O Imperador no exílio Afonso CELSO - Dialnet
S?o Paulo, Unesp, v. 13, n. 1, p. 307-309, janeiro-junho, 2017
ISSN ¨C 1808¨C1967
O Imperador no ex¨ªlio1
Afonso CELSO
Seis dias mais tarde, em meio dos festejos oficias pela coroa??o de D. Carlos, de
s¨²bito come?ou a circular triste boato: - Morreu repentinamente no Porto a Imperatriz do
Brasil.
Os vendedores de jornais vespertinos o apregoavam ¨¤ turba apinhada nas ruas: mas
as folhas inseriam apenas ¨¤ ¨²ltima hora a not¨ªcia, sem pormenores nem coment¨¢rios.
No p¨¦ssimo hotel em que nos alojamos (os mais confort¨¢veis estavam repletos, por
motivo das festas) t¨ªnhamos por vizinho de mesa um deputado ¨¤s cortes, prestigioso chefe
republicano, o coronel Jos¨¦ Elias Garcia.
Homem de maneiras finas e polida educa??o. Todavia, sua proximidade n?o deixava
de nos tolher, pois ele pr¨®prio e, principalmente, seus numerosos visitantes, n?o tiravam os
olhos de n¨®s, movidos de, ali¨¢s, leg¨ªtima curiosidade, seguindo os nossos menores
movimentos.
Nessa noite, Elias Garcia entendeu-me pela primeira vez, delicadamente a m?o,
proferindo em tom grave estas palavras:
- Sinto informar a V. Ex. que, infelizmente, se confirmou a nova da morte da virtuosa
Imperatriz. Faleceu hoje ¨¤s 2 horas da tarde, quase de repente, no Grande Hotel do Porto.
O Imperador n?o lhe assistiu aos ¨²ltimos momentos. Embora advers¨¢rio, em pol¨ªtica das
id¨¦ias de Vossas Excel¨ºncias, deploro do cora??o os desgostos que os est?o
acabrunhando.
Meu Pai deliberou partir imediatamente para aquela cidade, convidando-me a
acompanh¨¢-lo. Mas s¨® no dia seguinte havia trem. Tomamo-lo e, cerca de meia-noite,
chegamos ¨¤ terra a que D. Pedro II legou o seu cora??o.
Vivo movimento no hotel em que jazia a soberana morta: - rep¨®teres, autoridades e
notabilidades locais, curiosos enchiam as salas e escadas num vai-vem cont¨ªnuo. Aflu¨ªam
¨¤s centenas cartas e telegramas de condol¨ºncias de todos os pontos da Europa.
Esperavam-se a cada momento a Princesa Imperial, o Conde d¡¯Eu e o Pr¨ªncipe D. Pedro
Augusto, que se achavam na Espanha, hospedados pelo Duque de Montpensier. Em frente
ao hotel estacionava dia e noite silenciosa multid?o, apesar do intens¨ªssimo frio, que a
obrigava a patinhar, soprando sobre os dedos, de minuto a minuto.
O Imperador, recolhido a seu aposento, s¨® recebia os ¨ªntimos. Meu Pai, a princ¨ªpio,
n?o o queria incomodar, esperando hora mais pr¨®pria (eram menos de oito da manh?
Afonso Celso
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S?o Paulo, Unesp, v. 13, n. 1, p. 307-309, janeiro-junho, 2017
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quando entramos no Grande Hotel) para lhe falar. Sua Majestade, por¨¦m, mal soube da
nossa presen?a ordenou que nos dessem ingresso.
Modest¨ªssimo o seu quarto: - a um canto, cama desfeita; em frente, um lavat¨®rio
comum; no centro, larga mesa coberta de livros e papeis. Um sof¨¢ e algumas cadeiras
completavam a mob¨ªlia. Tudo frio, desolado, nu.
Os joelhos envoltos num cobertor ordin¨¢rio, trajando velho sobretudo, D. Pedro II lia
sentado ¨¤ mesa um grande livro, apoiando a cabe?a na m?o.
Ao nos avistar, acenou para que nos aproxim¨¢ssemos. Meu Pai curvou-se para
beijar-lhe a destra. O Imperador lan?ou-lhe os bra?os aos ombros demoradamente contra o
peito.
Depois ordenou que nos sent¨¢ssemos perto dele. Notei-lhe a funda lividez. Calafrios
arrepiavam-lhe a c¨²tis, por vezes.
Houve alguns minutos de doloroso sil¨ºncio. Sua Majestade quebrou-o, apontando
para o livro aberto.
- Eis o que me consola..., disse com voz cava.
- Vossa Majestade ¨¦ um esp¨ªrito superior ¨C replicou meu Pai, - achar¨¢ em si a
necess¨¢ria for?a...
N?o respondeu.
Depois de novo sil¨ºncio, mostrou-nos o t¨ªtulo da obra que percorria, - uma recente
edi??o, formosamente impressa, da Divina Com¨¦dia.
Ent?o, com estranha vivacidade, pos-se a falar de literatura, revelando, a prop¨®sito
do poema florentino, rara e vasta erudi??o.
Ap¨®s uma pausa, perguntou a Meu Pai:
- E n?o pensa em regressar ao Brasil?!
- Estou banido, Senhor.
- ? exato... estamos... Nem me lembrava, - concluiu com trist¨ªssimo sorriso.
E, mudando de assunto, discorreu sobre v¨¢rias mat¨¦rias, enumerando as
curiosidades do Porto, indicando-nos o que de prefer¨ºncia dever¨ªamos visitar. N?o aludiu
uma ¨²nica vez ¨¤ Imperatriz. S¨® quando, ao cabo de meia hora, nos retir¨¢vamos, observou
baixinho:
- A c?mara mortu¨¢ria ¨¦ aqui ao lado. Amanh?, ¨¤s 8 horas, h¨¢ missa de corpo
presente.
Sa¨ªmos. No corredor verifiquei que o meu chap¨¦u havia ca¨ªdo ¨¤ entrada do aposento
imperial.
Voltei para apanh¨¢-lo. Pela porta entreaberta depareou-se-me tocant¨ªssima cena.
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O imperador no ex¨ªlio
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ISSN ¨C 1808¨C1967
Ocultando o rosto com as m?os magras e p¨¢lidas, o Imperador chorava. Por entre os
dedos escorriam-lhe as l¨¢grimas, deslizavam-lhe ao longo da barba n¨ªvea a ca¨ªam sobre as
estrofes de Dante.
N?o me pude conter. Rompi tamb¨¦m em choro convulsivo. Sua Majestade descobriu
a fronte, envolveu-me num indiz¨ªvel olhar, a um tempo de desconforto e de reconhecimento,
fazendo com a m?o, molhada de pranto, sentido gesto de adeus.
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Afonso Celso. O imperador no ex¨ªlio. 2?. edi??o aumentada. Rio de Janeiro/S?o Paulo: Livraria
Francisco Alves, s/d, p. 19-24.
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