NOTAS HISTÓRICAS SOBRE O ESPORTE EM GOIÁS

NOTAS HIST?RICAS SOBRE O ESPORTE EM GOI?S

CLEBER DIAS*

O desenvolvimento hist?rico do esporte no Brasil est? cronologicamente situado ao longo da segunda metade do s?culo XIX, aproximadamente. Nessa ?poca, clubes foram inaugurados, federa??es foram fundadas e um grande n?mero de competi??es foi realizado (MELO, 2001). Novas concep??es de uso do corpo progressivamente orientaram pr?ticas e pedagogias. Geralmente, esse processo se fez acompanhar por um conjunto de outras transforma??es mais amplas, nas quais os esportes tomam parte. Basicamente, os esportes se integram e se articulam a edifica??o de um ide?rio de progresso urban?stico e moderniza??o dos costumes.

No caso brasileiro, sabe-se que entre as d?cadas finais do s?culo XIX e os anos iniciais do s?culo XX, as popula??es de muitas cidades viviam j? uma nova experi?ncia urbana, marcada por ideais de velocidade, dinamismo e inova??o, o que fazia do esporte uma pr?tica simbolicamente atraente. Em S?o Paulo, a partir de 1875, j? se tem not?cias da funda??o de espa?os como o Clube de Corrida Paulistano, o S?o Paulo Athletic Clube, o rinque de patina??o e o Vel?dromo Paulistano (FRANZINI, 2010). Em Minas Gerais, um projeto urban?stico para uma nova capital e o in?cio da constru??o de Belo Horizonte, em 1895, anunciava desejos e expectativas das suas elites dirigentes por novos comportamentos e mentalidades, prevendo, inclusive, espa?os para pr?ticas como o turfe e o ciclismo. Entre 1895 e 1898, engenheiros da "Comiss?o Construtora da Nova Capital" j? criavam institui??es como Club Sportivo e o Velo Club, dedicadas, respectivamente, a introduzir e incentivar corridas de cavalo e o ciclismo entre os mineiros (RODRIGUES, 2010). Em Porto Alegre, o in?cio das discuss?es sobre planos e medidas para embelezar e modernizar a cidade foi logo acompanhado por iniciativas como a realiza??o de competi??es de remo e nata??o no Rio Gua?ba a partir de 1888 (GOELNER, MAZO, 2010). Din?micas semelhantes e nessa mesma ?poca tiveram lugar em Salvador, Aracaju, Recife e Natal (c.f. MELO, 2010).

Nesse contexto geral, interessa saber como o estado de Goi?s, em particular, teria participado e se articulado a esse processo. A popula??o goiana, por acaso, teria ficado ?

*Professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor em Educa??o F?sica (Unicamp). Este estudo conta com financiamento do CNPq e da FAPEMIG. E-mail: cag.dias@.br

margem dessas transforma??es comportamentais? Goi?s n?o teria experimentado tamb?m uma nova excitabilidade urbana ligada a este costume moderno chamado "sport"? Se sim, como exatamente se teria dado a assimila??o dessas pr?ticas? Se n?o, o que explicaria essa aus?ncia (ou demora)?Desde o per?odo Mon?rquico, a integra??o do Brasil Central era debatida pelas elites como uma esp?cie de "problema". Constantemente, falava-se do quase total desconhecimento da regi?o, das dist?ncias, das dificuldades de acesso, da inani??o econ?mica ou da natural ociosidade e esp?rito pouco industrioso dos homens do sert?o (GARCIA, 2010). Dentro dessas representa??es, Goi?s, especificamente, desenvolve-se, desde essa ?poca, sob o signo do atraso e do isolamento. N?o por acaso, a historiografia sobre Goi?s tem debatido abertamente essa quest?o sob v?rios pontos de vista. Nasr Chaul (2010), estudando relatos de viajantes e trabalhos de outros historiadores, concluiu que a aplica??o da no??o de decad?ncia ? Goi?s ? uma esp?cie de estigma constru?do; legado de viajantes estrangeiros que registraram suas impress?es sobre Goi?s sob "olhos embotados pela realidade europ?ia". Chaul, ent?o, tenta demonstrar como na sociedade goiana sempre existira "muito mais de vida e vigor do que as interpreta??es sobre a decad?ncia indicam" (p. 17).

Por outro lado, trabalhos recentes como os de Sonia Maria de Magalh?es (2004), sobre a sa?de e a alimenta??o em Goi?s no s?culo XIX, t?m destacado um cen?rio bem menos din?mico. Segundo ela, "a escassez, a carestia e por vezes a fome declarada afligiram cronicamente aquela sociedade" (MAGALH?ES, 2004: 680).

De fato, os relat?rios dos presidentes de Prov?ncia expressam uma preocupa??o constante com a salubridade goiana, bem como com a falta de recursos financeiros e outras dificuldades de toda ordem (GARCIA, 2010). Interpreta??es como as do brasilianista David McCreery, de certo modo, refor?am as conclus?es de que o desenvolvimento geral de Goi?s era lento, sen?o estagnado. Para McCreery (2006: 79), "se por ind?stria se est? significando a produ??o de bens auxiliada por for?a n?o-animal, Goi?s come?ou e terminou o s?culo XIX na mais completa simplicidade [innoncence]".

Com efeito, Goi?s esteve, de fato, bastante isolado geograficamente. A comunica??o com outras regi?es n?o era r?pida, tampouco f?cil. Em verdade, a viagem at? a Prov?ncia era tortuosa e demorada. Em 1822, as not?cias sobre a Independ?ncia levaram mais de tr?s meses para chegar at? a capital. Ao longo de todo o s?culo XIX, presidentes da Prov?ncia protestaram reiteradamente contra a falta de recursos para o aprimoramento dos sistemas de transporte e comunica??o, que eles mesmos identificavam como os principais respons?veis

pelas dificuldades econ?micas pelas quais passava constantemente a Prov?ncia. O quadro n?o se alterou significativamente com a Proclama??o da Rep?blica. Ali?s, conforme registrou o senador goiano Oleg?rio Pinto, at? o in?cio da d?cada de 1920, g?neros dos mais diversos ainda eram importados do Rio de Janeiro e de S?o Paulo nas costas de animais ou em carros de bois. Em 1933, o juiz Eduardo Henrique de Souza Filho anotou que os efeitos da Revolu??o de 1930 ainda n?o haviam chegado a determinadas regi?es do Estado (GARCIA, 2010).

Essa situa??o provavelmente condicionou o florescimento de pr?ticas esportivas na regi?o. Em diversos locais, o desenvolvimento hist?rico dos esportes esteve atrelado ao crescimento urbano, com suas inevit?veis inter-rela??es com a esfera econ?mica, mas tamb?m com o contingente populacional crescente. Segundo a famosa tese de Steven Riess, a evolu??o das cidades foi um dos principais fatores a influenciar, talvez mais que qualquer outro, segundo ele, o desenvolvimento dos esportes. Para Riess (1989), ?reas urbanas ofereceram um conjunto de condi??es prop?cias a este processo, entre as quais, uma grande e concentrada massa populacional para jogar, assistir e consumir o espet?culo esportivo e os produtos a ele relacionados.

A din?mica urbana de Goi?s ao longo de todo o s?culo XIX, no entanto, poder-se-ia caracterizar por relativa tranq?ilidade. Embora a popula??o da regi?o tenha aumentado progressivamente nesse per?odo, a grande extens?o do territ?rio imprimia-lhe uma densidade abaixo ao de outras regi?es. Embora os dados estat?sticos sobre o s?culo XIX sejam, em geral, pouco confi?veis, Goi?s ? apontado como uma das regi?es cuja contagem populacional foi mais sistem?tica nessa ?poca. De acordo com as melhores estimativas dispon?veis, a popula??o da Prov?ncia era de aproximadamente 150 mil almas em 1830, n?mero que era de aproximadamente 591 mil no Rio de Janeiro, 602 mil em Pernambuco, 560 mil na Bahia e 930 mil em Minas Gerais. Entre 1854 e 1872, a popula??o goiana inclusive decresceu, passando de 180 mil em 1854, para 160 mil em 1872. Nessa ?poca, a t?tulo de compara??o, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia j? ultrapassavam a contagem de um milh?o de habitantes (MARC?LIO, 1973). Apenas a partir de 1909, j? na Primeira Rep?blica, o in?cio da constru??o de estradas de ferro trariam novo rito de crescimento para Goi?s. Antes disso, regra geral, o fluxo de pessoas e mercadorias n?o era grande, diferente do que acontecia em outras regi?es do pa?s, que por vezes viviam j? ares mais cosmopolitas. Em certa medida, tudo isso comprometia a chegada de novas pr?ticas que t?o costumeiramente seguiram esses

tr?nsitos. Comprometia, mas por certo tamb?m n?o impedia de todo. Pois apesar das dist?ncias ou das dificuldades de comunica??o com os centros de decis?o pol?tica do pa?s, algumas regi?es de Goi?s experimentavam certa agita??o na vida urbana, bem como interc?mbios comerciais e trocas simb?licas mais intensas. Provavelmente foi este o contexto que favoreceu a chegada e a dissemina??o de pr?ticas esportivas em Goi?s.

De acordo com Jo?o Batista Alves Filho (1982), em trabalho sobre a hist?ria do futebol, a modalidade teria se iniciado em Goi?s nos primeiros anos do s?culo XX. Segundo ele, a presen?a de estudantes vindos de outras cidades (nomeadamente Rio de Janeiro e S?o Paulo) fora o est?mulo decisivo para o in?cio da pr?tica inglesa nessa parte do Brasil Central. Nomeadamente, Walter S?crates do Nascimento ? apontado como o "fundador" do futebol em Goi?s. Apesar de filho da terra, nascido em 1892, Walter viveu em S?o Paulo at? os 14 anos, quando voltou a viver em Goi?s. Teria trago consigo novos h?bitos aprendidos no per?odo em que estivera em S?o Paulo, entre os quais, o football. Nessa ?poca, S?o Paulo j? testemunhava uma clara populariza??o do futebol. Muitos dos mais de 50 mil oper?rios que a cidade registrava em 1900, iam mostrando interesse crescente pela nova pr?tica. Impedidos de freq?entar campos privativos, como a ch?cara Dulley, utilizado para as partidas de cr?quete e futebol dos s?cios do S?o Paulo Athetic Club, composto, basicamente, por ingleses ricos, os populares logo come?aram a impor sua presen?a em outros tradicionais locais de jogo, como a V?rzea do Carmo, por exemplo. Tanto que dirigentes do Clube Atl?tico Paulistano, outra espa?o reservado ?s elites locais, acreditando que o futebol j? n?o era mais praticado por "distintos cavalheiros", incentivaram e apoiaram ? Prefeitura paulistana na transforma??o do Vel?dromo da cidade em campo de futebol, garantido, assim, o afastamento da indesej?vel conviv?ncia com os "varzeanos canelas negras", como come?avam a ser chamados os negros e pobres entusiastas do futebol em princ?pios do s?culo XX (NETO, 2002).

Vindo desta ambi?ncia, onde n?o seria improv?vel ter assistido ou mesmo participado de partidas de futebol, Walter teria come?ado a organizar matches no Largo do Chafariz, ao lado do Lyceu de Goi?s, entre os anos de 1907 e 1908. Em 1911, a cidade j? conhecia tr?s equipes, sendo Associa??o Atl?tica Uni?o Goiana a pioneira. Depois disso, ainda segundo a vers?o de Alves Filho, o futebol teria se irradiado para outras tantas partes do estado, desde as cidades de Rio Verde e An?polis, at? Jaragu? e Piren?polis, passando por Inhumas e Itabera? (ALVES FILHO, 1982).

Todavia, para al?m do culto a a??o de indiv?duos isolados, amplamente criticado na historiografia acad?mica sobre qualquer assunto, ? preciso considerar tamb?m condi??es sociais mais amplas na determina??o dos processos hist?ricos, pois nem o futebol, nem qualquer outra manifesta??o cultural poderiam ter ocorrido apenas por causa das iniciativas individuais. Para isso, concorre a concatena??o de um conjunto articulado de circunst?ncias, todas de car?ter social. Nesse sentido, mais do que a presen?a de Walter S?crates do Nascimento, ainda que importante e influente, ? poss?vel que o Lyceu de Goyaz, criado em 1846 e ?nica escola secund?ria p?blica da regi?o at? anos avan?ados do s?culo XX (1929), tenha desempenhado um papel importante para o in?cio da organiza??o de pr?ticas esportivas. Da ?poca em que se t?m not?cias dessas primeiras partidas de futebol realizadas ao lado da escola e das quais participavam muitos dos seus alunos, o Lyceude Goyaz passava por transforma??es na esteira das mudan?as deflagradas na pr?pria educa??o brasileira como um todo.

Com avan?os e retrocessos, o per?odo imediatamente subseq?ente a Proclama??o da Rep?blica elegeu a educa??o como uma das tem?ticas do dia. Em 1890, a Reforma Benjamin Constant e a cria??o de um aparato burocr?tico especialmente voltado ao cuidado com a educa??o, tentaram substituir um modelo curricular humanista, por outro, de natureza cient?fica, inspirado em ideais positivistas. Com rela??o ? escola secund?ria, tentava-se dirimi-la do seu car?ter de mero preparat?rio dos cursos superiores, imprimindo-lhe car?ter aut?nomo e formativo. Al?m de um curr?culo que inclui as ci?ncias de acordo com a classifica??o proposta por Augusto Comte, prop?e-se, entre outras coisas, a inclus?o de disciplinas como a Gin?stica, as Evolu??es Militares e a Esgrima. Inspirado em institui??es an?logas dos Estados Unidos, cria-se o Pedagogium, "centro impulsor das reformas e melhoramentos de que carece a educa??o nacional". Em 1891, a Revista Pedag?gica, criada neste ano, na esteira desses mesmos acontecimentos, noticiava as "Instruc??es para a Comiss?o de Professores do Instituto Nacional dos Cegos que tem de ir ? Europa por conta do Minist?rio da Instru??o P?blica, Correios e Telegr?fos". Entre as instru??es, a de fazer aquisi??o de todos os aparelhos e instrumentos necess?rios para o ensino da gin?stica apropriada aos cegos.

Outra caracter?stica das pol?ticas educacionais ? ?poca era sua tend?ncia centralizadora, o que teria bastante impacto sobre o modo de organiza??o das escolas de todo o Brasil. Segundo Jorge Nagle (1978: 277) "a Uni?o conservou, sem qualquer descuido, a sua

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