org.). Forma??o & informa??o esportiva. 12 H. Barbeiro & P. Rangel. Manual do jornalismo esportivo. 13 Adriano Neiva, "Escrevendo uma hist?ria", em 60 anos de futebol no Brasil, FPF, S?o Paulo, 1954, p?g. 66, apud Milton Pedrosa, "A cr?nica esportiva e o cronista de futebol", in O olho na bola, Rio de Janeiro, Gol, 1968, pg. 9. Neiva usa o termo "cronista" para designar, genericamente, o jornalista esportivo. ? uma forma antiga, em desuso, mas ainda evocada. A principal associa??o de jornalistas esportivos de S?o Paulo, fundada em 1941, por exemplo, mant?m at? hoje o seu nome original, Associa??o dos Cronistas Esportivos do Estado de S?o Paulo. 14 R. Castro. O anjo pornogr?fico, p?g. 114.

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de vales. "A maneira de pag?-los tinha um qu? de burlesco e muito de humilha??o: o vale, esse vale que foi o vale de l?grimas de duas gera??es de jornalistas"15.

Mais do que De Vaney, ser? um seu contempor?neo, o imigrante italiano Thomaz Mazzoni (1900-1970), que apontar? os principais problemas da pr?tica do

jornalismo esportivo no per?odo. No comando da Gazeta Esportiva por dez anos a partir

de 1930, e tamb?m como colunista, ajudou a dar uma cara ao jornal e influenciou os debates que ocorriam no mundo esportivo por algumas d?cadas. Ao longo da carreira,

publicou duas dezenas de livros, dois dos quais se tornaram refer?ncia em grande parte dos estudos sobre futebol: Problemas e aspectos do nosso futebol, de 1939, e Hist?ria

do futebol brasileiro, de 1950.

Nas cr?ticas que far? aos colegas, Mazzoni responsabiliza a imprensa pelo est?mulo ao bairrismo e pelo acirramento da competi??o entre cariocas e paulistas nas

primeiras d?cadas do s?culo passado. Os jornalistas, escreve ele, s?o culpados n?o s? pelo mau comportamento dos torcedores, mas tamb?m dos jogadores:

Se essa imprensa foge de sua verdadeira miss?o, se ? escandalosa e perniciosa, envenena o ambiente: os jogadores v?o a campo malintencionados, os `torcedores' ficam de preven??o contra tudo que n?o seja do seu lado. (...) Maior ? essa nobre miss?o quando se trata de futebol interestadual, porque este tem por finalidade fazer conhecer-se, unir e querer bem os brasileiros, das diferentes regi?es16. Numa evid?ncia do inc?modo que lhe causava os exageros no notici?rio esportivo,

Mazzoni tamb?m ataca o "sensacionalismo" da imprensa no pref?cio do livro que publicou sobre a Copa do Mundo de 1938.

Previno os leitores que n?o me animei a publicar este livro com o intuito de explorar o sensacionalismo, g?nero esse, infelizmente, de jornalismo esportivo muito em voga em certa imprensa que de outro modo n?o teria p?blico e que, no entanto, muito mal faz ao esporte17. Em outro texto, tamb?m da d?cada de 30, Mazzoni acusa os colegas de

inventarem entrevistas com jogadores, no esfor?o de promover e valorizar o notici?rio.

Sem meias palavras, mas omitindo os nomes dos respons?veis, Mazzoni atribui a alguns rep?rteres a viola??o inescrupulosa da regra mais fundamental do jornalismo:

Na maioria das vezes ? o entrevistador quem `inventa' as declara??es, e n?o o entrevistado... No Rio, chegou-se ao c?mulo dos rep?rteres cumprimentarem um jogador na rua e, no outro dia, publicar uma sua entrevista!18

15 A. Neiva, op. cit. 16 T. Mazzoni. "A boa imprensa e o combate ? indisciplina", in Problemas e aspectos do nosso futebol, p?gs. 31-32. 17 T. Mazzoni. "Duas palavras", in O Brasil na Ta?a do Mundo, p?g. 7. 18 T. Mazzoni. "A degenera??o da entrevista aos jornais", in Problemas e aspectos do nosso futebol, p?gs. 195-198.

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