O Conhecimento de Deus
O Conhecimento de Deus
J. I. Packer
Título original: “Knowing God”
Tradução de Cleide Wolf e Rogério Portela
2a Edição
Editora Mundo Cristão
ISBN: 85-7325-030-5
Digitalizado, Revisado e Formatado por: Skat
.br/forumnovo/
S U MÁRI O
Prefácio . 3
Apresentação 8
Parte i: CONHEÇA O SENHOR
O estudo de Deus 11
O povo que conhece seu Deus 18
Conhecer e ser conhecido 26
O único e verdadeiro Deus 36
Deus encarnado 44
Ele dará testemunho 58
Parte ii: CONTEMPLE O SEU DEUS
O Deus imutável 66
A majestade de Deus 74
9. Só Deus é sábio 81
A sabedoria de Deus e a nossa 89
A tua palavra é a verdade 99
O amor de Deus 106
13. A graça de Deus 119
Deus, o Juiz 130
A ira de Deus 139
Bondade e severidade 149
O Deus ciumento 158
Parte iii: SE DEUS É POR NÓS...
O coração do Evangelho 168
Filhos de Deus 189
Tu, nosso guia 219
Estas provações íntimas 233
A suficiência de Deus 241
PREFÁCIO
Assim como os palhaços almejam representar Hamlet, eu queria escrever um tratado sobre Deus. Este livro, porém, não chega a tanto, ainda que sua extensão possa dar essa falsa idéia. Quem pensar assim ficará desapontado. É mais uma fieira de contas: uma série de pequenos estudos sobre grandes assuntos, muitos dos quais apareceram na Evangelical Magazine [Revista Evangélica}. Embora tenham sido escritos como mensagens independentes, são agora apresentados em conjunto porque englobam uma só mensagem a respeito de Deus e de nossa vida. É seu propósito prático que explica tanto a seleção como a omissão de diversos tópicos e seu tratamento.
Em A preface to Christian theology [Prefácio à teologia cristã], John Mackay1 ilustra dois tipos de interesse nos assuntos cristãos. Para isso usa a figura de pessoas sentadas na sacada de uma casa espanhola observando quem passa na rua. Eles podem ouvir a conversa dos transeuntes e mesmo conversar com eles, podem criticar seu modo de andar, ou discutir a respeito da rua: Como ela pode existir, ou para onde vai, o que
1John Alexander Mackay (1889-1983). Ministro presbiteriano escocês (nascido em Iver-ness), foi um missionário ligado à educação (principalmente no Peru, Uruguai e México), presidente do Seminário Teológico de Princeton e líder ecumênico, proponente da Teologia do Caminho.
poderia ser observado de diferentes pontos dela, e assim por diante; mas são apenas observadores, e seus problemas são teóricos.
Os viajantes, pelo contrário, estão enfrentando problemas, que embora tenham seu ângulo teórico são essencialmente práticos — problemas do tipo "aonde ir" ou "como chegar lá", problemas que exigem não apenas compreensão, mas também decisão e ação.
Observadores e viajantes podem refletir sobre o mesmo assunto, mas seus problemas diferem. Assim (por exemplo) em relação ao mal, o problema do observador é encontrar uma explicação que concilie o mal com a soberania e a bondade de Deus, enquanto o problema do viajante é como vencer o mal e se sair bem.
Quanto ao pecado, o observador questiona a credibilidade da tendência humana ao pecado ou da perversidade pessoal, ao passo que o viajante, conhecendo o pecado por dentro, pergunta que esperança de libertação pode haver. Ou, em relação à divindade, enquanto o observador da sacada pergunta como é possível que um Deus seja três, que espécie de unidade pode haver em três, e como três — que são um — podem ser pessoas, os viajantes querem saber como poderão mostrar honra adequada, amor e confiança perante as três pessoas que agora estão unidas no esforço de transportá-los do pecado para a glória.
Poderíamos continuar indefinidamente neste tom, mas este livro é para os viajantes e é com suas perguntas que ele lida. Foi escrito com a convicção de que a ignorância sobre Deus — ignorância tanto de seus recursos como da prática da comunhão com ele — tem relação direta com a fraqueza da igreja moderna. Duas tendências infelizes parecem ter produzido este estado de coisas.
A primeira tendência é que a mentalidade cristã adaptou-se ao espírito moderno, ou seja, o que gera grandes idéias humanas e deixa espaço apenas para pequenos pensamentos sobre Deus. A atitude atual em relação a Deus é deixá-lo à distância, quando não o nega completamente. A ironia disto é que os cristãos modernos, preocupados em manter as práticas religiosas em um mundo sem religião, têm, eles mesmos, permitido que Deus se torne distante.
Pessoas com uma visão mais clara das coisas, percebendo esta situação, são tentadas a se afastar da igreja, um tanto desgostosas, para buscar a Deus por si mesmas. Ninguém poderá culpá-las totalmente, pois os cristãos que buscam a Deus usando, por assim dizer, o lado errado do telescópio, reduzindo-o à proporção de um pigmeu, não podem esperar concluir seus dias senão como cristãos pigmeus. As mais esclarecidas querem naturalmente alguma coisa melhor. Além disso, pensamentos sobre a morte, a eternidade, o juízo, a grandeza da alma e as conseqüências duradouras das decisões temporais são "ultrapassados" para os modernistas. O triste é que a Igreja cristã, em lugar de levantar a voz para lembrar ao mundo o que está sendo esquecido, adquiriu o hábito de também menosprezar esses temas. Estas capitulações ao espírito moderno são realmente suicidas quando se referem à vida cristã.
A segunda tendência é que a mentalidade cristã vem sendo confundida pelo ceticismo moderno. Por mais de três séculos o fermento naturalista da perspectiva renascentista tem agido como um câncer no pensamento ocidental. Os arminianos2 e os deístas3 do século xvn, assim como os socinianos4 no século xvi, negavam, em oposição à teologia da Reforma,5 que o controle de Deus sobre o mundo fosse direto ou total. Desde então,
2Partidários do teólogo holandês Jacó Armínio (1560-1609), cujos escritos foram julgados postumamente pelo Sínodo de Dort (1618-1619), convocado pela Igreja Reformada Holandesa (da qual Armínio fora ministro), por negar a doutrina oficial calvinista sobre a predestinação absoluta, afirmando a incompatibilidade entre a soberania de Deus e o livre-arbítrio humano.
3Adeptos de uma forma racionalista de explicar o relacionamento de Deus com o mundo. Costuma-se descrever o conceito deísta segundo a ilustração clássica criada por Nicolau de Oresmes (séc. xiv) de que Deus seria um "Relojoeiro", que inventou todas as engrenagens do relógio chamado Universo para trabalhar perfeitamente, deu corda e saiu para tratar de seus assuntos.
4Seguidores de Fausto Socino (1539-1604) que negavam a divindade de Jesus, a onisciência divina e ensinavam a morte da alma. São os precursores do que se tornaria o unitarismo (séc. xvii) e a teologia aberta ou neoteísmo (séc. xx), escola de interpretação bíblica atualizada dos argumentos de Socino contra a onisciência absoluta de Deus.
5Sucintamente descrita pela expressão "Cinco solas": Sola Scriptura (só a Escritura é a Palavra de Deus); Solus Christus (só Jesus Cristo salva mediante sua obra expiatória e substitutiva na cruz); Sola gratia (a salvação é decorrente única e exclusivamente da graça divina, sem nenhum merecimento por parte da humanidade decaída e pecadora); Sola
fide (a salvação é outorgada só àqueles que têm fé, que também é dom divino) e Soli Deo gloria (todos os que foram alcançados pela mensagem exclusiva da Palavra de Deus e creram só em Jesus para a salvação, por terem sido beneficiados por Deus com sua graça e o dom da fé, darão eternamente glória e louvor exclusivos ao Senhor que os salvou).
a teologia, a filosofia e a ciência têm em grande parte se unido para sustentar essa negativa. Como conseqüência, a Bíblia está sob fogo cerrado, assim como muitos outros marcos do cristianismo histórico. Os fatos fundamentais da fé são questionados. Deus se encontrou com Israel no Sinai? Jesus foi mais que um homem muito espiritual? Os milagres dos Evangelhos realmente aconteceram? O Jesus dos Evangelhos não será, em grande parte, uma figura imaginária? — e assim por diante.
E isso não é tudo. O ceticismo a respeito da revelação divina e dos fundamentos cristãos deu margem ao questionamento mais amplo que abandona toda idéia da unicidade da verdade, e com isso qualquer esperança de unificar o conhecimento humano. Assim, é comumente aceito que minhas percepções religiosas não mantêm relação com meu conhecimento científico das coisas externas, porque Deus não está "lá fora" no mundo, mas apenas "aqui dentro" na psique. A incerteza e a confusão a respeito de Deus, características de nossos dias, são piores que qualquer ataque desde a tentativa da teosofia gnóstica6 de absorver o cristianismo no século ii.
É comum dizer-se hoje em dia que a teologia está mais forte que nunca, e em termos de especificação acadêmica, ou na qualidade e quantidade de livros publicados, isto talvez seja verdade. No entanto, faz muito tempo que a teologia não se apresenta tão fraca e inábil na tarefa básica de manter a Igreja dentro das realidades do Evangelho. Há noventa anos Charles Haddon Spurgeon7 descreveu como "declínio" as vacila-ções observadas então entre os batistas a respeito das Escrituras, da expiação e do destino humano. Se ele pudesse avaliar o pensamento
6''Conjunto de movimentos religiosos, sincréticos e esotéricos, anteriores à expansão do cristianismo, marcados pelo profundo apego ao "conhecimento secreto" (gnosis) e que misturavam misticismo e especulação filosófica. Foi um grande e perigoso adversário do cristianismo, principalmente quando gerações de cristãos provenientes do paganismo tentaram explicar suas novas crenças fazendo uso da nomenclatura e da cosmovisão gnóstica.
7"Denominado o "Príncipe dos pregadores" (1834-1892). Nascido em Kelvendon (Grã-Bretanha), filho e neto de pregadores, Spurgeon foi um pastor batista calvinista que pregava a grandes audiências os princípios que extraía da teologia puritana. Foi um escritor prolífico e fundou também um seminário, orfanatos, sociedades assistenciais para diversas causas. Sua influência estende-se até o dia de hoje por meio de suas pregações e livros, que são impressos e distribuídos em todos os continentes.
protestante a respeito de Deus nos tempos atuais, creio que falaria em "afundamento"!
"Ponham-se na encruzilhada e olhem; perguntem pelos caminhos antigos, perguntem pelo bom caminho. Sigam-no e acharão descanso" (Jr 6:16). Eis o convite deste livro. Não se trata de uma crítica aos novos caminhos, a não ser indiretamente; pelo contrário, é um chamado direto às sendas antigas, pois "o bom caminho" é ainda o mesmo.
Não peço que meus leitores pensem que conheço perfeitamente o assunto de que estou falando. "Aqueles como eu", escreveu C. S. Lewis,8 "cuja imaginação ultrapassa de longe a sua obediência, estão sujeitos a um castigo justo. Imaginamos facilmente condições muito mais elevadas que aquelas que realmente chegamos a alcançar. Se descrevermos o que imaginamos poderemos fazer com que outros, e nós, acreditemos que na verdade estivemos ali"9 — e desse modo enganamos tanto aos outros como a nós mesmos.
Todos os escritores e leitores de literatura devocional fariam bem em pesar as palavras de Lewis. Entretanto, "Está escrito: 'Cri, por isso falei'. Com esse mesmo espírito de fé nós também cremos e, por isso, falamos" (2Co 4:13); e se o que aqui está escrito for útil a alguém, do mesmo modo como as minhas meditações durante este trabalho me ajudaram, esta obra terá então realmente valido a pena.
James I. Packer
8Clive Staples Lewis (1898-1963) foi escritor e estudioso. Nasceu em Belfast, Irlanda. Especialista em literatura medieval inglesa, escreveu após sua conversão sobre ficção cristã e outros temas ligados ao cristianismo. Suas obras mais conhecidas são Cristianismo puro e simples e As crônicas de Nárnia.
9''Os quatro amores, Col. Pensadores Cristãos, 2a. ed., São Paulo: Mundo Cristão, 1986. p. 108.
APRESENTAÇÃO
É com entusiasmo que recomendo a leitura desta obra. Embora esta segunda edição não contemple alterações substanciais, não perde para outros livros lançados mais recentemente. Desconheço outro escritor que tenha superado a qualidade teológica e a aplicação prática que J. I. Packer imprime em O conhecimento de Deus.
Jesus afirma que conhecer a Deus eqüivale à vida eterna, portanto essa deve ser a prioridade. Esse tema nunca estará "fora de moda", pois não é possível exauri-lo. Como não tirar proveito de uma leitura tão edificante e informativa!
Embora a designação best-seller não signifique necessariamente que seu autor escreve muito bem ou que o assunto seja da máxima importância, vemos ambas as características nesta obra. Com mais de um milhão de exemplares vendidos em uma dúzia de línguas, O conhecimento de Deus superou minhas expectativas.
Dr. James Packer é escritor talentoso. Possui mente aguda e coração ardente, qualidades que se destacam em cada página. Teólogos podem ser, às vezes, complicados e tediosos. Embora detenham extenso conhecimento acadêmico, em geral não se revelam muito hábeis em desenvolver o tema a que se propõem de modo a fascinar os leitores. Este, porém, não é o caso de J. I. Packer.
O conhecimento de Deus apresenta profundidade bíblica. Ao analisar diversas passagens das Escrituras, o dr. Packer tece discussões teológicas visando a desvelar verdades e pontos de vista antes despercebidos. Acredito que pastores e mestres da Bíblia aproveitarão muitas páginas deste livro para estimular seus alunos e suas ovelhas a conhecer melhor a Deus e a sua Palavra.
O conhecimento de Deus apresenta abrangência teológica. Ainda que não se trate de uma teologia sistemática, recomendo esta obra a todos os estudiosos de teologia como sua melhor fonte de conhecimento paralelo. Além de reunir muita reflexão sobre Deus e sua atuação na história, é uma ferramenta de combate contra a tendência de muitos cursos de seminários de banalizar as verdades centrais da fé e desestimular a paixão pelo Senhor.
O conhecimento de Deus ajuda a esclarecer doutrinas e práticas muitas vezes pouco compreendidas e, não raro, permeadas por erros. Muitos pastores e mestres da Palavra costumam repassar ensinamentos atraentes aos ouvintes sem analisar consistentemente sua veracidade ou seus fundamentos bíblicos. Para ilustrar a relevância deste aspecto, basta mencionar a discussão do dr. Packer sobre a proibição de imagens e o perigo que representam para os cristãos evangélicos. Utilitarismo e pragmatismo desviam facilmente as igrejas do caminho.
O conhecimento de Deus apresenta-se ainda como fonte de orientação ética para os que enfrentam dilemas e precisam tomar decisões condizentes com a santidade. Muitas escolhas e decisões presentes na vida dos cristãos de hoje jamais foram concebidas pelo povo de Deus de dois mil anos atrás.
Os desafios da modernidade, da vida urbana e do constante bombardeio da mídia requerem sabedoria. O leitor se sentirá grandemente estimulado ao acompanhar, por exemplo, o raciocínio do dr. Packer no capítulo 10, A sabedoria de Deus e a nossa, em que se evidencia sua capacidade de contextualizar a Bíblia.
Poderíamos mencionar muitos outros aspectos importantes e interessantes desta obra mas assim como, creio, a melhor maneira de conhecer uma iguaria é prová-la, a melhor maneira de conhecer a qualidade superior do livro O conhecimento de Deus é mergulhar em sua leitura.
A Deus toda a glória!
Dr. Russell Shedd
Parte I
Conheça
O Senhor
[pic]
O estudo de Deus
Em 7 de janeiro de 1855 o ministro da capela da rua New Park começou seu sermão matinal do seguinte modo:
Já foi dito por alguém que "o estudo adequado da humanidade é o próprio homem". Não me oponho à idéia, mas creio ser igualmente verdadeiro que o estudo correto do eleito de Deus é Deus; o estudo apropriado ao cristão é a divindade. A mais alta ciência, a mais elevada especulação, a mais poderosa filosofia que possa prender a atenção de um filho de Deus é o nome, a natureza, a pessoa, a obra, as ações e a existência do grande Deus, a quem chama Pai.
Nada é melhor para o desenvolvimento da mente que contemplar a divindade. Trata-se de um assunto tão vasto, que todos os nossos pensamentos se perdem em sua imensidão; tão profundo que nosso orgulho desaparece em sua infinitude. Podemos compreender e aprender muitos outros temas, derivando deles certa satisfação pessoal e pensando enquanto seguimos nosso caminho: "Olhe, sou sábio". Mas quando chegamos a esta ciência superior e descobrimos que nosso fio de prumo não consegue sondar sua profundidade e nossos olhos de águia não podem ver sua altura, nos afastamos pensando que o homem vaidoso pode ser sábio, mas não passa de um potro selvagem, exclamando então solenemente: "Nasci ontem e nada sei". Nenhum tema contemplativo tende a humilhar mais a mente que os pensamentos sobre Deus...
Ao mesmo tempo, porém, que este assunto humilha a mente, também a expande. Aquele que pensa com freqüência em Deus terá a mente mais aberta que alguém que apenas caminha penosamente por este estreito globo. [...] O melhor estudo para expandir a alma é a ciência de Cristo, e este crucificado, e o conhecimento da divindade na gloriosa trindade. Nada alargará mais o intelecto, nada expandirá mais a alma do homem que a investigação dedicada, cuidadosa e contínua do grande tema da divindade.
Ao mesmo tempo que humilha e expande, este assunto é eminentemente consolador. Na contemplação de Cristo existe um bálsamo para cada ferida; na meditação sobre o Pai, há consolo para todas as tristezas, e na influência do Espírito Santo, alívio para todas as mágoas. Você quer esquecer sua tristeza? Quer livrar-se de seus cuidados? Então, vá, atire-se no mais profundo mar da divindade; perca-se na sua imensidão, e sairá dele completamente descansado, reanimado e revigorado. Não conheço coisa que possa confortar mais a alma, acalmar as ondas da tristeza e da mágoa, pacificar os ventos da provação que a meditação piedosa a respeito da divindade. Para este assunto chamo a atenção de todos nesta manhã.
Estas palavras, proferidas há mais de um século por Charles Haddon Spurgeon (que nessa época contava, inacreditavelmente, apenas 20 anos), foram verdadeiras do mesmo modo como são agora. Elas constituíram o prefácio adequado para uma série de estudos sobre a natureza e o caráter de Deus.
Quem precisa de teologia?
"Mas, espere um instante", alguém objetará, "diga-me uma coisa, será realmente necessário estudar isso? Nos tempos de Spurgeon, sabemos que as pessoas achavam interessante a teologia, mas eu a considero entediante. Por que alguém precisa hoje em dia perder tempo com esse tipo de estudo que você está propondo? Com certeza, pelo menos o leigo pode passar sem isso. Afinal de contas, este é o século xxi e não o xix!".
Uma pergunta justa! Mas acho que há uma resposta convincente para ela. Essa questão é levantada por alguém que pressupõe claramente a impraticabilidade e a irrelevância do estudo da natureza e do caráter de Deus para a vida. Entretanto, este é, na verdade, o projeto mais prático de que alguém poderia ocupar-se. Conhecer a Deus é crucialmente importante para nossa vida. Do mesmo modo que seria cruel levar de avião um indígena da Amazônia até São Paulo e deixá-lo, sem nenhuma explicação, sem que entendesse a língua portuguesa, em plena Praça da Sé, para que ele cuidasse da própria subsistência; assim também seríamos cruéis conosco se tentássemos viver neste mundo sem saber nada a respeito do Deus que é dono e Senhor do Universo.
Para quem não conhece a Deus o mundo se torna um lugar estranho, louco, penoso, e viver nele pode ser decepcionante e desagradável. Despreze o estudo de Deus e você estará sentenciando a si mesmo a passar a vida aos tropeções, como um cego, como se não tivesse nenhum senso de direção e não entendesse aquilo que o rodeia. Deste modo poderá desperdiçar sua vida e perder a alma.
Ao reconhecer, então, que o estudo de Deus tem valor, preparemo-nos para começar. Mas, por onde começar?
Obviamente temos de partir de onde estamos. Isto, entretanto, significa sair em meio a uma tempestade, pois a doutrina de Deus hoje em dia está no centro de uma verdadeira tempestade. O chamado "debate sobre Deus" com seus refrões surpreendentes: "nossa imagem de Deus deve desaparecer", "Deus está morto", "podemos recitar o credo, porém não podemos confessá-lo", está ecoando a nossa volta. Dizem-nos que "dogmatizar sobre Deus" como os cristãos têm feito ao longo da história é manifestar refinada insensatez e que o conhecimento de Deus é, na realidade, uma ficção. Os tipos de ensinamento que professam tal conhecimento são rejeitados como obsoletos: calvinismo, fundamentalismo, escolástica protestante, velha ortodoxia. Que devemos fazer? Se esperarmos a tempestade passar para depois iniciarmos a jornada, pode ser que jamais a comecemos.
Minha proposta é a seguinte: Você com certeza conhece a história de O peregrino, de Bunyan,1 e de como ele tapou os ouvidos e correu gritando: "Vida, vida, vida eterna", quando sua esposa e filhos o chamaram de volta da viagem que estava para iniciar. Peço-lhe que feche por um momento os ouvidos para quem diz não haver caminho algum que leve ao conhecimento de Deus e ande um pouco a meu lado para verificar por si mesmo. Afinal de contas, só se prova o pudim comendo-o, e qualquer pessoa que esteja realmente viajando por uma estrada conhecida não ficará preocupada se ouvir um não-transeunte dizer que tal estrada não existe.
Com tempestade ou sem ela, vamos começar. Mas como organizaremos nosso curso?
Cinco verdades básicas — cinco princípios fundamentais do conhecimento de Deus que os cristãos possuem — determinarão todo nosso programa, como segue:
1. Deus falou aos homens, e a Bíblia é sua Palavra, que nos foi dada a fim de nos tornar sábios para a salvação.
2. Deus é Senhor e Rei deste mundo; ele governa todas as coisas para sua glória, mostrando sua perfeição em tudo o que faz, a fim de que homens e anjos possam louvá-lo e adorá-lo.
3. Deus é Salvador, ativo em amor soberano mediante o Senhor Jesus Cristo para salvar os crentes da culpa e do poder do pecado, adotá-los como filhos e assim abençoá-los.
1Pastor e escritor puritano, John Bunyan (1628-1688) foi preso durante doze anos por pregar sem a autorização da Igreja Anglicana. Era independente, separatista e possuía convicções batistas acerca do batismo e da Igreja. Enquanto estava aprisionado escreveu sua obra-prima: O peregrino.
4. Deus é triúno. Há em Deus três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo; e a obra da salvação é operada pelos três ao mesmo tempo: o Pai propõe a redenção, o Filho a assegura e o Espírito a aplica.
5. Piedade significa responder à revelação de Deus com confiança, obediência, fé, adoração, oração, louvor, submissão e serviço. A vida deve ser vista e vivida à luz da Palavra de Deus. Isto, e nada mais, é a verdadeira religião.
A luz dessas verdades gerais e fundamentais, vamos agora examinar com detalhes o que a Bíblia nos mostra da natureza e do caráter do Deus sobre o qual estamos falando. Nossa situação é comparável à dos viajantes que, depois de estudarem de longe uma grande montanha, andando a sua volta e observando como domina a paisagem e determina o tipo de região a seu redor, se aproximam dela, com a intenção de escalá-la.
OS TEMAS BÁSICOS
O que está envolvido nessa escalada? De que temas nos ocuparemos?
Vamos tratar da divindade, as qualidades que separam Deus dos homens e que marcam a diferença e a distância entre o Criador e suas criaturas, qualidades como: existência própria, infinitude, eternidade e imutabilidade. Trataremos dos poderes de Deus: onisciência, onipotência e onipresença. Estaremos envolvidos com a perfeição divina, os aspectos de seu caráter moral manifestados por seus atos e palavras: santidade, amor, misericórdia, verdade, fidelidade, bondade, paciência e justiça. Precisaremos anotar o que lhe é agradável, ofensivo, o que lhe desperta ira, o que lhe dá satisfação e alegria.
Para muitos de nós, estes termos não são conhecidos, mas nem sempre foi assim com o povo de Deus. Houve um tempo em que o tema dos atributos divinos (como se chamavam então) eram considerados tão importantes que foram incluídos nos catecismos ensinados a todas as crianças nas igrejas, e que todos os membros adultos deveriam saber. Assim, a quarta pergunta de O breve catecismo de Westminster— "O que Deus é?" — tem a seguinte resposta: "Deus é espírito, infinito, eterno e imutável em seu ser, sabedoria, poder, santidade, justiça, bondade e verdade",2 uma declaração que o grande Charles Hodge descrevia como "provavelmente a melhor definição de Deus que o homem já fez".
Hoje, entretanto, poucas crianças conhecem O breve catecismo de Westminster e poucos adoradores modernos chegarão a ouvir uma série de sermões abrangendo a doutrina do caráter divino compararável com o extenso Discourses on the existence and attributes of God [Discursos sobre a existência e os atributos de Deus], de Stephen Charnock (1682).3
Poucos também terão a oportunidade de ler qualquer coisa simples e direta a respeito da natureza de Deus, pois tal tipo de publicação é bem rara atualmente. Podemos esperar, portanto, que uma exploração do tema acima mencionado traga muitas idéias novas sobre as quais pensar, e muitas novidades para serem consideradas e assimiladas.
Conhecimento aplicado
Por esta simples razão, antes de começarmos a subir nossa montanha, precisamos parar e fazer-nos uma pergunta fundamental — pergunta que, na verdade, devemos fazer sempre que nos dispusermos a estudar qualquer assunto na santa Palavra de Deus. Essa questão diz respeito a nossos motivos e intenções como estudantes. É preciso indagar de nós mesmos: Qual o alvo final e a razão de eu estar ocupando a mente com estas coisas? Que pretendo fazer com o conhecimento de Deus que vou adquirir? Pois o fato que teremos de enfrentar é este: A busca por conhecimento teológico como um fim em si mesmo talvez nos prejudique, tornando-nos orgulhosos e convencidos. A própria magnitude do assunto nos embriagará e chegaremos a pensar que somos bem melhores e superiores aos demais cristãos dado nosso interesse no assunto e a compreensão dele. Olharemos com superioridade para aqueles cujas idéias
2São Paulo: Cultura Cristã, 2001, 6. ed., p. 10.
3Pregador puritano (1628-1680), nascido em Londres, cujo ministério em conjunto com Thomas Watson em uma congregação presbiteriana em Bishopsgate foi marcado por suas mensagens tocantes e piedade pessoal. A data da publicação deste sermão indica seu caráter póstumo.
teológicas nos pareçam rudes e inadequadas, pondo-as de lado com desprezo. Isso se conforma às palavras de Paulo aos presunçosos cristãos de Corinto: "O conhecimento traz orgulho [...] Quem pensa conhecer alguma coisa ainda não conhece como deveria" (1Co 8:1 b,2).
Preocupar-se em adquirir conhecimento teológico como um fim em si mesmo, aproximar-se da Bíblia para estudá-la sem nenhum motivo além do desejo de saber todas as respostas é o caminho direto para o auto-engano complacente. Precisamos proteger o coração contra essa atitude e orar para que isso não aconteça.
Como já vimos antes, não pode haver saúde espiritual sem conhecer a doutrina, mas é igualmente verdadeiro que ela não será alcançada com esse conhecimento, se for buscado com propósitos errados e avaliado segundo padrões falsos. Deste modo o estudo da doutrina pode se tornar um perigo para a vida espiritual; e nós hoje precisamos estar atentos a esse respeito, tanto quanto os antigos coríntios.
"Mas", diz alguém, "não é um fato que o amor à verdade revelada de Deus e o desejo de saber o máximo sobre isso é normal em toda pessoa que tenha nascido de novo?". Veja o salmo 119: "Ensina-me os teus decretos", "Abre os meus olhos para que eu veja as maravilhas da tua lei", "Como eu amo a tua lei!", "Como são doces para o meu paladar as tuas palavras! Mais que o mel para a minha boca!", "dá-me discernimento para compreender os teus testemunhos" (v. 12b, 18,97a ,103,125).
Não é verdade que, assim como o salmista, todo filho de Deus quer conhecer o máximo possível a respeito de seu Pai Celestial? Não é, na verdade, o fato de termos recebido "o amor à verdade" uma prova de que nascemos de novo? (v. 2Ts 2:10). E também não é justo que procuremos satisfazer ao máximo esse desejo dado pelo próprio Deus?
Sim, naturalmente que sim. Mas se você se reportar ao salmo 119 verá que o interesse do salmista em obter conhecimento de Deus não era teórico, mas prático. Seu desejo supremo era conhecer e comprazer-se no próprio Deus, e considerava esse conhecimento de Deus um simples meio para alcançar um fim. Ele queria entender a verdade divina a fim de que seu coração pudesse corresponder a essa verdade e viver de acordo com ela. Observe a ênfase dada nos primeiros versículos:
Como são felizes os que andam em caminhos irrepreensíveis, que vivem conforme a lei do Senhor! Como são felizes os que obedecem aos seus estatutos e de todo o coração o buscam! [...] Quem dera fossem firmados os meus caminhos na obediência aos teus decretos (v. 1,2,5).
Ele estava interessado na verdade e na ortodoxia, nos ensinamentos bíblicos e teológicos não como um fim em si mesmos, mas como meios práticos de aperfeiçoamento da vida e de santidade. Sua preocupação maior estava em conhecer e servir o grande Deus, cuja verdade procurava entender.
Esta deve ser também nossa atitude. Ao estudar a divindade, nosso alvo deve ser conhecer melhor ao próprio Deus. Nosso objetivo deve ser expandir nosso conhecimento não apenas da doutrina dos atributos de Deus, mas também do Deus vivo a quem pertencem esses atributos. Já que ele é o tema de nosso estudo e nosso ajudador nesta tarefa, deve ser também o fim em si mesmo. Ao estudarmos Deus, devemos procurar ser conduzidos a ele. A revelação nos foi dada com esse propósito, e devemos usá-la com essa finalidade.
Meditar sobre a verdade
Como faremos isso? Como podemos transformar nosso conhecimento sobre Deus em conhecimento de Deus? A regra é simples, mas rigorosa. Devemos transformar cada verdade aprendida sobre Deus em assunto de meditação diante de Deus, conduzindo-nos à oração e ao louvor a Deus.
Temos alguma idéia a respeito do significado da oração, mas o que é meditação? É uma boa pergunta, pois a meditação é uma arte esquecida hoje em dia, e o povo cristão sofre dolorosamente por ignorar sua prática.
Meditação é o ato de trazer à mente as várias coisas conhecidas sobre os procedimentos, as peculiaridades, os propósitos e as promessas de Deus; pensar, deter-se nelas e aplicá-las à própria vida. É a atividade do pensamento santo, conscienciosamente apresentado diante de Deus, sob seus olhos, com seu auxílio e como meio de comunhão com ele.
Seu propósito é esclarecer nossa visão mental e espiritual de Deus e deixar que sua verdade produza um impacto total na mente e no coração do indivíduo. É o modo de falar consigo mesmo a respeito de Deus e de si próprio; é, na realidade, um meio de raciocinar consigo mesmo em ocasiões de dúvida e apreensão até chegar ao claro entendimento do poder e da graça de Deus.
O resultado deve ser nos humilhar, enquanto contemplamos a grandeza e a glória divinas e nossa insignificância e pecaminosidade, e nos encorajar e tranqüilizar — "confortando-nos", no velho e forte sentido bíblico da palavra —, enquanto contemplamos as riquezas insondáveis da divina misericórdia manifestada no Senhor Jesus Cristo. Estes foram os pontos salientados por Spurgeon na passagem que citamos no início, e eles são verdadeiros. À medida que penetramos mais e mais profundamente nessa experiência de sermos humilhados e exaltados, nosso conhecimento de Deus aumenta, e com ele nossa paz, força e alegria. Que Deus nos ajude a pôr em uso nosso conhecimento sobre ele, e que possamos todos, na verdade, "conhecer o Senhor".
[pic]
o povo que conhece
seu Deus
Eu passeava ao sol com um professor que havia perdido efetivamente suas possibilidades de avanço na carreira acadêmica, por ter entrado em choque com os dignitários da Igreja a respeito do evangelho da graça. "Mas isso não tem importância", afirmou, "pois eu conheci a Deus, e eles não". Essa declaração foi um mero parêntese, um comentário a respeito de algo que eu tinha dito, mas que me ficou gravado na mente e me fez pensar.
Não creio que muitos de nós possamos dizer com espontaneidade que conhecemos a Deus. Essas palavras implicam uma experiência definitiva e verdadeira, à qual, se formos sinceros, temos de admitir que somos ainda estranhos. Afirmamos isso talvez para dar testemunho e poder contar a história de nossa conversão como o melhor deles: dizemos que conhecemos a Deus — isto, afinal de contas, é o que se espera que os evangélicos digam. No entanto, será que nos ocorreria dizer, sem hesitação, e em referência a acontecimentos particulares de nossa história pessoal, que realmente conhecemos a Deus? Duvido, pois suspeito de que para a maioria de nós a experiência de Deus jamais foi assim tão vivida.
Penso que muitos de nós nem poderíamos dizer com naturalidade que as decepções do passado e as tristezas do presente, como as vê o mundo, são irrelevantes quando comparadas ao conhecimento de Deus que viemos a alcançar. A realidade, porém, é que para muitos de nós elas têm significado real, são nossas "cruzes" (como as chamamos). Ficamos constantemente entristecidos, amargurados e apáticos quando nos lembramos delas, o que fazemos com freqüência. A atitude que mostramos ao mundo é um tipo de estoicismo frio, a quilômetros de distância da alegria "indizível e gloriosa" que Pedro confiava estarem sentindo todos seus leitores (lPe 1:8). "Pobres almas", nossos amigos dizem a nosso respeito, "como têm sofrido" — e é justamente isso o que sentimos!
Essa tendência para fazer o papel de mártir, porém, não tem lugar na mente de quem conhece a Deus de fato. Eles nunca se preocupam com o que poderia ter sido; nunca pensam nas coisas que perderam, apenas nos ganhos. "Mas o que para mim era lucro, passei a considerar como perda, por causa de Cristo", escreveu Paulo. "Mais do que isso, considero tudo como perda, comparado com a suprema grandeza do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor, por quem perdi todas as coisas. Eu as considero como esterco para poder ganhar a Cristo e ser encontrado nele [...] Quero conhecer Cristo [...]" (Fp 3:7-10).
Quando Paulo diz que considera "esterco" tudo o que perdeu, não só afirma que não dá nenhum valor a essas coisas, mas que tampouco permanecem constantemente em seus pensamentos. Que pessoa normal passa seu tempo sonhando nostalgicamente com esterco? Entretanto, é o que na realidade muitos de nós fazemos, e isso mostra como temos pouco conhecimento de Deus.
Conhecimento retórico versus conhecimento real
É necessário fazer uma auto-análise sincera neste ponto. Somos, talvez, evangélicos ortodoxos. Podemos explicar o evangelho com clareza e podemos sentir o cheiro de doutrina falsa a quilômetros de distância. Se alguém nos perguntar como os homens podem conhecer a Deus, de imediato apresentamos a fórmula certa: que chegamos ao conhecimento de Deus mediante Jesus Cristo, o Senhor, graças à cruz e a sua mediação, confiados nas promessas de sua palavra, pelo poder do Espírito Santo, por meio do exercício pessoal da fé.
Entretanto, a alegria, a bondade, a liberdade de espírito, que constituem as marcas de quem conhece a Deus, são raras em nosso meio — mais raras talvez do que em outros círculos cristãos, onde, se fizermos uma comparação, a verdade do evangelho não é conhecida com tanta clareza e tão completamente. Aqui também pareceria que os últimos poderiam ser os primeiros e os primeiros, os últimos. Um pequeno conhecimento de Deus vale bem mais que um grande conhecimento a respeito dele.
Para salientar melhor este ponto, quero dizer duas coisas:
1. Pode-se saber bastante sobre Deus sem conhecê-lo muito. Tenho a certeza de que muitos de nós nunca pensamos realmente nisto. Descobrimos em nós um profundo interesse pela teologia (que é, por sinal, uma ssunto dos mais fascinantes e intrigantes — no século xvii era o passatempo de todos os cavalheiros). Lemos livros de exposição teológica e apologética; aprofundamo-nos na história cristã e estudamos o credo cristão; aprendemos a descobrir nosso caminho nas Escrituras.
Outros apreciam nosso interesse por essas coisas e somos convidados a dar nossa opinião em público a respeito de diversas questões cristãs, a dirigir grupos de estudo, escrever artigos, fazer conferências e geralmente aceitar responsabilidade, formal ou informal, de agir como mestres e árbitros da ortodoxia em nosso círculo cristão. Nossos amigos nos dizem como apreciam essa contribuição e isso nos leva a explorar mais ainda as verdades de Deus, de modo a podermos atender às exigências que nos fazem.
Tudo isso é muito bom. Entretanto, o interesse em teologia — conhecimento sobre Deus — e a capacidade de pensar com clareza e falar bem sobre temas cristãos não são o mesmo que conhecer a Deus. Podemos saber tanto quanto Calvino a respeito de Deus — na verdade, se estudarmos suas obras com diligência, cedo ou tarde isso vai acontecer —, contudo durante todo o tempo (ao contrário de Calvino) saberemos bem pouco a respeito de Deus.
2. Pode-se saber bastante sobre piedade sem ter muito conhecimento de Deus. Isso depende dos sermões ouvidos, dos livros lidos e do círculo de amigos. Nesta era analítica e tecnológica não faltam livros nas bibliotecas das igrejas, nem sermões nos púlpitos sobre como orar, testemunhar, ler a Bíblia, dar ó dízimo, ser um jovem cristão, ser um velho cristão, ser um cristão feliz, tornar-se consagrado, levar pessoas a Cristo, receber o batismo do Espírito Santo (ou, em alguns casos, como evitar esse batismo), falar em línguas (ou como explicar satisfatoriamente a manifestação do Pentecostes) e geralmente como cumprir todo o programa que os professores em questão associam com a vida do crente. Tampouco faltam biografias narrando as experiências dos cristãos do passado para nosso exame atento e interessado.
Independentemente do que se diga sobre a questão, é certamente possível aprender muito, de segunda mão, sobre a prática cristã. Além disso, se alguém tiver uma boa dose de senso comum pode fazer uso do que aprendeu para ajudar cristãos vacilantes, de temperamento menos estável, a readquirir firmeza e desenvolver o senso analítico quanto a suas dificuldades, ganhando deste modo para si mesmo a reputação de bom pastor. Entretanto, alguém pode ter tudo isso e não conhecer realmente a Deus.
Voltamos, então, ao ponto em que começamos. Não está em jogo a questão de sermos bons em teologia, ou "equilibrados" (palavra horrível e pretensiosa), em nossa abordagem dos problemas da vida cristã. O caso é este: podemos dizer, com simplicidade e franqueza, não porque sentimos ser nosso dever como evangélicos, mas por tratar-se de um fato real, que conhecemos a Deus, e que por esse conhecimento os despra-zeres que tivemos ou os prazeres que não tivemos, pelo fato de sermos cristãos, não nos afetam? Se conhecêssemos realmente a Deus, seria isto o que estaríamos dizendo, e se não o fazemos, significa que precisamos encarar com mais precisão a diferença entre conhecer a Deus e o mero conhecimento sobre ele.
Evidência do conhecimento de Deus
Dissemos que quando um homem conhece a Deus as perdas e as "cruzes" deixam de ter importância; o que ele ganhou simplesmente afasta-lhe da mente essas coisas. Que outros efeitos o conhecimento de Deus produz nos homens? Várias partes das Escrituras respondem a esta pergunta apresentando diferentes pontos de vista, mas talvez a resposta mais clara e direta seja aquela encontrada no livro de Daniel. Podemos resumir esse testemunho em quatro proposições:
1. Os que conhecem a Deus têm grande força por meio dele. Em um dos capítulos proféticos de Daniel lemos: "o povo que conhece ao seu Deus se esforçará e fará proezas" (11:32; arc). A versão revista e atualizada diz: "o povo que conhece ao seu Deus se tornará forte e ativo". No contexto esta definição inicia com "mas" e faz o contraste entre a atividade do "ser desprezível" (v. 21) que estabelecerá o "sacrilégio terrível" e corromperá com palavras suaves e lisonjas aqueles cuja lealdade ao Deus da aliança tenha falhado (v. 31,32). Isto nos mostra que aquele que conhece a Deus toma a atitude de reagir à tendência antideus que vê operando a seu redor. Não consegue descansar enquanto seu Deus é desafiado ou desprezado, sente que precisa fazer alguma coisa. A desonra imposta ao nome de Deus o impele à ação.
É exatamente isso que vemos acontecer nos capítulos de Daniel, onde são narradas as "proezas" do profeta e de seus três amigos. Eram homens que conheciam a Deus e, em conseqüência, sentiam-se compelidos, de tempos em tempos, a posicionar-se ativamente contra as convenções e os preceitos da irreligião e da falsa religião. Daniel, em particular, mostra-se incapaz de relevar esse tipo de situação; sente-se obrigado a desafiá-la abertamente. Em lugar de correr o risco de tornar-se ritualmente impuro ao consumir as iguarias do palácio, ele insiste em uma dieta vegetariana, para grande consternação do chefe dos oficiais da corte (1:8-16).
Quando Dario proibiu, sob pena de morte, que fossem feitas orações durante um mês, Daniel não só continuou orando três vezes ao dia, voltado para Jerusalém, como também o fazia diante de uma janela aberta, de modo que qualquer pessoa pudesse ver o que estava fazendo (6:10). Isto me fez lembrar o bispo Ryle1 inclinando-se para a frente em
1John Charles Ryle (1816-1900), ministro ordenado da Igreja Anglicana, foi indicado em 1880 o primeiro bispo da recém-criada diocese de Liverpool (Inglaterra). Escritor prolífico de livros de caráter devocional, suas obras refletem profunda influência puritana. Era extremamente zeloso pela sã doutrina em uma época em que sua igreja havia posto de lado a própria confissão de fé denominada Trinta e nove artigos de religião.
seu assento na Catedral de São Paulo para que todos pudessem ver que ele não se virava para o leste na hora do credo! Tais gestos não devem ser mal interpretados. Não é que Daniel, ou o bispo Ryle, fossem pessoas desagradáveis ou intratáveis que tivessem prazer na rebelião e só se sentissem felizes se provocassem acintosamente o governo. Significa apenas que quem conhece seu Deus é sensível às situações em que a verdade e a honra de Deus são direta ou tacitamente prejudicadas. Assim, em vez de, por negligência, deixar que tudo continue como está, força a atenção dos homens para o assunto e procura levá-los a mudar de atitude — mesmo que possa sofrer algum risco pessoal.
Essa força por Deus não se resume em atitudes públicas, na realidade também não começa aí. Os homens que conhecem seu Deus são, antes de tudo, homens de oração, e o primeiro ponto em que seu zelo e sua força para a glória de Deus são expressos é nas orações. Em Daniel 9, lemos como o profeta, ao entender "pelas Escrituras" que o tempo do cativeiro de Israel estava chegando ao fim e compreendendo igualmente que o pecado da nação ainda era tal que poderia levar Deus a condená-la em vez de ter misericórdia, decidiu-se a buscar a Deus "com orações e súplicas, em jejum, em pano de
saco e coberto de cinza" (v. 3). Daniel orou pela restauração de Jerusalém com veemência, paixão e agonia de espírito às quais muitos de nós somos completamente estranhos.
Ainda mais, o fruto invariável do verdadeiro conhecimento de Deus é a força para orar pela causa divina — força, na verdade, que só poderá encontrar saída e alívio da tensão interna quando canalizada em tal tipo de oração. Quanto maior o conhecimento, maior a energia! Este pode ser um teste para nós. Talvez não estejamos em posição de realizar atos públicos contra a incredulidade e a apostasia; talvez sejamos velhos ou doentes, ou de algum modo limitados por nossa condição física. Todos, porém, podemos orar a respeito da incredulidade e apostasia que nos rodeia diariamente. Se, entretanto, houver pouca energia nessa oração e, conseqüentemente, pouca prática, é com certeza o sinal de que ainda conhecemos bem pouco nosso Deus.
2. Os que conhecem a Deus pensam grandes coisas sobre ele. Não há espaço suficiente aqui para reunir tudo o que o livro de Daniel nos diz sobre a sabedoria, o poder e a verdade do grande Deus que comanda a história e mostra sua soberania em atos de condenação e misericórdia para com indivíduos e nações, de acordo com sua vontade. É suficiente dizer que não há talvez em toda a Bíblia outra apresentação mais vivida ou firmada dos muitos aspectos da realidade da soberania de Deus.
Em face do poder e do esplendor do Império Babilônico, que engolfou a Palestina, e da perspectiva de outros grandes impérios mundiais que se seguiriam, minimizando Israel segundo qualquer padrão humano de cálculo, o livro todo relembra de forma dramática que o Deus de Israel é Rei dos Reis e Senhor dos Senhores. Lembra também que "os Céus dominam" (4:26); que a mão de Deus está na história em todos os momentos; que a história, na verdade, não é nada mais que "sua história", o desdobramento de seu plano eterno, e que o reino triunfante, no final, será o reino de Deus.
A verdade central — que "o Altíssimo domina sobre os reinos dos homens" (4:25; cf. 5:21) — foi ensinada por Daniel a Nabucodonosor nos capítulos 2 e 4, e também a Belsazar no capítulo 5 (v. 18-23), verdade essa que Nabucodonosor reconheceu no capítulo 4 (v. 34-37) e que Dario confessou no capítulo 6 (v. 25-27). Ela também foi a base para as orações de Daniel nos capítulos 2 e 9 e de sua confiança ao desafiar a autoridade nos capítulos 1 e 6, e de seus amigos, que agiram do mesmo modo no capítulo 3. Essa verdade se constituiu na matéria-prima de toda a revelação que Deus fez a Daniel nos capítulos 2,4,7,8,10,11 e 12.
Deus sabe e prevê todas as coisas, e sua presciência é predestinação. Ele, portanto, terá a última palavra, tanto na história como no destino de cada homem; seu reino e sua justiça finalmente triunfarão, pois nem os homens, nem os anjos poderão opor-se a ele.
Eram esses os pensamentos sobre Deus que tomavam a mente de Daniel, como testemunham suas orações (sempre a melhor evidência da idéia que o homem tem de Deus):
Louvado seja o nome de Deus para todo o sempre; a sabedoria e o poder a ele pertencem. Ele muda as épocas e as estações; destrona reis e os estabelece. Dá sabedoria aos sábios [...] conhece o que jaz nas trevas, e a luz habita com ele" (2:20,21,22). Ó Senhor, Deus grande e temível, que manténs a tua aliança de amor com todos aqueles que te amam e obedecem aos teus mandamentos [...] Senhor, tu és justo [...] O Senhor nosso Deus é misericordioso e perdoador [...] O Senhor, o nosso Deus, é justo em tudo o que faz [...] (9:4,7,9,14).
É assim que pensamos sobre Deus? É essa a idéia de Deus que nossas orações expressam? Será que essa tremenda consciência de siia santa majestade, perfeição moral e graciosa fidelidade nos mantém humildes e dependentes, respeitosos e obedientes, como acontecia com Daniel? Por este teste podemos também medir quanto ou quão pouco conhecemos a Deus.
3. Os que conhecem a Deus são ousados por causa dele. Daniel e seus amigos eram homens que aceitavam riscos. Isso não era temeridade. Eles sabiam o que estavam fazendo, tinham calculado o preço e considerado o perigo. Sabiam qual seria o resultado de suas ações, a menos que Deus misericordiosamente interferisse — o que, por sinal, ele fez. Mas isto não os perturbava. Uma vez convencidos de que sua atitude estava certa e que a lealdade a Deus assim exigia, como disse Oswald Chambers,2 eles "sorridentes lavavam as mãos quanto às conseqüências".
"É preciso obedecer antes a Deus do que aos homens!", disseram os apóstolos (At 5:29). "Todavia, não me importo, nem considero a minha vida de valor algum para mim mesmo, se tão-somente puder terminar a
2Ministro escocês (1874-1917) que veio à fé pela instrumentalidade das pregações de Charles H. Spurgeon, bastante conhecido por seus escritos devocionais. Sua principal obra é Tudo para ele.
corrida", disse Paulo (At 20:24). Era esse precisamente o espírito de Daniel, Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, e é também o espírito de todos os que conhecem a Deus. Ainda que possam achar terrivelmente difícil essa determinação de seguir o caminho certo, uma vez decididos, aceitam-na ousadamente e sem hesitação. Não lhes importa se outros que pertencem ao povo de Deus vejam o assunto de modo diferente e não tomem posição com eles (Sadraque, Mesaque e Abede-Nego foram os únicos judeus que se negaram a adorar a imagem de Nabucodonosor? Nenhuma das palavras ditas por eles e que foram registradas sugerem que soubessem do fato ou que ao menos se importassem com isso. Seu curso de ação estava claro para eles, e isso lhes bastava). Com este teste podemos também medir nosso conhecimento de Deus.
4. Os que conhecem a Deus têm grande alegria nele. Não existe paz comparável à da pessoa que tem a mente imbuída da plena certeza de conhecer a Deus, e de que Deus o conhece. Este relacionamento garante o favor de Deus na vida, na morte e para sempre.
Esta é a paz da qual Paulo fala em Romanos 5:1: "Tendo sido, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo", e cuja substância ele analisa completamente em Romanos 8:
Portanto, agora já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus [...] O próprio Espírito testemunha ao nosso espírito que somos filhos de Deus. Se somos filhos, então somos herdeiros [...] Sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam [...] aos que justificou, também glorificou [...] Se Deus é por nós, quem será contra nós? [...] Quem fará alguma acusação contra os escolhidos de Deus? [...] Quem nos separará do amor de Cristo? [...] Pois estou convencido de que nem a morte nem vida [...] nem o presente nem o futuro [...] será capaz de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor (v. 1,16, 17,28,30,31,33,35,38,39).
Esta é a paz que Sadraque, Mesaque e Abede-Nego conheciam; Essa era a razão do contentamento e da calma com que firmaram sua posição diante do ultimato de Nabucodonosor (Dn 3:15): "[...] Mas, se não a adorarem, serão imediatamente atirados numa fornalha em chamas. E que deus pode livrá-los das minhas mãos?".
A resposta deles (3:16-18) é clássica: "Não precisamos defender-nos diante de ti" (Sem medo!). "... o Deus a quem prestamos culto pode livrar-nos, e ele nos livrará das tuas mãos, ó rei" (cortês, mas indiscutível — eles conheciam seu Deus!). "Mas se ele não nos livrar, saiba, ó rei, que não prestaremos culto aos teus deuses" (não importa! Não faz diferença! Vivendo ou morrendo, eles estavam contentes).
As tuas mãos dirigem meu destino,
Ó Deus de amor, bom é que seja assim! Teus são os meus poderes,
Minha vida, em tudo, eterno Pai, dispõe de mim!
Meus dias sejam curtos ou compridos,
Passados em tristeza ou prazer, Em sombra ou luz é tudo como queres,
E é tudo bom, se vem do teu querer.
A extensão de nosso contentamento é outro critério pelo qual podemos julgar se conhecemos a Deus de verdade.
Primeiros passos
Desejamos tal conhecimento de Deus? Então, vejamos duas condições:
Primeiramente, precisamos reconhecer como é pequeno nosso conhecimento sobre Deus. Precisamos aprender a nos medir, não pelo nosso conhecimento de Deus, nem pelos dons e pelas responsabilidades que tenhamos na igreja, mas pelo modo como oramos e por aquilo que vai em nosso coração. Muitos de nós, creio, não têm idéia de quão pobres somos neste sentido. Peçamos que Deus nos mostre isso.
Em segundo lugar, precisamos buscar o Salvador. Quando ele estava na terra convidava os homens a acompanhá-lo; desse modo vinham a conhecê-lo e, conhecendo-o, conheciam o Pai. O Antigo Testamento registra manifestações do Senhor Jesus Cristo antes da encarnação, fazendo o mesmo — acompanhando os homens, como o anjo do Senhor, a fim de que pudessem conhecê-lo. O livro de Daniel conta dois fatos que parecem ser dois desses exemplos — pois quem era o quarto homem que "se parece com um filho dos deuses" (3:25), e passeava com os três amigos de Daniel na fornalha? E quem era o anjo que Deus mandou para fechar a boca dos leões quando Daniel estava na cova dos leões (6:22)? Embora o Senhor Jesus Cristo agora não esteja presente em corpo, espiritualmente isso não faz diferença; ainda podemos encontrar e conhecer a Deus buscando e achando sua companhia. Os que buscarem o Senhor Jesus até encontrá-lo — pois a promessa é que se o buscarmos de todo o coração com certeza o encontraremos — poderão levantar-se diante do mundo para testificar que conhecem a Deus.
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Conhecer e ser conhecido
Para que fomos feitos? Para conhecer a Deus. Que alvo devemos estabelecer para nós na vida? Conhecer a Deus. O que é a "vida eterna" dada por Jesus? O conhecimento de Deus. "Esta é a vida eterna: que te conheçam, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste" (Jo 17:3).
Qual é a melhor coisa na vida, que traz alegria, prazer e contentamento acima de todas as outras? O conhecimento de Deus. "Assim diz o Senhor: 'Não se glorie o sábio em sua sabedoria nem o forte em sua força nem o rico em sua riqueza, mas quem se gloriar, glorie-se nisto: em compreender-me e conhecer-me, pois eu sou o Senhor" (Jr 9:23, 24a).
Das situações em que Deus vê o homem, qual lhe dá mais prazer? O conhecimento dele. "... quero [...] conhecimento de Deus, mais do que holocaustos", diz Deus (Os 6:6; ra).
Dissemos muitas coisas nestas poucas sentenças. O ponto que queremos evidenciar é aquele que aquece o coração de cada cristão, embora o adepto da religião apenas formal não seja afetado por ele. (Justamente por este fato evidencia sua condição não-regenerada.) O que dissemos proporciona instantaneamente o alicerce, a forma e o alvo de nossa vida, além de um princípio de prioridades e uma escala de valores.
Uma vez que você se convença de que a principal razão de sua estada aqui é conhecer a Deus, muitos dos problemas da vida se enquadrarão devidamente. O mundo está cheio de vítimas do mal devastador que Albert Camus1 denominou absurdismo ("a vida é uma piada sem graça") e da doença que chamaremos "febre de Maria Antonieta"2 ("nada tem gosto"), já que foi ela que encontrou essa frase para descrevê-la.
Essas enfermidades prejudicam toda uma vida: tudo de repente se torna um problema e um aborrecimento, porque nada parece valer a pena. Mas os vermes do absurdismo e a "febre de Maria Antonieta" são doenças às quais, pela própria natureza, o cristão está imune, exceto por momentos ocasionais de perturbação, quando o poder da tentação deforma-lhe a mente; mas estes, graças a Deus, não duram muito.
O que dá valor à vida é ter um grande objetivo, alguma coisa que prenda nossa imaginação e conserve nossa fidelidade; e isto o cristão tem como ninguém. Pois haverá objetivo mais alto, mais exaltado e mais estimulante que conhecer a Deus?
De outro ponto de vista, entretanto, ainda não dissemos muita coisa. Quando falamos sobre conhecer a Deus, usamos uma fórmula verbal, e as fórmulas são como cheques, não têm nenhum valor a menos que saibamos como sacá-los. Sobre o que falamos ao usar a expressão conhecer a Deus? Sobre certo
tipo de emoção? Arrepios na espinha? Um sentimento irreal, como em um sonho? A sensação de entorpecimento e euforia procurada pelos viciados em drogas? Ou conhecer a Deus é um tipo de experiência intelectual? Ouvimos vozes? Temos visões? Pensamentos estranhos começam a passar pela mente? Ou o quê? Estes assuntos devem ser discutidos especialmente porque, segundo as Escrituras, trata-se de uma área na qual é fácil ser enganado, e às vezes se pensa conhecer a Deus quando
1Filósofo de origem argelina (1913-1960), radicado na França. Foi um dos principais proponentes do existencialismo. Seus livros são marcados pela visão desesperançada e niilista da condição humana. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1957.
2Mulher de Luís xvi, rei da França. De ascendência austríaca (1755-1793), era odiada por muitos franceses. Conhecida por sua vida regalada e por debochar dos desafortunados, foi guilhotinada durante a Revolução Francesa.
isso não é verdade. Perguntamos então: que tipo de atividade, ou acontecimento pode ser propriamente descrito como "conhecer a Deus"?
O QUE O CONHECIMENTO DE DEUS ENVOLVE
Logo de início está claro que "conhecer" a Deus é necessariamente um assunto mais complexo que "conhecer" uma pessoa, assim como "conhecer" meu vizinho é mais complexo que "conhecer" uma casa, um livro ou uma língua. Quanto mais complexo o assunto, mais difícil é obter conhecimento sobre ele. Conhecer algo inanimado, como o Ben Nevis3 ou o Museu Britânico, é possível mediante a inspeção e a exploração. Essas atividades, embora exigentes em termos de esforço concentrado, são relativamente fáceis de descrever.
Quando se trata, porém, de coisas vivas, conhecê-las se torna muito mais complicado. Não se conhece realmente algo vivo enquanto não se souber, além da história passada, como costuma reagir e se comportar em certas circunstâncias. Uma pessoa que diz "Eu conheço este cavalo" normalmente não está indicando apenas que "já o viu antes" (embora possa ter só esse significado). O mais provável, entretanto, é que a pessoa queira dizer: "Conheço o comportamento dele e posso dizer-lhe como deve ser conduzido". Tal conhecimento só ocorre depois de algum contato anterior com o cavalo, vendo-o em ação e tentando conduzi-lo.
No caso de seres humanos, a situação é mais complicada ainda, porque, diversamente dos cavalos, as pessoas fazem segredo e não mostram aos outros tudo o que lhes vai no coração. Poucos dias são suficientes para conhecer completamente um cavalo, mas você pode passar meses e anos convivendo com outra pessoa e ainda dizer: "Eu realmente não a conheço bem". Reconhecemos graus de conhecimento acerca de nossos semelhantes; nós os conhecemos "bem", "não muito bem", "só nos cumprimentamos", "intimamente" ou "pelo avesso", de acordo com o grau de abertura deles para conosco.
Assim, a qualidade e a extensão de nosso conhecimento sobre outras pessoas depende mais delas que de nós. Nosso conhecimento é mais o
3A montanha mais alta da Escócia (Reino Unido), com 1 343 metros.
resultado da permissão para que as conheçamos que de nosso esforço nesse sentido. Quando nos encontramos, devemos dar-lhes nossa atenção e demonstrar interesse, manifestando boa vontade e nos abrindo de maneira amigável. A partir desse ponto, entretanto, são as outras pessoas que decidem se vamos chegar a conhecê-las ou não.
Imagine agora que seremos apresentados a alguém que sentimos ser "superior" a nós, quer em posição, distinção intelectual, habilidade profissional, santidade pessoal quer de outro modo qualquer. Quanto mais consciência tivermos de nossa inferioridade maior será a sensação de que nosso papel é apenas ouvir respeitosamente e deixar que a pessoa tome a iniciativa da conversa. (Pense em um encontro com a rainha da Inglaterra ou com o presidente do Brasil.) Gostaríamos de conhecer pessoas assim importantes, mas sentimos que isso depende mais da decisão delas que da nossa. Se elas se restringirem ao protocolo, não poderemos reclamar, ainda que fiquemos desapontados, pois, afinal, não tínhamos nenhum direito a sua amizade.
Mas se, ao contrário, elas começarem a fazer confidências e a falar francamente o que pensam sobre assuntos comuns, se nos convidarem para algum programa particular que tenham planejado e pedir que estejamos permanentemente disponíveis para esse tipo de colaboração sempre que precisarem de nós, então nos sentiremos tremendamente privilegiados e nossa perspectiva mudará completamente. Se a vida até então parecia sem importância e monótona, não o será mais, agora que essas grandes personagens nos incluíram entre seus assistentes pessoais. Que grande novidade para transmitir à família — e uma boa razão pela qual viver!
Respeitadas as diferenças, esta é uma ilustração do que significa conhecer a Deus. O poderoso e justo Deus disse por meio de Jeremias: "mas quem se gloriar, glorie-se nisto: em compreender-me e conhecer-me..." (Jr 9.24a) — pois conhecer a Deus é um relacionamento capaz de fazer vibrar o coração humano.
O que acontece é que o Criador todo-poderoso, o Senhor dos Exércitos, o grande Deus diante de quem as nações são como uma gota no oceano, se aproxima de você e começa a falar-lhe por meio das palavras e verdades das Sagradas Escrituras. Talvez você já conheça a Bíblia e as verdades cristãs há muito tempo, mas não tenham muito significado. Um dia, porém, você desperta para o fato de que Deus está realmente falando com você — você! — por meio da mensagem bíblica. Enquanto você ouve as palavras de Deus, sente-se cada vez mais diminuído, pois Deus lhe fala sobre seu pecado, sua culpa e sua fraqueza, sua cegueira e sua insensatez e o leva a considerar-se sem esperança e indefeso, e a implorar por perdão.
Mas isto não é tudo. À medida que ouve, você compreende que Deus está realmente lhe abrindo o coração dele, tornando-se seu amigo e aceitando-o como companheiro — segundo a expressão de Barth, um parceiro da aliança. É um fato desconcertante, mas verdadeiro — o relacionamento em que seres humanos pecaminosos conhecem a Deus é tal que Deus, por assim dizer, os aceita como seus assistentes para serem daí por diante seus cooperadores (v. 1Co 3:9) e amigos pessoais. O ato divino de tirar José da prisão e torná-lo primeiro-ministro do Faraó ilustra o que ele faz com todo cristão: de prisioneiro de Satanás, vê-se transferido a uma posição de confiança a serviço de Deus. Sua vida é transformada imediatamente.
A diferença entre sentir orgulho ou vergonha da condição de servo depende daquele a quem se serve. Muitas pessoas falaram do orgulho de prestar serviços pessoais a sir Winston Churchill na Segunda Guerra Mundial. Quão maior deveria ser o orgulho e a glória de conhecer e servir ao Senhor do céu e da terra!
O que então está contido no ato de conhecer a Deus? Juntando os vários elementos incluídos neste relacionamento, já delineados, podemos dizer que o conhecimento de Deus envolve inicialmente o ato de ouvir a Palavra de Deus e recebê-la de acordo com a interpretação do Espírito Santo ao aplicá-la a nós. Em segundo lugar, prestar atenção à natureza e ao caráter de Deus revelados em sua Palavra e obra; em terceiro lugar, aceitar seu convite e obedecer a suas ordens e, em quarto lugar, reconhecer o amor demonstrado por Deus e alegrar-nos nele. Com isso, o Senhor se aproxima de nós e nos atrai para sua divina companhia.
Conhecer Jesus
A Bíblia complementa essas idéias usando figuras e analogias. Ela nos fala que conhecemos a Deus como o filho conhece seu pai, a esposa seu marido, o súdito seu rei e a ovelha seu pastor (estas são apenas quatro das muitas analogias usadas). Todas mostram a relação em que o conhecedor "procura" aquele que é conhecido, e este se responsabiliza pelo bem-estar daquele. Isto faz parte do conceito bíblico de conhecer a Deus; os que o conhecem — isto é, os que ele permite que o conheçam — são amados e cuidados por ele. Falaremos mais adiante sobre este assunto.
A Bíblia acrescenta, então, outro ponto: só podemos conhecer a Deus deste modo, mediante o conhecimento de Jesus Cristo, que é Deus manifestado na carne: "... não me conhece ...? ... Quem me vê, vê o Pai", "Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim" (Jo 14:9,6). É importante, portanto, que tenhamos bem claro na mente o que significa conhecer Jesus Cristo!
Para os discípulos que conviveram com Jesus, conhecê-lo era diretamente comparável ao conhecimento do grande homem de nossa ilustração. Os discípulos eram simples galileus, sem nenhuma razão especial de interesse por Jesus. Mas Jesus, o mestre que falou com autoridade, o profeta que era mais do que profeta, o Senhor que despertou neles crescente respeito e devoção até que o reconheceram como seu Deus, os encontrou, chamou-os a si, confiou neles e os designou como seus agentes para proclamar ao mundo o Reino de Deus. "Escolheu doze, designando-os apóstolos, para que estivessem com ele, os enviasse a pregar" (Mc 3:14). Eles reconheceram quem os havia escolhido e chamado de amigos como "o Cristo, o Filho do Deus vivo" (Mt 16:16), o homem nascido para ser rei, o portador das "palavras de vida eterna" (Jo 6:68). O senso de lealdade e privilégio que este conhecimento trouxe transformou completamente a vida deles.
Quando o Novo Testamento fala que Jesus Cristo ressuscitou, um dos significados desta declaração é que a vítima do Calvário está agora, por assim dizer, livre. Qualquer pessoa, em qualquer lugar pode desfrutar do mesmo tipo de relacionamento com ele que os discípulos tiveram durante o tempo em que viveu entre nós.
As únicas diferenças são estas: primeira, sua presença entre os cristãos não é física, mas espiritual e, portanto, invisível aos olhos físicos. Segunda, baseado no testemunho do Novo Testamento, o cristão, desde o início, sabe as verdades sobre a divindade e o sacrifício de Jesus que os primeiros discípulos foram aprendendo gradualmente no decorrer dos anos. Terceira, Jesus não fala agora conosco mediante palavras novas, mas aplica a nossa consciência suas palavras registradas nos evangelhos, junto com todo o testemunho bíblico a seu respeito.
Conhecer Jesus permanece uma relação definida de discipulado pessoal, como o foi para os doze quando ele estava na terra. O Jesus que anda pelas histórias do Evangelho também anda com os cristãos agora, e conhecê-lo significa seguir com ele, tanto agora como antes.
"As minhas ovelhas ouvem a minha voz", diz Jesus, "eu as conheço, e elas me seguem" (Jo 10:27). Sua "voz" é sua afirmação, sua promessa e seu chamado: "Eu sou o pão da vida [...] a porta das ovelhas [...] o bom pastor [...] a ressurreição" (Jo 6:35; 10:7,14; 11:25). "... Aquele que não honra o Filho, também não honra o Pai que o enviou. Eu lhes asseguro: Quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna..." (Jo 5:23b, 24a). "Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso. Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim [...] e vocês encontrarão descanso..." (Mt 11:28,29).
A voz de Jesus é "ouvida" quando sua afirmação é reconhecida, quando cremos em sua promessa e respondemos a seu chamado. Desse momento em diante, Jesus passa a ser conhecido como pastor, e os que confiam nele são reconhecidos por ele como suas ovelhas. "[...] eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna, e elas jamais perecerão; ninguém as poderá arrancar da minha mão" (Jo 10:27,28). Conhecer a Jesus é ser salvo por ele do pecado, da culpa e da morte, nesta vida e na vida futura.
Uma questão pessoal
Recordando agora o que foi dito sobre o significado de "que te conheçam, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste", podemos destacar os seguintes pontos:
Primeiro, conhecer a Deus é uma questão pessoal, como acontece com qualquer relacionamento humano. Conhecê-lo é mais que obter conhecimento sobre ele; é relacionar-se com ele enquanto se revela a você; é ser dirigido por ele à medida que toma conhecimento de você. Conhecê-lo é uma precondição para confiar nele ("E como alguém pode ter fé no Senhor se não ouvir falar dele?" [Rm 10:14; vfl]), mas a extensão de nosso conhecimento a seu respeito não pode servir de medida para a profundidade desse conhecimento.
John Owen4 e João Calvino5 sabiam mais teologia do que John Bunyan ou Billy Bray,6 mas quem poderá negar que os últimos conheciam seu Deus tão bem quanto os primeiros? (Os quatro, é claro, eram profundos pesquisadores da Bíblia, o que vale mais que qualquer conhecimento teológico). Se o fator decisivo fosse o conhecimento da doutrina, naturalmente os maiores estudiosos da Bíblia conheceriam a Deus melhor que os outros. Mas não é isso o que acontece; você pode guardar na mente a doutrina correta, sem jamais provar em seu coração suas realidades. O simples leitor da Bíblia e ouvinte de sermões cheio do Espírito
4Ministro puritano, nascido em Stadham, Inglaterra (I6l6-1683). Uma das mentes mais brilhantes de sua época. Dissidente do anglicanismo, serviu como capelão de Oliver Cromwell apesar de sua simpatia pelas igrejas independentes (mais próximas do con-gregacionalismo). Suas obras mais famosas são: Por quem Cristo morreu? e A display of arminianism.
5Reformador e teólogo francês (1509-1564), foi o grande condensador do pensamento protestante. Famoso por suas publicações, das quais se destacam As institutas da religião cristã e seus comentários bíblicos, Calvino foi ainda o maior defensor da doutrina agostiniana da predestinação. Aliás, todo o sistema das doutrinas da graça passou a ser designado calvinismo. Foi também o responsável pela modernização de Genebra (Suíça), cidade na qual ajudou a reformar não só a Igreja, como o próprio Estado.
6William Trewartha Bray (1794-1868) nasceu em Twelveheads, Inglaterra. Pregador metodista, famoso por seu estilo pessoal pouco convencional para a época (sempre pregava gritando, pulando e batendo palmas), não possuía educação formal, e seu ministério se deu entre os trabalhadores de minas de sua região. Um verdadeiro exemplo de alegria no Senhor e de devoção pessoal a Cristo.
Santo desenvolverá um relacionamento mais profundo com seu Deus e Salvador que o estudioso mais erudito que se contenta apenas por estar teologica-mente correto. A razão disto é que o primeiro entrará em contato com Deus a respeito da aplicação prática da verdade em sua vida, enquanto o último não terá essa preocupação.
Segundo, conhecer a Deus é uma questão de envolvimento pessoal que abrange a mente, a vontade e os sentimentos. Caso contrário, não seria um relacionamento completo de fato. Para conhecer outra pessoa você precisa envolver-se com seus interesses, procurar sua companhia e estar pronto a se identificar com suas preocupações. Sem isso seu relacionamento com ela será apenas superficial e insípido. "Provem, e vejam como o Senhor é bom", diz o salmista (Sl 34:8). "Provar", como bem sabemos, é "experimentar" um pedaço de alguma coisa com a intenção de apreciar o sabor. Um prato pode parecer delicioso e ser bem recomendado pelo cozinheiro, mas não saberemos suas reais qualidades enquanto não o provarmos.
Do mesmo modo não conheceremos as reais qualidades de alguém enquanto não tivermos "experimentado" sua amizade. Os amigos estão, figuradamente, comunicando sabores um ao outro todo o tempo, seja quando compartilham atitudes (pense nas pessoas que se amam) seja em relação a interesses comuns. À medida que abrem o coração um ao outro, pelo diálogo ou pelas ações, um "prova" as qualidades do outro, na alegria ou na tristeza. Eles se identificaram com as preocupações mútuas, envolvendo-se, portanto, pessoal e emocionalmente nelas. Sentem e pensam um no outro. Trata-se de um aspecto essencial do conhecimento entre amigos, e o mesmo se aplica ao conhecimento do cristão sobre Deus, o qual, como já vimos, é em si mesmo um relacionamento entre amigos.
O lado emocional do conhecimento de Deus tem sido constantemente desestimulado nos últimos tempos, por medo de desenvolver uma introversão piegas. É verdade que não existe nada mais irreligioso que a religião ensimesmada. É preciso salientar constantemente que Deus não existe para nosso conforto, nossa felicidade, nossa satisfação, ou para nos proporcionar "experiências religiosas", como se isso fosse o mais interessante e importante na vida.
É necessário também destacar que se qualquer pessoa, baseando-se em "experiências religiosas", disser: '"Eu o conheço', mas não obedece aos seus mandamentos, é mentiroso, e a verdade não está nele" (1Jo 2:4; cf. v. 9,11; 3:6,11; 4:20).
Mas, apesar de tudo isso, não devemos desprezar o fato de que o conhecimento de Deus é uma relação emocional, assim como intelectual e volitiva, e não seria de fato um relacionamento profundo entre duas pessoas se não houvesse emoção. O cristão é, e deve ser, emocional-mente envolvido nas vitórias e vissicitudes da causa de Deus no mundo, como os auxiliares imediatos de sir Winston Churchill estavam envolvidos com as oscilações da guerra.
O cristão se alegra quando Deus é honrado e vindicado e sente profunda angústia quando o vê escarnecido. Quando Barnabé chegou a Antio-quia "vendo a graça de Deus, ficou alegre" (At 11:23), ao contrário do salmista, que escreveu "Rios de lágrimas correm dos meus olhos, porque a tua lei não é obedecida" (Sl 119:136). Do mesmo modo, o cristão sente vergonha e tristeza quando se convence de ter negado seu Senhor (v., p. ex.: Si 51 e Lc 22:61,62), e de tempos em tempos conhece enlevos de alegria quando Deus de alguma maneira lhe faz sentir a glória do seu eterno amor com o qual tem sido amado ("vocês estão cheios de uma alegria radiante que não pode ser descrita com palavras", lPe 1:8; vfl).
Este é o lado emocional e experimental da amizade com Deus. Por mais verdadeiros que sejam os pensamentos do ser humano sobre Deus, se ele ignorar essa parte emocional, na realidade, não conhece o Deus que lhe ocupa a mente.
Em terceiro lugar, conhecer a Deus é uma questão de graça. Trata-se de um relacionamento cuja iniciativa pertence completamente a Deus — como deve ser mesmo, pelo fato de ele estar tão acima de nós e de termos perdido totalmente qualquer direito a seu favor por causa de nossos pecados. Nós não fazemos amizade com Deus; ele se torna nosso amigo levando-nos a conhecê-lo e tornando seu amor conhecido por nós. Paulo expressa esta idéia da prioridade da graça em nosso conhecimento de Deus quando escreve aos gálatas: "Mas agora, conhecendo a Deus, ou melhor, sendo por ele conhecidos" (Gl 4:9). O que transparece nesta frase é a compreensão por parte do apóstolo de que a graça veio primeiro e permanece fundamental na salvação dos leitores dele. O conhecimento de Deus era conseqüência de ter Deus tomado conhecimento deles. Eles o conhecem pela fé porque ele os havia escolhido primeiro pela graça.
"Conhecer", quando usada em relação a Deus, é uma palavra da graça soberana e mostra que ele tomou a iniciativa de amar, escolher, redimir, chamar e preservar. Que Deus está perfeitamente consciente a nosso respeito, "conhecendo-nos pelo avesso" por assim dizer, é com certeza parte do significado, como se vê pelo contraste entre nosso conhecimento incipiente de Deus e seu perfeito conhecimento sobre nós em 1Coríntios 13:2; mas não é o significado principal, pois este realmente surge nas passagens que se seguem:
O Senhor disse a Moisés [...] porque tenho me agradado de você e o conheço pelo nome (Êx 33:17).
Antes de formá-lo [Jeremias] no ventre eu o escolhi; antes de você nascer, eu o separei (Jr 1:5).
Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem [...] e dou a minha vida pelas ovelhas [...] As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço [...] jamais perecerão (Jo 10:14,15,27,28).
Aqui o conhecimento de Deus sobre os seus está associado ao propósito da graça salvadora. É um conhecimento que implica afeição pessoal, ação redentora, fidelidade à aliança e proteção providencial para os conhecidos de Deus. Em outras palavras, isto implica salvação, agora e para sempre, como já aludimos anteriormente.
Ser conhecido
Portanto, o que importa realmente, em última análise, não é o fato de que conheço a Deus, mas uma idéia muito mais ampla está subentendida — o fato de que ele me conhece. Estou gravado nas palmas de sua mão, e nunca estou longe de seu pensamento. Todo o meu conhecimento dele depende de sua iniciativa contínua de me conhecer. Eu o conheço porque ele me conheceu primeiro e continua a fazê-lo. Ele me conhece como amigo — alguém que me ama muito e cujos olhos e atenção jamais se afastam de mim. Por nenhum momento seu cuidado me faltará.
Estamos falando de um conhecimento significativo. Há um conforto indescritível — o tipo de conforto que nos estimula, seja dito, e não debilita — em saber que Deus está constantemente atento a mim com amor, e velando por mim para meu benefício. Há um alívio tremendo em saber que seu amor é profundamente realista. Cada ponto baseia-se no conhecimento prévio do que há de pior sobre mim, de modo que agora nada pode desapontá-lo a meu respeito — como acontece muitas vezes comigo, pois estou sempre me desiludindo sobre mim mesmo —, nem extinguir sua determinação de me abençoar.
Há, certamente, grande motivo de humilhação em pensar que ele vê tudo o que há de errado em mim que outros não vêem (e isto me alegra!), e que ele vê mais corrupção do que eu mesmo vejo em mim (o que, em sã consciência, é bastante). Há, entretanto, igualmente um grande incentivo para adorar e amar a Deus porque, por alguma razão inson-dável, ele me quer por amigo, e quer ser meu amigo, pois entregou seu Filho para morrer por mim a fim de cumprir esse propósito.
Não podemos desenvolver essas idéias aqui, mas sua simples menção já basta para mostrar como é importante saber não apenas que conhecemos a Deus, mas que ele nos conhece.
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o único e verdadeiro Deus
O que a palavra idolatria lhe sugere? Selvagens prostrados diante de um poste-ídolo? Estátuas com faces cruéis nos templos hinduístas? Danças religiosas dos sacerdotes de Baal ao redor do altar levantado por Elias? Tudo isto clara e certamente é idolatria, mas precisamos pensar na existência de formas bem mais sutis de idolatria.
Veja o segundo mandamento. Ele diz "Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem de qualquer coisa no céu, na terra, ou nas águas debaixo da terra. Não te prostrarás diante deles nem lhes prestarás culto, porque eu, o Senhor, o teu Deus, sou Deus zeloso..." (Êx 20:4,5). Sobre o que este mandamento está falando?
Se ele estivesse isolado, seria natural supor sua referência à adoração de imagens de outros deuses além de Jeová — os ídolos da Babilônia, por exemplo, que Isaías ridicularizou (Is 44:9; 46:1), ou o paganismo do mundo greco-romano dos tempos de Paulo, sobre os quais ele escreveu em Romanos 1:23-25: "e trocaram a glória do Deus imortal por imagens feitas segundo a semelhança do homem mortal, bem como de pássaros, quadrúpedes, e répteis [...] Trocaram a verdade de Deus pela mentira, e adoraram e serviram a coisas e seres criados, em lugar do Criador...".
Em seu contexto, porém, é pouco provável que o segundo mandamento esteja se referindo a este tipo de idolatria, pois se assim fosse só repetiria o pensamento do primeiro mandamento sem lhe acrescentar nada.
Assim, tomamos o segundo mandamento — como tem sido sempre feito — como indicativo do seguinte princípio (citando Charles Hodge): "... a idolatria consiste não só no culto a falsos deuses, mas também no culto ao verdadeiro Deus através de imagens".1
Na aplicação cristã isto quer dizer que não devemos fazer uso na adoração de nenhuma representação visual ou pictó-rica do Deus triúno, nem das pessoas da
Trindade. O mandamento não se refere ao objeto de nossa adoração, mas à maneira como esta é feita; nenhuma estátua ou figura daquele que adoramos deve ser usada como auxílio à adoração.
O PERIGO DAS IMAGENS
À primeira vista parece estranho que tal proibição esteja colocada entre os dez princípios básicos da religião bíblica, pois não vemos, de imediato, muita razão para isso. Que mal pode haver, perguntamos, se o adorador rodear-se de estátuas e quadros se eles o ajudam a elevar o coração a Deus?
Acostumamo-nos a tratar o tema sobre se tais objetos devem ser usados ou não, como uma questão de temperamento e gosto pessoal. Sabemos que muitas pessoas possuem crucifixos e figuras de Cristo no quarto. Dizem que olhar para esses objetos ajuda-as a focalizar os pensamentos em Cristo. Sabemos que muitas pessoas se julgam capazes de adorar com mais liberdade e facilidade em igrejas cheias desses ornamentos que em igrejas sem eles.
Bem, que há de errado nisso? Que mal esses objetos podem causar? Se as pessoas os acham realmente úteis, que mais há para dizer? Que propósito há em proibi-los? Diante dessa perplexidade, alguém poderá sugerir que o segundo mandamento se aplica apenas a representações imorais ou degradantes de Deus, tiradas dos cultos pagãos, e a nada
1Teologia sistemática, São Paulo: Hagnos, 2001, p. 1 239.
mais. Mas as palavras do mandamento eliminam tal suposição. Deus diz categoricamente: "Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem" para ser usada em adoração.
Essa afirmação categórica proíbe não apenas o uso de figuras e estátuas representando Deus como animal, mas também o uso de figuras e imagens que o representam como a mais elevada criatura que conhecemos — o homem. Proíbe também o uso de figuras e imagens de Jesus Cristo como homem, embora o próprio Jesus tenha sido e permaneça homem. Toda figura ou imagem é necessariamente produzida à "semelhança" do homem ideal, como o imaginamos, e portanto está sob a proibição imposta pelo mandamento.
Ao longo da história, os cristãos têm divergido a respeito da proibição do segundo mandamento, de vetar o uso de figuras de Jesus com propósitos didáticos e instrutivos (por exemplo, na escola dominical). Embora a questão não seja fácil de resolver, não há dúvida de que o segundo mandamento nos obriga a dissociar a adoração tanto pública como particular de qualquer figura ou estátua de Jesus, como de qualquer representação de seu Pai.
Neste caso, que razão há afinal para essa proibição tão ampla? Pela ênfase dada ao próprio mandamento com as assustadoras sanções ligadas a ele (proclamando o zelo de Deus, punindo com severidade os transgressores), supõe-se que deve ser de importância crucial. Mas será realmente?
A resposta é sim. A Bíblia mostra que a glória de Deus e o bem espiritual do homem estão diretamente ligados ao mandamento. Duas linhas de pensamento se nos apresentam e juntas poderão explicar amplamente por que este mandamento deve ser tão enfaticamente destacado. Estas linhas de pensamento não se referem ao auxílio real ou alegado das imagens, mas à verdade delas. São as seguintes:
1. As imagens desonram a Deus, pois obscurecem sua glória. A semelhança das coisas celestes (sol, lua, estrelas), terrestres (homens, animais, pássaros, insetos) e marítimas (peixes, mamíferos, crustáceos) não corresponde exatamente à semelhança de seu Criador. "A verdadeira imagem de Deus", escreveu Calvino, "não é encontrada em nenhuma parte do mundo; conseqüentemente [...] sua glória é profanada, e sua verdade corrompida pela mentira, sempre que ele nos é apresentado de forma visível [...]. Portanto, projetar qualquer imagem de Deus é por si só irreverência, porque mediante essa corrupção sua majestade é adulterada, e ele é representado de modo diferente da realidade".2
O ponto aqui não é apenas que a imagem representa Deus com corpo e membros, o que na realidade ele não tem. Se fosse apenas esta a base da objeção às imagens, as representações de Cristo não seriam erradas, mas a realidade é muito mais profunda. O cerne da objeção às figuras e imagens está no fato de ocultar inevitável e quase totalmente a verdade sobre a natureza pessoal e o caráter do Ser divino representado.
Para ilustrar: Aarão fez um bezerro de ouro (isto é, a imagem de um boi). Com a intenção de manter um símbolo visível de Jeová, o Deus poderoso que havia tirado Israel do Egito. Não há dúvida de que a intenção era honrar a Deus, criando um símbolo de sua grande força.
Entretanto não é difícil ver que esse símbolo é um insulto a Deus, pois que idéia de seu caráter moral, justiça, bondade e paciência poderia ser depreendida da observação de sua imagem retratada por um boi? A imagem de Aarão escondeu a glória de Jeová.
De modo semelhante, as impressões exteriores geradas pelo crucifixo obscu-recem a glória de Cristo, pois ofuscam sua divindade, a vitória na cruz e a realidade do Reino. Ele aponta apenas a fraqueza humana, porém esconde sua
força divina; representa a exatidão da dor, mas não mostra a realidade de sua alegria e força.
Em ambos os casos o símbolo perde valor pelo que deixa de transmitir. O mesmo acontece com as outras representações visuais da divindade.
2João Calvino, Harmony of the law, v. 2, .
Não importa o que pensemos a respeito da arte religiosa do ponto de vista cultural, não devemos olhar para as representações divinas à procura de sua glória e de estímulo à adoração, pois na verdade sua glória jamais é encontrada nesses quadros. Por isso Deus acrescentou sobre si no segundo mandamento a referência "zeloso" e vingador de quem não lhe obedece, pois o "ciúme" de Deus, na Bíblia, é seu zelo em manter a própria glória, posta em jogo quando imagens são usadas na adoração.
Em Isaías 40:18, depois de haver declarado vivamente a grandeza incomensurável de Deus, a Escritura pergunta: "Com quem vocês compararão Deus? Como poderão representá-lo?". A indagação não espera resposta, apenas o silêncio reservado. Seu propósito é lembrar o absurdo e a impiedade de pensar que a imagem modelada necessariamente à semelhança de alguma criatura possa ter paridade com o Criador.
Esta não é a única razão pela qual somos proibidos de usar imagens na adoração.
2. As imagens enganam os homens ao projetar idéias falsas a respeito de Deus. A representação inadequada perverte nossos pensamentos sobre Deus e nos incute na mente erros de todos os tipos sobre seu caráter e sua vontade.
Ao representar a imagem de Deus na forma de bezerro, Aarão levou os israelitas a pensar nele como um Ser que podia ser adorado por meio de devassidão frenética. Conseqüentemente, a "festa dedicada ao Senhor" organizada por Aarão (Êx 32:5) transformou-se em orgia vergonhosa. Ainda mais, a história provou com fatos que o uso do crucifixo como auxílio à oração levou o povo a equiparar a devoção com a meditação sobre os sofrimentos corporais de Cristo. Isso os tornou mórbidos em relação ao valor espiritual da dor física, impedindo-os de conhecer o Salvador ressurreto.
Estes exemplos mostram como as imagens falsificaram a verdade divina na mente humana. Do ponto de vista psicológico é correto afirmar que, se os pensamentos estiverem constantemente focalizados na imagem ou figura do ser a quem as orações são dirigidas, você pensará nele e orará a ele conforme a representação da imagem. Assim, neste sentido você estará "se curvando" e "adorando" sua imagem. A medida que essa imagem falha em representar a verdade sobre Deus, você também deixará de adorá-lo em verdade. Esta é a razão pela qual Deus proíbe o uso de imagens e figuras como auxílio à adoração.
Imagens esculpidas e imagens mentais
A compreensão de que imagens e figuras de Deus afetam nossos pensamentos sobre ele sinaliza um campo mais avançado da aplicabilidade da proibição do segundo mandamento. Ele tanto nos proíbe de fazer imagens de Deus como de criá-las mentalmente. Imaginar pode ser uma infração tão real do segundo mandamento quanto idealizá-lo mediante o trabalho manual.
Ouvimos muitas vezes expressões como esta: "Eu gosto de pensar em Deus como o grande Arquiteto (Matemático, Artista)". "Eu não penso em Deus como juiz: gosto depensar nele simplesmente como Pai". Sabemos por experiência como essas expressões servem de prelúdio à negação de algum ensinamento bíblico a respeito de Deus. É necessário afirmar com a maior ênfase possível que quem se considera livre para pensar em Deus como gosta infringe o segundo mandamento. Na melhor das hipóteses, pode pensar em Deus apenas como homem — talvez o homem ideal ou um super-homem —, mas Deus não é igual a nenhum tipo humano. Embora tenhamos sido feitos a sua imagem, não podemos pensar em Deus de acordo com ela. Pensar em Deus desse modo é mostrar ignorância a respeito dele, e não conhecimento.
Toda teologia especulativa, baseada em arrazoados filosóficos e não na revelação bíblica, erra nesse ponto. Paulo nos conta onde termina esse tipo de teologia: "[...] o mundo não o conheceu por meio da sabedoria humana" (1Co 1:21b). Seguir a imaginação de alguém no campo da teologia é o modo de manter-se ignorante a respeito de Deus e tornar-se idólatra — o ídolo neste caso seria a falsa imagem mental de Deus criada pela especulação e imaginação humanas.
Tendo em vista este fato, o propósito positivo do segundo mandamento torna-se claro. Negativamente, é uma exortação à adoração e à prática religiosa que desonram a Deus e falsificam sua verdade. Positivamente, ele nos convoca a reconhecer que Deus, o Criador, é transcendente, misterioso e inescrutável, além do alcance de qualquer conjectura filosófica. Daí a convocação para nos humilharmos, ouvi-lo e aprender dele; assim, ele mesmo nos ensinará como é e como devemos pensar sobre ele.
"Os meus pensamentos não são os pensamentos de vocês", ele nos diz, "nem os seus caminhos são os meus caminhos [...] Assim como os céus são mais altos do que a terra, também os meus caminhos são mais altos do que os seus caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os seus pensamentos" (Is 55:8,9). Paulo fala do mesmo modo: "Ó profundidade da riqueza da sabedoria e do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos e inescrutáveis os seus caminhos! Quem conheceu a mente do Senhor?" (Rm 11:33,34).
Deus não é parecido conosco. Sua sabedoria, seus objetivos, sua escala de valores e seu modo de proceder diferem tanto do nosso que não temos possibilidade de comparar nossos caminhos com os dele nem inferi-los pela analogia do homem ideal. Não podemos conhecê-lo a menos que ele se pronuncie e nos fale sobre si mesmo.
Na realidade, ele tem falado. Falou aos profetas e apóstolos — e por meio deles — e tem falado nas palavras e atos de seu Filho. Mediante sua revelação, disponível nas Sagradas Escrituras, podemos formar a noção verdadeira sobre Deus; sem essa revelação jamais conseguiríamos. Parece, portanto, que a força positiva do segundo mandamento está na exigência de formar nossos conceitos so-
bre Deus com base em sua santa Palavra, e em nada mais.
Pelo modo como foi enunciado, parece claro ser este o impulso positivo do mandamento. Tendo proibido a produção e a adoração de imagens, Deus se declarou "zeloso" ao punir não apenas os adoradores de imagens, mas todos os que o "odeiam", isto é, quem desobedece a seus mandamentos de forma geral.
Pelo contexto, seria natural e esperada a ameaça apenas aos idólatras; por que então a ameaça divina é generalizada? Certamente é para percebermos que quem faz imagens e as utiliza na adoração inevitavelmente extrai delas sua teologia, incluindo a negligência de todos os pontos da vontade de Deus revelada.
A mente que admite imagens não aprendeu ainda a amar e a ouvir a Palavra de Deus. Quem espera ser guiado a Deus por imagens feitas pelos homens, materiais ou mentais, por certo não leva a sério como deveria nenhuma parte de sua revelação.
Em Deuteronômio 4, o próprio Moisés interpreta a proibição de imagens na adoração exatamente desse modo, contrapondo a fabricação de imagens à atenção aos mandamentos e à palavra de Deus, como se ambas fossem mutuamente excludentes. Ele lembra ao povo que, embora tivessem visto sinais da presença divina no Sinai, não contemplaram nenhuma representação visível do próprio Deus, apenas ouviram sua palavra. Moisés os exorta a continuar vivendo como se estivessem ao pé da montanha, com a própria palavra de Deus ecoando-lhes nos ouvidos para dirigi-los, e sem nenhuma suposta imagem de Deus para distraí-los.
A idéia é clara. Deus não lhes apresentou nenhum símbolo visível de si mesmo, mas falou com eles; portanto, agora eles não deveriam procurar símbolos visíveis de Deus, mas simplesmente obedecer a sua Palavra. Caso se diga que Moisés estava com medo de que os israelitas tomassem emprestados modelos de imagens das nações idólatras a sua volta, nossa resposta é sem dúvida positiva. Este é exatamente o ponto: todas as imagens de Deus feitas pelos homens, sejam esculpidas ou mentais, são realmente emprestadas do mundo ímpio e pecador, e com certeza não estão de acordo com a santa Palavra do próprio Deus. Fazer uma imagem dele é buscar inspiração em recursos humanos e não em Deus; este é realmente o erro da produção de imagens.
Olhando para o verdadeiro Deus
A questão suscitada por esta linha de pensamento é: Até que ponto estamos guardando o segundo mandamento? Por certo não temos imagens de bezerros em nossas igrejas e talvez nem crucifixos em casa (embora possamos ter alguma figura de Cristo na parede — sobre a qual deveríamos pensar com cuidado redobrado). No entanto, mas temos certeza de que o Deus que adoramos é o Deus da Bíblia, o Jeová triúno? Adoramos o único e verdadeiro Deus? Ou nossa concepção dele demonstra a realidade de não crermos no Deus do cristianismo, mas em outra divindade professada por muçulmanos, judeus ou testemunhas de Jeová?
Você talvez se pergunte: Como posso saber? Bem, o teste é este: O Deus da Bíblia falou através de seu Filho. A luz do conhecimento de sua glória nos é dada na face de Jesus Cristo. Será que olho habitualmente para a pessoa e para a obra do Senhor Jesus Cristo como a revelação da verdade final sobre a natureza e a graça de Deus? Vejo todos os propósitos de Deus centralizados nele?
Se fui capacitado para ver isto e, na mente e no coração, ir até o Calvário e apropriar-me da solução nele encontrada, então posso saber que realmente adoro o Deus verdadeiro, que ele é o meu Deus e que já desfruto a vida eterna de acordo com a definição do próprio Senhor: "Esta é a vida eterna: que te conheçam, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste" (Jo 17:3).
Nota adicional (1993)
Ao longo dos anos tenho recebido ininterruptamente cartas afirmando que meu argumento sobre o uso de imagens com propósitos devocio-nais ou didáticos foi exagerado. Será?
Três objeções foram levantadas contra ele. Primeira, a adoração a Deus requer tanto a expressão estética mediante artes visuais quanto a expressão moral cristã por meio do amor familiar e do amor ao próximo. Segunda, a imaginação é parte da natureza humana criada por Deus e deve ser santificada e manifestada em vez de estigmatizada e suprimida em nossa comunhão com o Criador. Terceira, imagens (crucifixos, ícones, estátuas, quadros de Jesus) aumentam a devoção, que de outra forma seria enfraquecida.
O princípio da primeira objeção está correto, mas precisa ser aplicado com exatidão. A arte simbólica pode servir à adoração sob várias formas, mas o segundo mandamento proíbe todas as representações da imagem de Deus. Se pinturas, desenhos e estátuas de Jesus — o Filho encarnado — sempre foram considerados símbolos da perfeição humana pelas culturas que os produziram (pele branca para os anglo-saxões, pele negra para os africanos e pele amarela para os asiáticos ou o que quer que seja), em vez da aparência real de Jesus, não haveria problema. Entretanto, crianças e adultos mais simples podem considerá-los reais. Portanto, em minha opinião, seria prudente evitá-los.
O princípio da segunda objeção também está correto, mas a maneira bíblica de aplicá-lo é restringir nossa imaginação visual e verbal à apreciação da história e do maravilhamento diante dos atos divinos. Isso acontece nos Profetas, Salmos e no livro do Apocalipse, que não desafiam o segundo mandamento pela criação de imagens simbólicas ou aparentemente representativas de Deus.
Com relação à terceira objeção, o problema é que tão logo as imagens sejam tratadas como representações e não como símbolos, elas começam a corromper a devoção que pretendiam estimular. Dada a dificuldade de escapar dessa armadilha, a sabedoria aconselha a proceder da forma melhor e mais segura, isto é, não usá-las. Não vale a pena correr alguns riscos.
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Deus encarnado
Não é de admirar que pessoas ponderadas achem difícil crer no Evangelho de Jesus Cristo, pois as realidades ali apresentadas ultrapassam o entendimento humano. Entretanto é triste ver que muitos tornam a fé mais difícil do que ela é, encontrando problemas nos lugares errados.
Tome, por exemplo, a expiação. Muitos encontram dificuldade nesse ponto e questionam: Como podemos crer que a morte de Jesus de Nazaré — um homem morrendo na cruz romana — tira os pecados do mundo? Como pode essa morte ter qualquer ligação com o perdão divino para nossos pecados hoje?
Considere ainda a ressurreição, que para muitos é uma pedra de tropeço. Eles perguntam: Como podemos crer que Jesus ressuscitou fisicamente da morte? Na verdade, é difícil negar que o túmulo estava vazio — mas certamente a dificuldade em crer que Jesus se levantou dele em um corpo incorruptível é ainda maior. Não será mais fácil acreditar na teoria de ressurreição temporária depois de um desmaio ou do roubo do corpo, em vez de na doutrina cristã da ressurreição?
Veja também o nascimento virginal, largamente negado pelos protestantes dos últimos dois séculos. As pessoas perguntam: como pode alguém crer em tal anomalia biológica?
E os milagres do Evangelho? Muitos acham neles uma fonte de dificuldades. Tendo como certo que Jesus realizou curas (é difícil duvidar que ele as tenha feito devido as evidencias, e de qualquer modo a historia conhece outros curandeiros), como é possível crer que ele tenha andado sobre as águas, alimentado cinco mil pessoas ou ressuscitado mortos? Histórias como essas são realmente inacreditáveis. Com estes e outros problemas similares muitas pessoas à margem da fé estão hoje profundamente perplexas.
O MAIOR MISTÉRIO
Na verdade, a dificuldade real, o mistério supremo com o qual o Evangelho nos confronta, não se encontra aqui afinal. Não está na mensagem da expiação da Sexta-feira Santa, nem na mensagem da ressurreição da Páscoa, mas no Natal com a encarnação de Deus. A afirmativa cristã realmente estonteante é que Jesus de Nazaré é Deus feito homem, que a segunda pessoa da Trindade tornou-se o "segundo homem" (ICo 15:47), determinando o destino humano, e o segundo representante da raça humana, e que ele tomou a forma humana sem perder a divindade, de modo que Jesus de Nazaré era tão verdadeira e totalmente divino quanto humano.
Aqui há dois mistérios pelo preço de um — a pluralidade de pessoas na unidade de Deus e a união da divindade e da humanidade na pessoa de Jesus. É aqui, no acontecimento do primeiro Natal, que jaz a mais profunda e impenetrável revelação do cristianismo. "A Palavra tornou-se carne" (Jo 1:14); Deus tornou-se homem; o Filho divino transformou-se num judeu; o Todo-Poderoso apareceu na terra como um bebê indefeso, incapaz de outra coisa qualquer além de ficar deitado, olhar, mexer-se e emitir sons. Alguém que precisou ser alimentado, trocado e ensinado a falar como qualquer criança.
Não houve ilusão nem embuste nisto. A infância do Filho de Deus foi real. Quanto mais se pensa sobre isso, mais surpreendente se torna. Nenhuma ficção é tão fantástica quanto a verdade da encarnação.
Esta é a verdadeira pedra de tropeço do cristianismo. É nela que fracassam judeus, muçulmanos, unitaristas, testemunhas de Jeová e muitos outros que se sentem desconfortáveis com as dificuldades mencionadas (nascimento virginal, milagres, expiação e ressurreição). Por causa da descrença, ou pelo menos da crença errada a respeito da encarnação, é que geralmente surgem dificuldades em outros pontos da história do Evangelho. Mas no momento em que a encarnação é compreendida, as outras dificuldades desaparecem.
Se Jesus tivesse sido apenas um homem piedoso e notável, seria imensamente difícil crer nós relatos do Novo Testamento sobre sua vida e obra. Mas se Jesus era a pessoa mencionada na Palavra eterna, o agente do Pai na criação, "por quem criou igualmente os mundos" (Hb 1:2; tb), não é de admirar que novos atos de força criadora marcassem sua vinda a este mundo, sua vida aqui e sua partida. Não é estranho que ele, o autor da vida se levante da morte. Se ele era realmente o Filho de Deus, é mais surpreendente sua morte que a ressurreição. "Todo este mistério! Morre o Imortal", escreveu Charles Wesley;1 mas não há mistério comparável na ressurreição do Imortal.
Se o imortal Filho de Deus realmente se submeteu à prova da morte, não é estranho que ela signifique salvação para a raça condenada. Uma vez que tenhamos certeza da divindade de Jesus, torna-se pouco razoável achar dificuldades em qualquer desses pontos, pois todas as peças se encaixam perfeitamente. A encarnação é em si mesma um mistério impenetrável, mas dá sentido a todo o conteúdo do Novo Testamento.
Quem é esta criança?
Os evangelhos de Mateus e de Lucas contam com pormenores como o Filho de Deus veio ao mundo. Ele nasceu do lado de fora de um pequeno hotel, em uma aldeia pouco conhecida da Judéia, nos grandes dias do
1Ministro anglicano (1707-1788). Compositor de mais de seis mil hinos. Juntamente com seu irmão John, foram os fundadores de um movimento na Igreja da Inglaterra que daria origem, posteriormente, à Igreja Metodista. Muito conhecido em seu tempo por suas pregações, que o povo denominava "trovão e relâmpago".
Império Romano. Quando contamos essa história Natal após Natal, em geral a embelezamos, mas na realidade ela é rude e cruel. A razão de Jesus ter nascido fora do hotel é que ele estava lotado. Ninguém ofereceu uma cama para a mulher que estava prestes a dar à luz, de modo que ela teve seu nenê no estábulo e o deitou em uma manjedoura. A história é contada sem paixão e sem comentários, mas nenhum leitor atento deixa de se arrepiar com a imagem desumana e degradante.
Não é, entretanto, para tirar lições de moral que essa história foi registrada pelos evangelistas. Para eles o ponto principal não está nas circunstâncias do nascimento (a não ser como cumprimento da profecia, que seria em Belém; cf. Mt 2:1-6), mas em destacar a identidade da criança. A esse respeito o Novo Testamento revela dois pensamentos. Já os citamos, agora vamos estudá-los mais detalhadamente.
1. O bebê nascido em Belém era Deus. Mais precisamente e usando a linguagem bíblica, ele era o Filho de Deus, ou, como a teologia cristã normalmente diz, Deus, o Filho. Note: o Filho, não um Filho, como João se refere quatro vezes nos três primeiros capítulos de seu evangelho, a fim de que seus leitores entendam perfeitamente a singularidade de Jesus. Ele era o Filho unigênito de Deus (v. Jo 1:14,18; 3:16,18). De acordo com isso, a Igreja cristã confessa: "Creio em Deus Pai [...] e em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor".2
Os apologistas cristãos às vezes se referem à afirmação de que Jesus é o unigênito Filho de Deus como se fosse a resposta final e total a todas as questões sobre sua identidade. Mas isso dificilmente se dá, pois a própria expressão suscita diversas perguntas e pode ser facilmente mal-in-terpretada. A afirmação "Jesus é o Filho de Deus" realmente evidencia a
2Estas palavras do Credo apostólico são proferidas em todos os cultos dominicais de várias denominações protestantes, como a Igreja Evangélica Luterana do Brasil (Hinário luterano, Porto Alegre: Concórdia, 1994, 7. ed. p. 20, 38), a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (Livro de oração comum, p. 60), a Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (Manual do culto, São Paulo: Pendão Real, s/d, p. 34), a Igreja Evangélica Reformada no Brasil (Hinãrio: hinos, salmos, confissões, formas, Jongbloed (Holanda): Comissão de Música da IER, 1998, p. 775) e também nas perguntas aos batizandos do Manual do culto da Igreja Presbiteriana do Brasil (São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 11).
existência de dois deuses? O cristianismo é então politeísta como acusam judeus e muçulmanos? Ou a expressão "Filho de Deus" significa que Jesus, embora destacado entre as criaturas, não era divino no mesmo sentido que o Pai?
Nos dias da Igreja primitiva, os arianos defenderam essa idéia, e atualmente unicistas, testemunhas de Jeová, cristadelfos e outros ainda a adotam. Ela está certa? O que a Bíblia quer dizer quando chama Jesus de Filho de Deus?
Estas questões têm confundido algumas pessoas, mas o Novo Testamento na verdade não nos deixa dúvidas quan-
to à resposta. Elas foram levantadas e simultaneamente resolvidas pelo apóstolo João no prólogo de seu evangelho. Parece-nos que ele estava se dirigindo a leitores tanto de formação judaica quanto grega. Ele escreveu, como diz, a fim de que "creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e, crendo, tenham vida em seu nome" (Jo 20:31).
Em todo seu evangelho, ele apresenta Jesus como o Filho de Deus. Entretanto, João sabia que a expressão "Filho de Deus" estava corrompida por associações errôneas na mente de seus leitores. A teologia judaica fazia uso dela como título para o esperado Messias (humano). A mitologia grega fala de muitos "filhos dos deuses", super-homens nascidos da união de alguma divindade com seres humanos. Em nenhum caso a expressão revelava a idéia de um Deus pessoal. Na verdade essa idéia era completamente excluída em ambas as concepções.
João queria certificar-se de que ao falar sobre Jesus como o Filho de Deus não seria mal-interpretado, ou seja, que dessem tais sentidos a suas palavras. Ele queria tornar bem claro desde o início que a filiação assumida por Jesus e consignada pelos cristãos era precisamente um caso de divindade pessoal, e nada menos que isso. Daí a razão de seu famoso prólogo (Jo 1:1-18), que é lido anualmente pela Igreja da Inglaterra como mensagem do dia de Natal, e ela está correta ao proceder
assim. Em nenhum lugar do Novo Testamento a natureza e o significado da filiação divina de Jesus são tão claramente explicados como aqui.
Veja com que cuidado e decisão João expõe seu tema. Ele não usa o termo Filho logo nas sentenças iniciais; ao contrário, fala antes da Palavra. Não haveria perigo de mal-entendido, pois os conhecedores do Antigo Testamento logo se lembrariam da referência. A Palavra de Deus no Antigo Testamento é sua expressão criativa, seu poder em ação no cumprimento de seus propósitos.
O Antigo Testamento descreve o pronunciamento de Deus, a real afirmação de seu propósito, como tendo força em si mesma para realizar o que havia proposto. Gênesis 1 relata como na criação "Disse Deus: 'Haja' [...] e houve [...]" (Gn 1:3). "Mediante a palavra do Senhor foram feitos os céus [...]. Pois ele falou, e tudo se fez" (SI 33:6,9). A Palavra de Deus é, portanto, Deus em ação.
João retoma essa ilustração e prossegue revelando-nos sete aspectos da Palavra divina:
1. " No princípio era aquele que é a Palavra" (v. 1a). Aqui está mostrada a eternidade da Palavra. Ele não teve começo quando as outras coisas começaram; ele era.
2. "Ele estava com Deus" (v. 1b). Aqui a Palavra tem personalidade. O poder que cumpre os propósitos de Deus procede de um ser pessoal, que está em relacionamento eterno de amizade viva com Deus (este é o significado da frase).
3- "... e era Deus" (v. 1b). Aqui está a divindade da Palavra. Embora pessoalmente distinto do Pai, ele não é criatura; é divino como o Pai. O mistério com que nos confrontamos neste versículo é o da distinção de pessoas na unidade de Deus.
4. "E todas as coisas foram feitas por intermédio dele" (v. 3). Eis a Palavra criando. Ele foi o agente do Pai em todos os atos da criação. Toda a criação foi feita por meio dele. (Aqui, incidentalmente,está mais uma prova de que ele, o agente, assim como o Pai, não pertencem à classe das coisas criadas.)
5. "Nele estava a vida" (v. 4a). Vemos nesta frase a Palavra animando. Não há vida física na criação a não ser por meio dele. A Bíblia responde aqui a questão da origem e da continuidade da vida em todas as suas formas: a vida é dada e mantida pela Palavra. As coisas criadas não têm vida em si mesmas, mas na Palavra, a segunda pessoa da Divindade.
6. "... e esta era a luz dos homens" (v. 4b). Aqui a Palavra revela. Concedendo vida, ele também dá luz. Equivale a dizer que todo ser humano recebe intimações de Deus apenas pelo fato de estar vivo em seu mundo, e isso, não menos que o fato de viver, é decorrência da ação da Palavra.
7. "Aquele que é a Palavra tornou-se carne" (v. 14). Aqui está a encarnação da Palavra. O bebê na manjedoura em Belém não era outro senão a Palavra eterna de Deus.
E agora, tendo nos mostrado quem e o que a Palavra é — uma pessoa divina, autor de todas as coisas —, João faz uma identificação. A Palavra, ele nos diz, foi revelada pela encarnação, para ser o Filho de Deus. "Vimos a sua glória, glória como do Unigênito vindo do Pai" (v. 14b). Essa identificação é confirmada no versículo 18, "O Deus Unigênito, que está junto do Pai". Assim João estabelece o ponto que desejava esclarecer completamente, o que queria dizer ao referir-se a Jesus como Filho de Deus. O Filho de Deus é a Palavra de Deus; vemos o que a Palavra é, e assim vemos o que o Filho é. Esta é a mensagem do prólogo.
Portanto, quando a Bíblia proclama Jesus como Filho de Deus, a afirmação é tomada como asserção de sua divindade pessoal. A mensagem do Natal se baseia no fato surpreendente de que o menino na manjedoura era Deus.
Mas isto é só a metade da história.
2. O bebê nascido em Belém era Deus feito homem. A Palavra se fez carne: uma criança, humana e real. Ele não deixou de ser Deus; não era menos Deus do que havia sido antes, mas passou a ser homem. Ele não era Deus com menos elementos de divindade, mas Deus e mais tudo o que havia tornado seu ao assumir a forma humana. O criador do homem sentia agora o que era ser homem. Ele que criou um anjo que se tornou o Diabo assumia
agora um estado no qual podia ser tentado — na verdade, não podia evitar ser tentado — pelo Diabo! A perfeição de sua vida humana só seria alcançada por meio do conflito com o Diabo. A epístola aos He-breus, elevando os olhos para sua glória ascendente, extrai grande conforto desse fato.
Por essa razão era necessário que ele se tornasse semelhante a seus irmãos em todos os apectos [...] Porque tendo em vista o que ele mesmo sofreu quando tentado, ele é capaz de socorrer aqueles que também estão sendo tentados. [...] Pois não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas, mas sim alguém que, como nós, passou por todo tipo de tentação, porém, sem pecado. Assim, aproximemo-nos do trono da graça com toda a confiança, a fim de recebermos misericórdia e encontrarmos graça que nos ajude no momento da necessidade.
Hebreus 2:17,18; 4:15,16
O mistério da encarnação é impenetrável. Não podemos explicá-lo, apenas formulá-lo. Talvez nunca tenha sido expresso melhor que nas palavras do Credo atanasiano: "... nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, é Deus e homem; [...] Deus perfeito e Homem perfeito [...] Ainda que é Deus e Homem, nem por isso são dois, mas um único Cristo. Um só, não pela transformação da divindade em humanidade, mas mediante a recepção da humanidade na divindade".3
Nossa mente não pode ir além disto. O que vemos na manjedoura é, nas palavras de Charles Wesley: "Nosso Deus reduzido ao tamanho de um palmo Incompreensivelmente fez-se homem".
Incompreensivelmente. Seremos sábios se nos lembrarmos disto para evitar a especulação e adorar com alegria.
Nascido para morrer
O que devemos pensar sobre a encarnação? O Novo Testamento não nos incentiva a quebrar a cabeça com os problemas físicos e psicológicos que surgem, mas apenas a adorar a Deus pelo amor demonstrado. Foi um ato de grande condescendência e auto-humilhação. "Pois ele, que por natureza sempre foi Deus", escreveu Paulo, "não se apegou a seus privilégios como alguém igual a Deus, mas despiu-se de todas as vantagens, consentindo em ser escravo por natureza e nascer como homem. E visto claramente como ser humano, humilhou a si mesmo, levando uma vida de inteira obediência até a morte, e morte como a de um criminoso qualquer" (Fp 2:6-8; cph). E tudo isso para nossa salvação.
Os teólogos às vezes brincam com a idéia de que a encarnação foi planejada originária e basicamente com vistas ao aperfeiçoamento da ordem criada, e que seu significado redentor foi, por assim dizer, uma decisão divina posterior. No entanto, como James Denney4 corretamente insistiu: "O Novo Testamento nada fala de uma encarnação não relacionada com o sacrifício [...] Não é Belém, mas o Calvário o foco da revelação, e qualquer interpretação do cristianismo que ignore ou negue este fato o deturpa completamente e o desvia do foco".5
O significado crucial do berço de Belém reside na seqüência de passos que levaram o Filho de Deus à cruz do Calvário, e não podemos
3Hinário luterano, Porto Alegre: Concórdia, 7. ed., 1994, p. 89.
4Professor (1856-1917) e um proeminente estudioso do Novo Testamento. Teólogo da Igreja Unida Livre da Escócia.
5The death of Christ, 1902, p. 235.
compreender este fato até que o vejamos em seu contexto. Portanto, o texto-chave do Novo Testamento para interpretar a encarnação não é a declaração de João 1:14 "Aquele que é a Palavra tornou-se e viveu entre nós", mas a afirmação mais abrangente encontrada em 2Coríntios 8:9: "Pois vocês conhecem a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por amor de vocês, para que por meio de sua pobreza vocês se tornassem ricos".
Aqui se declara não apenas o fato da encarnação, mas também seu significado; o ato do Filho de Deus de assumir a forma humana nos é apresentado de modo a mostrar como sempre deveríamos vê-lo — não simplesmente como uma maravilha da natureza, mas, sim, uma maravilha da graça.
Feito menor que Deus?
Aqui, entretanto, devemos fazer uma pausa e considerar um uso diferente que alguns fazem de certos textos de Paulo já citados. Em Fili-penses 2:7, a expressão traduzida por Phillips (na cph) "despiu-se de todas as vantagens" significa literalmente "esvaziou-se". Será que isto, junto com a declaração de 2Coríntios 8:9 de que Jesus "se fez pobre", não lança alguma luz sobre a própria natureza da encarnação? Não estará implícita aí certa redução da divindade do Filho ao se tornar homem?
Esta é a chamada teoria da kenôsis, pois esta palavra em grego significa "esvaziar". A idéia por trás disso é que para assumir totalmente a forma humana, o Filho precisou renunciar a algumas de suas qualidades divinas, do contrário não poderia ter participado da experiência de estar limitado no tempo, espaço, conhecimento, consciência, que são essenciais à verdadeira vida humana.
Essa teoria foi formulada de diferentes maneiras. Alguns argumentam que o Filho abriu mão apenas de seus atributos metafísicos (onipotência, onipresença, onisciência), retendo os "morais" (justiça, santidade, verdade, amor); outros afirmam que ao se tornar homem renunciou a todos os poderes especificamente divinos e a sua autoconsciência da divindade, embora, no decurso da vida terrena, ele a tenha retomado.
Na Inglaterra, a teoria da kenôsis foi esboçada pelo bispo Gore6 em 1889, para explicar por que nosso Senhor ignorava o que os críticos ilustres do século xix pensavam saber a respeito do Antigo Testamento. A tese de Gore preconizava que ao se tornar homem o Filho desistira de seu conhecimento divino de todos os assuntos, embora mantivesse a infalibilidade divina plena em assuntos morais. Com relação a fatos históricos, entretanto, ele estava limitado às idéias correntes dos judeus, aceitando-as sem questionamento, desconhecendo que nem sempre estavam certas. Daí seu tratamento do Antigo Testamento como verbalmente inspirado e completamente verdadeiro, e o fato de ter atribuído o Pentateuco a Moisés e o salmo 110 a Davi, pontos que Gore julgava insustentáveis. Muitos concordam com Gore neste ponto, procurando uma justificativa para rejeitar a opinião de Cristo sobre o Antigo Testamento.
Mas a teoria da kenôsis não conseguia manter-se. Em primeiro lugar, por tratar-se de uma especulação à qual os textos citados não dão base alguma. Quando Paulo falou do Filho se esvaziando e se tornando pobre, o que ele tinha em mente, como podemos perceber pelo contexto de cada caso, não é desprezo pelos poderes e atributos divinos, mas a glória e a dignidade divinas: "[...] a glória que eu tinha contigo, antes que o mundo existisse", como o próprio Cristo afirmou em sua grande oração sacerdotal (Jo 17:5). As traduções de Phillips, a Autorizada e a nvi de Filipenses 2:7 são interpretações corretas do significado atribuído por Paulo. Não há base bíblica para a idéia de o Filho ter se despojado de qualquer aspecto de sua divindade.
Essa teoria origina também grandes e insolúveis problemas. Como podemos dizer que o homem Cristo Jesus era completamente Deus se lhe faltavam alguns atributos da divindade? Como podemos dizer que ele revelou perfeitamente o Pai se alguns dos poderes e atributos paternos não estavam nele? Mais ainda, se, como a teoria supõe, a verdadeira humanidade na terra era incompatível com a divindade não-reduzida,
6Charles Gore (1853-1932) foi ministro da Igreja da Inglaterra e bispo das dioceses de Worcester (1902-1905), Birmingham (1905-1911) e Oxford (1911-1919).
provavelmente a mesma coisa deve acontecer no céu, deduzindo-se que "o homem na glória" perdeu parte de seus poderes divinos por toda a eternidade. Se, como diz o n° 2 dos Trinta e nove artigos de religião anglicanos: "[As Naturezas] Divina e Humana se reuniram em uma Pessoa, para nunca mais se separarem",7 parece que nesta teoria é inegável a idéia de que a divindade do Filho perdeu alguns atributos irrecuperáveis na encarnação.
No Novo Testamento, porém, parece clara e enfática a onisciência, a onipresença e a onipotência do Cristo ressurreto (Mt 28:18,20; Jo 21:17; Ef 4:10). Mas se, em vista disto, os defensores da teoria da kenôsis poderiam negar a incompatibilidade destes atributos com a verdadeira humanidade no céu, que razão poderão apresentar para crer na existência dessa incompatibilidade na terra?
Ainda mais, o uso que Gore faz da teoria para justificar os erros atribuídos a parte dos ensinamentos de Cristo, enquanto mantém a autoridade divina no restante, não é possível. Cristo declarou em termos compreensíveis e categóricos que todos seus ensinamentos provinham de Deus: ele não era mais que o mensageiro do Pai. "O meu ensino não vem de mim mesmo. Vem daquele que me enviou", "mas falo exatamente o que o Pai me ensinou", "mas o Pai que me enviou me ordenou o que dizer e o que falar [...] Portanto, o que digo é exatamente o que o Pai me mandou dizer" (Jo 7:16; 8:28; 12:49,50). Ele se declarou porta-voz: "lhes falei a verdade que ouvi de Deus" (Jo 8:40).
Em face dessas afirmações, só dois caminhos se abrem: ou aceitamos
e atribuímos total autoridade divina a tudo o que Jesus ensinou, incluindo suas declarações de inspiração e autoridade do Antigo Testamento, ou as rejeitamos e discutimos a autoridade divina de seus ensinamentos em todos os sentidos. Se Gore quisesse realmente manter a autoridade dos ensinamentos morais e espirituais de Jesus, ele não deveria ter questionado a veracidade de seus ensinamentos sobre o Antigo Testamento. Se, entretanto, ele estava realmente determinado a discordar de Jesus sobre o Antigo Testamento, deveria ter sido coerente e percebido que se os ensinamentos de Jesus não podem ser aceitos como foram apresentados, não temos obrigação de concordar com Jesus a respeito de qualquer outra coisa.
7 Livro de oração comum, Porto Alegre: Igreja Episcopal do Brasil, 1950, p. 603.
Se a teoria da kenôsis for usada com propósito semelhante ao de Gore, esclarece até demais: ela prova que Jesus, tendo renunciado ao conhecimento divino, era falível em todos os pontos e que, ao afirmar serem seus ensinamentos provenientes de Deus, estava enganando tanto a si mesmo como a nós. Se vamos manter a autoridade divina de Jesus como mestre, de acordo com suas afirmações, devemos rejeitar a teoria de kenôsis, ou pelo menos rejeitar esta sua aplicação.
Na realidade, as próprias narrativas do Evangelho apresentam evidências contra a teoria da kenôsis. É verdade que o conhecimento de Jesus tanto sobre assuntos humanos como divinos era, às vezes, limitado. Ocasionalmente ele pedia alguma informação — "Quem tocou em meu manto?", "Quantos pães vocês têm?" (Mc 5:30; 6:38). Ele declara ignorar o dia marcado para a sua volta tanto quanto seus anjos (Mc 13:32). Mas outras vezes mostrou conhecimento sobrenatural. Ele sabia do passado sombrio da mulher samaritana (Jo 4:15). Sabia que quando Pedro fosse pescar, o primeiro peixe que pegasse teria uma moeda na boca (Mt 17:27). Sabia, sem que ninguém lhe dissesse, que Lázaro estava morto 0o 11:11-13).
Do mesmo modo, de vez em quando Jesus demonstra sua força sobrenatural ao realizar milagres, curando, alimentando e ressuscitando mortos. A impressão que se tem de Jesus nos evangelhos não é de abandono completo do poder e do conhecimento divinos, mas da utilização ininterrupta de ambos, podendo passar muito tempo sem fazer uso deles. Em outras palavras, a impressão que se tem não é tanto de redução da divindade, mas de capacidades divinas contidas.
O que podemos pensar desse retraimento? Em termos da verdade freqüentemente apresentada, em particular no evangelho de João, podemos pensar certamente na submissão completa do Filho à vontade do Pai. Parte da revelação do mistério da divindade é que as três pessoas permanecem em uma relação mutuamente estabelecida. O Filho aparece nos evangelhos não como uma pessoa divina independente, mas como alguém dependente, que pensa e age apenas sob a direção do Pai. "O Filho não pode fazer nada de si mesmo", "Por mim mesmo, nada posso fazer" (Jo 5:19,30). "Pois desci dos céus, não para fazer a minha vontade, mas para fazer a vontade daquele que me enviou" (Jo 6:38). "[...] nada faço por mim mesmo [...] sempre faço o que lhe agrada" (Jo 8:28,29).
É da natureza da segunda pessoa da Trindade reconhecer a autoridade da primeira e submeter-se de boa vontade a ela. É por isso que ele se declara Filho, e a primeira pessoa seu pai. Embora co-igual ao Pai em eternidade, poder e glória, é natural que ele faça a parte de Filho, e encontre prazer em cumprir a vontade do Pai. Do mesmo modo é natural à primeira pessoa da Trindade planejar e iniciar as obras da divindade e à terceira pessoa partir do Pai e do Filho para realizar a ordem conjunta. Assim, a obediência do Deus-homem ao Pai enquanto estava na Terra não era um relacionamento novo ocasionado pela encarnação, mas a continuação, no tempo, do relacionamento eterno entre o Filho e o Pai no céu. No céu como na terra, o Filho era completamente dependente da vontade do Pai.
Se isto é correto, então tudo fica explicado. Tanto as ações como o conhecimento do Deus-homem não eram independentes. Assim como não fez tudo o que podia ter feito, porque certas coisas não eram da vontade do Pai (Mt 26:53,54), ele conscientemente não sabia tudo o que deveria saber, mas apenas o que seu Pai queria que soubesse. Seu conhecimento, assim como todas suas atividades, estava ligado à vontade do Pai. Portanto, o motivo de desconhecer (por exemplo) a data de sua volta não era o fato de ele ter desistido do poder de saber todas as coisas na encarnação, mas porque o Pai não queria que ele tivesse esse conhecimento enquanto permanecesse na terra, antes da Paixão.
Calvino estava certo ao comentar Marcos 13:32 da seguinte maneira: "até que ele tivesse cumprido cabalmente sua missão (de mediador), essa informação não lhe foi dada, mas ele a recebeu depois da ressurreição".8 Assim, a limitação do conhecimento de Jesus deve ser explicada não em termos da forma da encarnação,
mas com referência à vontade do Pai para o Filho enquanto este se achasse na terra. Concluímos, portanto, que assim como há alguns fatos nos evangelhos que contradizem a teoria da kenôsis, não há neles fatos que não sejam explicados mais claramente sem ela.
Ele se tornou pobre
Percebemos agora o significado para o Filho de Deus de esvaziar-se e tornar-se pobre. Significa deixar de lado a glória (a kenôsis real); o retraimento voluntá-
rio do poder; a aceitação de dificuldades, isolamento, maus-tratos, malig-nidade, incompreensão; e finalmente a morte, envolvendo uma agonia tão grande — mais espiritual que física —, que sua mente quase entrou em colapso ao prospectá-la (v. Lc 12:50 e a narrativa do Getsêmani). Isso significou o amor mais sublime já sentido pelos indignos seres humanos, que puderam tornar-se ricos por meio da pobreza dele.
A mensagem do Natal anuncia a esperança para a humanidade arruinada — esperança de perdão, de paz com Deus, de glória — porque, pela vontade do Pai, Jesus Cristo tornou-se pobre e nasceu em um está-bulo, para que trinta anos depois pudesse ser levantado na cruz. Esta é a mais bela mensagem que o mundo já ouviu ou ouvirá.
Falamos muito sobre o "espírito do Natal", mas raramente com um significado maior que contentamento em termos de relações familiares. Mas o que dissemos torna claro que essa expressão tem na realidade um significado muito mais rico. Devia significar a reprodução na vida humana da disposição daquele que por amor a nós tornou-se pobre no primeiro Natal. O próprio espírito natalino devia caracterizar o cristão o ano inteiro.
8Commentary on Matthew, Mark and Luke, .
É para nós vergonha e desonra que muitos cristãos hoje — serei mais específico: tantos cristãos fundamentalistas e ortodoxos — vaguem por este mundo no espírito do sacerdote e do levita da parábola do Senhor, vendo a seu redor as necessidades dos homens, mas (depois de um desejo piedoso e talvez de uma oração, pedindo que Deus supra as necessidades dessas pessoas) desviam os olhos e passam, sem parar, para o outro lado. Este não é o espírito do Natal. Não é também o espírito dos cristãos — e há muitos assim — cuja ambição na vida parece limitada a construir um belo lar de classe média, fazendo agradáveis amizades com cristãos de sua classe, criando os filhos nos corretos moldes cristãos de seu grupo e deixando que indivíduos das subclasses da comunidade, cristãos ou não, avancem sozinhos na vida.
O espírito natalino não resplandece no cristão esnobe, pois é o espírito das pessoas que, como seu Mestre, vivem inteiramente dedicadas ao princípio de se tornar pobres — gastando e sendo gastos — para enriquecer o próximo, dedicando tempo, esforço, cuidados e interesses para fazer o bem aos outros — e não apenas para seus amigos — conforme a necessidade do momento.
São poucos os que demonstram esse espírito na essência. Se Deus, por misericórdia, nos avivar, uma das coisas que ele fará será trabalhar esse espírito em nosso coração e em nossa vida. Se quisermos um despertamento espiritual em nós mesmos, uma das primeiras providências seria procurar cultivar esse espírito. "Pois vocês conhecem a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por amor de vocês, para que por meio de sua pobreza vocês se tornassem ricos" (2Co 8:9). "Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus" (Fp 2:5). "Percorrerei o caminho dos teus mandamentos, quando dilatares o coração" (Sl 119:32; tb).
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Ele dará testemunho
"Glória ao Pai", canta-se nas igrejas, "e ao Filho e ao Espírito Santo". Perguntamos: qual o significado disso? Louvamos a três deuses? Não, louvamos um único Deus em três pessoas.
Jeová! Pai, Espírito, Filho! Trindade oculta! Três em um!1
Este é o Deus adorado pelos cristãos — o Jeová triúno. O cerne da fé cristã em Deus é o mistério revelado da Trindade. Trinitas é uma palavra latina que significa Trindade. O cristianismo se apoia na doutrina da Trinitas, a Trindade, a tripersonalidade de Deus.
Algumas pessoas presumem que a doutrina da Trindade, justamente por inescrutável, seja uma velharia teológica perfeitamente dispensável. A prática certamente parece refletir essa idéia. O Livro de oração comum da Igreja Anglicana determina treze ocasiões durante o ano quando o Credo atanasiano, a afirmação clássica dessa doutrina, deve ser recitado em cultos públicos, mas é raro que seja usado nessas ocasiões. De forma geral, os clérigos anglicanos nunca pregam sobre a Trindade, a não ser, talvez, no Domingo da Trindade; os ministros que não fazem uso do calendário litúrgico e não observam esse domingo especial nunca falam sobre tal doutrina. O que diria o apóstolo João a respeito de nossa prática, se estivesse aqui hoje, pois de acordo com ele a doutrina da Trindade é parte essencial do Evangelho.
1Tradução das palavras iniciais da última estrofe do hino Father of heaven, escrito por Edward Cooper. A selection of psalms and hymns for public and private use (Uttoexter, Inglaterra: 1805).
Nas sentenças de abertura de seu evangelho, como vimos no último capítulo, João nos apresenta o mistério de duas pessoas distintas na unidade de Deus. Sem dúvida este é um dos pontos mais profundos da teologia, mas João nos leva diretamente a ele: "No princípio era aquele que é a Palavra. Ele está com Deus, e era Deus". A Palavra era uma pessoa em comunhão com Deus, e a Palavra era pessoal e eternamente divina. Ele era, como nos diz João, o único Filho do Pai. João define este mistério de um Deus em duas pessoas no início de seu Evangelho porque sabe ser impossível que alguém entenda as palavras e as obras de Jesus de Nazaré enquanto não apreender o fato de que Jesus é na verdade Deus, o Filho.
A TERCEIRA PESSOA
Não é apenas essa a intenção de João, porém, ao falar-nos da pluralidade de pessoas na divindade. Em sua narrativa das últimas conversas do Senhor com os discípulos, ele menciona como o Salvador, tendo explicado que lhes prepararia um lugar na casa do Pai, prometeu a dádiva de "outro Consolador" (Jo 14:16; ra).
Repare nessa expressão; ela é rica de significado. Indica uma pessoa também notável. Um Consolador— a riqueza da idéia é vista pela variedade de interpretação em diferentes traduções: "Conselheiro" (nvi), "Auxi-liador" (vfl), "Paráclito" (bj). A idéia de estímulo, apoio, assistência, cuidado e aceitação de responsabilidade pelo bem-estar alheio, tudo está implícito nessa palavra. Outro Consolador — sim, porque Jesus foi o primeiro, e a função do outro seria continuar essa parte de seu ministério. Conclui-se, portanto, que só podemos apreciar todo o significado das palavras de nosso Senhor ao se referir a "outro Consolador" quando nos recordamos de tudo o que ele mesmo fez relacionado ao amor, ao cuidado, à instrução paciente e à preocupação com o bem-estar de seus discípulos nos três anos de ministério pessoal com eles. "Ele cuidará de vocês", era o que Cristo realmente queria dizer, "do mesmo modo como eu o tenho feito". Na verdade, uma pessoa notável!
Nosso Senhor foi além, dando um nome ao novo Consolador. Ele é "o Espírito da verdade", "o Espírito Santo" (14:17,26). Este nome denota divindade. No Antigo Testamento, a Palavra de Deus e o Espírito de Deus são figuras paralelas. A Palavra de Deus é sua voz
todo-poderosa, o Espírito de Deus é seu alento todo-poderoso. Ambas as expressões se referem ao seu poder em ação. A palavra e o alento de Deus aparecem juntos na narrativa da criação. "O Espírito [alento] de Deus se movia sobre a face das águas. Disse [palavra] Deus [...] e houve [...]" (Gn 1:2,3).
"Mediante a palavra do Senhor foram feitos os céus, e os corpos celestes, pelo sopro [alento] de sua boca" (Sl 33:6). João nos diz no prólogo que a Palavra divina aqui citada é uma pessoa. Nosso Senhor agora nos dá um ensinamento paralelo, com a finalidade de mostrar que o Espírito divino é também uma pessoa. E confirma seu testemunho da divindade deste Espírito pessoal chamando-o santo, como mais tarde faria com o "Pai santo" (17:11).
O evangelho de João nos mostra como Cristo relaciona a missão do Espírito com a vontade e o propósito do Pai e do Filho. Num ponto do evangelho, o apóstolo afirma que é o Pai que enviará o Espírito, como o Pai enviou o Filho (5:23,26,27). O Pai enviará o Espírito, diz nosso Senhor, "em meu nome" — isto é, como agente de Cristo, realizando sua vontade e agindo como seu representante e com sua autoridade (14:26). Assim como Jesus veio em nome do Pai (5:43) agindo como representante do Pai, falando suas palavras (12:49), fazendo sua obra (10:25, cf. 17:12) e testemunhando plenamente sobre quem representava, o Espírito viria em nome de Jesus para agir no mundo como seu agente e testemunha. O Espírito "da [para: "do lado do"] parte do Pai" (15:26), assim como anteriormente o Filho veio "do [para] Pai" (16:27). Tendo enviado seu Filho eterno para o mundo, o Pai agora o leva à glória e envia o Espírito para ficar em seu lugar.
Mas este é apenas um modo de ver o assunto. Em outro ponto, João menciona que o Filho enviará o Espírito "da parte do Pai" (15:26). Assim como o Pai enviou o Filho ao mundo, também o Filho enviará o Espírito (16:7). O Espírito é enviado pelo Filho e pelo Pai. Desse modo temos as seguintes formas de relacionamento:
1. O Filho está sujeito ao Pai, pois foi enviado pelo Pai em seu (do Pai) nome.
2. O Espírito está sujeito ao Pai, pois o Espírito foi enviado pelo Pai em nome do Filho.
3. O Espírito está sujeito ao Filho e ao Pai, pois é enviado tanto por um como por outro. (Compare com 20:22: "E com isso, soprou sobre eles e disse: 'Recebam o Espírito Santo'".)
João assim registra a revelação do Senhor sobre o mistério da Trindade: três pessoas e um Deus, o Filho realiza a vontade do Pai, e o Espírito a vontade do Pai e do Filho. O aspecto ressaltado aqui é que o Espírito, que vem aos discípulos de Cristo "para estar com vocês para sempre" (14:16), vem para exercer o ministério de consolação em lugar de Cristo. Se antes o ministério de Cristo, o Consolador, era importante, o ministério do Espírito Santo, o Consolador, dificilmente será menos importante. Se a obra realizada por Cristo foi importante para a Igreja, também o é a obra do Espírito.
Divino, mas ignorado
Essa impressão, entretanto, não transparece por meio da leitura da história da Igreja, tampouco observando a Igreja de hoje.
É surpreendente ver como o ensino bíblico a respeito da segunda e da terceira pessoas é tratado de modo diferente. A pessoa e a obra de Cristo têm sido, e continuam sendo, assunto de constante debate na Igreja; todavia, a pessoa e a obra do Espírito Santo são constantemente ignoradas. A doutrina do Espírito Santo é a Cinderela das doutrinas cristãs. Poucos parecem estar interessados nela. Muitos livros excelentes já foram escritos sobre a pessoa e a obra de Cristo, mas o número de livros sobre o Espírito Santo que valem a pena ser lidos pode ser contado praticamente nos dedos de uma das mãos. Os cristãos não têm dúvidas a respeito do que Cristo realizou; sabem que ele redimiu a humanidade por meio de sua morte sacrificial, embora possam divergir entre si a respeito de tudo o que esteja envolvido nela. No entanto, o cristão comum está completamente no escuro acerca da atuação do Espírito Santo.
Alguns falam sobre o Espírito de Cristo como se estivessem falando do Espírito do Natal — como uma vaga pressão cultural que desperta a bondade e a religiosidade. Alguns pensam no Espírito como o inspirador de convicções morais dos descrentes, como Ghandi, ou do misticismo teosó-
fico de Rudolf Steiner. Mas muitos, talvez, não pensam de modo algum no Espírito Santo nem têm nenhuma idéia do que ele faz. Estão praticamente na mesma posição dos discípulos que Paulo encontrou em Éfeso:"... nem sequer ouvimos que existe o Espírito Santo" (At 19:2).
É absurdo o pouco interesse e conhecimento sobre o Espírito Santo demonstrado por quem professa tanta preocupação a respeito de Cristo. Os cristãos estão cientes da diferença que faria em suas vidas se, por acaso, nunca houvesse acontecido a encarnação ou a expiação. Sabem que então estariam perdidos, pois não existiria nenhum Salvador. Mas muitos cristãos não têm realmente idéia da diferença que faria no mundo a ausência do Espírito Santo. Não sabem de que modo isso os poderia afetar ou à Igreja.
Realmente alguma coisa está faltando aqui. Como podemos justificar a negligência com relação ao ministério do agente enviado por Cristo? Não é uma grande impostura dizer que honramos a Cristo quando ignoramos, e deste modo desonramos, quem Cristo nos enviou como seu representante, para tomar seu lugar e cuidar de nós como ele o faria? Será que não devemos nos concentrar mais no estudo do Espírito Santo do que temos feito até aqui?
A IMPORTÂNCIA DA OBRA DO ESPÍRITO
Mas a obra do Espírito Santo é realmente importante?
Importante! E tão importante que se não fosse pela ação do Espírito Santo não haveria Evangelho, nem fé, nem Igreja e nem cristianismo no mundo.
Em primeiro lugar: sem o Espírito Santo não haveria Evangelho nem Novo Testamento.
Quando Cristo deixou o mundo, entregou sua causa aos discípulos. Deu-lhes a responsabilidade de ir e fazer discípulos em todas as nações, "E vocês também testemunharão", disse-lhes no cenáculo 0o 15:27). "E serão minhas testemunhas [...] até aos confins da terra" foram suas palavras de despedida no monte das Oliveiras antes da ascensão (At 1:8). Esta foi a tarefa que lhes confiou, mas que tipo de testemunhas seriam? Não tinham sido bons alunos; conseqüentemente não conseguiam entendê-lo, e não compreenderam seus ensinamentos durante seu ministério na terra; como poderiam esperar melhorar agora, depois de sua partida? Não era certo que eles logo estariam misturando a verdade do Evangelho com uma série de equívocos bem-intencionados, e seu testemunho seria rapidamente reduzido a uma confusão distorcida e deturpada, embora possuíssem boa vontade?
A resposta a essa pergunta é negativa, porque Cristo enviou o Espírito Santo para lhes ensinar todas as verdades, livrando-os de erros, recor-dando-lhes as coisas aprendidas e revelando-lhes o restante do que o Senhor queria ensinar. "[...] o Conselheiro [...] lhes ensinará todas as coisas e lhes fará lembrar tudo o que eu lhes disse" 0o 14:26). "Tenho ainda muito que lhes dizer, mas vocês não o podem suportar agora. Mas quando o Espírito da verdade vier, ele os guiará a toda a verdade. Não falará de si mesmo; falará apenas o que tiver ouvido" — isto é, o Espírito lhes esclareceria a eles tudo o que Cristo lhe dissesse, do mesmo modo como Cristo lhes mostrara as coisas que o Pai queria que ele transmitisse (v. Jo 12:49; 17:8,14) — "e lhes anunciará o que está por vir. Ele me glorificará, porque receberá do que é meu e o tornará conhecido" (16:12-14). Deste modo "ele testemunhará a meu respeito" — a vocês, meus discípulos, a quem o enviarei — "e" — equipados e capacitados pela sua atuação — "vocês também testemunharão [...]" (15:26,27).
A promessa consistia em que, ensinados pelo Espírito, esses primeiros discípulos seriam capacitados como porta-vozes de Cristo. À semelhança dos profetas que no Antigo Testamento começavam seus sermões com as palavras "Assim diz o Senhor Jeová", no Novo Testamento os apóstolos poderiam, com igual autoridade, afirmar em seus ensinamentos orais ou escritos "Assim diz o Senhor Jesus Cristo".
E foi o que aconteceu. O Espírito veio sobre os discípulos e testemunhou-lhes de Cristo e sua salvação de acordo com a promessa feita. Referindo-se às glórias desta salvação ("o que Deus preparou para aqueles que o amam"), Paulo escreve:
... Deus o revelou a nós por meio do Espírito [...] porém [...] recebemos [...] o Espírito procedente de Deus, para que entendamos as coisas que Deus nos tem dado gratuitamente. Delas também falamos [e ele poderia ter acrescentado escrevemos] não com palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas com palavras ensinadas pelo Espírito.
ICoríntios 2:9-13
O Espírito testificou aos apóstolos revelando-lhes toda a verdade e inspirando-os a transmiti-la com toda a fidelidade. Por essa razão temos o Evangelho e o Novo Testamento. Mas o mundo não teria os dois sem o Espírito Santo.
E isto não é tudo. Em segundo lugar, sem o Espírito Santo não haveria fé, nem novo nascimento — em resumo, não haveria cristãos.
A luz do Evangelho brilha, mas "O deus desta era cegou o entendimento dos descrentes" (2Co 4:4), e o cego não reage ao estímulo da luz. Como Cristo explicou a Nicodemos: "Ninguém pode ver o Reino de Deus se não nascer de novo" (Jo 3:3; cf. v. 5). Falando por si mesmo e por seus discípulos a Nicodemos e a toda classe de pessoas religiosas não-regeneradas, à qual Nicodemos pertencia, Cristo continuou explicando que a conseqüência inevitável da não-regeneração é a descrença: "[...] vocês não aceitam nosso testemunho" (v. 11). O Evangelho não produziu neles convicção alguma; a incredulidade os mantinha irredutíveis. O que aconteceu então? Devemos concluir que é perda de tempo pregar o Evangelho, e que a evangelização deve ser riscada como um empreendimento sem esperança, fadado ao fracasso? Não, porque o Espírito habita com a Igreja para dar testemunho de Cristo. Aos apóstolos, como já vimos, ele se manifestou revelando e inspirando. Aos outros homens, durante séculos, ele se manifesta iluminando, abrindo os olhos vendados, restaurando a visão espiritual, capacitando os pecadores a perceber que o Evangelho é realmente a verdade divina, as Escrituras são a Palavra de Deus e Cristo é verdadeiramente o Filho de Deus. "Quando ele [o Espírito] vier", o Senhor prometeu, "convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo" (16:8).
Não devemos pensar que podemos provar a verdade do cristianismo por meio de nossos argumentos; ninguém, a não ser o Espírito Santo, pela própria obra poderosa de renovação do coração endurecido, pode provar essa verdade. É prerrogativa soberana do Espírito Santo de Cristo convencer a consciência das pessoas sobre a verdade do Evangelho de Cristo; e a testemunha humana de Cristo deve aprender a basear sua esperança de sucesso não em brilhantes apresentações da verdade pelo ser humano, mas na poderosa demonstração da verdade pelo Espírito.
Paulo mostra o caminho. "Eu, irmãos, quando fui ter convosco, anunciando-vos o testemunho de Deus, não o fiz com ostentação de linguagem ou de sabedoria [...] A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder, para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria humana e sim no poder de Deus" (1Co 2:1-5). Os homens crêem quando o Evangelho é pregado porque o Espírito se manifesta desse modo. Mas sem o Espírito não haveria um só cristão no mundo.
A RESPOSTA APROPRIADA
Honramos o Espírito Santo ao reconhecer sua obra e confiar nela? Ou o desprezamos ao ignorar essa atuação e assim desonrar não só o Espírito, mas o Senhor que o enviou?
Com relação à fé: Reconhecemos a autoridade da Bíblia, o Antigo Testamento profético e o Novo Testamento apostólico que ele inspirou? Nós o lemos e ouvimos com a reverência e receptividade devidas à Palavra de Deus? Se não o fazemos, desonramos o Espírito Santo.
Com relação à vida: Aplicamos a autoridade da Bíblia e vivemos por ela, sem nos importar com o que possam dizer contra ela, reconhecendo que a Palavra de Deus tem propósito, não pode deixar de ser verdadeira e que ele manterá sua palavra? Se não o fazemos, desonramos o Espírito Santo, que nos deu a Bíblia.
Com relação ao testemunho: Lembramo-nos de que apenas o Espírito Santo pelo seu testemunho pode tornar autêntico o nosso? Esperamos que ele o faça e confiamos que ele o fará, demonstrando realmente nossa confiança, como Paulo o fez, abstendo-nos de demonstrações de sabedoria humana? Se não agirmos assim, desonraremos o Espírito Santo. Podemos ter alguma dúvida de que a atual esterilidade na vida da Igreja é o julgamento de Deus sobre nós pelo modo como temos desonrado o Espírito Santo? E, neste caso, que esperança podemos ter de sua remoção, até que aprendamos a louvar o Espírito Santo em nossos pensamentos, nossas orações e na prática? "Ele testemunhará..."
"Aquele que tem ouvidos ouça o que o Espírito diz às igrejas."
Parte II
Contemple
O Seu Deus
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O Deus imutável
Aprendemos que a Bíblia é a Palavra de Deus — lâmpada para nossos pés e luz para o caminho. Aprendemos que nela encontraremos o conhecimento de Deus e sua vontade para nossa vida. Cremos nisso tudo, pois o que dizem é verdade. Tomamos então da Bíblia e começamos a sua leitura. Lemos constante e conscientemente, pois estamos ansiosos, queremos realmente conhecer a Deus.
Mas, à medida que lemos, ficamos mais e mais confusos. Embora fascinados, não nos alimentamos. Nossa leitura não nos ajuda, ficamos espantados e, para dizer a verdade, às vezes deprimidos. Descobrimo-nos questionando se vale a pena prosseguir com a leitura da Bíblia.
Dois mundos distintos
Qual é o problema? Bem, basicamente é este: A leitura da Bíblia nos introduz em um mundo bastante novo para nós — o do Oriente Próximo como ele era há milhares anos, primitivo e bárbaro, agrícola e sem mecanização. Nesse mundo se desenrola a ação da história bíblica. Nele encontramos Abraão, Moisés, Davi e os demais personagens e observamos como Deus lida com eles. Ouvimos os profetas denunciar a idolatria e ameaçar com a condenação do pecado. Vemos o Homem da Galiléia operar milagres, discutir com os judeus, morrer pelos pecadores, ressuscitar da morte e subir ao céu. Lemos as cartas dos mestres cristãos dirigidas contra erros estranhos que, tanto quanto sabemos, não existem hoje.
O interesse sentido é intenso, mas tudo nos parece muito distante. Tudo pertence àquele mundo, não a este; e sentimos como se olhássemos de fora para dentro do mundo bíblico. Somos simples espectadores, nada mais. Pensamos: "Sim, Deus fez tudo isso naquela época, e foi maravilhoso para o povo envolvido na história, mas como isso pode nos afetar hoje? Não vivemos no mesmo mundo. Como pode o registro das palavras e ações de Deus nos tempos bíblicos, a narrativa de seu trato com Abraão, Moisés, Davi e os outros, nos ajudar, a nós que vivemos no século xxi?".
Não podemos ver nenhum ponto de ligação entre esses dois mundos, e por isso somos tomados pelo pensamento recorrente de que o que lemos na Bíblia não se aplica a nós. E, como acontece muitas vezes, quando os fatos são emocionantes e gloriosos, a sensação de estar excluídos deles nos deprime consideravelmente.
Muitos leitores da Bíblia vivenciam tal sentimento, mas nem todos sabem como enfrentá-lo. Alguns cristãos parecem se conformar em seguir adiante, crendo realmente no registro bíblico, mas não procuram nem esperam para si tal intimidade e relação direta com Deus, como os homens da Bíblia tiveram. Tal atitude, muito comum hoje, é na verdade a confissão da incapacidade de ver uma solução para o problema.
Entretanto, como esse sentimento de distância da experiência bíblica de Deus pode ser superada? Muitas coisas poderiam ser ditas, mas o ponto crucial é que esse sentimento de distância é uma ilusão oriunda da busca, em lugar errado, da ligação entre nossa situação e a de vários personagens da Bíblia. É verdade que, em termos de espaço, tempo e cultura, tanto eles como a época histórica à qual pertencem estão bem distantes de nós. Mas a ligação entre eles e nós não se encontra nesse nível.
A ligação é o próprio Deus. Pois o Deus que eles tiveram é o mesmo Deus de hoje. Para deixar essa idéia mais precisa, podemos dizer que se trata exatamente do mesmo Deus, pois Deus não muda de modo algum. Assim, o que devemos salientar a fim de perder o sentimento de que há um abismo intransponível entre a posição dos personagens bíblicos e as pessoas de nosso tempo é a verdade da imutabilidade de Deus.
Não são dois deuses distintos
Deus não muda. Vamos ampliar este pensamento.
1. A vida de Deus não muda. Ele é "desde a antigüidade" (Sl 93:2) "o rei eterno" 0r 10:10), "incorruptível" (Rm 1:23; ra), "o único que é imortal" (1Tm 6:16). "Antes de nascerem os montes e de criares a terra e o mundo, de eternidade a eternidade tu és Deus" (Si 90:2). A terra e o céu, diz o salmista, "perecerão, mas tu permanecerás; envelhecerão como vestimentas. Como roupas tu os trocarás e serão jogados fora. Mas tu permaneces o mesmo, e os teus dias jamais terão fim" (Sl 102:26,27); "eu sou o primeiro", diz Deus, "e sou o último" (Is 48:12).
As coisas criadas têm começo e fim, mas isso não se aplica ao Criador. A resposta que se deve dar à pergunta feita por uma criança: "Quem fez Deus?" é simplesmente que Deus não teve de ser feito, pois sempre existiu. Ele existe para sempre e é sempre o mesmo. Deus não envelhece, sua vida não aumenta nem diminui. Ele não ganha novas forças nem perde a que possui. Não amadurece nem se desenvolve. Ele não se torna mais forte nem mais fraco, nem mais sábio à medida que o tempo passa. "Ele não pode mudar para melhor", escreveu Arthur W. Pink1, "pois já é perfeito; e sendo perfeito não pode mudar para pior"2. A diferença primordial e fundamental entre o Criador e suas criaturas é que elas são
1Estudioso da Bíblia, nascido na Inglaterra (1886-1952). Foi pastor de algumas igrejas nos Estados Unidos e depois se transferiu para o ministério de ensino bíblico, tornando-se também escritor. Criou a revista chamada Studies in the Scriptures e escreveu artigos para ela até sua morte. Era um apreciador da teologia puritana, e pregava seus valores.
2The attributes of God, . Publicado em português com o título Os atributos de Deus (São Paulo: pes).
mutáveis e sua natureza admite mudança, ao passo que Deus é imutável e nunca pode deixar de ser o que é. Isso é expresso no hino:
Crescemos e nos desenvolvemos como folhas na árvore, Murchamos e perecemos — mas nada muda a ti.3
Tal é o poder da própria "vida indissolúvel" (Hb 7:16) de Deus.
2. O caráter de Deus não muda. Tensão, choque ou lobotomia podem alterar o caráter de uma pessoa, mas nada altera o caráter de Deus. No curso da vida humana, os gostos, a perspectiva e o temperamento podem mudar radicalmente. Alguém gentil, equilibrado, pode se tornar amargo e irritadiço. Uma pessoa de bom gênio pode se tornar cínica e insensível. Mas com o Criador nada disso acontece. Ele nunca se torna menos verdadeiro, misericordioso, justo ou melhor do que sempre foi. O caráter de Deus é hoje, e sempre será, exatamente como era nos tempos bíblicos.
É instrutivo neste ponto trazer à lembrança as duas vezes em que Deus revelou seu "nome" no livro de Êxodo. O "nome" de Deus revelado é, por certo, mais que apenas uma etiqueta, trata-se da revelação do que ele é relativamente ao ser humano.
Em Êxodo 3 lemos como Deus anunciou seu nome a Moisés: "Eu sou o que Sou" (v. 14), expressão da qual Yahweh (Jeová, o Senhor) é na verdade uma forma resumida (v. 15). Esse "nome" não descreve a Deus, declara apenas sua existência e eterna imutabilidade; uma lembrança à humanidade de que ele tem vida em si mesmo e de que o que ele é agora será eternamente. Em Êxodo 34, entretanto, lemos como Deus "proclamou o seu nome: o Senhor" a Moisés relacionando as várias facetas de seu caráter santo, "Senhor, Senhor Deus compassivo e misericordioso, paciente, cheio de amor e de fidelidade, que mantém o seu amor a milhares e perdoa a maldade, a rebelião e o pecado. Contudo,
3Palavras retiradas do terceiro verso do hino Immortal, invisible, God only wise, de Walter C. Smith (Hymns of Christ and the Christian life, 1876).
não deixa de punir o culpado; castiga os filhos e os netos pelo pecado de seus pais, até a terceira e a quarta gerações" (v. 6 e 7).
Esta proclamação complementa a de Êxodo 3 — ao dizer-nos o que Yahweh é de fato — e esta complementa aquela ao expressar que Deus é para sempre o que naquele momento, há três mil anos, afirmou ser a Moisés. O caráter moral de Deus é imutável. Assim Tiago, numa passagem que trata da bondade e santidade de Deus, sua generosidade para com os homens e hostilidade para com o pecado, menciona a Deus como aquele "em quem não pode existir variação ou sombra de mudança" (Tg 1:17; ra).
3. A verdade de Deus não muda. As pessoas às vezes falam coisas que não querem dizer de fato apenas porque não conhecem a própria mente. Do mesmo modo, porque sua visão muda, não raro descobrem a incapacidade de sustentar o que disseram no passado. Todos nós às vezes temos de anular nossas palavras porque deixaram de expressar o que realmente pensamos; temos de engolir as palavras porque a realidade dos fatos as nega.
O discurso do ser humano é instável, mas isso não acontece com as palavras de Deus. Elas permanecem para sempre como expressões permanentemente válidas de sua mente e de seu pensamento. Nenhuma situação o induz a anular suas palavras; nenhuma mudança de opinião lhe requer correção de idéias. Isaías escreve: "Toda a carne é erva [...] seca-se a erva [...] mas a palavra de nosso Deus permanece eternamente" (Is 40:6; ra). Do mesmo modo o salmista diz: "A tua palavra, Senhor, para sempre está firmada nos céus" (Si 119:89) e "[...] todos os teus mandamentos são verdadeiros [...] tu os estabeleceste para sempre" (v. 151,152). A palavra traduzida por "verdadeiros" no último versículo apresenta a idéia de estabilidade.
Ao ler a Bíblia, precisamos lembrar, portanto, que Deus ainda cumpre todas as promessas, ordens, declarações de propósitos e palavras de admoestação endereçadas aos cristãos do Novo Testamento. Elas não são relíquias de eras passadas, mas a revelação eternamente válida da mente divina para seu povo, em todas as gerações, enquanto este mundo existir. Assim como o Senhor mesmo disse "A Escritura não pode falhar" (Jo 10:35; ra), nada pode anular a verdade eterna de Deus.
4. Os caminhos de Deus não mudam. Deus lida com os pecadores como fazia na história bíblica. Ele ainda mostra sua liberdade e poder de distingui-los, agindo de modo que alguns ouçam o Evangelho enquanto outros não. Leva alguns a ouvi-lo e a se arrependerem, deixando outros na incredulidade. Ao agir assim, ensina aos santos que ele não deve misericórdia a ninguém e que é apenas por sua graça, e não por esforço deles, que os santos encontraram a vida.
Deus abençoa aqueles a quem dirige seu amor de modo que se tornam humildes, para que toda a glória possa ser apenas sua. Ele odeia os pecados de seu povo, e usa todo o tipo de sofrimento e dor, quer internos quer externos, para desviar da transigência e da desobediência o coração das pessoas. Ele busca a convivência com seu povo e envia-lhe tanto alegrias como tristezas a fim de que deixem de amar a outras coisas para se ligarem inteiramente a ele.
Deus ensina o cristão a valorizar os dons prometidos, fazendo-o esperar por eles e obrigando-o a orar com insistência para obtê-los, antes que ele os conceda. Assim, lemos nos registros da Bíblia sobre como Deus lidou com seu povo, e ainda atua. Seus objetivos e atos permanecem constantes. Nunca, em tempo algum, ele age em desacordo com seu caráter. Os caminhos do ser humano, sabemos, são pateticamente inconstantes, mas não são assim os de Deus.
5. Os propósitos de Deus não mudam. "Aquele que é a glória de Israel não mente nem se arrepende", declarou Samuel, "pois não é homem para se arrepender" (1Sm 15:29). Balaão dissera o mesmo: "Deus não é homem para que minta, nem filho de homem para que se arrependa. Acaso ele fala, e deixa de agir? Acaso promete, e deixa de cumprir?" (Nm 23:19).
Arrepender significa rever uma opinião e mudar o plano de ação. Deus nunca faz isso; ele não precisa, pois seus planos são baseados no conhecimento e controle completos de todas as coisas no passado, presente e futuro, de modo que não pode haver emergências nem desenvolvimentos inesperados que o tomem de surpresa: "Uma de duas coisas levam a pessoa mudar de idéia e a rever seus planos: falta de precaução ao antecipar todos os acontecimentos ou falta de precaução ao executá-los. Mas por ser Deus tanto onisciente como onipotente nunca precisa rever seus decretos" (Arthur W. Pink).4 "Mas os planos do Senhor permanecem para sempre, os propósitos do seu coração, por todas as gerações" (Sl 33:11).
O que Deus executa no tempo ele já planejara desde a eternidade, e tudo o que planejou na eternidade realiza no tempo. Tudo o que, em sua Palavra, ele se comprometeu a realizar será infalivelmente consumado. Lemos, portanto, sobre a "natureza imutável do seu propósito", que levará à alegria completa da herança prometida, e sobre o juramento imutável pelo qual confirmou seu desígnio a Abraão, o arquétipo do cristão, tanto para a segurança deste como para a nossa também (Hb 6:17). Isso acontece com todos os planos anunciados por Deus. Eles não mudam. Parte alguma de seu plano eterno jamais mudará.
É verdade que existem alguns textos (Gn 6:6; ISm 15:11; 2Sm 24:16; Jn 3:10; Jl 2:13) que falam sobre o arrependimento de Deus. A referência em cada caso é sobre a anulação do tratamento prévio dispensado a certos homens, como conseqüência da reação deles a esse tratamento. Mas não há insinuação de que essa reação não tenha sido prevista, nem que Deus tenha sido tomado de surpresa, e que ela não estivesse estabelecida em seu plano eterno. Não há mudança alguma em seu propósito eterno quando ele começa a agir em relação a uma pessoa de maneira diferente.
6. O Filho de Deus não muda. Jesus Cristo "é o mesmo ontem, hoje e para sempre" (Hb 13:8), e seu toque ainda possui o antigo poder. Ainda permanece a verdade de que "ele é capaz de salvar definitivamente aqueles que, por meio dele, aproximam-se de Deus, pois vive sempre para
4The attributes of God, >.
interceder por eles" (Hb 7:25). Jesus nunca muda. Este fato é forte consolação para todo o povo de Deus.
Devemos ser como eles
Onde está então o sentimento de distância e de diferença entre os cristãos dos tempos bíblicos e nós? Foi eliminado. Baseado em quê? Na imutabilidade divina. Amizade com ele, confiança em suas palavras, vida pela fé, permanência nas promessas de Deus, são essencialmente as mesmas verdades para nós hoje como o foram para os cristãos do Antigo ou do Novo Testamento. Esse pensamento nos traz conforto à medida que enfrentamos as perplexidades de cada dia; no meio de tantas mudanças e incertezas da vida neste novo milênio, Deus e seu Cristo permanência os mesmos — poderosos para salvar.
Mas esse pensamento também traz um desafio penetrante. Se nosso Deus é o mesmo Deus dos cristãos do Novo Testamento, como podemos justificar nossa satisfação com uma experiência de comunhão com ele em um plano de conduta cristã tão inferior ao deles? Se Deus é o mesmo, esta é uma questão que nenhum de nós pode sofismar.
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A MAJESTADE DE DEUS
A palavra majestade vera do latim e significa grandeza. Quando atribuímos majestade a alguém, reconhecemos-lhe a grandeza e expressa-mos-lhe nosso respeito por isso; daí o tratamento de "sua majestade" a reis e rainhas.
Na Bíblia a palavra majestade é usada para expressar a idéia da grandeza de Deus, nosso Criador e Senhor: "O Senhor reina! vestiu-se de majestade; [...] O teu trono está firme desde a antigüidade; tu existes desde a antigüidade" (Sl 93:1,2); "Proclamarão o glorioso esplendor da tua majestade, e meditarei nas maravilhas que fazes" (Sl 145:5). Pedro, recordando sua visão da glória real de Cristo na transfiguração, disse: "nós fomos testemunhas oculares da sua majestade" (2Pe 1:16).
Em Hebreus, a expressão majestade é usada duas vezes substituindo a palavra Deus: Cristo, ao ascender, sentou-se "à direita da Majestade nas alturas", "à direita do trono da Majestade nos céus" (Hb 1:3; 8:1). Quando a palavra majestade é aplicada a Deus, declara-lhe sua grandeza e convida-nos à adoração. O mesmo acontece quando a Bíblia afirma que Deus está nas alturas e no céu: a idéia aqui expressa não é que Deus esteja distante de nós, no espaço, mas que ele está muito acima de nós em grandeza e, portanto, deve ser adorado. "Grande é o Senhor, e digno de todo louvor" (Sl 48:1); "Pois o Senhor é o grande Deus, o grande Rei [...] Venham! Adoremos prostrados e ajoelhemos" (Sl 95:3,6). O instinto cristão de confiança e adoração é muito estimulado pelo conhecimento da grandeza de Deus.
É, no entanto, exatamente esse conhecimento que falta em grande escala aos cristãos modernos; e essa é a razão de nossa fé tão frágil e nossa adoração tão débil. Somos filhos do nosso tempo e, embora acalentemos grandes idéias sobre o ser humano, via de regra temos poucas idéias sobre Deus. Quando alguém na igreja, sem pensar nas pessoas das ruas, usa a palavra Deus, raramente pensa no conceito da majestade divina. O best-seller Your God is too small [Seu Deus é pequeno demais]1 tem um título bem atual. Estamos em pólos diferentes em relação a nossos ancestrais evangélicos, embora usemos as mesmas palavras em nossa confissão de fé.
Quando começamos a ler Lutero,2 Edwards3 ou Whitefield,4 e ainda que aceitemos a mesma doutrina, em pouco tempo nos surpreenderemos pensando se realmente temos alguma familiaridade com o Deus poderoso conhecido por eles tão intimamente.
Hoje se dá grande ênfase à idéia de que Deus é pessoal, mas esta verdade é de tal modo enunciada que nos deixa a impressão de que ele é uma pessoa como nós — fraca, inconveniente, ineficaz e um pouco
1John Bertram Phillips, New York: Macmillan, 1961.
2Martinho Lutero (1483-1546) foi monge agostiniano, doutor em teologia e professor da Universidade de Wittenberg. Protestou contra a venda de indulgências para financiar a construção da Basílica de São Pedro em Roma, fixando um documento que continha 95 teses contra essa prática. Posteriormente excomungado pelo papa, queimou a Bula de excomunhão em praça pública, rompendo definitivamente com a Igreja Católica. Além de prolífico escritor, contribuiu para a uniformização da língua alemã ao publicar inicialmente o Novo Testamento e, mais tarde, a Bíblia toda nesse idioma.
3Jonathan Edwards (1703-1758). Teólogo e filósofo americano, foi presidente do Prince-ton College. É considerado ainda hoje a mente mais brilhante do cenário religioso dos Estados Unidos. Ministro congregacional, foi uma das principais figuras durante o Grande Despertamento. Suas pregações eram impactantes. Um dos sermões mais característicos de sua teologia e aplicação bíblica é Pecadores nas mãos de um Deus irado.
4George Whitefield (1714-1770) foi um pregador inglês que participou do Grande Despertamento nos Estados Unidos e do avivamento religioso de sua pátria. Era membro do Clube Santo, criado pelos irmãos Wesley. Ordenado pela Igreja da Inglaterra, foi posteriormente excluído dos púlpitos anglicanos devido a seu fervor religioso, passando a pregar ao ar livre. Foi um dos maiores contribuidores para a criação do posteriormente denominado movimento metodista.
patética. Mas não é esse o Deus da Bíblia! Nossa vida pessoal é finita, limitada em todas as direções: espaço, tempo, conhecimento e poder. Deus, porém, não tem limites. Ele é eterno, infinito e todo-poderoso. Ele nos tem nas mãos; mas nós nunca o temos em nossas. Semelhantemente a nós, ele é pessoal; mas, diferentemente de nós, ele é grande. Em todas as constantes evidências bíblicas sobre o interesse pessoal de Deus por seu povo, e da bondade, do carinho, da simpatia, da paciência e da terna compaixão demonstrada para com esse povo, as escrituras não nos deixam perder de vista a majestade e o ilimitado domínio de Deus sobre todas as criaturas.
Pessoal e majestoso
Para ilustrar esse ponto não precisamos ir além dos capítulos iniciais de Gênesis. Desde o começo da história bíblica, por meio da sabedoria da inspiração divina, a narrativa é feita de modo a inculcar em nós a dupla verdade: o Deus a quem somos apresentados é pessoal e majestoso.
Em nenhum outro lugar da Bíblia a natureza pessoal de Deus é expressa de modo tão vivido. Ele delibera consigo: "Façamos" (Gn 1:26). Ele conduz os animais até Adão para que este os nomeie (22:19). Ele passeia pelo jardim chamando por Adão (3:8). Ele faz perguntas às pessoas (3:11; 4:9; 16:8). Desce do céu para ver o que as pessoas estão fazendo (11:5; 18:20). Fica tão desgostoso com a fraqueza do ser humano que se arrepende de havê-lo feito (6:6).
Representações de Deus como estas são necessárias para nos trazer à mente o fato de que o Deus com o qual comungamos não é um mero princípio cósmico, impessoal e indiferente, mas uma Pessoa que vive, pensa, sente, age, aprova o bem, desaprova o mal e está o tempo todo interessado em suas criaturas.
Não vamos, porém, deduzir por essas passagens que o conhecimento e o poder de Deus sejam limitados, ou que ele está normalmente ausente, desconhecendo o que ocorre no mundo, a não ser quando vem especialmente para investigar. Esses mesmos capítulos destroem tais idéias ao nos defrontar com a grandeza de Deus, tão vivida quanto sua personalidade.
O Deus do Gênesis é o Criador que trouxe ordem ao caos, criou vida mediante sua palavra, fez Adão do pó da terra e Eva de sua costela (caps. 1 e 2). Ele é o Senhor de tudo o que criou. Amaldiçoou a terra e sujeitou a humanidade à morte física, mudando desse modo seu mundo original perfeito e ordenado (3:17). Inundou a terra como castigo, destruindo toda a vida, menos os que estavam na arca (caps. 6 a 8). Confundiu a linguagem das pessoas e espalhou os construtores de Babel (11:7). Destruiu Sodoma e Gomorra (aparentemente) por uma erupção vulcânica (19:24). Abraão o chamou com exatidão de "Juiz de toda a terra" (18:25), e corretamente adotou o nome dado a Deus por Melquisedeque: "Deus Altíssimo, Criador dos céus e da terra" (14:19-22).
Deus está presente em todos os lugares e observa tudo: o assassinato perpetrado por Caim (4:9), a corrupção da humanidade (6:5), a penúria de Hagar (16:7). Com razão Hagar o chamou El Roi— "o Deus que vê", e chamou a seu filho Ismael — "Deus ouve", pois Deus na verdade vê e ouve, e nada lhe escapa. Ele mesmo se denomina El Shaddai, "Deus Altíssimo", e todas suas ações ilustram a onipotência proclamada por seu nome. Ele prometeu a Abraão e a sua mulher um filho quando já tinham noventa anos, e repreendeu Sara por sua incrédula e
injustificada risada: "Existe alguma coisa impossível para o Senhor?" (18:14). Não é apenas em momentos isolados que Deus controla os acontecimentos. Toda a história está sob sua influência. A prova disso está sua predição detalhada do extraordinário destino que ele se propôs a realizar com a descendência de Abraão (12:1-3; 13:14-17; 15:13-21 etc). Em poucas palavras, assim é a majestade de Deus, de acordo com os primeiros capítulos de Gênesis.
Ilimitado
Como podemos formar uma idéia correta da grandeza de Deus? A Bíblia nos ensina que devemos tomar duas atitudes: a primeira é remover de nosso conceito de Deus limites que o tornariam pequeno. A segunda é compará-lo com poderes e forças que consideramos grandes.
Como exemplo do que está envolvido no primeiro passo, veja o salmo 139, no qual seu autor medita sobre a infinita e ilimitada natureza da presença, do conhecimento e do poder de Deus em relação ao ser humano. Estamos sempre na presença de Deus, diz o salmista. Você pode romper relações com as pessoas, mas jamais poderá fugir de seu Criador: "Tu me cercas, por trás e pela frente [...] Para onde poderei eu escapar do teu Espírito? Para onde poderei fugir da tua presença?". Se subir ao céu, se descer ao inferno (isto é, ao fundo da terra), ou se fugir para o fim do mundo, ainda assim não poderei escapar da presença de Deus — "lá estás" (v. 5-10). Nem a escuridão, que me esconde da vista humana, poderá me proteger do olhar divino (v. 11,12).
Como não há limites para sua presença comigo, tampouco há limites para seu conhecimento a meu respeito. Assim como nunca estou SÓ, também nunca deixo de ser notado: "Senhor, tu me sondas e me conheces. Sabes quando me sento e quando me levanto (todas as minhas ações e movimentos); de longe percebes os meus pensamentos (tudo o que se passa em minha mente) [...] todos os meus caminhos são bem conhecidos por ti (todos os meus hábitos, planos, idéias, desejos e a minha vida até agora). Antes mesmo que a palavra me chegue à língua (falada ou pensada), tu já a conheces inteiramente, Senhor" (v. 1-4).
Posso ocultar dos homens meu coração, meu passado e meus planos para o futuro, mas de Deus não posso esconder nada. Posso falar de tal modo que as pessoas ao meu redor formem uma idéia bem diferente do que sou na realidade, mas nada que eu diga ou faça pode enganar a Deus. Ele vê através de toda minha reserva e pretensão. Ele me conhece como sou realmente, melhor até que eu mesmo.
Um Deus de cuja presença e exame eu pudesse me esquivar seria uma divindade comum e pequena. Mas o Deus verdadeiro é grande e terrível justamente porque está sempre comigo e seus olhos estão sempre sobre mim. Viver torna-se uma questão impressionante quando se percebe que se passa todos os momentos da vida sob o olhar e na companhia do Criador onisciente e onipresente.
Isso, entretanto, não é tudo. O Deus que tudo vê é também poderoso, a fonte do poder que me foi revelado pela admirável complexidade de meu corpo, criado por ele. Diante desta realidade a meditação do salmis-ta se transforma em adoração: "Eu te louvo porque me fizeste de modo especial e admirável. Tuas obras são maravilhosas!" (v. 14).
Aqui, está, portanto, o primeiro passo para apreender a grandeza de Deus: compreender como sua sabedoria, sua presença e seu poder são ilimitados. Muitas outras passagens das Escrituras ensinam a mesma lição, especialmente Jó 38 a 41, capítulos nos quais o próprio Deus se vale da declaração de Eliú: "Deus está cercado de tremenda majestade" (37:22; ra), e coloca diante de Jó uma impressionante exposição de sua sabedoria e de seu poder na natureza. O Senhor então pergunta a Jó se ele pode igualar tal "majestade" (40:10) e o convence de que, se não lhe é possível fazê-lo, também não deveria atrever-se a buscar falhas em como Deus conduz seu problema, que também supera sua compreensão. Mas não podemos nos demorar mais neste ponto.
O INCOMPARÁVEL
Como exemplo do que está envolvido no segundo passo, vejamos o texto de Isaías 40:12 e os versículos seguintes. Aqui Deus fala a pessoas cuja disposição equipara-se à de muitos cristãos de hoje — desanimados, amedrontados, intimamente desapontados. Pessoas que por muito tempo lutam contra a maré de dificuldades. Pessoas que deixaram de crer que a causa de Cristo poderá prosperar outra vez. Agora veja como Deus, por meio de seu profeta, argumenta com eles.
Veja as obras que eu tenho feito, ele diz. Você poderia fazê-las? Alguém poderia? "Quem mediu as águas na concha da mão, ou com o palmo definiu os limites dos céus? Quem jamais calculou o peso da terra, ou pesou os montes na balança e as colinas nos seus pratos?" (v. 12). Você é bastante sábio e poderoso para fazer coisas como essas? Mas eu, Deus, o sou, ou não teria de modo algum feito este mundo. Eis o seu Deus!
Agora observe as nações, o profeta continua: as grandes forças nacionais à mercê de quem vocês acham que estão. Assíria, Egito, Babilônia — vocês têm medo dessas nações e se preocupam porque seus exércitos e recursos excedem muito ao que vocês possuem. Considerem, porém, como Deus se coloca em relação a essas forças poderosas tão temidas por vocês: "Na verdade as nações são como a gota que sobra do balde; para ele são como o pó que resta na balança [...] Diante dele todas as nações são como nada; para ele são sem valor e menos que nada" (v. 15,17). Vocês tremem diante das nações porque são muito mais fracos que elas, mas Deus é tão maior que as nações que elas não são nada para ele. Eis o seu Deus!
Agora observe o mundo. Considere seu tamanho, sua variedade e complexidade; pense nos mais de seis bilhões que o povoam e no vasto céu acima. Que figuras insignificantes você e eu somos em comparação ao planeta onde vivemos! Entretanto, que é todo este planeta em comparação com Deus? "Ele se assenta no seu trono, acima da cúpula da terra, cujos habitantes são pequenos como gafanhotos. Ele estende os céus como um forro, e os arma como uma tenda para neles habitar" (v. 22). O mundo nos faz pequenos, mas Deus torna o mundo pequeno. O mundo é o escabelo sobre o qual ele senta com segurança. Ele é maior que o mundo e tudo o que nele há; assim toda a fervilhante atividade de seus mais de seis bilhões de apressados habitantes não perturba mais que o chilreio e os pulos dos gafanhotos nos afetam durante o verão. Eis o seu Deus!
Veja agora em quarto lugar as grandes personalidades do mundo — os governantes cujas leis e políticas determinam o bem-estar de milhões; os pretensos dominadores do mundo, os ditadores e os construtores de impérios que têm em si o poder de lançar o mundo todo em guerra. Pense em Senaqueribe e Nabucodonosor; pense em Alexandre, Napo-leão, Hitler. Pense nos líderes atuais. Você supõe que são essas grandes personalidades que determinam, de fato, o andamento do mundo? Pense outra vez, pois Deus é maior que todos os grandes homens do mundo: "Ele aniquila os príncipes e reduz a nada os juizes deste mundo" (v. 23), ele é, como diz a versão inglesa do Livro de oração comum, "o único governador dos príncipes". Eis o seu Deus!
Mas ainda não terminamos. Observe, finalmente, as estrelas. Uma das experiências mais impressionantes que a humanidade conhece é observar as estrelas, sozinho, em uma noite clara. Nada proporciona maior sensação de algo remoto e distante; nada mais nos faz sentir tão fortemente a própria pequenez e insignificância. Nós, que vivemos na era espacial, podemos acrescentar esta experiência universal ao conhecimento científico dos atuais fatores envolvidos — milhões de estrelas, bilhões de anos-luz de distância. Nossas idéias vacilam, nossa imaginação não pode compreender. Ao tentar conceber a insondável profundidade do espaço, ficamos mentalmente estarrecidos e confusos.
Mas o que é isto para Deus? "Ergam os olhos e olhem para as alturas. Quem criou tudo isso? Aquele que põe em marcha cada estrela do seu exército celestial, e a todas chama pelos nomes. Tão grande é o seu poder e tão imensa a sua força, que nenhuma delas deixa de comparecer!" (v. 26). Deus mostra as estrelas; ele as colocou no espaço; é seu Criador e Senhor; elas estão em suas mãos, sujeitas a sua vontade. Tal é seu poder e sua majestade. Eis o seu Deus!
Nossa resposta à majestade
Deixemos agora que Isaías nos fale da doutrina da majestade divina fazendo-nos as três perguntas que ele, em nome de Deus, fez aos israelitas desiludidos e abatidos.
1. '"Com quem vocês me vão comparar? Quem se assemelha a mim?', pergunta o Santo" (v. 25). Esta pergunta reprova idéias erradas a respeito de Deus. "Suas idéias a respeito de Deus são muito humanas", disse Lutero a Erasmo. Aqui muitos de nós nos desviamos. Nossos pensamentos a respeito de Deus não são suficientemente grandes; deixamos de reconhecer a realidade de seu poder e de sua sabedoria ilimitados. Como somos finitos e fracos, pensamos que, em alguns pontos, Deus também o seja, e achamos difícil crer de modo diferente. Pensamos em um Deus muito semelhante a nós. Corrija este engano, diz Deus; aprenda a reconhecer a majestade total de nosso incomparável Deus e Salvador.
2. "Por que você reclama, ó Jacó, e por que se queixa, ó Israel: 'O Senhor não se interessa pela minha situação; o meu Deus não considera a minha causa?'" (v. 27). Esta pergunta censura os pensamentos errados a respeito de nós mesmos. Deus não nos abandonou, como jamais abandona ninguém a quem tenha dedicado seu amor; nem Cristo, o Bom Pastor, jamais perde a direção do rebanho. É falso e irreverente acusar a Deus de esquecer, desprezar ou perder interesse pela situação e pelas necessidades de seu povo. Se você tem se resignado com a idéia de que Deus o abandonou, busque a graça para se sentir envergonhado. Tal pessimismo derivado da incredulidade desonra profundamente nosso grande Deus e Salvador.
3. "Será que você não sabe? Nunca ouviu falar? O Senhor é o Deus eterno, o Criador de toda a terra. Ele não se cansa nem fica exausto" (v. 28). Esta pergunta repreende nossa morosidade em crer na majestade de Deus. Ele nos humilhará por causa de nossa descrença. "Qual é o problema?", ele pergunta, "será que você está pensando que eu, o Criador, estou velho e cansado? Ninguém jamais lhe contou a verdade sobre mim?".
Muitos de nós merecemos esta censura. Como somos lentos em crer em Deus como Deus, soberano que tudo vê e é poderoso! Como fazemos pouco da majestade de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo! Muitos de nós precisamos "colocar toda a esperança no Senhor", meditando sobre sua majestade até renovarmos nossas forças, gravando estas coisas no coração.
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Só Deus é sábio
O que a Bíblia quer dizer ao afirmar que Deus é sábio? Nas Escrituras a sabedoria é uma qualidade tanto moral quanto intelectual, é mais que simples inteligência ou conhecimento, mais que esperteza ou astúcia. Para ser realmente sábio, no sentido bíblico, a inteligência e a habilidade de uma pessoa devem ser usadas para um fim útil. A sabedoria é o poder para ver e a propensão para escolher o alvo melhor e mais elevado, aliada aos meios corretos para atingi-la.
A sabedoria, na realidade, é o lado prático da bondade moral e, por isso, é encontrada em plenitude somente em Deus. Só ele é natural, inteira e invariavelmente sábio. "Sua sabedoria sempre a postos", diz com toda a verdade o hino sacro. Deus é sábio em tudo o que fez. A sabedoria, como diziam os antigos teólogos, é sua essência, assim como também o são poder, verdade, bondade — elementos que formam seu caráter.
Sabedoria: humana e divina
A sabedoria humana pode ser frustrada por fatores circunstanciais que fogem ao controle do homem sábio. Aitofel, o conselheiro desleal de Davi, deu um sábio conselho quando insistiu com Absalão para acabar de uma vez com Davi, antes que este se recuperasse do primeiro choque causado pela revolta do filho. Absalão, porém, tolamente seguiu outro caminho, e Aitofel, irritado e com o orgulho ferido, prevendo sem dúvida o sufocamento da revolta e incapaz de perdoar-se por ter sido tão tolo a ponto de se juntar a ela, foi para casa em desespero e se matou (2Sm 17).
A sabedoria de Deus, entretanto, não pode ser frustrada como aconteceu com o "eficiente conselho" (v. 14) de Aitofel, pois está unida à onipotência. Tanto o poder quanto a sabedoria são essência de Deus. A onisciência governando a onipotência, o poder infinito dirigido pela sabedoria também infinita, assim é basicamente a descrição do caráter divino na Bíblia: "Sua sabedoria é profunda, seu poder é imenso" (Jó 9:4); "Deus é quem tem sabedoria e poder" (12:13); "[...] grande é em força e sabedoria" (36:5; sbtb); "Tão grande é o seu poder [...] sua sabedoria é insondável" (Is 40:26,28); "[...] a sabedoria e o poder a ele pertencem" (Dn 2:20).
Essa mesma associação aparece no Novo Testamento: "Ora, àquele que tem poder para confirmá-los pelo meu evangelho [...] ao único Deus sábio [...]" (Rm 16:25,27). A sabedoria sem o poder seria patética, inútil; o poder sem a sabedoria seria meramente assustador; mas em Deus a sabedoria ilimitada e o poder infinito estão unidos, e isso o torna completamente digno de nossa mais total confiança.
A poderosa sabedoria de Deus está sempre ativa e jamais falha. Todas as obras de sua criação, providência e graça demonstram isso, e enquanto não virmos nelas sua sabedoria não teremos uma avaliação caneta. Não poderemos, entretanto, reconhecer a sabedoria de Deus a menos que conheçamos com que finalidade ele age. Muitos erram neste ponto. Entendem mal o que a Bíblia diz ao afirmar que Deus é amor (v. 1Jo 4:8-10). Pensam que ele planeja uma vida livre de problemas para todos, independentemente de sua condição moral e espiritual. Por isso concluem que qualquer situação dolorosa ou difícil (doença, acidente, dano, perda de trabalho, sofrimento de alguém querido) aponta uma falha na sabedoria ou no poder de Deus, ou ainda em ambos, ou que Deus não existe.
Essa avaliação acerca do propósito de Deus, porém, é um completo engano. A sabedoria divina não é, e nunca foi, prometida a fim de manter feliz este mundo caído ou confortar a impiedade. Nem mesmo aos cristãos foi prometida uma vida fácil, e sim o contrário. Ele tem outros objetivos para a vida neste mundo do que simplesmente torná-la fácil para todos.
O que Deus pretende, então? Qual é seu objetivo? O que ele almeja? Ao nos criar, seu propósito era que deveríamos amá-lo e honrá-lo, louvando-o pela complexidade maravilhosamente ordenada de seu mundo, usando-o de acordo com sua vontade, e assim desfrutar tanto do mundo quanto de Deus.
Embora o ser humano tenha caído, Deus não abandonou seu propósito inicial. Ele ainda planeja que uma grande multidão venha a amá-lo e honrá-lo. Seu objetivo supremo é levá-la a um estado em que o agrade inteiramente e o louve adequadamente, uma condição na qual Deus seja tudo para ela e juntos se regozijem continuamente na fruição do amor mútuo — as pessoas se regozijando no amor salvífico de Deus dedicado a elas por toda a eternidade, e Deus se regozijando no amor correspondido pela humanidade, manifestado nela por meio da graça mediante o Evangelho.
Esta será a glória de Deus, e a nossa glória também, em todos os sentidos expressos por esta palavra. Isso, porém, só será totalmente realizado no mundo futuro, no contexto da transformação de toda a ordem criada. Enquanto isso, entretanto, Deus trabalha continuamente para sua realização. Seus objetivos imediatos são conduzir cada homem e mulher a um relacionamento de fé, esperança e amor consigo, livrando-o do pecado e mostrando-lhe na vida o poder de sua graça, defendendo seu povo contra as forças do mal e espalhando por todo o mundo o Evangelho mediante o qual ele salva.
Para o cumprimento de cada parte desse propósito, o Senhor Jesus Cristo é fundamental, pois Deus fez dele não só o Salvador dos pecadores, em quem as pessoas devem confiar, como também o Senhor da Igreja, a quem devem obedecer. Vimos como a sabedoria divina foi manifestada na encarnação e na cruz de Cristo; acrescentaremos agora que é à luz desse complexo propósito delineado que veremos a sabedoria de Deus em seu trato com o ser humano.
Deus interage com seu povo
As biografias contidas na Bíblia nos ajudarão aqui. Não há ilustrações mais claras da sabedoria divina organizando a vida humana que as encontradas nas narrativas das Escrituras. Tome, por exemplo, a vida de Abraão. Ele era capaz de trapacear vil e repetidamente, chegando a pôr em risco a castidade de sua mulher (Gn 12:10,20). Vemos assim claramente que ele, por natureza, era um homem de pouca coragem moral e excessivamente preocupado com a segurança pessoal (Gn 12:12,13; 20:11). Era também sensível à pressão; por insistência da esposa teve um filho com a escrava Hagar, e quando Sara reagiu com recriminações histéricas contra o orgulho de Hagar por sua gravidez, deixou que a expulsasse de casa (v. 16).
Evidentemente, pois, Abraão não era por natureza um homem de princípios fortes, e seu senso de responsabilidade era um tanto deficiente. Deus, porém, trata com sabedoria dessa figura negligente e pouco heróica de modo tal que ele não apenas cumpriu fielmente seu papel no palco da história da Igreja, como habitante pioneiro de Canaã, o primeiro a receber a aliança de Deus (v. 17) e pai de Isaque, a criança-milagre como também se transformou em um novo homem.
A maior necessidade de Abraão era aprender na prática a viver na presença de Deus, associando a ele todos os acontecimentos da vida e vendo unicamente a ele como Comandante, Defensor e Galardoador. Esta foi a grande lição que Deus, com sabedoria, lhe ensinou: "Não tenha medo, Abrão! Eu sou o seu escudo; grande será a sua recompensa)!" (15:1); "Eu sou o Deus todo-poderoso, ande segundo a minha vontade e seja íntegro" (17:1). Vezes sem conta Deus confrontou Abraão até levá-lo ao ponto em que seu coração pudesse dizer como o salmista: "A quem tenho nos céus senão a ti? E na terra, nada mais desejo além de estar junto de ti [...] Deus é a força do meu coração e a minha herança para sempre" (Sl 73:25,26).
À medida que a narrativa prossegue vemos na vida de Abraão os resultados desse aprendizado. A velha fraqueza ainda aparece de vez em quando, mas a seu lado emerge uma nova nobreza e independência, o resultado do hábito desenvolvido por Abraão de andar com confiança na vontade divina revelada, confiando e esperando nele, curvando-se a sua providência e obedecendo-lhe mesmo quando suas ordens parecessem estranhas e pouco convencionais. Abraão se transformou de alguém mundano em um homem de Deus.
Desse modo, ao responder ao chamado divino, deixando sua casa e viajando por terras que seus descendentes possuirão (Gn 12:7) — repare que ele mesmo não possuía nada da terra de Canaã além de seu túmulo (Gn 25:9-10) —, observamos nele uma nova humildade quando se recusa a invocar seus direitos sobre os do sobrinho Ló (Gn 13:8,9). Percebe-se também uma nova coragem, quando se decide a ir salvar Ló com apenas 318 homens, contra as forças combinadas de quatro reis (14:14).
Vemos uma nova dignidade quando se recusa a ficar com o saque obtido, para que não parecesse que sua riqueza vinha do rei de Sodoma, e não do Deus Altíssimo (14:22,23). Observa-se também uma nova paciência quando ele espera durante 25 anos, desde os 75 até os 100 anos de idade, pelo nascimento do herdeiro prometido (Gn 12:4; 21:5).
Vemos como ele se tornou um homem de oração, um intercessor persistente, oprimido pela consciência da responsabilidade pelo bem-estar alheio perante Deus (Gn 18:23-32). Vemo-lo, afinal, completamente devotado à vontade de Deus, e tão confiante na sabedoria divina, que de boa vontade se dispõe a obedecer à ordem de Deus para matar o próprio filho, o herdeiro tão esperado (Gn 22). Quão sabiamente ensinou Deus sua lição! E como Abraão a aprendeu bem!
Jacó, neto de Abraão, precisou de um tratamento diferente. Jacó era o filho querido e teimoso de sua mãe, abençoado (ou amaldiçoado) com todos os instintos oportunistas e amorais de negociante agressivo. Deus, em sua sabedoria, planejara que Jacó, apesar de ser o filho mais novo, deveria ter a bênção e os direitos do primogênito (28:13-15); planejara também que Jacó deveria casar-se com Lia e Raquel, suas primas, e tornar-se o pai dos doze patriarcas, a quem a promessa seria transmitida (Gn 48,49).
Deus, porém, em sua sabedoria, resolvera também instilar nele a verdadeira religião. Toda a atitude de Jacó era a de um descrente, e precisava mudar. Jacó precisava deixar de confiar na habilidade própria para depender de Deus. Precisava também sentir aversão pela inescrupulosa hipocrisia que lhe era tão natural. Era necessário, portanto, que Jacó sentisse a própria fraqueza e tolice, sendo levado a uma falta de confiança tão completa em si mesmo que deixaria de tentar explorar os outros. Sua autoconfiança devia ser totalmente destruída. Com paciente sabedoria (por sempre esperar pela hora oportuna) Deus levou Jacó até o ponto em que pudesse gravar-lhe na alma, de modo indelével e decisivo, o sentimento de desamparo impotente. É instrutivo rever os passos de Deus.
Em primeiro lugar, por cerca de vinte anos, Deus permitiu que Jacó agisse livremente, tecendo uma complexa teia de falsidade e suas inevitáveis conseqüências — desconfiança mútua, amizades transformadas em inimizades e o isolamento do impostor. As conseqüências da astúcia de Jacó foram a maldição divina sobre ele. Quando Jacó roubou a bênção e o direito de primogenitura de Esaú (Gn 25:29-34; 27:1-40), este (naturalmente) virou-se contra Jacó, que precisou deixar sua casa às pressas. Foi para a casa de seu tio Labão, tão matreiro quanto o próprio Jacó. Labão explorou a posição de Jacó e o enganou para casar-se não apenas com sua linda filha, a quem Jacó queria, mas também com a outra, feia e de olhos fracos, para quem de outro modo seria difícil encontrar um bom marido (Gn 29:15-30).
A experiência de Jacó com Labão foi bem amarga, e Deus a usou para lhe mostrar o sentimento de ser enganado — algo que Jacó precisava aprender se algum dia tivesse de abandonar seu antigo modo de vida. Jacó, porém, ainda não estava curado. Sua reação imediata foi pagar na mesma moeda. Ele manipulou tão astutamente o rebanho de ovelhas do tio, com tanto lucro para si e prejuízo para Labão, que este ficou furioso. Jacó sentiu ser mais prudente partir com sua família para Canaã antes que viesse alguma represália (Gn 30:25—31:55). Deus, que até então havia suportado a desonestidade de Jacó sem censura, incentivou-o a ir (Gn 31:3, 11-13; cf. 32:1,2,9,10), pois ele sabia o que iria fazer antes do final da viagem. Quando Jacó partiu, Labão o perseguiu e tornou perfeitamente claro que nunca mais queria Jacó de volta (Gn 31).
Quando a caravana de Jacó alcançou a fronteira do território de Esaú, Jacó enviou ao irmão uma mensagem polida contando-lhe de sua chegada. As notícias recebidas, porém, fizeram-no pensar que Esaú avançava em sua direção com um exército armado, para vingar-se da bênção roubada vinte anos antes. Jacó ficou completamente desesperado.
Chegara a hora de Deus intervir. Naquela noite, enquanto Jacó estava sozinho às margens do rio Jaboque, Deus o encontrou (Gn 32:24-30). Foram horas de conflito espiritual desesperador e angustiante, e, como pareceu a Jacó, físico também. Jacó agarrou-se a Deus; ele queria uma bênção, uma certeza do favor e da proteção divina nessa crise, mas não conseguiu o que buscava. Ao contrário, tinha cada vez mais vivida a consciência do próprio estado, completo desamparo; e, sem Deus, totalmente sem esperança. Jacó sentiu naquela ocasião o peso total de seu procedimento cínico e inescrupuloso, que lhe estava sendo retribuído. Até aquele momento ele se mostrara autoconfiante, acreditando ser mais que capaz de enfrentar sozinho tudo o que lhe acontecesse. Agora, porém, sentia sua completa incapacidade para resolver as coisas e compreendeu claramente que jamais voltaria a confiar em si mesmo para cuidar da própria vida e criar o próprio destino. Nunca mais ousaria tentar viver de acordo com sua vontade.
Para que isso ficasse bem claro a Jacó, enquanto lutavam, Deus o aleijou (Gn 32:25), deslocando-lhe a coxa, como lembrete perpétuo, na carne, da própria fraqueza espiritual e da necessidade da dependência constante de Deus. Pelo resto de sua vida ele teria de andar apoiado em uma bengala.
Jacó abominou a si mesmo. Pela primeira vez e de todo o coração descobriu-se a odiar, realmente odiar, sua famigerada astúcia. Ela havia colocado Esaú contra ele (com toda a razão!), sem falar em Labão; e agora, parecia, levara Deus a não desejar mais abençoá-lo: "Deixe-me ir...", disse aquele com quem lutava; parece que Deus pensava abandoná-lo. Jacó, porém, o segurou com firmeza: "Não te deixarei ir, a não ser que me abençoes" (Gn 32:26).
E, então, finalmente, Deus pronunciou a bênção, pois Jacó estava agora fraco, desamparado, humilde e dependente o bastante para ser abençoado. "Ele me abateu a força no caminho", disse o salmista (Sl 102:23; ra). Foi justamente isso o que Deus fez com Jacó.
Não restara nenhuma partícula de autoconfiança em Jacó, quando Deus terminou sua obra nele. A natureza da luta de Jacó com Deus e o motivo de ter "vencido" (Gn 32:28) foi simplesmente seu apego a Deus, enquanto este o enfraquecia e fazia surgir nele o espírito de submissão e autodesconfiança. Jacó desejava tanto a bênção de Deus, que se agarrou a ele durante toda a dolorosa humilhação, até cair o suficiente para que Deus o levantasse, dando-lhe paz e assegurando-lhe que não mais precisava temer Esaú.
É claro que Jacó não se tornou modelo de santo da noite para o dia, ele não foi totalmente correto com Esaú no dia seguinte (Gn 33:14-17), mas, em princípio, Deus ganhara sua luta com Jacó, e para o bem. Jacó nunca mais voltou a seus antigos hábitos. Mancando, aprendeu a lição. A sabedoria de Deus realizara sua obra.
Outro exemplo em Gênesis: José. Os irmãos do jovem José o venderam como escravo para o Egito. Traído pela maldosa esposa de Potifar, foi preso, embora depois tivesse sido elevado a cargos de grande importância. Com que propósito Deus em sua sabedoria planejou isso? No que concerne a José pessoalmente a resposta é encontrada no salmo 105:19: "até [...] a palavra do Senhor confirmar o que dissera".
José estava sendo testado, refinado e amadurecido. Durante o período em que foi escravo e, depois, na prisão, estava sendo ensinado a conservar-se submisso a Deus, alegre e bondoso em circunstâncias difíceis, e a esperar pacientemente no Senhor. Deus muitas vezes usa experiências dolorosas para ensinar essas lições. No que concerne ao povo de Deus, o próprio José respondeu nossa pergunta ao revelar sua identidade aos irmãos atônitos: "Mas Deus me enviou à frente de vocês para lhes preservar um remanescente nesta terra e para salvar-lhes a vida com grande livramento. Assim, não foram vocês que me mandaram para cá, mas sim o próprio Deus" (Gn 45:7,8).
A teologia de José era tão firme quanto profundo seu amor. Mais uma vez somos confrontados com a sabedoria divina dirigindo os acontecimentos da vida com duplo propósito: santificação pessoal e cumprimento de seu ministério na vida do povo de Deus. Na vida de José, Abraão e Jacó vemos esse duplo propósito triunfantemente cumprido.
NOSSO SOFRIMENTO DESCONCERTANTE
Estas coisas foram escritas para ensinar-nos, pois a mesma sabedoria que ordenou os caminhos trilhados pelos santos de Deus nos tempos bíblicos ainda dirige a vida do cristão de hoje. Não devemos, portanto, ficar muito abatidos quando coisas inesperadas, perturbadoras e desestimu-lantes nos acontecem. Qual o sentido delas? Bem, significam simplesmente que Deus, em sua sabedoria, quer que cheguemos ao ponto que ainda não alcançamos, e está cuidando para que isso se realize.
Deus talvez queira fortalecer-nos a paciência, o bom humor, a compaixão, a humildade ou a mansidão, dando-nos nesse momento alguns exercícios extras para praticarmos essas graças em situações especialmente difíceis. Talvez ele tenha novas lições sobre abnegação e autodesconfiança para nos ensinar. Talvez ele queira anular em nós algumas formas de orgulho e convencimento não percebidas, ou complacência e ilusões. Talvez seu propósito seja simplesmente nos chamar para mais perto dele, em comunhão; pois muitas vezes acontece, como todos os santos bem o sabem, que a comunhão com o Pai e com o Filho é mais vivida e doce, e a alegria cristã é maior quando a cruz é mais pesada. (Lembre-se de Samuel Rutherford!) Ou talvez Deus esteja nos preparando para alguma forma de atividade de que até o presente não tínhamos noção.
Paulo viu parte das razões das próprias aflições no fato de que Deus "nos consola em todas as nossas tribulações, para que, com a consolação que recebemos de Deus, possamos consolar os que estão passando por tribulações" (2Co 1:4). Até o Senhor Jesus "aprendeu a obedecer por meio daquilo que sofreu", e assim foi "aperfeiçoado" para o sumo sacerdócio no ministério de simpatia e auxílio para com seus discípulos tão atribulados (Hb 5:8,9). Significa que, se por um lado ele pode nos sustentar e tornar-nos mais que vitoriosos em todas as dificuldades e problemas, de outro não devemos nos surpreender se ele nos chamar para seguir-lhe os passos e nos preparar para o serviço aos outros por meio de experiências dolorosas absolutamente imerecidas. "Ele conhece os caminhos que toma",1 mesmo que no presente nós não os conheçamos.
Podemos ficar realmente atônitos com as coisas que nos acontecem, mas Deus sabe exatamente o que faz e o que está por trás de suas ações, ao lidar com nossos problemas. Sempre, e em tudo, ele é sábio. Veremos isso algum dia, embora não o possamos ver agora (Jó, no céu, sabe as razões de suas aflições, embora não pudesse conhecê-las em vida). No entanto, não devemos hesitar em confiar em sua sabedoria, mesmo quando ele nos deixa na ignorância.
Como poderemos enfrentar essas situações desconcertantes e difíceis, no entanto, se agora não podemos ver nelas o propósito de Deus? Primeiramente, aceitando-as como vindas de Deus e perguntando-nos que reações o Evangelho de Deus requer de nós. Em segundo lugar, buscando a face de Deus especialmente acerca delas.
Se tomarmos essas duas atitudes, nunca nos veremos completamente no escuro a respeito do propósito de Deus quanto a nossas dificuldades. Seremos sempre capazes de pelo menos ver nelas tanta finalidade como Paulo pôde entrever no espinho na carne (qualquer que fosse). O apóstolo afirma que o espinho veio-lhe como "um mensageiro de Sata-nás" tentando-o a ter maus pensamentos a respeito de Deus. Ele resistiu
1Frase do segundo verso do hino In heavenly love abiding, escrito por Anna L. Waring, Hymns and meditations, 1850.
a essa tentação e buscou a face de Cristo por três vezes pedindo que o espinho lhe fosse removido. A única resposta que obteve foi: "A minha graça é suficiente para você, pois o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza".
Ao refletir sobre isso, Paulo percebeu finalmente por que tinha sido tão afligido: era para mantê-lo humilde, "para impedir que eu me exaltasse por causa da grandeza dessas revelações". Esse raciocínio e a palavra de Cristo foram suficientes para ele, e nada mais procurou. Esta foi sua atitude final: "Portanto, eu me gloriarei ainda mais alegremente em minhas fraquezas, para que o poder de Cristo repouse em mim" (2Co 12:7-9).
Essa atitude de Paulo é um exemplo para nós. Tenham as tribulações do cristão o propósito ou não de provê-lo para o serviço futuro, elas terão pelo menos a mesma finalidade do espinho na carne de Paulo: nos foram enviadas para que nos tornemos e nos mantenhamos humildes, e para nos dar nova oportunidade de demonstrar o poder de Cristo na vida mortal. Será que precisamos saber mais que isso sobre elas? Não será isto suficiente para nos convencer de que a sabedoria divina está nelas? Assim que Paulo percebeu que seus problemas foram enviados para poder glorificar a Cristo, ele os aceitou como sabiamente ordenados e regozijou-se com eles. Que Deus nos ajude para que em todas as dificuldades possamos agir da mesma maneira.
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A SABEDORIA DE DEUS E A NOSSA
Quando os antigos teólogos reformados se referiam aos atributos divinos, costumavam classificá-los em dois grupos: incomunicáveis e comunicáveis.
No primeiro grupo colocavam as qualidades insignes da transcendência divina e mostravam a grande diferença existente entre ele e nós, suas criaturas. A lista comum era: independência (existência própria e auto-suficiência); imutabilidade (completamente livre de qualquer mudança, total constância de ação); infinitude (livre de todos os limites de tempo e espaço, isto é, eternidade e onipresença); simplicidade (não há nele nenhum elemento conflitante, pois, diferentemente dos homens, ele não é levado por pensamentos e desejos divergentes). Os teólogos denominaram estas qualidades incomunicáveis porque são características únicas de Deus, e o ser humano, justamente por ser humano, não pode partilhar de nenhuma delas.
No segundo grupo os teólogos reuniram qualidades como espiritualidade, liberdade e onipotência divinas a seus atributos morais — bondade, verdade, santidade, justiça etc. Qual foi o princípio dessa classificação? Foi o seguinte: Quando Deus fez o homem comunicou-lhe qualidades correspondentes a todas essas. É isso o que a Bíblia diz quando conta que Deus fez o homem a sua imagem (Gn 1:26) — isto é, que Deus fez o homem um ser espiritual, livre, agente moral responsável com poder de escolha e de ação, capaz de ter comunhão com ele e lhe corresponder, sendo por natureza bom, verdadeiro, santo, reto (Ec 7:29), em uma palavra, piedoso.
As qualidades morais pertencentes à imagem divina foram perdidas na Queda; a imagem de Deus no homem tem sido universalmente desfigurada, pois toda a humanidade, de um modo ou de outro, desvia-se para a impiedade. A Bíblia, porém, diz que agora, cumprindo seu plano de redenção, Deus age nos cristãos para reparar-lhes a imagem arruinada, transmitindo-lhes novamente essas qualidades. É esse o significado das Escrituras quando dizem que os cristãos são renovados à imagem de Cristo (2Co 3:18) e de Deus (Cl 3:10).
Entre os atributos comunicáveis, os teólogos incluíram a sabedoria. Assim como Deus é sábio em si mesmo, ele concede sabedoria aos seres humanos. A Bíblia fala bastante a respeito do dom divino da sabedoria. Os primeiros nove capítulos de Provérbios são uma exortação única e constante à busca desse dom. "O conselho da sabedoria é: Procure obter sabedoria; use tudo o que você possui para adquirir entendimento [...] Apegue-se à instrução, não a abandone; guarde-a bem, pois dela depende a sua vida" (Pv 4:7,13). A sabedoria é personificada e fala em causa própria:
Como é feliz o homem que me ouve, vigiando diariamente à minha porta, esperando junto às portas da minha casa. Pois todo aquele que me encontra, encontra a vida e recebe o favor do Senhor. Mas aquele que de mim se afasta a si mesmo se agride; todos os que me odeiam amam a morte.
Provérbios 8:34-36
Como uma hospedeira, a sabedoria convida os necessitados ao banquete: "Venham todos os inexperientes!" (Pv 9:4). A ênfase total está na pronta disposição de Deus de conceder sabedoria (representada aqui como a prontidão da sabedoria em se dar) a todos que quiserem esse dom e tomarem as providências necessárias para obtê-lo. Ênfase semelhante aparece no Novo Testamento. A sabedoria é requerida dos cristãos: "Tenham cuidado com a maneira como vocês vivem, que não seja como insensatos, mas como sábios [...] Portanto, não sejam insensatos, mas procurem compreender qual é a vontade do Senhor" (Ef 5:15,17), "Sejam sábios no procedimento para com os de fora [...]" (Cl 4:5). São feitas orações para que lhes seja concedida a sabedoria para que "... sejam cheios do pleno conhecimento da vontade de Deus, com toda a sabedoria [...] (Cl 1:9). Tiago, em nome de Deus, faz a promessa: "Se algum de vocês tem falta de sabedoria, peça-a a Deus [...] e lhe será concedida" (Tg 1:5).
Onde se pode obter sabedoria? Que passos são necessários para que uma pessoa tome posse desse dom? De acordo com as Escrituras há dois pré-requisitos.
1. Precisamos aprender a reverenciar a Deus. "O temor do Senhor é o princípio da sabedoria (SI 111:10; Pv 9:10; cf. Jó 28:28; Pv 1:7; 15:33). Não teremos em nós a sabedoria divina enquanto não nos tornarmos humildes e ensináveis, nos prostrarmos em temor diante da santidade e soberania de Deus ("Deus grande e temível"; Ne 1:5; cf. 4:14; 9:32; Dt 7:21; 10:17; Sl 99:3; Jr 20:11), reconhecermos nossa pequenez, abandonarmos nossos pensamentos e nos dispormos a ter a mente sacudida. É lamentável que muitos cristãos passem a vida inteira com uma disposição de espírito tão orgulhosa e soberba que jamais chegam a receber a sabedoria de Deus. Por isso a Bíblia diz: "[...] a sabedoria está com os humildes" (Pv 11:2).
2. Precisamos aprender a receber a palavra de Deus. A sabedoria é divinamente forjada naqueles que se concentram na revelação divina, e apenas neles. "Os teus mandamentos me tornam mais sábio que os meus inimigos", diz o salmista, "Tenho mais discernimento que todos os meus mestres". Por quê? "Pois medito nos teus testemunhos" (Sl 119:98,99).
Paulo assim admoesta os colossenses: "Habite ricamente em vocês a palavra de Cristo [...] com toda a sabedoria [...]" (Cl 3:16). Como podemos nós, pessoas do século xxi, fazer isso? Impregnando-nos das Escrituras, que, como Paulo disse a Timóteo (e ele tinha em mente apenas o Antigo Testamento!), são "capazes de torná-lo sábio para a salvação", pela fé em Cristo e para tornar perfeito o homem de Deus "para toda boa obra" (2Tm 3:15-17).
Mais uma vez, é temerário que muitas pessoas hoje alegadamente cristãs nunca aprenderão a sabedoria por falhar em atender suficientemente à Palavra escrita de Deus. O lecionário do Livro de oração comum de Cran-mer1 (que todos os anglicanos devem seguir) indica a leitura do Antigo Testamento uma vez por ano e a do Novo Testamento duas. O puritano William Gouge2 lia regularmente quinze capítulos por dia. O falecido ar-quidiácono anglicano Thomas C. Hammond costumava ler a Bíblia toda uma vez por trimestre. Quanto tempo faz que você leu a Bíblia inteira? Você gasta diariamente com a Bíblia tanto tempo quanto com os jornais? Como alguns de nós somos tolos! — e permaneceremos assim pelo resto da vida simplesmente porque não nos preocupamos com o que deve ser feito para receber o dom divino gratuito da sabedoria.
O QUE A SABEDORIA NÃO É
Que tipo de coisa é, afinal, o dom da sabedoria de Deus? Que efeito produz em uma pessoa?
Muitos se enganam neste ponto. Podemos tornar bem clara a natureza deste erro usando uma ilustração. Se você ficar em pé no fim da plataforma de uma estação, observará o movimento constante de locomotivas e
1Thomas Cranmer (1489-1556), arquidiácono de Taunton, foi favorável ao divórcio do rei Henrique viii. Em 1533, foi indicado para arcebispo da Cantuária. Sempre será lembrado como o responsável pela primeira edição do Livro de oração comum, em 1549. Envolvido em assuntos políticos do reino, acusado de sedição e traição, foi aprisionado na torre de Londres. Sua vida e morte estão pautadas por declarações e retratações. Morreu queimado por ordem da coroa inglesa.
2William Gouge (1575-1653) foi ordenado ministro aos 32 anos e pastoreou a mesma congregação durante quarenta anos. Escritor e mestre renomado, foi indicado em 1643, por voto do Parlamento, para participar da Assembléia de Westminster.
trens. Se você gostar de ferrovias, ficará fascinado. Entretanto você poderá apenas ter uma idéia geral e superficial dos planos gerais que determinam esses movimentos (o programa de operação estabelecido na tabela de horários, modificada, se necessário, de minuto em minuto de acordo com o movimento real dos trens).
Se, entretanto, você tiver o privilégio de ser levado por algum chefe para dentro da cabine de comando, poderá observar em uma grande parede o diagrama de toda a linha férrea por cerca de oito quilômetros de distância dos dois lados da estação, com pequeninas luzes móveis ou paradas nos diferentes trilhos para mostrar ao sinaleiro apenas com o olhar onde cada máquina ou trem se encontra. Você poderá observar imediatamente a situação geral pelos olhos dos homens que a controlam; verá no diagrama por que um trem recebeu um sinal de parada, outro foi desviado dos trilhos normais e outro, ainda, estacionou temporariamente em uma linha lateral. O porquê de todos esses movimentos torna-se claro uma vez que se possa observar a situação geral.
O erro comumente cometido, porém, é supor que esta seja uma ilustração do que Deus faz quando nos dá sabedoria: em outras palavras, supor que o dom da sabedoria consiste em uma visão mais profunda do significado e propósito providenciais dos acontecimentos que se desenrolam ao nosso redor. A capacidade de ver por que Deus agiu de tal modo em determinado caso, e o que fará a seguir.
As pessoas pensam que se estivessem realmente andando junto a Deus, de modo que ele lhes concedesse livremente a sabedoria, estariam, por assim dizer, na cabine de comando. Descobririam o propósito real de tudo o que lhes acontece e lhes ficaria claro em todos os momentos como Deus age para que todas as coisas aconteçam para o bem. Tais pessoas gastam muito tempo debruçadas sobre o livro da providência, imaginando por que Deus permitiu a ocorrência disto ou daquilo; se deveriam tomar isso como sinal para deixar de fazer alguma coisa e começar a agir de outro modo, ou o que devem deduzir disso tudo. Se no final ficam frustradas, tomam isso como falta de espiritualidade.
Os cristãos que sofrem de depressão física, mental ou espiritual (note, são três coisas diferentes!) podem ficar quase loucos com este tipo de indagação -inútil. Porque na realidade é inútil, não tenha nenhuma dúvida a respeito. É verdade que quando Deus nos dirige pela aplicação de princípios, poderá em alguma ocasião confirmar tal direção por providências incomuns reconhecidas imediatamente como sinais comproba-tórios. Mas isto é bem diferente de tentar extrair uma mensagem sobre os propósitos secretos de Deus mediante todas as coisas incomuns que nos possam acontecer. Assim, em lugar de o dom da sabedoria consistir no poder para fazer isso, o que ele de fato pressupõe é nossa incapacidade consciente para fazê-lo, como veremos a seguir.
Realismo necessário
Perguntamos mais uma vez: Com que finalidade Deus nos outorga sabedoria? Que espécie de dom é esse?
Se me permitem usar outra ilustração sobre transporte, é como aprender a dirigir. O que interessa quando se dirige é velocidade, reação apropriada aos estímulos e firmeza de julgamento a respeito da oportunidade oferecida pela situação. Você não fica se perguntando por que a estrada deveria ser estreita ou cheia de curvas justamente naquele lugar, nem por que aquele caminhão deveria estar estacionado onde está, nem por que a senhora (ou o cavalheiro) na frente dirige como se fosse o dono da estrada. Você apenas tenta ver e tomar a atitude certa na situação apresentada. O efeito da sabedoria divina é capacitar-nos a fazer exatamente a mesma coisa nas situações reais da vida diária.
Para dirigir bem, você deve ficar atento para perceber com exatidão o que está a sua frente. Para viver sabiamente, você precisa ter uma visão clara e real da vida como ela é de fato. A sabedoria não combina com ilusões confortadoras, falsos sentimentos nem com o uso de óculos cor-de-rosa. A maioria de nós vive no mundo dos sonhos, com a cabeça nas nuvens e os pés fora do chão; nunca vemos o mundo e nossa vida nele como são de fato. Essa irrealidade arraigada e pecaminosa é uma das razões de haver tão pouca sabedoria entre nós, mesmo entre os mais conservadores e ortodoxos. É preciso mais que sã doutrina para nos curar da irrealidade.
Há, entretanto, um livro na Bíblia expressamente indicado para nos tornar realistas: o livro de Eclesiastes. Devemos prestar mais atenção a sua mensagem do que normalmente o fazemos. Vejamos agora, por um momento, qual é essa mensagem.
0 ensino de Eclesiastes
"Eclesiastes" (título grego correspondente ao hebraico qohelet) significa simplesmente "o pregador". O livro é um sermão, com um texto ("Que grande inutilidade! [...]" 1:2; 12:8), exposição de seu tema (caps.
1 a 10) e uma aplicação (11:1—12:7). Muitas das exposições são autobiográficas. Qohelet se identifica como o "filho de Davi, rei em Jerusalém" (1:1). Não devemos nos preocupar se isso quer dizer que o próprio Salomão era o pregador, ou que o pregador pôs seu sermão nas palavras de Salomão como um artifício didático — como estudiosos tão conservadores como Hengstenberg3 e Edward J. Young4 têm argumentado. O sermão é certamente salomônico no sentido de que ensina lições que Salomão teve oportunidades singulares para aprender.
"Que grande inutilidade! diz o mestre. Que grande inutilidade! Nada faz sentido." Com que espírito e com que propósito o pregador anuncia este texto? Trata-se da confissão de um cínico amargurado, "um velho homem do mundo, egoísta e calejado que nada encontrou no final além de triste desilusão" (W. H. Elliot) e que agora procura compartilhar
3Ernst Wilhelm Hengstenberg (1802-1869). Ministro e teólogo luterano de origem alemã. Devotado principalmente ao estudo da filosofia e da filologia, fez diversas traduções de obras clássicas para o alemão. Posteriormente, passou a estudar a Bíblia e licenciou-se em teologia pela Universidade de Berlim, dedicando-se a protestar contra toda forma de racionalismo, principalmente a respeito da crítica do Antigo Testamento.
4Edward J. Young (1907-1968) foi um destacado estudioso do Antigo Testamento. Lecionou no Westminster Theological Seminary na Filadélfia (eua) e se tornou o principal acadêmico na área de hebraico. Reconhecido internacionalmente como um dos maiores defensores da inerrância bíblica.
conosco a idéia sobre o pouco valor e torpeza da vida? Ou está nos falando como evangelista, tentando fazer que os descrentes compreendam que é impossível encontrar a felicidade "debaixo do sol", longe de Deus? Nenhuma das duas é a resposta, embora a segunda sugestão não esteja tão longe do objetivo quanto a primeira.
O autor fala como um professor maduro que transmite ao jovem aluno os frutos de sua longa experiência e reflexão (11:9; 12:1,12). Ele quer levar este jovem crente à verdadeira sabedoria e protegê-lo para que não caia no engano da "cabine de comando". Aparentemente o jovem (como muitos depois dele) estava inclinado a confundir sabedoria com grande conhecimento e a supor que sabedoria se adquire pelo estudo contínuo (12:12). Ele afirma claramente que a sabedoria, quando adquirida, o levaria a conhecer as razões das diversas atitudes de Deus no curso normal da providência.
O que o pregador quer mostrar ao jovem é que a base real da sabedoria é o reconhecimento sincero de que o curso do mundo é enigmático, que muitos acontecimentos são inexplicáveis e muitas das ocorrências "debaixo do sol" não têm nenhum sinal exterior de uma ordem racional e moral para elas.
Como o próprio sermão demonstra, o texto é planejado como advertência contra a equivocada busca do entendimento, pois apresenta a conclusão desanimadora a que deve afinal chegar essa busca, se for feita com sinceridade e realismo. Podemos formular a mensagem do sermão como segue:
Veja (diz o pregador) em que tipo de mundo vivemos. Tire seus óculos cor-de-rosa, esfregue os olhos e olhe bem e longamente. O que você vê? Vê o cenário da vida determinado por ciclos periódicos na natureza que parecem não ter propósito (1:4-7). Vê sua forma fixada por tempos e circunstâncias sobre as quais não temos controle algum (3:1-8; 9:11,12). Vê a morte chegando para todos, mais cedo ou mais tarde, e sua vinda não tem relação alguma com nenhum merecimento (7:15; 8:8). Os homens morrem como os animais (3:19,20), tanto os bons como os maus, tanto os sábios como os ignorantes (2:14,16; 9:2,3). Você vê o mal crescendo desmedidamente (3:16; 4:1; 5:8; 8:11; 9:3), os ímpios prosperando, mas não os justos (8:14).
Ao ver tudo isso, você percebe como a disposição que Deus dá aos acontecimentos é inescrutável; por mais que queira entender, você não consegue (3:11; 7:13,14; 8:17; 11:5). Quanto maior for seu esforço para entender o propósito divino na decorrência normal dos acontecimentos, mais obcecado e oprimido ficará com a aparente falta de propósito de tudo, e mais tentado ficará ao concluir que a vida na verdade não tem razão de ser.
Entretanto, uma vez que você tenha concluído que não há de fato explicação aparente para nada, que "proveito" — valor, lucro, sinal, propósito — poderá encontrar então em qualquer esforço construtivo (1:3; 2:11,22; 3:9; 5:16)? Se a vida é sem sentido, também não possui valor algum. Nesse caso, qual a vantagem de trabalhar para criar coisas, desenvolver um negócio, ganhar dinheiro e até mesmo buscar a sabedoria se nada disso trará algum benefício (2:15,16,22,23; 5:11)? Se apenas o tornará motivo de inveja (4:4). Se você não poderá levar nenhuma dessas coisas consigo (2:18-21; 4:8; 5:15,16), e o que deixar aqui provavelmente será mal dirigido depois de sua partida (2:19). Que vantagem há, portanto, em suar e trabalhar tanto? Não deve todo o trabalho do ser humano ser julgado "inútil (frustração, vazio)" e equivalente a "correr atrás do vento" (1:14)? — atividade que não tem nenhum valor em si mesma nem para nós?
É a esta conclusão pessimista, diz o pregador, que a expectativa otimista de descobrir o propósito divino em todas as coisas finalmente o levará (1:17,18). E é claro que ele está certo, pois o mundo em que vivemos é por sinal o tipo de lugar descrito. O Deus que rege tudo se esconde. Raramente este mundo se parece com um lugar dirigido pela Providência benevolente. Raramente parece haver um poder racional por trás dele. Repetidas vezes o que é sem valor sobrevive enquanto o valoroso perece. Seja realista, diz o pregador, enfrente os fatos, veja a vida como ela é. Você não terá a verdadeira sabedoria enquanto nãc fizer isso.
Muitos de nós precisamos dessa admoestação. Não apenas o nossc conceito é o da "cabine de comando" a respeito da sabedoria, come sentimos que para a honra de Deus (e também, embora não digamos isso, por causa de nossa reputação de cristãos espirituais) é necessário afirmar que já estamos, por assim dizer, na cabine de comando, aqui e agora, desfrutando das informações internas de como e por que Deus age de tal e tal maneira. Esta confortadora pretensão se torna parte de nós. Temos a certeza da capacitação divina para entender todas as suas atitudes para conosco e para com os que nos rodeiam, e nos sentimoí seguros de ser capazes de ver rapidamente as razões para tudo o que nos possa acontecer no futuro.
Então alguma coisa inexplicável e muito dolorosa nos acontece, e nossa alegre ilusão de participar do conselho secreto de Deus é abalada. Nosso orgulho é ferido, sentimos o desprezo divino, e a menos que neste ponto nos arrependamos e humilhemos completamente de nossa antiga presunção, toda nossa vida espiritual futura pode ser arruinada.
Entre os sete pecados capitais da tradição medieval estava a preguiça {acedia) — um estado de apatia espiritual obstinada e sem alegria. Há muito disso nos círculos cristãos modernos. Os sintomas são inércia espiritual pessoal combinada com crítica cínica sobre as igrejas e ressentimentos desdenhosos pela iniciativa e empreendimento de outros cristãos
Atrás dessa condição mórbida e mortal não raro encontramos o orgulho ferido de alguém que pensou saber tudo a respeito de como Deus age e precisou aprender sobre sua ignorância por meio de uma experiência amarga e surpreendente. Isto é o que acontece quando não se dá atenção à mensagem de Eclesiastes. A verdade é que o Deus sábio, para manter-nos humildes e nos ensinar a andar pela fé, escondeu de nós quase tudo o que gostaríamos de saber a respeito do propósito providencial que ele realiza nas igrejas e em nossa vida.
Assim como você não conhece o caminho do vento, nem como o corpo é formado no ventre de uma mulher, também não pode compreender as obras de Deus, o Criador de todas as coisas (11:5).
Mas, nesse caso, o que é sabedoria? O pregador nos ajudou a ver o que ela não é. Será que nos dará alguma orientação sobre o que é? Na verdade ele pelo menos nos dá um esboço: "Tema a Deus e obedeça aos seus mandamentos" (12:13). Confie nele e obedeça-lhe, respeite-o e adore-o, seja humilde diante dele e nunca diga mais que o necessário e que pretende cumprir quando ora diante dele (5:1-7). Faça o bem (3:12); lembre-se de que Deus algum dia lhe pedirá contas (11:9; 12:14). Evite então, mesmo em segredo, coisas das quais se envergonhará quando vierem à luz, no dia do juízo divino (12:14).
Viva no presente, e desfrute completamente sua condição (7:14; 9:7; 11:9); as alegrias de agora são boas dádivas divinas. Embora Eclesiastes condene a frivolidade (7:4-6), está claro que ele não se atém à superespiritualidade que é excessivamente orgulhosa ou "piedosa" para rir ou se alegrar. Busque a graça para realizar corretamente qualquer coisa que a vida lhe ofereça (9:10) e tenha prazer nesse trabalho (2:24; 3:12; 5:18; 8:15). Deixe os resultados por conta de Deus; deixe a avaliação com ele; sua parte é usar todo o bom senso e criatividade a seu comando para explorar as oportunidades apresentadas (11:1-6).
Esse é o caminho da sabedoria — sem dúvida um dos aspectos da vida de fé. Qual é a base da sabedoria, o que a sustenta? A convicção de que o inescrutável Deus da providência é o sábio e gracioso Deus da criação e da redenção. Podemos estar seguros de que o Deus criador deste mundo tão complexo e maravilhosamente ordenado, que tirou seu povo do Egito e mais tarde o redimiu do poder do pecado e de Satanás, sabe o que está fazendo, mesmo que no momento mantenha a mão oculta. Podemos confiar e nos regozijar nele, mesmo quando não pudermos discernir seus caminhos. Assim o caminho do pregador para a sabedoria se resume no que foi expresso por Richard Baxter:
Ó santos, que aqui labutais, Adorai vosso Rei celestial! Enquanto adiante avançais,
Cantai algum hino jovial!
Tomai o que ele vos dá,
E ao Senhor louvor prestai,
No dia do bem e do "ai"
A quem eterna vida há!
O FRUTO DA SABEDORIA
Essa é então a sabedoria com a qual Deus nos torna sábios. Quando a analisamos, vemos ainda mais a sabedoria do Deus que a concede. Dissemos que a sabedoria consiste em saber escolher os melhores meios para atingir os melhores fins. A ação de Deus dando-nos a sabedoria é o modo por ele escolhido para restaurar e aperfeiçoar o relacionamento entre ele mesmo e o ser humano, que para isso foi criado. Para que ele nos dá essa sabedoria? Como já vimos, não compartilhamos seus conhecimentos. Trata-se da disposição para confessar sua sabedoria, apegarmo-nos a ele e viver para ele à luz de sua palavra em meio às dificuldades.
Assim, o resultado do dom da sabedoria é tornar-nos mais humildes, mais alegres, mais piedosos, mais rápidos em compreender-lhe a vontade, mais resolutos em realizá-la e menos preocupados (não menos sensíveis, mas menos confusos) do que ficamos nas situações dolorosas e obscuras que enfrentamos neste mundo pecaminoso. O Novo Testamento nos fala que o fruto da sabedoria é a semelhança com Cristo: paz, humildade e amor (Tg 3:17), e a raiz disso é a fé em Cristo (1Co 3:8; 2Tm 3:15) como manifestação da sabedoria divina (1Co 1:24,30).
Dessa forma, o tipo de sabedoria que Deus espera conceder a quem lhe pedir é a sabedoria que nos une a ele, que encontrará expressão no espírito de fé e na vida de felicidade.
Procuremos então tornar nossa busca por sabedoria na procura por essas coisas, e não frustremos o sábio propósito de Deus negligenciando a fé e a fidelidade a fim de procurar um tipo de conhecimento que não nos será dado neste mundo.
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A TUA PALAVRA É A VERDADE
Dois fatos sobre o Jeová triúno são sugeridos, senão realmente afirmados, em todas as passagens bíblicas. Primeiro: ele é rei — monarca absoluto do universo, determinando todas suas ocorrências, realizando sua vontade em tudo o que acontece nele. Segundo: ele fala — proferindo palavras que expressam sua vontade a fim de que esta seja realizada.
O primeiro tema sobre o governo de Deus foi abordado em capítulos anteriores. É o segundo tema, a palavra de Deus, que nos interessa agora. O estudo deste tema aumentará nossa compreensão do primeiro, pois assim como as relações de Deus com seu mundo devem ser entendidas em termos de sua soberania, esta deve ser entendida em termos do que a Bíblia nos diz a respeito de sua palavra.
No curso normal dos acontecimentos, governantes absolutos, como todos os reis do mundo antigo, falavam regularmente em dois níveis e por duas razões. Por um lado decretavam normas e leis que definiam diretamente o ambiente — judicial, fiscal e cultural — no qual seus súditos deveriam viver dali em diante. Por outro lado, faziam discursos públicos, a fim de estabelecer, tanto quanto possível, uma ligação pessoal entre eles e seus súditos e extrair deles apoio e cooperação máximos para todas as realizações.
A Bíblia apresenta a palavra de Deus como tendo um caráter duplo semelhante a esse. Deus é o rei; nós, suas criaturas, somos seus súditos. Sua palavra se refere tanto às coisas que nos rodeiam como diretamente a nós; Deus fala para determinar nosso ambiente e para atrair-nos mente e o coração.
Na primeira associação, a esfera da criação e da providência, a palavra de Deus toma a forma de uma ordem soberana: "façamos...". Na última conexão, a esfera na qual a palavra de Deus nos é endereçada pessoalmente, a palavra toma a forma da torah real (a palavra hebraica traduzida por lei em nosso Antigo Testamento, que na realidade implica instrução — em todas suas múltiplas formas). A torah de Deus, o rei, apresenta um caráter triplo: parte dela é lei (no sentido restrito de ordens
ou proibições, com as sanções incluídas); outra parte é promessa (favorável ou desfavorável, condicional ou incondicional); outra ainda é testemunho (informações dadas por Deus sobre si mesmo e sobre as pessoas — seus respectivos atos, objetivos, naturezas e perspectivas).
A palavra que Deus nos dirige diretamente (semelhante à fala real, mas com muito mais valor) é instrumento não apenas de governo mas também de comunhão, pois, embora Deus seja o grande rei, não é seu desejo viver distante dos súditos. Ao contrário, ele nos criou com a intenção de podermos andar juntos para sempre em um relacionamento amistoso, que só pode existir quando as partes envolvidas se conhecem mutuamente.
Deus, nosso Criador, sabe tudo a nosso respeito antes que digamos qualquer coisa (Sl 139:1-4), mas nós nada poderemos saber a seu respeito a menos que ele nos diga. Aqui está, por conseguinte, outra razão para Deus falar conosco: não apenas para nos levar a fazer o que ele deseja, mas para poder conhecê-lo e assim amá-lo. Deus, portanto, nos envia sua palavra tanto em caráter informativo como invitatório. Ela vem não só para persuadir, mas também para instruir; ela não apenas nos fez ver o que Deus tem feito e ainda faz, mas também nos chama à comunhão pessoal com o Senhor, que nos ama.
O Deus que fala
Encontramos a palavra de Deus em suas várias relações nos três primeiros capítulos da Bíblia. Veja primeiro a história da criação, em Gênesis 1.
Parte do propósito desse capítulo é nos assegurar de que cada item que nos rodeia foi colocado ali por Deus. O primeiro versículo apresenta o tema exposto no resto do capítulo — "No princípio Deus criou os céus e a terra". O segundo versículo apresenta a circuntância dos acontecimentos de modo a mostrar uma análise detalhada da ação de Deus. Tratava-se de uma situação em que a terra era vazia, sem vida, escura e totalmente coberta de água. Então o versículo 3 nos diz como Deus falou no meio desse caos e esterilidade.
"Disse Deus: 'Haja luz'", e o que aconteceu? Imediatamente "houve luz". Mais sete vezes (v. 6,9,11,14,20,24,26) a palavra criadora de Deus "haja..." foi pronunciada, e passo a passo as coisas começaram a ser feitas e ordenadas. Dia e noite (v. 5), céu e mar (v. 6), mar e terra (v. 9) foram separados. Vegetação (v. 12), corpos celestes (v. 14), peixes e aves (v. 20), insetos e animais (v. 24) e finalmente o ser humano (v. 26) apareceram. Tudo foi feito pela palavra de Deus (Sl 33:6, 9; Hb 11:3; 2Pe 3:5).
A história, porém, atinge agora outro estágio. Deus fala com o homem e com a mulher que ele fizera. "Deus [...] lhes disse [...]" (v. 28). Aqui Deus se dirige diretamente aos seres humanos, e assim começou a amizade entre Deus e eles. Note as mudanças que vão ocorrendo nas ordens de Deus ao ser humano na história. A primeira palavra de Deus a Adão e a Eva foi de comando, convocando-os a cumprir a vocação da humanidade de dirigir a ordem criada. "Sejam férteis [...] Dominem [...]" v. 28). Segue depois uma palavra de testemunho ("Eis [...]" v. 29) em que Deus explica que toda vegetação, colheita e frutos foram feitos para alimentar pessoas e animais. Encontramos, a seguir, uma proibição com a devida penalidade: "mas não coma da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comer, certamente você morrerá" (2:17).
Finalmente, depois da queda, Deus se aproxima de Adão e Eva e lhes fala outra vez, e agora suas palavras são de promessa, favorável e desfavorável. Se, de um lado, diz que a semente da mulher esmagará a cabeça da serpente, de outro determina o sofrimento de Eva no parto, o trabalho frustrante de Adão e a morte certa para ambos (3:15-19).
Aqui, no ritmo destes três curtos capítulos, vemos a palavra de Deus em todas as relações que ela mantém com o mundo e com o ser humano. De um lado, determina as circunstâncias e o ambiente do homem, de outro ordena que o homem obedeça, solicita-lhe a confiança e abre-lhe a mente do Criador. No resto da Bíblia vemos muitas novas ordenanças de Deus, mas nenhuma outra categoria de relacionamento entre a palavra de Deus e suas criaturas. Em vez disso, a apresentação da palavra de Deus em Gênesis 1 a 3 é reiterada e confirmada.
Portanto, a Bíblia inteira declara que todas as circunstâncias e todos os acontecimentos no mundo são determinados pela palavra de Deus, o Criador onipotente: "Haja...". As Escrituras descrevem tudo o que acontece como cumprimento da palavra de Deus, desde alterações climáticas (Sl 147:15-18; 148:8) até a ascensão e o declínio das nações. O fato de que a palavra divina realmente determina os eventos mundiais foi a primeira lição que Deus ensinou a Jeremias quando o chamou para profeta: "Veja! Eu hoje dou a você autoridade sobre as nações e reinos, para arrancar, despedaçar, arruinar e destruir; para edificar e plantar" (Jr 1:10).
Mas como poderia ser isso? O chamado de Jeremias não era para que ele se tornasse diplomata ou alguém poderoso, mas para ser profeta, o mensageiro de Deus (v. 7). Como poderia um homem sem nenhuma posição oficial, cujo único trabalho seria falar, ser descrito como juiz das nações indicado por Deus? Apenas por ter na boca a palavra de Deus (v. 9). Todas as palavras que Deus lhe deu sobre o destino das nações seriam certamente cumpridas. Para que isso ficasse bem fixado na mente de Jeremias, Deus lhe proporcionou a primeira visão: '"O que você vê, Jeremias?' Vejo o ramo de uma amendoeira (shaqed) [...] Você viu bem: pois estou vigiando (shoqed) para que a minha palavra se cumpra'" (Jr 1:11,12).
Por meio de Isaías, Deus proclamou a mesma verdade desta forma: "Assim como a chuva e a neve descem dos céus e não voltam para eles sem regarem a terra e fazerem-na brotar e florescer [...] assim também ocorre com a palavra que sai da minha boca: ela não voltará para mim vazia, mas fará o que desejo..." (Is 55:10,11). A Bíblia toda mantém a afirmação de que a palavra de Deus é seu instrumento executivo em todos os assuntos humanos. A respeito dele e de ninguém mais, é verdade que o que ele diz acontece. Na verdade, é a palavra de Deus que governa o mundo e que determina nosso destino.
A Bíblia coerentemente apresenta a palavra de Deus vindo a nós das três maneiras como foi expressa no jardim do Éden. Às vezes nos chega como lei — no Sinai, em diversos sermões dos profetas, em muitos ensinamentos de Cristo, na ordem evangélica para o arrependimento (At 17:30) e para crer no Senhor Jesus Cristo (1Jo 3:23). Às vezes ela vem como promessa — como na promessa da posteridade e na aliança feita com Abraão (Gn 15:5; 17:1-8), a promessa de redenção no Egito (Êx 3:7-10), a promessa do Messias (Is 9:6,7; 11:1,2) e do Reino de Deus (Dn 2:44; 7:14) e no Novo Testamento promessas da justificação, ressurreição e glorificação para os cristãos.
Às vezes ela vem mais uma vez como testemunho — a instrução divina a respeito dos fatos da fé e dos princípios da piedade na forma de narração histórica, argumento teológico, salmo e sabedoria. O fato de o chamado da palavra de Deus ser para nós absoluto é sempre ressaltado: devemos receber a palavra, confiar nela e obedecer-lhe porque é a palavra de Deus, o Rei. A essência da impiedade é a obstinação orgulhosa deste "povo ímpio, que se recusa a ouvir as minhas palavras" (Jr 13:10). A marca da verdadeira humildade e piedade está em que a pessoa "treme diante da minha palavra" (Is 66:2).
Verdade absoluta
O que a palavra de Deus requer de nós, no entanto, não depende apenas de nosso relacionamento com ele como criaturas e súditos. Devemos crer e obedecer, não apenas porque ele nos diz que o façamos, mas também e primeiramente por ser uma palavra verdadeira. Seu autor é o "Deus da verdade" (Sl 31:5; Is 65:16), "cheio de amor e de fidelidade" (Êx 34:6). Tua "fidelidade alcança as nuvens" (Sl 108:4; cf. 57:10), isto é, ela é universal e ilimitada. Portanto sua "palavra é a verdade" (Jo 17:17); "as tuas justas ordenanças são eternas" (Sl 119:160); "tu és Deus! Tuas palavras são verdadeiras" (2Sm 7:28).
A verdade na Bíblia é primariamente uma qualidade pessoal e só em segundo lugar propositiva: isso significa estabilidade, confiança, firmeza, fidelidade, a qualidade da pessoa inteiramente coerente, sincera, realista, que não se deixa enganar. Deus é tal pessoa. A verdade, neste sentido, é sua natureza, e não há nele possibilidade de ser qualquer outra coisa. Por isso ele não pode mentir (Tt 1:2; Nm 23:19; 1Sm 15:29; Hb 6:18). Por isso suas palavras para nós são verdadeiras e não podem ser nada senão a verdade. Elas são o sumário da realidade: mostram-nos as coisas como realmente são, e como serão para nós no futuro de acordo com a atenção que dermos ou não à palavra de Deus.
Vamos estudar um pouco mais esse assunto em duas associações.
1. As ordens de Deus são verdadeiras. "Todos os teus mandamentos são verdadeiros" (Sl 119:151). Por que eles são descritos dessa forma? Primeiro, porque têm constância e continuidade como que mostrando o que Deus quer ver nas pessoas em qualquer época; segundo, porque nos falam da verdade imutável sobre nossa natureza. Isto é parte do propósito da lei de Deus; ela nos fornece uma definição prática da verdadeira humanidade. Mostra-nos a finalidade da vida e nos ensina como ser verdadeiramente humanos e nos adverte contra a autodestruição moral. Trata-se de um assunto de grande importância e que exige muita atenção nos dias atuais.
Estamos acostumados com a idéia de que nossos corpos são máquinas e que precisam seguir uma rotina determinada de alimentação, repouso e exercício se quisermos que funcione eficientemente. O corpo está sujeito a perder a capacidade de funcionamento saudável se abastecido com o combustível errado: álcool, venenos, drogas, terminando por "engripar" de vez na morte física. O que talvez tenhamos mais dificuldade para entender é que Deus deseja que pensemos em nossa alma de modo semelhante.
Como pessoas racionais, fomos criados para ter a imagem moral de Deus, isto é, nossa alma foi feita para "funcionar" praticando a adoração, a observação das leis, a fidelidade, a honestidade, a disciplina, o auto-controle e para servir a Deus e ao próximo. Se abandonarmos essas práticas, não apenas seremos culpados diante de Deus, mas também destruiremos progressivamente nossa alma. A consciência se atrofia, o senso de vergonha desaparece, a capacidade de ser fiel, leal e honesto é destruída, e o caráter se desintegra. Tornamo-nos não apenas desespera-damente miseráveis, mas somos gradualmente desumanizados. Este é um aspecto da morte espiritual. Richard Baxter estava certo ao formular a alternativa, como "Um santo ou um bruto": essa, no final, é a única escolha; e todos, cedo ou tarde, consciente ou inconscientemente, optarão por uma ou pela outra alternativa.
Hoje em dia, algumas pessoas sustentarão, em nome do humanismo, que a moralidade sexual "puritana" da Bíblia é prejudicial para se alcançar a verdadeira maturidade humana, e que um pouco mais de liberdade torna a vida mais rica. O nome exato para essa ideologia, em nossa opinião, não é humanismo, mas brutismo. A lassidão sexual não o tornará mais humano; em vez disso o tornará menos humano. Ela o brutalizará e dilacerará sua alma. A mesma coisa acontece sempre que qualquer mandamento de Deus é desrespeitado. Viveremos de forma realmente humana apenas enquanto estivermos nos esforçando para guardar os mandamentos de Deus. Não há outro modo.
2. As promessas de Deus são verdadeiras, pois ele as cumpre."... aquele que prometeu é fiel" (Hb 10:23). A Bíblia proclama em termos super-lativos a fidelidade de Deus. "... a tua fidelidade (chega) até às nuvens" (Sl 36:5); "A tua fidelidade é constante por todas as gerações" (Sl 119:90); "grande é a sua fidelidade!" (Lm 3:23).
Como a fidelidade de Deus se apresenta? Pelo infalível cumprimento de suas promessas. Ele é o Deus que mantém a aliança; ele nunca engana quem confia em sua palavra. Abraão provou a fidelidade de Deus, esperando por um quarto de século, com idade avançada, pelo nascimento do herdeiro prometido, e milhões mais a têm provado desde então.
Nos dias em que a Bíblia era universalmente reconhecida nas igrejas como "A Palavra escrita de Deus", entendia-se claramente que as promessas divinas registradas nas Escrituras eram a base própria, dada por Deus, para toda uma vida de fé. O modo de fortalecer a fé era se concentrar em determinadas promessas que se aplicavam às condições do indivíduo. Samuel Clark,1 um puritano moderno escreveu na introdução de sua obra Scripture promisses; or,
the Christian's inheritance: a collection of the promises of Scripture under their proper heads [Promessas das Escrituras ou a herança cristã: uma coleção de promessas das Escrituras classificadas por assunto]:
A atenção fixa e constante às promessas e a crença firme nelas poderiam evitar a preocupação e a ansiedade quanto aos problemas desta vida. Poderia manter a mente quieta e serena em qualquer mudança e sustentar e manter nosso espírito decadente sob as diversas dificuldades da vida... Os cristãos negam a si mesmos os mais sólidos confortos pela descrença e esquecimento das promessas de Deus. Pois não há situação tão desesperadora para a qual não exista uma promessa adequada e perfeitamente capaz de trazer alívio.
O conhecimento total das promessas seria de grande vantagem para a oração. Com que segurança o cristão pode dirigir-se a Deus em Cristo quando considera as repetidas afirmações de que suas preces serão ouvidas! Com que alegria pode apresentar os desejos de seu coração quando se lembra dos textos onde é prometida a misericórdia! E com que fervor de espírito e grande fé pode reforçar suas orações apoiando-se nas promessas feitas graciosamente e que se aplicam a seu caso!
Estas coisas costumavam ser entendidas, mas a teologia liberal, com sua recusa em identificar as Escrituras escritas com a palavra de Deus, tem-nos
1Destacado estudioso da Bíblia (1684-1750), era descendente de uma longa linhagem de ministros puritanos. Foi ordenado na Capela Dagnall Lane, freqüentada por muito pastores dissidentes. Tornou-se conhecido pela dedicação ao ministério e por fundar escolas de caridade para crianças (que permaneceram em operação por mais de cem anos).
privado largamente do hábito de meditar sobre as promessas e de basear nelas nossas orações, aventurando-nos pela fé na vida diária até aonde as promessas nos levarão. As pessoas hoje em dia zombam das caixinhas de promessa que nossos avós usavam, o que não é uma atitude sábia. As caixas de promessas podem ter sido usadas de modo errado, mas a abordagem das Escrituras e da oração que elas expressavam estava certa. Trata-se de uma perda que devemos recuperar.
Crer e observar
O que é um cristão? Ele pode ser descrito sob muitos ângulos, mas partindo-se do que dissemos é claro que resumiremos tudo ao dizer; é alguém que conhece e vive sob a palavra de Deus. É quem se submete sem reservas à palavra de Deus escrita no "Livro da Verdade" (Dn 10:21), crê nos ensinamentos, confia nas promessas e segue os mandamentos. Seus olhos vêem o Deus da Bíblia como seu Pai, e o Cristo da Bíblia como seu Salvador.
Se você lhe perguntar ele dirá que a palavra de Deus o convenceu de seu pecado e também lhe deu a garantia do perdão. Sua consciência, como a de Lutero, é cativa à palavra de Deus, e ele aspira como o salmista a pautar sua vida de acordo com ela. "Quem dera fossem firmados os meus caminhos na obediência aos teus decretos [...] não permitas que eu me desvie dos teus mandamentos [...] ensina-me os teus decretos. Faze-me discernir o propósito dos teus preceitos [...] Inclina o meu coração para os teus estatutos [...] Seja o meu coração íntegro para com os teus decretos" (Sl 119:5,10,26,27,36,80). As promessas estão diante dele enquanto ora e os preceitos estão à sua frente quando se move entre as pessoas.
O cristão sabe que além de a palavra de Deus ter sido dirigida diretamente a ele por meio das Escrituras, ela também foi proferida a fim de criar, controlar e ordenar as coisas que o rodeiam. Entretanto como as Escrituras lhe dizem que todas as coisas contribuem juntamente para o seu bem, a idéia de Deus ordenar todas as circunstâncias só lhe traz alegria. Ele é uma pessoa independente, pois usa a palavra de Deus como uma pedra de toque pela qual testa as diversas idéias que lhe são apresentadas e não aceitará coisa alguma sem ter certeza da aprovação das Escrituras.
Por que esta descrição se aplica a tão poucos de nós que professamos ser cristãos nestes dias? Você terá grande proveito se fizer esta pergunta a sua consciência e deixar que ela lhe fale.
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O amor de Deus
A declaração repetida duas vezes por João: "Deus é amor" (1Jo 4:8,16) é um dos pronunciamentos mais tremendos da Bíblia — e também um dos menos entendidos. Idéias falsas cresceram à sua volta como uma cerca de espinhos, ocultando o significado real, e não é tarefa fácil atravessar esse aglomerado de vegetação mental. Entretanto, quanto maior a dificuldade envolvida maior é a recompensa quando o verdadeiro sentido desses textos são captados pela alma cristã. Quem sobe uma alta montanha não reclama do esforço ao contemplar o cenário que se descortina do topo!
Na verdade, feliz é quem pode repetir com João as palavras da sentença que precede o segundo "Deus é amor", "Assim conhecemos o amor que Deus tem por nós e confiamos nesse amor" (v. 16). Conhecer o amor de Deus é na verdade o céu na terra. O Novo Testamento mostra este conhecimento não como privilégio de uns poucos favorecidos, mas como parte normal da experiência comum do cristão, algo estranho àqueles cuja espiritualidade é pouco sadia ou malformada. Quando Paulo diz: "... Deus derramou seu amor em nossos corações, por meio do Espírito Santo que ele nos concedeu" (Rm 5:5), ele não se refere ao amor de Deus, como pensava Agostinho, mas ao conhecimento do amor de Deus por nós. Embora nunca chegasse a conhecer pessoalmente os cristãos de Roma a quem escrevia, Paulo tinha certeza de que a afirmação seria verdadeira para eles como era para si mesmo.
Uma torrente de amor
Há três pontos nas palavras de Paulo que merecem ser comentados. Primeiro note o verbo derramou. Seu sentido literal é "despejou". É a palavra usada no "derramamento" do Espírito Santo em Atos 2:17,18,33; 10:45; Tito 3:6, sugerindo fluxo livre e grande quantidade — aliás, uma inundação. Paulo não fala de impressões vagas e incertas, mas de coisas profundas e irresistíveis.
Em segundo lugar observe o tempo do verbo. Está no perfeito, indicando uma situação estabelecida como conseqüência de uma ação completa. A idéia é que o conhecimento do amor de Deus, tendo inundado nosso coração, continua a enchê-lo agora, como um vale, que uma vez inundado permanece cheio de água. Paulo compreende que todos seus leitores, assim como ele mesmo, viverão na alegria da forte e permanente certeza do amor de Deus para com eles.
Em terceiro lugar, observe que a instilação desse conhecimento é descrita como parte do ministério normal do Espírito para. aqueles que o recebem — a todos, isto é, aos que nasceram de novo, todos os que crêem realmente. Seria desejável que esse aspecto de seu ministério fosse hoje mais valorizado do que de fato é. Com uma obstinação tão patética quanto empobrecedora, temo-nos preocupado hoje com os ministérios extraordinários, esporádicos e restritos do Espírito, negligenciando os comuns e gerais. Assim, mostramos muito maior interesse pelos dons de cura e de línguas — dons dos quais, segundo Paulo, nem todos os cristãos participarão (1Co 12:28-30) — que pelo trabalho normal do Espírito de conceder paz, alegria, esperança e amor por meio do derramamento do conhecimento de Deus em nosso coração. Este ministério, porém, é muito mais importante que o anterior. Para os coríntios, que tinham por certo que quanto mais falassem em línguas mais alegres e piedosos seriam, Paulo teve de insistir que sem amor — santificação, semelhança com Cristo — o dom de línguas não tinha valor algum (1Co 13:1).
Sem dúvida alguma Paulo veria motivo para tal admoestação também hoje. Será trágico se a preocupação com o reavivamento presentemente manifestado em muitos lugares se desviar para o beco sem saída de um novo "corintismo". A melhor coisa que Paulo podia desejar para os efé-sios, no que se refere ao Espírito, era que ele conseguisse dar continuidade ao ministério de Romanos 5:5 com um poder cada vez maior, levando-os ao conhecimento mais e mais profundo do amor de Deus em Cristo. Efésios 3:14-19 apresenta muito bem essa idéia:
Por essa razão, ajoelho-me diante do Pai [...] para que [...] ele os fortaleça no íntimo do seu ser com poder, por meio do seu Espírito [...] para, juntamente com todos os santos, compreender a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede todo o conhecimento...
Reavivamento quer dizer a ação de Deus de devolver a uma igreja moribunda, de maneira fora do comum, padrões de vida e experiência cristã estabelecidos pelo Novo Testamento como inteiramente normais. Não é o desejo ansioso de falar em línguas (pois, no final das contas, não tem importância alguma o fato de falarmos línguas ou não) que expressará uma preocupação correta com o reavivamento, mas sim o desejo ardente de que o Espírito derrame o amor divino em nosso coração com grande poder. Pois é com isso (ao qual o profundo interesse da alma no que diz respeito ao pecado é muitas vezes preliminar) que começa o reavivamento pessoal, e por meio dele o reavivamento na igreja, uma vez começado, é mantido.
Nosso objetivo neste capítulo é mostrar a natureza do amor divino derramado pelo Espírito. Com este propósito fixamos nossa atenção na grande afirmativa joanina de que Deus é amor: em outras palavras, o amor que ele mostra às pessoas, o qual os cristãos conhecem e no qual se alegram, é a revelação de seu próprio ser interior. Nosso tema nos fará aprofundar no mistério da natureza de Deus tanto quanto foi possível à mente humana, mais profundamente que nossos estudos anteriores.
Quando estudamos a sabedoria de Deus, vimos alguma coisa de sua mente; quando pensamos em seu poder, vimos um pouco de sua mão e de seu braço; quando consideramos sua palavra, aprendemos algo sobre sua boca, mas agora, contemplando seu amor, veremos seu coração. Estaremos pisando solo sagrado, precisamos da graça da reverência para que possamos pisar nele sem pecar.
Amor, Espírito e luz
Dois comentários gerais sobre essa afirmação de João serão úteis agora.
1. "Deus é amor" não é a verdade completa sobre Deus, no que diz respeito à Bíblia. Esta não é uma definição abstrata, isolada; mas um resumo, da perspectiva do cristão, do que a revelação feita nas Escrituras nos fala sobre seu Autor. Esta afirmação pressupõe o resto do testemunho bíblico sobre Deus. O Deus sobre o qual João fala é o Deus que fez O mundo, que o condenou pelo dilúvio, que chamou Abraão e fez dele uma nação, que disciplinou seu povo do Antigo Testamento pela conquista, cativeiro e exílio, que enviou seu Filho para salvar o mundo, que afastou o Israel incrédulo, que pouco antes de João haver escrito havia destruído Jerusalém e que um dia julgará o mundo com justiça. Esse Deus, diz João, é amor.
É errado citar essa afirmação de João, como muitos o fazem, como se ela levantasse dúvidas sobre o testemunho bíblico da severidade da justiça divina. Não é possível argumentar que o Deus amoroso não possa também ser o Deus que condena e castiga o desobediente, pois é precisamente do Deus que age assim que João está falando.
Se quisermos evitar um mal-entendido a respeito da afirmação de João, devemos torná-la associando-a com outras duas grandes declarações que apresentam a mesma forma gramatical encontrada em outros pontos de seus escritos. Interessante que ambas partiram do próprio Cristo. A primeira está no evangelho de João. São as palavras de nosso Senhor à samaritana: "Deus é espírito" (Jo 4:24). A segunda está no começo da primeira epístola. João a apresenta como resumo da "mensagem que dele (Jesus) ouvimos e transmitimos a vocês: Deus é luz" (1Jo 1:5). A afirmação de que Deus é amor deve ser interpretada conforme os ensinamentos destas duas declarações e será útil fazermos agora um breve estudo delas.
Deus é espírito. Quando nosso Senhor disse isso, ele procurava fazer a samaritana abandonar a idéia de que havia apenas um lugar adequado para a adoração, como se Deus estivesse confinado de algum modo a algum lugar. "Espírito" contrasta com "carne". A idéia central de Cristo era que o homem, sendo "carne", só pode estar presente em um lugar de cada vez. Deus, porém, sendo "espírito", não está assim limitado. Deus não é material, não tem corpo, portanto, não fica confinado a um lugar. Por isso (Cristo continua), a verdadeira condição da adoração aceitável não é estar em Jerusalém, Samaria ou em qualquer outro lugar, mas o importante é que seu coração seja receptivo e responda à revelação dele. "Deus é espírito; e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade" (Jo 4:24).
O primeiro dos Trinta e nove artigos de religião expressa o significado da "espiritualidade de Deus" (como dizem os livros) pela asserção bastante estranha de que ele é "sem corpo, sem partes nem paixões".1 Alguma coisa muito positiva é expressa por essas três negativas.
Deus não tem corpo — portanto, como já dissemos, ele está livre das limitações do espaço e da distância, e é onipresente. Deus não tem partes — isto significa que sua personalidade, poderes e qualidades estão perfeitamente integrados, assim nada nele se altera. Ele "não muda como sombras inconstantes" (Tg 1:17). Assim, ele é livre de todas as limitações de tempo e dos processos naturais, e permanece eternamente o mesmo.
Deus não tem paixões — isto não quer dizer que ele seja insensível (impassível) ou que não haja nada nele que corresponda a nossas emoções e afeições. Entretanto, considerando que as paixões humanas,
1Livro de oração comum, p. 603.
especialmente as dolorosas, como medo, sofrimento, arrependimento e desespero, são de algum modo passivas e involuntárias, e que surgem por meio de circunstâncias fora de nosso controle, as atitudes correspondentes em Deus têm a natureza de escolha voluntária e deliberada, não sendo, portanto, absolutamente comparáveis às paixões humanas.
Assim, o amor de Deus, que é espírito, não é incerto nem inconstante como o amor humano. Não é apenas um desejo impotente de coisas que talvez nunca venham a realizar-se. Ao contrário, trata-se da determinação espontânea de todo o ser divino em uma atitude de benevolência e benefício,
escolhida livremente e estabelecida com firmeza. Não há inconstâncias nem vicissitudes no amor do Deus altíssimo, que é Espírito. Seu amor é "tão forte quanto a morte [...] nem muitas águas conseguem apagar o amor" (Ct 8:6,7). Nada poderá separá-lo dos que um dia foram por ele alcançados (Rm 8:35-39).
Deus é luz. Fomos informados de que o Deus que é espírito é também luz. João fez esta declaração atacando certos cristãos professos que haviam perdido o contato com as verdades morais e diziam que nenhuma de suas práticas era pecaminosa. A intensidade das palavras de João está no seguinte preceito: "nele não há treva alguma" (1Jo 1:5). Luz significa santidade e pureza baseadas na lei de Deus; treva significa deturpação moral e injustiça de acordo com a mesma lei (1Jo 2:7-11; 3:10).
O ponto principal das palavras de João é que apenas quem "anda na luz" procura ser igual a Deus em santidade e justiça, evita tudo o que não esteja de acordo com isto, desfruta da companhia do Pai e do Filho. Os que "andam nas trevas", não importa o que digam de si mesmos, são estranhos a esse relacionamento (v. 6).
Assim, o Deus-amor é primeiro e acima de tudo luz, e quaisquer idéias sentimentais a respeito desse amor como ternura indulgente e benevolente, alheios aos padrões e às idéias morais, devem ser abolidas desde o princípio. O amor de Deus é santo. O Deus que Jesus tornou conhecido não é indiferente a distinções morais, mas ama a justiça e odeia a iniqüidade, o Deus cujo ideal para seus filhos é este: "sejam perfeitos como perfeito é o Pai celestial de vocês" (Mt 5:48). Ele não aceitará em sua companhia qualquer pessoa — por mais ortodoxas que sejam suas idéias — que não procure a santidade de vida.
Aqueles a quem ele aceita estão sujeitos a uma disciplina enérgica a fim de que alcancem o que buscam: "pois o Senhor disciplina a quem ama, e castiga todo aquele a quem aceita como filho [...] Deus nos disciplina para o nosso bem, para que participemos da sua santidade [...] Mais tarde, porém, produz fruto de justiça e paz para aqueles que por ela foram exercitados" (Hb 12:6-11). O amor de Deus é inflexível, pois expressa a santidade de quem ama e procura a santidade no amado. As Escrituras não nos permitem supor que, pelo fato de Deus ser amor, podemos confiar que ele fará feliz quem não busca a santidade, ou que protegerá seus amados de problemas quando ele sabe da necessidade dessas tribulações para auxiliar no processo de santificação.
Agora, porém, precisamos fazer um segundo comentário comparativo.
2. "Deus é amor" é a verdade completa sobre Deus no que diz respeito aos cristãos. Dizer "Deus é luz" implica a expressão da santidade de Deus em tudo o que ele diz e faz. Do mesmo modo, a afirmação "Deus é amor" significa que seu amor é encontrado em tudo o que ele diz e faz.
O conhecimento de que esta verdade se aplica á nós, pessoalmente, é o supremo conforto do cristão. Ao crer, descobrimos na cruz de Cristo a certeza de que somos amados individualmente por Deus: "o Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim" (Gl 2:20). Sabendo disto, podemos aplicar a nós mesmos a promessa de que "Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito" (Rm 8:28). Não apenas algumas coisas, repare bem, mas todas as coisas! Cada pequenina coisa que nos acontece expressa o amor de Deus e ocorre para cumprir o propósito divino para a nossa vida.
Portanto, pelo que nos concerne, Deus é amor — santo e onipotente amor — em todos os momentos e em todas as ocasiões de nossa vida. Mesmo quando não podemos ver a razão e a finalidade da ação de Deus, sabemos haver amor nela e por trás dela, por isso podemos sempre nos alegrar, mesmo quando, humanamente falando, as coisas vão mal. Sabemos que a verdadeira história de nossa vida, quando revelada, provará ter sido um ato de misericórdia do começo ao fim, e com isso nos alegraremos.
Definição do amor de Deus
Até agora simplesmente delimitamos o amor de Deus, mostrando em termos gerais como e quando ele opera, mas isto não é suficiente. Perguntamos: O que ele é em essência? Como devemos defini-lo e analisá-lo? A resposta que a Bíblia apresenta para essas questões ressalta uma concepção do amor de Deus que pode ser formulada do seguinte modo:
O amor de Deus é um exercício de sua bondade para com os pecadores, individualmente, por meio do qual, tendo se identificado com o bem-estar dessas pessoas, entregou seu Filho para ser o Salvador delas, e agora as leva a conhecê-lo e a desfrutá-lo em uma relação de aliança.
Vamos explicar as partes que constituem essa definição.
1. O amor de Deus é um exercício de sua bondade. A bondade de Deus no sentido bíblico significa sua generosidade cósmica. A bondade divina, escreveu Louis Berkhof, é "a perfeição em Deus que o leva a tratar benévola e generosamente todas as suas criaturas. É a afeição que o Criador sente para com as suas criaturas dotadas de sensibilidade consciente" (citando Sl 145:9,15,16; Lc 6:35; At 14:17).2 O amor de Deus é a
2Teologia sistemática, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 68.
manifestação suprema e mais gloriosa desta bondade. "O amor", escreveu James Orr,3 "é, de forma geral, o princípio que leva um ser moral a desejar e a se alegrar com outro, e alcança sua forma mais elevada em uma amizade na qual cada um vive na vida do outro e encontra sua alegria em se dar ao outro, recebendo de volta o extravasamento da afeição do outro em si mesmo".4 Assim é o amor de Deus.
2. O amor de Deus é um exercício de sua bondade para com os pecadores. Dessa forma, o amor encerra a natureza da graça e da misericórdia. É emanação divina na forma de bondade, não apenas imerecida, como contrária a qualquer merecimento, pois os objetos do amor de Deus são criaturas racionais transgressoras da lei, cuja natureza é corrupta aos olhos dele e merecedoras apenas de condenação e expulsão final de sua presença.
É admirável que Deus ame os pecadores; entretanto, a realidade é esta. Deus ama criaturas que se tornaram indignas desse amor. Não havia nada nos objetos de seu amor que pudesse merecê-lo; nada no ser humano poderia atrair esse amor ou induzir a ele. O amor entre as pessoas é despertado por alguma coisa encontrada no amado, mas o amor de Deus é livre, espontâneo, sem causa nem inspiração. Deus ama as pessoas porque escolheu amá-las — como compôs Charles Wesley: "Ele nos tem amado, ele nos tem amado, porque queria amar"5 (reprodução de Dt 7:8) —, e nenhum motivo para seu amor pode ser dado, salvo seu bondoso e soberano prazer.
O mundo greco-romano do Novo Testamento jamais sonharia com tal amor; atribuía-se muitas vezes a seus deuses a cobiça de mulheres, mas nunca amor por pecadores. Os autores do Novo Testamento tiveram de usar uma palavra grega quase nova — agape — para expressar o amor de Deus como eles o conheciam.
3Ministro presbiteriano escocês (1844-1913), um dos mais importantes apologistas dos
séculos xix e xx.
4Hasting's dictionary of the Bible, v. iii, p. 153.
5Metbodist hymnal, segundo verso do hino 808, <
hymns/800-899.htm>.
3. O amor de Deus é um exercício de sua bondade para com os pecadores, individualmente. Não se trata de boa vontade vaga e difusa para com todos em geral e ninguém em particular; ao contrário, por ser função da onisciência todo-poderosa, sua natureza é particularizar tanto os objetos como os efeitos. O propósito do amor divino, formado antes da criação (Ef 1:4), envolveu primeiramente a escolha e a seleção das pessoas às quais ele abençoaria; e em segundo lugar a relação dos benefícios que lhes seriam concedidos e os meios pelos quais seriam obtidos e desfrutados. Tudo isto foi assegurado desde o início.
Paulo escreveu aos cristãos tessalonicenses: "Mas nós devemos sempre dar graças a Deus por vocês, irmãos amados pelo Senhor, porque desde o princípio [antes da criação] Deus os escolheu [selecionou] para serem salvos [o fim determinado], mediante a obra santificadora do Espírito e a fé na verdade [o meio determinado]" (2Ts 2:13). O exercício do amor de Deus, no tempo, em relação aos pecadores, individualmente, é a execução do propósito formado por ele na eternidade, no sentido de abençoar esses mesmos indivíduos pecadores.
4. O amor de Deus pelos pecadores implica sua identificação com o
bem-estar deles. Tal identificação está envolvida em toda espécie de
amor, sendo, na realidade, uma prova para verificar se o amor é genuíno
ou não. Se um pai permanece alegre e despreocupado enquanto o filho
atravessa dificuldades ou se um marido fica impassível diante do deses-
pero da esposa, duvidamos de que haja realmente amor nesse relacionamento, pois sabemos que quem ama de verdade só fica feliz quando as pessoas queridas também estão felizes. O amor de Deus pelos homens é desse tipo.
Nos capítulos anteriores destacamos que Deus objetiva em todas as coisas a própria glória — para que ele seja revelado, conhecido, admirado e adorado. Esta afirmação é verdadeira, mas incompleta. Precisa ser equilibrada pelo reconhecimento de que Deus ligou voluntariamente sua felicidade última à das pessoas porque dedica seu amor a elas. Não é por acaso que a Bíblia fala freqüentemente de Deus como o Pai amoroso e o Esposo de seu povo. Conclui-se, então, que pela própria natureza desse relacionamento a felicidade de Deus não será completa enquanto seus amados não estiverem finalmente livres de dificuldades:
Até que toda a Igreja de Deus redimida Seja salva, para não mais pecar.6
Deus estava feliz sem os seres humanos, antes de sua criação. Ele teria continuado assim se simplesmente tivesse destruído o homem depois do pecado, mas como vemos ele dedicou seu amor a qualquer pecador, individualmente, e isso significa que, por sua livre e espontânea vontade, ele não conhecerá a felicidade pura e perfeita novamente até que tenha levado cada um deles para o céu. Na realidade, ele resolveu que daquele momento até a eternidade sua felicidade seria condicionada à nossa.
Assim, Deus salva não apenas para sua glória, mas também para sua satisfação. Isto ajuda a explicar por que há alegria (alegria divina) na presença dos anjos quando um pecador se arrepende (Lc 15:10), e por que haverá "grande alegria" quando Deus nos colocar imaculados em sua santa presença no último dia (Jd 24). Essa idéia ultrapassa nosso entendimento e desafia a fé, mas não há dúvida de que, segundo as Escrituras, assim é o amor de Deus.
5. O amor de Deus pelos pecadores foi expressa pela dádiva de ser seu Filho o Salvador deles. Mede-se o amor calculando quanto ele oferece, e a medida do amor divino é a dádiva de seu único Filho para ser feito homem e morrer pelos pecadores, e assim tornar-se o único mediador que nos pode levar a Deus.
6Frase do terceiro verso do hino There is a fountain filled with blood, de William Cowper, em Conyer's collection of psalms and hymns, 1772.
Não nos admiramos de que Paulo tenha se referido ao amor de Deus' como "grande", ultrapassando o conhecimento (Ef 2:4; 3:19). Será que já houve generosidade mais cara? Paulo argumenta que este dom supremo é, por si mesmo, a garantia de todos os outros: "Aquele que não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós, como não nos dará juntamente, e. de graça, todas as coisas?" (Rm 8:32). Os escritores do Novo Testamento apontam constantemente a cruz de Cristo como prova cabal da realidade do ilimitado amor divino.
Assim, João, imediatamente após a expressão "Deus é amor", prossegue: "Foi assim que Deus manifestou seu amor entre nós: enviou o seu Filho Unigênito ao mundo, para pudéssemos viver por meio dele. Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas que ele nos amou e enviou seu Filho como propiciação pelos nossos pecados" (1Jo 4:9,10). Do mesmo modo em seu evangelho: "Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crer [...] tenha a vida eterna" (Jo 3:16). Paulo também escreveu: "Mas Deus demonstra seu amor por nós: Cristo morreu em nosso favor quando ainda éramos pecadores" (Rm 5:8). E encontra a prova de que "o Filho de Deus [...] me amou" no fato de que ele "se entregou por mim" (Gl 2:20).
6. O amor de Deus pelos pecadores alcança seu objetivo quando "os leva a conhecê-lo e a desfrutá-lo em uma relação de aliança". O relacionamento segundo a aliança é aquele no qual as duas partes estão permanentemente comprometidas uma com a outra em serviço mútuo e dependência (p. ex., o casamento). A promessa da aliança é aquela na qual um contrato de relacionamento é estabelecido (p. ex., os votos do casamento).
A religião bíblica tem a forma de um relacionamento baseado na aliança com Deus. A primeira ocasião em que os termos desse relacionamento foram esclarecidos aconteceu quando Deus se revelou a Abraão como El Shaddai (o Deus todo-poderoso, o Deus todo-suficiente) e formalmente lhe deu a promessa da aliança "para ser o seu Deus e o Deus dos seus descendentes" (Gn 17:1-7).
Todos os cristãos, pela fé em Cristo, são herdeiros dessa promessa, como Paulo diz em Gálatas 3:15-29. O que isso significa? Trata-se, na verdade, de um repositório de promessas englobando todas. "Esta é a primeira promessa e a fundamental", declarou o puritano Sibbes,7 "na verdade, é a vida e a alma de todas as promessas".8 Thomas Brooks,9 outro puritano, dá o seguinte esclarecimento:
[Isto] é como se ele dissesse: "Você terá uma participação tão verdadeira em todos os meus atributos, para seu benefício, como eles são meus para minha glória" [...] "Minha graça", disse Deus, "será de vocês para lhes perdoar, meu poder será de vocês para protegê-los, minha sabedoria será para dirigi-los, minha bondade para livrá-los, minha misericórdia para sustentá-los e minha glória será de vocês para coroá-los". Esta é uma promessa completa de que Deus seria nosso Deus; nela estão incluídas todas as coisas. Lutero disse: "Deus meus et omnia" [Deus é meu, e todas as coisas são minhas].10
"Este é o verdadeiro amor para com qualquer pessoa", disse Tillotson,11 "fazer o melhor possível em relação a ela". Deus procede assim em relação a quem ama — o melhor possível; e a medida do melhor que Deus pode fazer é a onipotência! Assim, a fé em Cristo nos leva ao relacionamento que abrange bênçãos incalculáveis, tanto para agora como para a eternidade.
Amor excelso!
É verdade que Deus é amor para mim como cristão? O amor de Deus é realmente tudo o que foi dito? Se assim for, surgem algumas dúvidas.
7Richard Sibbes (1577-1635) foi um extraordinário teólogo, pregador e mestre inglês, membro da Igreja Anglicana, continuamente perseguido por ser adepto do puritanismo. Após sua morte, seus sermões foram coligidos e impressos e desde então têm influenciado positivamente muitos cristãos.
8 Works, v. 6, p. 8.
9Ministro não-conformista (1608-1680) e defensor dos princípios do congregacionalismo. Escritor de livros de caráter devocional.
10 Works, v. 5, p. 308.
11John Tillotson (1630-1694), educado em uma família puritana, foi arcebispo da Cantuária (Igreja Anglicana). Dedicou-se ao estudo dos escritos patrísticos, especialmente os de Basílio e Crisóstomo.
* Por que eu sempre reclamo e mostro descontentamento diante das circunstâncias em que Deus me colocou?
Por que estou sempre desconfiado, atemorizado ou deprimido?
* Por que sempre me permito ficar impassível, formal e pouco dedicado ao serviço do Deus que me ama tanto?
* Por que permito que minha lealdade se divida, de modo que Deus não tenha todo meu coração?
João escreveu "Deus é amor" a fim de estabelecer um ponto de ética: "... visto que Deus assim nos amou, nós também devemos amar uns aos outros" (1Jo 4:11). Será que algum observador poderá aprender pela qualidade e intensidade de amor que eu mostro aos outros (esposa, marido, família, vizinhos, irmãos da igreja, colegas de trabalho) alguma coisa sobre a grandeza do amor de Deus por mim?
Medite sobre essas coisas. Examine-se.
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A graça de Deus
É comum em todas as igrejas denominar o cristianismo a religião da graça. É truísmo na erudição cristã que a graça, longe de ser uma força impessoal, um tipo de eletricidade celestial recebida como uma carga de bateria "ligada" aos sacramentos, seja uma atividade pessoal — Deus atuando com amor em relação ao ser humano.
Livros e sermões destacam repetidamente que as palavras gregas graça (charis) e amor (ágape) no Novo Testamento são de uso inteiramente cristão e expressam bondade espontânea, autodeterminada, antes completamente desconhecidas da ética e da teologia greco-romana. É comum dizer-se na escola dominical que a graça é a riqueza de Deus às expensas de Cristo. Entretanto, apesar desses fatos, parece não haver muita gente em nossas igrejas que realmente creia na graça.
Para ser mais exato, sempre há alguns que acham a idéia da graça tão irresistivelmente maravilhosa que nunca perdem esse sentimento inicial. A graça torna-se o tema constante de suas conversas e orações. Escreveram hinos sobre ela, alguns dos melhores — e é preciso um sentimento profundo para produzir um bom hino. Eles têm lutado por ela, aceitando zombaria e perda de privilégios, se necessário, como preço de sua defesa. Como Paulo combateu os judaizantes, assim Agostinho combateu os pelagianos, e os reformadores o escolasticismo. Os descendentes espirituais de Paulo, de Agostinho e dos reformadores têm desde então combatido as doutrinas romanistas e pelagianas. Com Paulo, seu teste- / munho é: "pela graça de Deus, sou o que sou" (1Co 15:10), e sua regra de vida: "não anulo a graça de Deus" (Gl 2:21).
Entretanto, muitas pessoas nas igrejas não são assim. Podem falar sobre a graça, mas ficam só nisso. A concepção que têm da graça não é falsa, na realidade é inexistente. A idéia não tem significado algum para elas e não toca nem de leve sua experiência. Fale com elas sobre o sistema elétrico da igreja ou sobre o orçamento do último ano, e eles reagirão imediatamente, mas fale sobre as realidades apontadas pela palavra graça, e sua atitude será de respeitosa estupefação. Não o acusarão de falar bobagens; não duvidarão do valor de suas palavras, mas não darão importância ao que você diz por se tratar de um assunto que não os atinge; quanto mais tiverem vivido sem a graça, mais certos estarão de que a essa altura da vida realmente não precisam dela.
Sem o mínimo toque da graça
O que impede, de fato, que muitas pessoas que professam sua crença na graça realmente creriam? Por que o assunto significa tão pouco mesmo para alguns que falam muito sobre ela? A raiz do problema parece ser a crença errada sobre as relações básicas entre o ser humano e Deus — enraizada não apenas na mente, mas no coração, no nível mais profundo das coisas que não questionamos por sempre estarmos seguros delas.
Há neste campo quatro verdades cruciais pressupostas na doutrina da graça, e se elas não forem reconhecidas e sentidas pelo coração torna-se impossível a fé real na graça divina. Infelizmente o espírito de nosso tempo se opõe a elas. Não é de admirar, portanto, que a fé na graça seja atualmente uma raridade. As quatro verdades são:
1. A moral indigna do homem. As pessoas modernas, conscientes de seu tremendo desenvolvimento científico nos últimos anos, estão naturalmente inclinadas a ter um elevado autoconceito. Consideram a riqueza material mais importante que o caráter moral, e no campo moral são resolutamente autocomplacentes. Pensam que as pequenas virtudes compensam os grandes vícios e se recusam a aceitar com seriedade a idéia de que existe algo, do ponto de vista moral, muito errado com eles.
A pessoa tende a rejeitar a consciência culpada, em si e nos outros, como anomalia psicológica, sinal de doença e aberração mental, em vez de considerá-la um indicador da realidade moral. O ser humano moderno está assim convicto de que, apesar de todos seus pecadilhos — bebida, jogo, direção negligente, libertinagem, mentiras, negócios desonestos, leituras imorais e muitas outras coisas —, ele é no fundo uma boa pessoa. Então, como os pagãos (o coração do indivíduo moderno é pagão, não tenha dúvidas sobre isso), eles imaginam Deus como uma projeção ampliada de si mesmos e acreditam que Deus compartilha sua autocomplacência. A idéia de que são criaturas caídas e distanciadas da imagem de Deus, rebeldes insubmissos à lei divina, culpados e impuros aos olhos de Deus, merecedores apenas de condenação, jamais entra em sua cabeça.
2. A justiça divina retributiva. Os homens e as mulheres de hoje costumam fechar os olhos para as transgressões durante o máximo de tempo possível. Toleram-nas nos outros, pois sabem que fariam o mesmo se as circunstâncias fossem outras. Pais hesitam em corrigir os filhos, professores em punir alunos, e o público aceita apenas com um murmúrio toda a sorte de vandalismo e comportamento anti-social. A regra aceita parece ser a de ignorar o mal tanto quanto possível. Deve-se punir apenas como último recurso, e isso unicamente quando for preciso evitar que o mal acarrete conseqüências sociais muito graves. A boa vontade em tolerar e perdoar o mal ao máximo é vista como virtude, ao passo que viver sob princípios rígidos de certo e errado é censurado por alguns como moral duvidosa.
De acordo com nosso estilo pagão, temos certeza de que Deus pensa como nós. A idéia de que a retaliação possa ser a lei moral do mundo de Deus e a manifestação de seu caráter santo nos parece quase fantástica. Seus defensores são acusados de projetar em Deus seus impulsos patológicos de raiva e vingança. A Bíblia, no entanto, afirma reiteradamente que a retaliação é um fato tão básico como respirar.
Deus é o juiz de toda a terra e agirá com justiça, vingando o inocente, se houver, mas punindo (na linguagem bíblica visitando pecados) os transgressores da lei (cf. Gn 18:25). Deus não será fiel a si mesmo a menos que castigue o pecado. E a menos que alguém conheça e sinta a realidade deste fato — os transgressores devem esperar da parte de Deus nada além de um julgamento justo — não poderá compartilhar a fé bíblica na graça divina.
3. A impotência espiritual do homem. O livro de Dale Carnegie, Como fazer amigos e influenciar pessoas,1 tem sido quase uma Bíblia moderna. Uma técnica completa de relações comerciais foi construída nos últimos anos com base no princípio de colocar outra pessoa em uma posição tal que lhe seja quase impossível dizer "não". Isto confirmou nas pessoas de hoje a fé que animava as religiões pagãs desde tempos imemoriais — a crença de que podemos reparar nosso relacionamento com Deus colocando-o em situações em que não possa mais responder de modo negativo. Os pagãos antigos procediam assim, multiplicando oferendas e sacrifícios; os pagãos modernos procuram fazer o mesmo por meio da moralidade e da afiliação a uma igreja. Embora admitam sua imperfeição, não têm dúvidas de que a respeitabilidade adquirida lhes garantirá aceitação divina afinal, independentemente de suas ações passadas. A determinação bíblica, no entanto, é como a expressa por Toplady:2
Eu de mim não cumprirei Nunca, ó Deus, a tua lei,
1São Paulo: Editora Nacional, 1985.
2Augustus Montague Toplady (1740-1778) foi um famoso compositor de hinos, ministro anglicano e vigário de Broadhembury. Desligou-se da Igreja Anglicana em 1775, mudou-se para Londres e tornou-se pregador de uma igreja calvinista de língua francesa em Leicester Fields. Polemista, enfrentou os irmãos Wesleys em batalhas teológicas acerca da doutrina da graça. Morreu aos 38 anos, de tuberculose.
Por mais zelo que tiver,
Por mais pranto que verter,
Nada poderei pagar,
— levando à admissão do próprio desespero e à conclusão:
Tu, só tu, me vens salvar.3
"Portanto, ninguém será declarado justo diante dele baseando-se na obediência à Lei", declarou Paulo (Rm 3:20). Consertar nosso relacionamento com Deus e conquistar seu favor depois de tê-lo perdido estão além da capacidade de qualquer um de nós. É preciso aceitar e curvar-se perante tudo isso antes de poder compartilhar da fé bíblica na graça divina.
4. A liberdade soberana de Deus. O antigo paganismo ensinava que cada deus estava ligado a seus adoradores por interesses próprios, pois dependiam dos serviços e das oferendas deles para seu bem-estar. O paganismo moderno lembra vagamente um conceito semelhante — Deus é de algum modo obrigado a nos amar e ajudar, embora nada mereçamos. Este foi o sentimento expresso pelo livre-pensador francês que morreu murmurando: "Deus perdoará, este é seu trabalho" (c'est son metier). Mas essa idéia não está bem fundamentada. O Deus da Bíblia não depende dos seres humanos para seu bem-estar (v. Sl 50:8-13; At 17:25), nem é obrigado a mostrar-nos algum favor depois de termos pecado.
3Hinário das Igrejas Evangélicas Reformadas no Brasil, Jongbloed (Holanda): Ierb, 1998, p. 558.
Podemos apenas apelar para sua justiça — e justiça, em nosso caso, significa condenação certa. Deus não é obrigado a impedir o curso da justiça para favorecer quem quer que seja. Ele não é obrigado a ter piedade e a perdoar, e se o fizer será um ato, como dizemos, "de sua livre vontade", e ninguém o obriga a revidar suas intenções. "Portanto, isso não depende do desejo ou do esforço humano, mas da misericórdia de Deus" (Rm 9:16). A graça é livre, no sentido de ser auto-originada e de proceder de quem poderia concedê-la ou não. Somente quando se percebe que a decisão do destino de cada indivíduo advém da resolução divina de salvá-lo de seus pecados, ou não, e que esta é uma decisão que Deus toma caso a caso, pode-se começar a apreender o conceito bíblico da graça.
NÃO-OBTIDA E NEM MERECIDA
A graça de Deus é o amor demonstrado livremente aos pecadores que se reconhecem culpados, contrariamente a seu mérito e a despeito de seu demérito. É Deus demonstrando bondade para com pessoas merecedoras apenas de rigor, e que não têm motivo algum para esperar outra coisa. Já vimos por que a idéia da graça significa tão pouco para alguns freqüentadores de igreja, isto é, não partilham dos conceitos sobre Deus e o homem implícitos nela. Agora precisamos perguntar por que esse conceito significa tanto para outras pessoas. Não é preciso ir muito longe para procuar a resposta; na verdade ela transparece em tudo o que já se afirmou. Assim que o homem se convença de que a descrição apresentada espelha sua condição e necessidade, o Evangelho da graça do Novo Testamento só pode entusiasmá-lo, deixá-lo cheio de alegria e surpreso, pois ele nos conta sobre como nosso Juiz se tornou nosso Salvador.
Graça e salvação estão juntas como causa e efeito: "pela graça vocês são salvos" (Ef 2:5, 8). "Porque a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens" (Tt 2:11). O Evangelho declara como:
* "Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna" 0o 3:16);
* "Deus demonstra seu amor por nós: Cristo morreu em nosso favor quando ainda éramos pecadores" (Rm 5:8);
* uma fonte foi aberta, de acordo com a profecia (Zc 13:2), contra o pecado e a impureza;
* o Cristo vivo clama a todos os que ouvem o Evangelho: "Venham a mim [...] e eu os aliviarei" (Mt 11:28).
Como Isaac Watts4 colocou em seu hino mais evangélico, se não o mais sublime, estamos por natureza no mais completo estado de perdição:
Mas há uma voz de graça magnífica Vinda da santa Palavra de Deus; Ó, vós, pobres pecadores cativos, vinde E confiai no Senhor.
Minha alma obedece ao chamado soberano
E corre para seu livramento
Eu creio nas tuas promessas, Senhor,
Oh! ajuda-me apesar da minha incredulidade.
À bendita fonte de teu sangue,
Deus Encarnado, vôo
Para lavar minha alma das manchas escarlates
E da tinta forte do pecado.
Um verme culpado, fraco e indefeso, Em tuas mãos me entrego; Tu és, ó Senhor, minha justiça, Meu Salvador e meu tudo.5
Quem puder, com sinceridade, fazer suas as palavras de Watts, nunca se cansará de cantar os louvores da graça.
4Filho de um não-conformista aprisionado duas vezes, Isaac Watts (1674-1748) demonstrou interesse pela poesia e métrica na infância. Aprendeu latim, grego e hebraico. Anos mais tarde declinou do convite para ingressar no ambiente acadêmico ligado à Igreja Anglicana e tornou-se, algum tempo depois, ministro de uma congregação não-conformista. Escreveu centenas de hinos.
5Versos 2 a 5 do hino How sad our state by nature is, em Hymns and spiritual songs, 1707,
O Novo Testamento apresenta a graça de Deus em três associações par- ticulares, cada uma delas uma constante maravilha perpétua para o cristão.
1. Graça como a fonte do perdão de pecados. O Evangelho concentra-se na justificação, isto é, na remissão de pecados e, como conseqüência, em nossa aceitação pessoal. A justificação é a transição verdadeiramente profunda da situação do condenado que espera a sentença terrível para a do herdeiro que espera uma herança fabulosa.
A justificação se dá pela fé e ocorre no momento em que a pessoa coloca toda sua confiança no Senhor Jesus Cristo, como seu Salvador. A justificação para nós é de graça, mas custou muito para Deus, pois o preço foi a morte sacrificial de seu Filho. Por que Deus "não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós" (Rm 8:32)? Por causa da sua graça. Foi sua decisão de nos salvar que tornou necessário o sacrifício. Paulo explica bem este ponto:
Sendo justificados gratuitamente [isto é, sem pagar nada] por sua graça [como conseqüência da resolução misericordiosa de Deus], por meio da redenção que há em Cristo Jesus. Deus o ofereceu como sacrifício para propiação [que satisfaz a ira divina pela expiação dos pecados] mediante a [torna-se real para as pessoas por meio da] fé, pelo seu sangue.
Romanos 3:24, 25; cf. Tito 3:7; grifo do autor
Mais uma vez Paulo nos diz que em Cristo "temos a redenção por meio de seu sangue, o perdão dos pecados, de acordo com as riquezas da graça de Deus" (Ef 1:7). A reação do cristão ao contemplar tudo isto — e comparar as coisas como eram antes e como são agora em conseqüência da graça de Deus manifestada no mundo — foi expressa maravilhosamente pelo antigo presidente de Princeton, Samuel Davies:6
6Ministro presbiteriano (1723-1761). Tornou-se pregador itinerante após a morte do filho e da mulher, em 1747. Em Londres, durante uma viagem para o levantamento de fundos para o Colégio de Nova Jersey (posteriormente denominado Universidade de Princeton), foi convidado pelo rei Jorge II para pregar na capela real. Durante a pregação, Samuel Davis pára e dirige-se ao rei: "Quando o leão ruge, todos os animais da floresta silenciam; quando o Senhor fala, os reis da terra calam a boca!".
Grande Deus de maravilhas! Todos os teus caminho;
Mostram os atributos divinos;
Mas os atos incontáveis da graça perdoadora
Brilham mais que todas as outras maravilhas.
Quem' é Deus perdoador como tu?
Ou quem tem graça tão rica e gratuita?
Perdidos de admiração, com trêmula alegria,
Recebemos o perdão de nosso Deus;
Perdão por crimes de profunda tintura,
Perdão adquirido como sangue de Jesus:
Quem é Deus perdoador como tu?
Ou quem tem graça tão rica e gratuita?
Oh, possa essa graça surpreendente e sem igual,
Este milagre do amor divino,
Encher a ampla terra com grato louvor,
Como enche os coros celestiais!
Quem é Deus perdoador como tu?
Ou quem tem graça tão rica e gratuita?
2. Graça como motivo para o plano da salvação. O perdão é o coração do Evangelho, mas não a totalidade da doutrina da graça. O Novo Testamento coloca o dom do perdão divino no contexto do plano da salvação, que começou com a eleição antes que o mundo existisse e só será completado quando a Igreja estiver perfeita na glória.
Paulo se refere brevemente a este plano em diversos pontos (v., p. ex., Rm 8:29,30; 2Ts 2:12,13), mas sua observação mais completa está no pará-
grafo profundo, denso — apesar das subdivisões o fluxo dos pensamentos faz dele um só parágrafo — de Efésios 1:3—2:10. Como era seu costume, Paulo começava com uma declaração sumária e usava o resto do parágrafo para analisá-la e explicá-la. A afirmação é esta: "Deus [...] que nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nas regiões celestiais [isto é, no reino das realidades espirituais] em Cristo" (1:3).
A análise começa com a eleição eterna e a predestinação para a filiação em Cristo (v. 4 em diante), prossegue com a redenção e a remissão dos pecados em Cristo (v. 7) e leva à esperança da glorificação em Cristo (v. 11,12) e a dádiva do Espírito em Cristo para nos selar como propriedade divina para sempre (v. 13,14).
Em seguida, Paulo concentra a atenção no ato poderoso pelo qual Deus regenera os pecadores em Cristo (1:19; 2:7), em cujo processo os leva à fé (2:8). Paulo descreve todos esses itens como elementos de o único e grande propósito de salvar (1:5,9,11), e nos diz que a graça (misericórdia, amor, bondade: 2:4,7) é sua força motriz (2:4-8); que "as riquezas de sua graça" aparecem ao longo de toda sua administração (1:7; 2:7), e que o louvor da graça é o objetivo final (1:6,12,14; 2:7).
Assim, nós, cristãos, podemos nos regozijar em saber que nossa conversão não foi simples acaso, mas um ato de Deus originado no plano eterno para abençoar-nos com o dom gracioso da salvação do pecado (2:8-10). Deus promete e se propõe a executar o plano todo até o final e, desde que sua realização se dá pelo poder soberano (1:19,20), nada poderá frustrá-lo. Bem pôde Isaac Watts exclamar em palavras tão magnificentes e verdadeiras:
Fale de sua maravilhosa fidelidade E espalhe pelo mundo o seu poder, Cante as doces promessas de sua graça E de nosso Deus que tudo faz.
Gravadas como que no bronze eterno Brilham as poderosas promessas Nem as forças da escuridão podem Apagar essas frases eternas.
Sua palavra de graça é forte Como a que criou o céu A voz que fez surgir as estrelas Fala de todas as promessas.7
As estrelas, na verdade, podem cair, mas as promessas de Deus permanecerão e serão cumpridas. O plano da salvação será levado ao final triunfante; e então a graça será reconhecida como soberana.
3. Graça como garantia da preservação dos santos. Se existe certeza no cumprimento do plano da salvação, o futuro do cristão está assegurado. Eu sou e serei guardado "pelo poder de Deus até chegar a salvação" (IPe 1:5). Não preciso, portanto, atormentar-me com medo de que minha fé possa falhar: como a graça me levou à fé na primeira vez, assim me manterá crendo até o fim. A fé, tanto no início como em seu decurso, é um dom da graça (v. Fp 1:29). Por isso, o cristão pode dizer com Doddridge:8
Foi a graça que inscreveu meu nome No livro eterno de Deus, Foi a graça que me deu ao Cordeiro Que levou todas as minhas tristezas.
A graça ensinou minha alma a orar E a conhecer o amor perdoador Foi a graça que cuidou de mim neste dia, E que nunca me deixará só.9
A RESPOSTA APROPRIADA
Nenhuma apologia é necessária para valer-nos tão livremente de nossa rica herança de "hinos sobre a graça" (infelizmente, mal-representada
7Versos 2 e seguintes do hino "Begin, my tongue, some heavenly theme", em Hymns and Sacred Songs, 1707.
8Philip Doddridge (1702-1751) foi o caçula entre vinte irmãos. Ministro não-conformista, pastoreou uma congregação independente em Northampton (Inglaterra). Faleceu em Lisboa (Portugal), aonde tinha ido recuperar-se de exaustão. Morreu de tuberculose. Compôs cerca de quarenta hinos.
9Versos 3 e 5 do hino Grace, 'tis a charming sound. Apesar de este hino ter sido composto por Philip Doddridge, estes dois versos foram escritos por Augustus Toplady.
em muitos hinários atuais), pois eles demonstram nossos conceitos de forma muito melhor que a prosa. Não precisamos também nos desculpar por fazer uso de mais um deles quando, para finalizar, pensamos um pouco na reação que o conhecimento da graça divina deveria provocar em nós.
Diz-se que no Novo Testamento a doutrina é a graça, e a ética, a gratidão; e alguma coisa está errada com qualquer forma de cristianismo que não justifique essa afirmação na experiência e na prática. Quem entende a doutrina da graça divina como incentivo à lassidão moral ("a salvação está garantida, não importa o que eu faça, portanto nossa conduta não influi") está apenas demonstrando que, no sentido mais literal, não sabe do que fala.
Amor gera amor, e este, uma vez despertado, deseja agradar. A vontade revelada de Deus é que quem recebeu a graça deve dedicar-se às "boas obras" (Ef 2:10; Tt 2:11,12); a gratidão levará qualquer pessoa que tenha recebido de fato a graça a agir como Deus requer e a clamar diariamente:
Oh! Quão grande devedor à graça Diariamente sou constrangido a ser, Deixe que agora a graça como um grilhão Ligue meu coração transviado a ti!
Inclinado a se desviar,
Senhor, eu sinto isso,
Inclinado a deixar o Deus que eu amo
Toma meu coração, oh, toma e sela-o
Sela-o desde os teus altos céus!10
Você afirma conhecer o amor e a graça de Deus em sua vida? Prove então sua afirmativa, agindo e orando de acordo com ela.
10Terceiro verso do hino "Come, thou fount of every blessing", de Robert Robinson, em A collection of hymns used by the Church of Christ in Angel Alley, Bishopgate, 1759.
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Deus, o Juiz
Você acredita no julgamento divino? Com isto estou perguntando se você crê no Deus que será nosso juiz.
Muitos, ao que parece, não acreditam. Fale a eles de Deus como Pai, amigo, ajudador, aquele que nos ama apesar de todas nossas fraquezas, insensatez e pecado, e seus rostos se iluminam; você estabelece sintonia imediata com eles. Fale, porém, de Deus como juiz, e eles franzirão a testa e abanarão a cabeça negativamente. Sua mente se recusa a aceitar essa idéia, pois acham-na repulsiva e indigna.
Entretanto há poucas coisas na Bíblia mais fortemente destacadas que a realidade da ação de Deus como juiz. "Juiz" é um vocábulo constantemente aplicado a ele. Quando Abraão intercedia por Sodoma, uma cidade tomada pelo pecado que Deus estava a ponto de destruir, clamou: "Não agirá com justiça o Juiz de toda a terra?" (Gn 18:25). Jefté, concluindo seu ultimato aos invasores amonitas, declarou: "Nada fiz contra ti, mas tu estás cometendo um erro, lutando contra mim. Que o Senhor, o Juiz, julgue hoje a disputa entre os israelitas e os amonitas" (Jz 11:27). "É Deus quem julga" (Sl 75:7); "Levanta-te, ó Deus, julga a terra" (Sl 82:8). No Novo Testamento o autor de Hebreus fala de "Deus, o Juiz de todos os homens" (Hb 12:23). Não se trata de mera retórica, a realidade do julgamento divino é apresentada em todas as páginas da história bíblica.
Deus julgou Adão e Eva, expulsando-os do Jardim e amaldiçoando sua vida na terra (Gn 3). Deus julgou o mundo corrupto dos dias de Noé enviando o dilúvio para destruir a humanidade (Gn 6—8). Ele julgou Sodoma e Gomorra, destruindo-as por meio de uma catástrofe vulcânica (Gn 18,19). Julgou os egípcios, que dominavam os israelitas, exatamente como havia prometido fazer (Gn 15:14), mandando contra eles o terror das dez pragas (Êx 7—12).
Deus também julgou os adoradores do bezerro de ouro usando os levitas como seus executores (Êx 32:26-35). Julgou Nadabe e Abiú por lhe oferecerem fogo estranho (Lv 10:1-3), bem como Coré, Data e Abirã, que foram engolidos por um tremor de terra. Deus julgou Acã por roubo sacrílego, eliminado a este e aos seus (Js 7). Julgou Israel por infidelida-de depois da entrada em Canaã, permitindo que caísse sob o domínio de outras nações (Jz 2:11-15; 3:5-8; 4:1-3).
Antes de entrar na terra prometida, Deus havia ameaçado banir seu povo como castigo final para a impiedade, e depois de repetidas admoes-tações feitas pelos profetas, ele os julgou, cumprindo sua ameaça: o reino do norte (Israel) caiu vítima do cativeiro assírio e o reino do sul (Judá), do babilônico (2Rs 17; 22:15-17; 23:26,27). Na Babilônia, Deus julgou Nabu-codonosor e Belsazar por impiedade. Ao primeiro foi dado tempo para corrigir sua vida (Dn 4:5,27,34), ao segundo, não (Dn 5; 5,6,23-38,30).
As narrativas do julgamento divino não estão confinadas apenas no Antigo Testamento. Na história do neotestamentária, o julgamento cai sobre os judeus por haverem rejeitado o Messias (Mt 21:43,44; 1Ts 2:14-16); sobre Ananias e Safira por terem mentido a Deus (At 5); sobre Herodes por seu orgulho (At 12:21); sobre Elimas por sua oposição ao Evangelho (At 13:8); sobre os cristãos de Corinto, afligidos por doenças (fatais em muitos casos), por sua irreverência grosseira, particularmente em relação à ceia do Senhor (1Co 11:29-32). Esta é apenas uma seleção das muitas narrativas dos atos de julgamento divino contidos na Bíblia.
Quando passamos da história para os ensinamentos bíblicos — a lei, os profetas, a literatura sapiencial, as palavras de Cristo e dos apóstolos —, percebemos que o propósito da ação de Deus no julgamento sobrepuja tudo o mais. A legislação mosaica proveio de um Deus que é justo juiz e que não hesitará em punir mediante uma atuação providencial direta se seu povo infringir sua lei. Os profetas acolheram esse tema; na verdade, a maior parte de seus ensinamentos registrados consiste na exposição e aplicação da lei, e de ameaças de julgamento contra os impenitentes e os transgressores da lei. Eles gastaram muito mais tempo proclamando o julgamento que prognosticando o Messias e seu Reino!
Na literatura sapiencial aparece o mesmo ponto de vista: a única cer
teza fundamental subjacente a todas as discussões sobre os problemas
da vida em Jó, em Eclesiastes e em todas as máximas práticas de Provér
bios é que "Deus o trará a julgamento", "Pois Deus trará a julgamento
tudo o que foi feito, inclusive tudo o que está escondido, seja bom, seja
mal" (Ec 11:9; 12:14).
As pessoas que não lêem a Bíblia confiantemente nos asseguram de que quando vamos do Antigo para o Novo Testamento, o tema do julgamento divino passa para segundo plano. Entretanto, se examinarmos o Novo Testamento, mesmo superficialmente, perceberemos logo que a ênfase do Antigo Testamento na ação de Deus como Juiz, longe de ser reduzida, é na realidade intensificada. Todo o Novo Testamento é dominado pela certeza da chegada do dia
do juízo universal e pela questão que ele levanta: Como podemos nós, pecadores, nos reconciliar com Deus enquanto há tempo? O Novo Testamento menciona o "dia do julgamento", "o dia da ira", "a ira vindoura" e proclama Jesus, o divino Salvador, como o Juiz indicado por Deus.
O juiz que está à porta (Tg 5:9) "pronto para julgar os vivos e os mortos" (1Pe 4:5), o "justo juiz" que dará a Paulo sua coroa (2Tm 4:8) é o Senhor Jesus Cristo. "Foi a ele que Deus constituiu juiz de vivos e de mortos" (At 10:42). Deus "estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça, por meio do homem que destinou" (At 17:31), disse Paulo aos atenienses. E aos romanos escreveu: "no dia em que Deus julgar os segredos dos homens, mediante Cristo Jesus, conforme o declara o meu evangelho" (Rm 2:16).
O próprio Jesus disse o mesmo: "... o Pai [...] confiou todo julgamento ao Filho [...] Deu-lhe autoridade para julgar [...] está chegando a hora em que todos os que estiverem nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão; os que fizeram o bem ressuscitarão para a vida, e os que fizeram o mal ressuscitarão para serem condenados" (To 5:22,27-29). O Jesus do Novo Testamento, que é o Salvador do mundo, é também o seu Juiz.
Características do juiz
Qual é o significado disso? O que está envolvido na idéia de ser o Pai, ou Jesus, o juiz? Pelo menos quatro conceitos estão em jogo:
O juiz é alguém que possui autoridade. No mundo bíblico, o rei era sempre o juiz supremo por ser a autoridade maior. Dessa forma, segundo a Bíblia, Deus é o juiz do seu mundo. Como nosso Criador, ele é nosso dono e proprietário, e tem o direito de dispor de nós. Ele tem, portanto, o direito de criar leis para suas criaturas e recompensá-las de acordo com sua atitude, por cumprir ou não essas leis. Na maior parte dos Estados modernos os Poderes Legislativo e Judiciário são separados, de modo que o juiz não cria as leis que aplica, mas no mundo antigo não era assim, e também não é assim com Deus. Ele é o legislador e o juiz.
O juiz é alguém que se identifica com o que é bom e certo. O ideal moderno de que o juiz deva ser frio e imparcial não tem lugar na Bíblia. Espera-se do juiz bíblico que ame a justiça e a honestidade, que sinta repulsa por todo o mau tratamento infligido às pessoas por seus semelhantes. Um juiz injusto, que não tem interesse em ver o certo triunfar sobre o errado, é, de acordo com os padrões bíblicos, uma monstruosidade. A Bíblia não deixa nenhuma dúvida sobre o amor divino pela justiça e seu ódio pela iniqüidade, e que o ideal do juiz totalmente identificado com o que é bom e justo enquadra-se perfeitamente nele.
O juiz é alguém com sabedoria para discernir a verdade. No mundo bíblico a tarefa primordial do juiz é apurar os fatos do caso a ele apresentado. Não há júri; é sua responsabilidade, e de ninguém mais, interrogar, acariar, detectar mentiras, penetrar nos subterfúgios e determinar a situação real. Quando a Bíblia mostra Deus julgando, dá ênfase a sua onisciência e sabedoria perscrutando corações e descobrindo fatos. Nada lhe escapa. Podemos enganar as pessoas, jamais a Deus. Ele nos conhece e nos julga como realmente somos.
Quando Abraão se encontrou com o Senhor em forma humana nos carvalhos de Manre, ele lhe fez entender que estava a caminho de Sodoma para estabelecer a verdade sobre a questão moral naquela cidade. "Disse-lhe, pois, o Senhor: 'As acusações contra Sodoma e Gomorra são tantas e o seu pecado é tão grave que descerei para ver se o que eles têm feito corresponde ao que tenho ouvido. Senão, eu o saberei" (Gn 18:20,21). E sempre é assim, Deus saberá. Seu julgamento corresponde à verdade — a verdade real e moral. Ele julga "o íntimo dos homens", não apenas o exterior. Paulo tem razão ao dizer: "Pois todos nós devemos comparecer perante o tribunal de Cristo" (2Co 5:10).
4. O juiz é alguém com poder para executar a sentença. Atualmente, o juiz apenas proclama a sentença, cabendo a outra área do judiciário fazê-la cumprir. O mesmo acontecia no mundo antigo. Mas Deus é seu próprio executor. Do mesmo modo como julga e sentencia, ele pune. Em Deus fundem-se todas as funções judiciais.
Retribuição
De tudo o que foi dito fica claro que a proclamação bíblica da ação de Deus como Juiz faz parte do que seu caráter evidencia. Confirma também o que se disse antes sobre sua perfeição moral, retidão, justiça, sabedoria, onisciência e onipotência. Mostra-nos ainda que a retribuição é o centro da justiça demonstrada pela natureza de Deus: dar ao ser humano o que merece; pois esta é a essência do trabalho do juiz. Retribuir o bem com o bem e o mal com o mal é inerente a Deus.
Dessa forma, quando o Novo Testamento fala do julgamento final, sempre o apresenta em termos de recompensa. Deus julgará todos os seres humanos "de acordo com o que tenham feito" (Mt 16:27; Ap 20:12). Paulo amplia essa idéia:
[Deus] retribuirá a cada um conforme o seu procedimento. Ele dará vida eterna aos que, persistindo em fazer o bem, buscam glória, honra e imortalidade. Mas haverá ira e indignação para os que são egoístas, que rejeitam a verdade e seguem a injustiça. Haverá tribulação e angústia para todo ser humano que pratica o mal [...] mas glória, honra e paz para todo o que pratica o bem. [...] Pois em Deus não há parcialidade.
Romanos 2:6-11
O princípio da retribuição é aplicado integralmente a cristãos e não-cristãos: todos receberão de acordo com suas obras. Os cristãos estão explicitamente incluídos na seguinte referência de Paulo: "Pois todos nós devemos comparecer perante o tribunal de Cristo para que cada um receba de acordo com as obras praticadas por meio do corpo, quer sejam boas quer sejam más" (2Co 5:10).
Portanto, a retribuição aparece como expressão natural e predeterminada do caráter divino. Deus resolveu ser o Juiz de todo indivíduo, recompensando cada um de acordo com suas obras. A
retribuição é a inescapável lei moral da criação. Deus cuidará para que cada pessoa, cedo ou tarde, receba o que merece, aqui ou na vida futura. Este é um dos fatos básicos da vida. E tendo sido feitos à imagem de Deus, sabemos em nosso íntimo que isso é correto. É assim mesmo que deve ser.
Muitas vezes reclamamos, como faz o criminoso (embora neste caso sem muito fundamento): "Não há justiça". O problema do salmista que via homens inofensivos serem castigados e os ímpios, "livres dos fardos de todos", prosperar e ter paz (Sl 73), é repetido constantemente na experiência humana. Entretanto, o caráter de Deus é a garantia de que tudo o que é errado será endireitado um dia, quando chegar o "dia da ira de Deus, quando se revelará o seu justo julgamento" (Rm 2:5), a recompensa será justa e nenhum problema de injustiça deste mundo permanecerá para assombrar-nos. Deus é o Juiz, e a justiça será feita.
Por que, então, ficamos apreensivos com a idéia de Deus como Juiz? Por que consideramos essa idéia indigna dele? A verdade é que parte da perfeição moral de Deus é sua perfeição no julgamento. O Deus que não se importasse com diferençar entre o certo do errado seria um ser bom e admirável? O Deus que não fizesse distinção entre os monstros da história, os Hitlers e os Stálins (se ousarmos dar nomes), e seus santos, seria moralmente perfeito e digno de louvor? A indiferença moral seria a imperfeição divina, e não a perfeição. Portanto, não julgar o mundo demonstraria indiferença moral. A prova final de que Deus é o Ser moralmente perfeito, que não fica indiferente às questões do que é certo nem errado, é o fato de ele ter se comprometido pessoalmente a julgar o mundo.
É evidente que a realidade do julgamento divino deve ter um efeito direto em nosso modo de encarar a vida. Se soubermos que teremos de enfrentar o julgamento retributivo no final, não viveremos como o faríamos de outro modo. Deve-se frisar, porém, que a doutrina do julgamento divino, e em particular a do julgamento final, não deve ser vista primariamente como um truque para amedrontar as pessoas a fim de que pareçam íntegras. Ela possui implicações assustadoras para os ímpios, é verdade, mas seu ponto principal é revelar o caráter moral de Deus e oferecer significado moral à vida humana. Como escreveu Leon Morris:
A doutrina do julgamento final [...] destaca a responsabilidade do homem e a certeza de que a justiça finalmente triunfará sobre todo o mal, que é parte e parcela da vida aqui e agora. A primeira concede dignidade ao ato mais humilde, e a última traz tranqüilidade e certeza aos que estão no auge da batalha. Esta doutrina dá sentido à vida [...] A visão cristã do julgamento significa que a história se dirige para um alvo [...] O julgamento defende a idéia do triunfo de Deus e do bem. É impossível pensar que o conflito presente entre o bem e o mal perdure por toda a eternidade. O julgamento significa que o mal será eliminado de uma vez por todas com decisão e autoridade. O julgamento significa que no final a vontade de Deus será perfeitamente realizada.1
1 The biblical doctrine of judgment, Grand Rapids: Eerdmans, 1960, p. 72.
Jesus, o agente do Pai
Nem sempre as pessoas percebem que a autoridade suprema no julgamento final (apresentada no Novo Testamento), tanto no céu como no inferno, é o próprio Senhor Jesus Cristo. Acertadamente o ofício fúnebre anglicano se dirige a Jesus como "o santo e misericordioso Salvador, tu, mais do que notável Juiz eterno".2 Jesus afirmou muitas vezes que no dia em que todos comparecerem perante o trono de Deus para acolher o resultado permanente e eterno de seu estilo de vida, ele próprio será o agente do Pai no julgamento, e sua palavra de aceitação ou rejeição será decisiva. Há muitas passagens referentes a este assunto, dentre as quais destacam-se: Mateus 7:13-27; 10:26-33; 12:36,37; 13:24-50; 22:1-14; 24:36-25:46; Lucas 13:23-30, 16:19-31; João 5:22-30. A prefiguração mais clara de Jesus como juiz está em Mateus 25:31-34,41:
Quando o Filho do homem vier [...] assentar-se-á em seu trono na glória celestial. Todas as nações [isto é, todas as pessoas] serão reunidas diante dele, e ele separará umas das outras [...] Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: "Venham, benditos de meu Pai! Recebam como herança o Reino" [...] Então ele dirá aos que estiverem à sua esquerda: "Malditos!, apartem-se de mim para o fogo eterno".
O registro mais claro da prerrogativa de Jesus como Juiz encontra-se em João 5:22,23,26-29:
O Pai a ninguém julga, mas confiou todo julgamento ao Filho, para que todos honrem o Filho como honram ao Pai [...] o Pai [...] deu-lhe autoridade para julgar, porque é o Filho do homem [a quem foi prometido domínio, incluindo-se as funções de juiz, Dn 7:13,14] [...] pois está chegando a hora em que todos os que estiverem nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão; os que fizeram o bem ressuscitarão para a vida; e os que fizeram o mal ressuscitarão para serem condenados.
2The book of common prayer, versão eletrônica .
A própria indicação de Deus tornou o ofício de Jesus Cristo inevitável. Ele está no fim da jornada da vida de todas as pessoas, sem exceção. "Prepare-se para encontrar-se com o seu Deus, ó Israel" (Am 4:12) foi a mensagem de Amós a Israel. "Prepare-se para encontrar-se com Jesus ressuscitado" é a mensagem de Deus hoje ao mundo (v. At 17:31). Podemos ter a certeza de que o verdadeiro Deus e homem perfeito será um juiz perfeitamente justo.
Indicativos do coração
O julgamento final, como já vimos, avaliará nossas obras, isto é, o que fizemos no decurso da vida. A relevância de nossos feitos não está em merecer um prêmio da corte — eles estão muito aquém da perfeição para isso —, mas em indicar o que há no coração — isto é, a natureza real de cada agente. Jesus disse certa vez: "... os homens haverão de dar conta de toda palavra inútil que tiverem falado. Pois por suas palavras vocês serão absolvidos, e por suas palavras vocês serão condenados" (Mt 12:36,37).
Qual o significado das palavras que pronunciamos (cuja expressão é, lógico, uma "obra" no sentido apropriado)? Exatamente este: as palavras mostram o que você é interiormente. Jesus salientou bem este ponto: "Pois uma árvore é conhecida por seu fruto [...] como podem vocês, que são maus, dizer coisas boas? Pois a boca fala do que está cheio o coração" (v. 33,34). Assim também, na passagem sobre as ovelhas e os cabritos, é feita uma citação sobre o fato de alguém ter ou não atendido às necessidades dos cristãos. Qual o significado disso? Não quer dizer que um modo de agir seja meritório e o outro não, mas que mediante essas ações pode-se dizer se houve amor a Cristo, procedente da fé, no coração. (v. Mt 25:34-46.)
Uma vez que tenhamos compreendido que o significado das obras no julgamento final são indicativos do caráter espiritual, torna-se possível responder a uma pergunta que tem confundido muitas pessoas. Ela pode ser formulada do seguinte modo: Jesus disse: "Quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não será condenado, mas já passou da morte para a vida" (Jo 5:24). Paulo afirmou: "Pois todos nós devemos comparecer perante o tribunal de Cristo, para que cada um receba de acordo com as obras praticadas por meio do corpo, quer sejam boas, quer sejam más" (2Co 5:10). Como podemos juntar estas duas afirmações? Como o perdão gratuito e a justificação pela fé se enquadram no julgamento pelas obras?
A resposta parece ser a seguinte. Primeiro, o dom da justificação certamente protege os cristãos de ser condenados e banidos da presença de Deus como pecadores. Isto aparece na visão do julgamento em Apocalipse 20:11-15, em que, junto com os "livros" onde estão registradas todas as obras de cada pessoa, é aberto o "livro da vida". As pessoas cujos nomes estiverem escritos nele não serão "lançadas no lago de fogo", como acontecerá com as demais.
Entretanto, em segundo lugar, a dádiva da justificação não protegerá de modo algum OS cristãos de serem avaliados como cristãos e de perderem benefícios que outros desfrutarão se ficar provado que, como cristãos, foram negligentes, maldosos e destrutivos. Paulo adverte os coríntios de que sejam cuidadosos com o tipo de vida que construíram sobre o único fundamento, Cristo.
Se alguém constrói sobre esse alicerce usando ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno ou palha, sua obra será mostrada, porque o Dia a trará à luz; pois será revelada pelo fogo, que provará a qualidade da obra de cada um. Se o que alguém construiu permanecer, esse receberá recompensa. Se o que alguém construiu se queimar, esse sofrerá prejuízo; contudo, será salvo como alguém que escapa através do fogo.
1Coríntios 3:12-15
Recompensa e prejuízo significam um relacionamento mais rico ou mais pobre com Deus, embora atualmente esteja além de nossas possibilidades determinar como será isso.
O julgamento final também corresponderá ao conhecimento. Todos sabem alguma coisa sobre a vontade de Deus por meio da revelação geral, mesmo que não tenham sido instruídos na lei ou no Evangelho, e todos são culpados diante de Deus por não corresponder ao que sabem. O demérito, porém, é proporcional ao grau desse conhecimento (v. Rm 2:12; cf. Lc 12:47). Este é o princípio aqui empregado: "A quem muito foi dado, muito será exigido" (v. 48). A justiça é evidente neste ponto. O juiz de toda a terra agirá retamente em cada caso.
Sem necessidade de fugir
Paulo se refere ao fato de que todos devemos comparecer diante do tribunal de Cristo com o "temor ao Senhor" (2Co 5:11), e ele está com a razão. Jesus, o Senhor, da mesma forma que seu Pai, é santo e puro; nós não somos nem uma coisa nem outra.
Vivemos debaixo de seus olhos, ele conhece nosso interior, e no dia do julgamento será feita diante dele a recapitulação de toda nossa vida passada, uma espécie de revisão. Se nos conhecemos realmente, sabemos que não estamos qualificados para comparecer diante dele. Que devemos fazer então? A resposta do Novo Testamento é: clame ao Juiz para que se torne seu Salvador no presente.
Como juiz ele é a lei, mas como Salvador é o Evangelho. Fuja dele agora e você o encontrará mais tarde como Juiz, e sem esperança. Busque-o agora e você o encontrará (pois "quem busca acha"), e descobrirá que está à espera do futuro encontro com a alegria, sabendo que agora "já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus" (Rm 8:1). Assim:
És amparo no viver, És consolo no morrer,
Esperança no porvir: Tu vieste me remir. Rocha eterna, a me salvar, Hei de em ti me refugiar!3
3Hinário das Igrejas Evangélicas Reformadas no Brasil, p. 558 (último verso).
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A ira de Deus
A palavra ira significa "um intenso sentimento de ódio ou rancor". Ódio é definido como "aversão intensa"; rancor é "mágoa guardada por uma ofensa ou um mal recebido". Assim é a ira. E a Bíblia nos diz que a ira é um dos atributos divinos.
O hábito moderno na maioria das igrejas é falar pouco sobre esse assunto. Quem ainda crê na ira de Deus (nem todos o fazem) fala pouco sobre ela, e talvez pense pouco também sobre isso. Em uma época que se tem vendido vergonhosamente aos deuses da ganância, orgulho, sexo e egoísmo, a Igreja apenas emite murmúrios sobre a bondade de Deus, e quase nada enuncia sobre seu julgamento. Quantas vezes você ouviu falar a respeito disso no último ano. Ou, se você é ministro, pregou algum sermão sobre a ira de Deus? Quanto tempo faz que um cristão mencionou diretamente esse assunto no rádio ou na televisão, ou em pequenos sermões de meia coluna que aparecem em alguns jornais e revistas? (E se alguém o fizesse, quanto tempo passaria até que alguém lhe pedisse que escrevesse novamente sobre o assunto?).
O fato é que o assunto da ira divina tornou-se praticamente um tabu na sociedade moderna, e os cristãos em geral aceitaram essa definição e se condicionaram a nunca levantar o assunto.
Poderíamos perfeitamente perguntar se essa atitude está correta, já que a Bíblia se comporta de modo bem diferente. Não é possível imaginar que o julgamento divino fosse um assunto muito popular; entretanto, os escritores bíblicos se referem a ele constantemente. Uma das coisas mais impressionantes sobre a Bíblia é o vigor com que os dois Testamentos destacam a realidade e o terror da ira de Deus: "Um estudo da concordância mostrará que nas Escrituras há mais referências à cólera, fúria e ira de Deus do que ao seu amor e bondade".1
A Bíblia afirma que Deus é tão bom para aqueles que confiam nele, como é terrível para os que não confiam:
O Senhor é Deus zeloso e vingador! O Senhor é vingador! Seu furor é terrível! O Senhor executa vingança contra os seus adversários, e manifesta indignação contra os seus inimigos. O Senhor é muito paciente, mas o seu poder é imenso, o Senhor não deixará impune o culpado. [...] Quem pode resistir à sua indignação? Quem pode suportar o despertar de sua ira? O seu furor se derrama como fogo, e as rochas se despedaçam diante dele. O Senhor é bom, um refúgio em tempos de angústia. Ele protege os que nele confiam [...] expulsará os seus inimigos para a escuridão.
Naum 1:2-8
A expectativa de Paulo era de que o Senhor Jesus um dia aparecerá "em meio a chamas flamejantes. Ele punirá os que não conhecem a Deus e os que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus. Eles sofrerão a pena de destruição eterna, a separação da presença do Senhor e da majestade do seu poder. Isso acontecerá no dia em que ele vier para ser glorificado em seus santos" (2Ts 1:7-10).
Essa passagem é suficiente para lembrar que a ênfase de Naum não é peculiar ao Antigo Testamento. Na realidade, ao longo de todo o Novo Testamento "a ira de Deus", "a ira", ou simplesmente "ira" são termos quase técnicos para a ação divina retributiva, qualquer que seja o meio empregado, contra quem o desafiou (v. Rm 1:18; 2:5; 5:9; 12:19; 13:4,5; lTs 1:10; 2:16; 5:9; Ap 6:16,17; 16:19; Lc 21:22-24 etc).
1Arthur W. Pink, The attributes of God, .
A Bíblia também não nos apresenta a ira de Deus apenas por meio de declarações gerais como as citadas. A história bíblica, como vimos no último capítulo, proclama em alta voz tanto a severidade como a bondade de Deus. Assim como o O peregrino2 pode ser tido como um livro a respeito dos caminhos que levam ao inferno, a Bíblia poderia ser chamada "o livro da ira de Deus", pois está repleta de narrativas da retribuição divina, desde a maldição e expulsão de Adão e Eva em Gênesis 3 até a derrota da Babilônia e o grande tribunal de Apocalipse 17,18 e 20.
O tema da ira de Deus é claramente usado sem nenhuma inibição pelos escritores bíblicos. Por que deveríamos senti-la então? Por que nos sentiríamos obrigados a silenciar sobre o assunto quando a Bíblia trata dele? O que nos deixa atrapalhados e constrangidos quando surge o assunto, fazendo-nos correr para abafá-lo, evitando discuti-lo quando nos perguntam sobre ele? O que está por trás de nossa hesitação e dificuldade?
Não estamos pensando agora em quem recusa a idéia da ira divina por não estar preparado para levar a sério qualquer parcela da fé bíblica. Ao contrário, pensamos nos muitos que se consideram "de dentro", crendo firmemente no amor e na piedade de Deus, na obra redentora do Senhor Jesus Cristo, seguidores resolutos das Escrituras nos demais assuntos e, no entanto, vacilam quando esta questão é levantada. Qual o verdadeiro problema neste ponto?
Com o que se parece a ira de Deus
A raiz de nossa infelicidade parece ser a inquietante suspeita de que idéias sobre a ira sejam de alguma forma indignas de Deus. Para alguns, por exemplo, "ira" sugere perda do autocontrole, o ato de "ver tudo
2John Bunyan, São Paulo: Mundo Cristão, 1999.
vermelho", o que, em parte, se não no todo, é puramente irracional. Para outros, sugere o furor da impotência consciênte, o orgulho ferido, ou simplesmente mau gênio. Certamente, dizem, seria errado atribuir a Deus atitudes como essas.
A resposta é: de fato seria, mas a Bíblia não nos pede que façamos isso. Parece haver aqui um mal-entendido quanto à linguagem antro-pomórfica das Escrituras, isto é, a descrição das atitudes e emoções de Deus em termos comumente usados para se referir aos seres humanos. A base dessa prática é o fato de que Deus fez o ser humano a sua imagem, assim nossa personalidade e nosso caráter são mais semelhantes à natureza de Deus que qualquer outra coisa conhecida. Entretanto, quando as Escrituras falam de Deus antropomorficamente, não implica que as limitações e imperfeições características das pessoas, criaturas pecadoras, pertençam também às qualidades correspondentes de nosso santo Criador; ao contrário, tem-se por certo que isso não acontece.
Assim, o amor divino, como a Bíblia o vê, nunca leva Deus a agir insensata, impulsiva e imoralmente, como seu correlato humano muito freqüentemente nos leva. Do mesmo modo, a ira de Deus na Bíblia jamais é caprichosa, auto-indulgente, irritável e moralmente ignóbil, como em geral é a ira humana. Ao contrário, a ira de Deus é a reação justa e necessária à perversidade moral. Deus só se ira quando a situação o exige.
Mesmo entre os seres humanos, há o que chamamos indignação justa, embora talvez seja raramente encontrada. Entretanto toda indignação de Deus é justa. Um Deus que tivesse tanto prazer no mal quanto no bem seria um Deus bom? Um Deus que não reagisse contra o mal em seu mundo seria moralmente perfeito? É claro que não. Pois é exatamente esta reação contra o mal, parte necessária da perfeição moral, que a Bíblia tem em vista quando fala da ira de Deus.
Para outros então, imaginar sobre a ira de Deus sugere crueldade. Pensam, talvez, no que se conta sobre o famoso sermão de Jonathan Edwards, Pecadores nas mãos de um Deus irado, usado para levar ao despertamento a cidade de Enfield, na Nova Inglaterra, em 1741. Nesse sermão, Edwards, ao desenvolver o tema de que "os homens impenitentes estão detidos nas mãos de Deus por cima do abismo do inferno",3 usou da mais vivida imagem da fornalha ardente para levar sua congregação a sentir o horror de sua situação e reforçar assim sua conclusão: "Portanto, todo aquele que está fora de Cristo desperte agora e fuja da ira vindoura".4
Qualquer pessoa que leu esse sermão saberá que Augustus H. Strong, o grande teólogo batista, estava certo quando salientou que as imagens apresentadas por Edwards, embora claramente focalizadas, não passavam de imagens. Ou seja, que Edwards "não considera o inferno um lugar composto de fogo e enxofre, mas uma consciência culpada e acusada de falta de santidade e separação de Deus, as quais são simbolizadas pelo fogo e pelo enxofre".5 Mas isto não satisfaz inteiramente as críticas feitas a Edwards de que o Deus capaz de infligir uma punição que requer tal linguagem descritiva deve ser um monstro terrível e cruel.
Isto tem fundamento? Duas considerações bíblicas mostram que não.
Em primeiro lugar, a ira de Deus na Bíblia é sempre judicial, isto é, a ira do juiz aplicando a justiça. A crueldade é sempre imoral, mas a pressuposição explícita de tudo o que vemos na Bíblia — e no sermão de Edwards com respeito ao assunto — sobre os tormentos de quem experimentará a plenitude da ira de Deus é que cada um recebe exatamente o que merece. O "dia da ira", diz Paulo, é também o dia "quando se revelará o seu justo julgamento. Deus 'retribuirá a cada um conforme o seu procedimento'" (Rm 2:5,6). O próprio Jesus, que na realidade tinha mais para dizer sobre este assunto do que qualquer outra figura do Novo Testamento, salientou que a recompensa seria proporcional ao merecimento individual.
3São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, s/d, p. 9.
4Ibid., p. 24.
5Teologia sistemática, São Paulo: Hagnos, 2003, v. 2, p. 849.
Aquele servo que conhece a vontade de seu senhor e não prepara o que ele deseja, nem o realiza, receberá muitos açoites. Mas aquele que não a conhece e pratica coisas merecedoras de castigo receberá poucos açoites. A quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado muito mais será pedido.
Lucas 12:47,48
Diz Edwards no sermão já citado: Deus "fará que sofram na medida exata que sua rigorosa justiça vier a requerer";6 mas é exatamente esse "estritamente exigido pela justiça", ele insiste, que será tão doloroso para os que morrem na descrença. Se se perguntar: pode a desobediência ao Criador realmente merecer um castigo tão grande e doloroso? Qualquer pessoa que já esteja convicta de seu pecado sabe sem sombra de dúvida que a resposta é afirmativa, e sabe também que aqueles cuja consciência não foi ainda despertada para considerar, como disse Anselmo,7 "como o pecado é pesado" não estão qualificados para opinar.
Em segundo lugar, a ira de Deus na Bíblia é algo que as pessoas escolhem por si mesmas. Antes de o inferno ser uma experiência imposta por Deus, é a condição pelo qual a pessoa optou, afastando-se da luz que Deus faz brilhar em seu coração para dirigi-lo por si. João escreveu: "quem não crê [em Jesus] já está condenado, por não crer no nome do Filho Unigênito de Deus". E continuou explicando: "Este é o julgamento: a luz veio ao mundo, mas os homens amaram as trevas, e não a luz, porque as suas obras eram más" (Jo 3:18,19). É exatamente isso o que João quer dizer: o ato decisivo da condenação sobre os perdidos reside no juízo auto-imposto pela rejeição da luz que os alcança em Jesus Cristo e por meio dele. Em última análise, tudo o que Deus faz subseqüentemente, aplicando a ação judicial ao descrente, é com a finalidade de mostrar-lhe a conseqüência total da escolha que fez e levá-lo a senti-la.
6Op. cit., p. 18.
7Anselmo da Cantuária (1033-1109), italiano nascido na Aosta, tornou-se sacerdote e mais tarde foi feito arcebispo de Cantuária (Inglaterra). Famoso teólogo, filósofo e escritor do século xii.
A escolha básica sempre foi e continua sendo simples: responder à intimação "Venham a mim [...] Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim" (Mt 11:28,29), ou não atendê-la; "salvar" sua vida evitando a censura de Jesus e resistindo a sua ordem para assumir o controle da mesma ou "perdê-la" negando a si mesmo, carregando sua cruz, tornando-se discípulo, deixando que Jesus atue em sua vida como lhe aprouver. No primeiro caso, Jesus nos diz, podemos ganhar o mundo, mas não tiraremos nenhum proveito disso, pois perderemos a alma, enquanto, no segundo caso, perdendo a vida por amor a ele, a encontraremos (Mt 16:24-26).
O que significa, então, perder a alma? Para responder a essa pergunta Jesus usa suas figuras solenes: Geena ("inferno", em Mc 9:47 e em outros dez textos do Evangelho), o vale fora de Jerusalém onde o lixo era queimado; o verme que não morre, imagem, ao que nos parece, da dissolução contínua da personalidade mediante a consciência acusadora; fogo, pela agonizante consciência do desprazer de Deus; trevas exteriores, pelo conhecimento da perda, não apenas de Deus, mas de tudo o que é bom e tudo o que torna a vida digna de ser vivida; ranger de dentes pela autocondenação e repulsa íntima.
Estas coisas são, sem dúvida, terrivelmente sombrias, embora os que estão convencidos do pecado conheçam um pouco de sua natureza. Tais punições, contudo, não são arbitrárias, ao contrário, representam o desenvolvimento consciente rumo à situação que a pessoa escolheu para si. O descrente preferiu ser independente, sem Deus, desafiando-o, tendo-o contra si, e terá, então, o que prefere. Ninguém permanecerá sob a ira de Deus a menos que o queira. A essência da ação divina na ira é dar às pessoas o que escolheram, com todas suas implicações; nada mais e nada menos. A presteza de Deus em respeitar a escolha humana em toda a extensão pode parecer desconcertante e mesmo aterradora, mas é claro que sua atitude aqui é essencialmente justa, e muito diferente do sofrimento infligido arbitrária e irresponsavelmente — o que consideramos crueldade.
Precisamos, portanto, lembrar que a chave da interpretação para muitas passagens bíblicas, no geral majoritariamente figuradas, que mostram o Rei e Juiz divino agindo contra o ser humano com ira e vingança, está em compreender que o que Deus faz nada mais é que confirmar o veredicto já proclamado sobre si mesmos por aqueles aos quais "visitou", tendo em vista o caminho que resolveram seguir. Isto aparece na narrativa do primeiro ato da ira de Deus para com ser humano, em Gênesis 3, onde vemos que Adão resolveu por si mesmo se esconder de Deus e sair de sua presença antes mesmo que Deus o expulsasse do jardim; e esse mesmo princípio é usado em toda a Bíblia.
A IRA EM ROMANOS
O tratamento clássico dado no Novo Testamento à ira divina é encontrado na carta aos romanos, que Lutero e Calvino consideravam a porta de entrada da Bíblia e que na verdade contém referências mais explícitas sobre a ira de Deus que as encontradas nas demais cartas de Paulo. Terminaremos este capítulo analisando o que esta carta nos diz sobre isso: um estudo que servirá para esclarecer alguns pontos já estudados.
1. O significado da ira de Deus. Em Romanos a ira de Deus denota sua ação resoluta na punição do pecado. É tanto a expressão de uma atitude pessoal e emocional do Jeová triúno quanto é de seu amor pelos pecadores: é a manifestação ativa de seu ódio à descrença e à perversidade moral. A expressão ira pode referir-se especificamente à futura manifestação do auge desta aversão no "dia da ira" (2:5; 5:9), mas pode também se referir aos acontecimentos e processos atuais da providência nos quais se pode discernir a retribuição ao pecado. Assim, a autoridade que condena os criminosos é "serva de Deus, agente da justiça para punir quem pratica o mal" (13:4). A ira de Deus é sua reação ao nosso pecado e "a Lei produz a ira" (4:15) porque ela incita o pecado latente em nós e multiplica a transgressão, comportamento que evoca a ira (5:2; 7:7-13). Como reação ao pecado, a ira de Deus é expressão de sua justiça.
Paulo rejeita, indignado, a sugestão de que "Deus é injusto por aplicar a sua ira" (3:5). O apóstolo descreve as pessoas "preparadas para a perdição" como "vasos da ira", isto é, objetos da ira, no mesmo sentido que ele em outra parte as chama de servos do mundo, da carne e do demônio, "merecedores da ira" (Ef 2:3). Tais pessoas simplesmente por serem o que são atraem sobre si a ira de Deus.
2. A revelação da ira de Deus. "Porquanto, a ira de Deus é revelada dos céus contra toda impiedade e injustiça dos homens que suprimem a verdade pela injustiça" (1:18). O tempo do verbo no presente — "é revelada" — implica manifestação constante, agindo durante todo o tempo; "dos céus", que atua como contraste ao "Evangelho" nos versículos anteriores, implica a manifestação universal atingindo quem não foi ainda alcançado pelo Evangelho.
Como se processa a revelação? Ela é impressa diretamente na consciência de cada pessoa: os que Deus "entregou a uma disposição mental reprovável" (1:28) para se entregar ao mal entretanto conhecem "o justo decreto, de que as pessoas que praticam tais coisas merecem a morte" (1:32). Nenhuma pessoa é inteiramente ignorante sobre o julgamento futuro. Essa revelação imediata é confirmada pela palavra revelada no Evangelho, que nos prepara para as boas novas falando-nos a respeito das más notícias do "dia da ira de Deus, quando se revelará o seu justo julgamento" (2:5).
E isso não é tudo. Aos que têm olhos para ver, os sinais da ira de Deus aparecem aqui e agora em situações reais da humanidade. Em todas as partes os cristãos observam um tipo de degeneração agindo constantemente — do conhecimento de Deus à adoração do que não é Deus, e da idolatria à imoralidade da pior espécie, de modo que cada geração cria uma nova safra com a "impiedade e a injustiça dos homens". Neste declínio temos de reconhecer a ação presente da ira divina, em um processo de rigidez judicial e cancelamento de restrições pelo qual as pessoas se entregam a suas preferências corruptas e põem em prática, cada vez mais desinibidamente, a concupiscência de seu coração pecador. Paulo descreve o processo, como ele conhecia a partir da Bíblia e do mundo de seus dias, em Romanos 1:19-31. As frases principais são: "Deus os entregou à impureza sexual, segundo os desejos pecaminosos do seu coração", "Deus os entregou a paixões vergonhosas", "ele os entregou a uma disposição mental reprovável" (1:24,26,28).
Se você quer a prova de que a ira de Deus, revelada como um fato em sua consciência, já está agindo como uma força no mundo, Paulo lhe diria que basta olhar a seu redor. Você verá a que tipo de coisas Deus entregou os homens. Hoje, 21 séculos após sua carta ter sido escrita, quem poderá desmentir suas teses?
3. O livramento da ira de Deus. Nos três primeiros capítulos de Romanos, Paulo está preocupado em lançar-nos a pergunta: se "a ira de Deus é revelada dos céus contra toda impiedade e injustiça dos homens", e "o dia da ira virá", quando Deus "recompensará cada um conforme as suas obras", como podemos escapar de tal desastre? A questão nos oprime porque estamos todos "debaixo do pecado"; "Não há nenhum justo, nem um sequer"; "Todo o mundo" está "sob o juízo de Deus" (3:9,10,19).
A lei não nos pode salvar, pois seu único efeito é estimular o pecado e nos mostrar como estamos longe de cumprir a justiça. A pompa exterior da religião também não nos pode salvar, assim como a circuncisão não pode salvar o judeu. Haverá então algum livramento da ira futura? Existe, e Paulo sabe disso. "Como agora fomos justificados por seu sangue", Paulo proclama, "muito mais ainda, por meio dele, seremos salvos da ira de Deus!" (5:9). Sangue de quem? O sangue de Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado. E o que quer dizer "justificado"? Significa ser perdoado e aceito como justo. Como somos justificados? Pela fé, isto é, pela confiança total na pessoa e obra de Jesus. E como o sangue de Jesus, sua morte sacrificial, constitui a base da justificação? Paulo explica isso em Romanos 3:24,25, onde ele fala da "redenção que há em Cristo Jesus. Deus o ofereceu como sacrifício para propiciação mediante a fé, pelo seu sangue". Que é propiciação? É o sacrifício que afasta a ira pela expiação do pecado e pelo cancelamento da culpa.
Isto, como veremos mais detalhadamente adiante, é o verdadeiro núcleo do Evangelho: que Jesus Cristo, pela virtude de sua morte na cruz como nosso substituto, levando nossos pecados, "é a propiciação pelos nossos pecados" (1Jo 2:2). Entre nós, os pecadores, e as nuvens carregadas da ira divina, levanta-se a cruz do Senhor Jesus. Se somos de Cristo, pela fé, então estamos justificados pela sua cruz, e a ira não nos atingirá quer aqui quer no futuro. Jesus "nos livra da ira vindoura" (1Ts 1:10).
A REALIDADE SOLENE
A verdade, sem dúvida alguma, é que o assunto da ira divina no passado foi usado especulativa, irreverente e mesmo maldosamente. Não há dúvida de que houve quem pregasse sobre a ira e a maldição com os olhos secos e sem nenhum sentimento no coração. O fato de pequenas seitas enviarem com alegria o mundo todo para o inferno, com exceção de si mesmas, com razão desagradou a muitos. Entretanto, se queremos conhecer a Deus, é vital que enfrentemos a verdade a respeito de sua ira, não importa quão fora de moda possa estar ou quão forte tenha sido nosso preconceito contra ela. De outro modo, não entenderemos o Evangelho que salva da ira, nem a realização propiciatória da cruz, nem a maravilha do amor redentor de Deus. Nem ainda entenderemos a mão divina na história e sua ação entre nosso povo. Não saberemos o que pensar sobre o Apocalipse, nem nosso evan-gelismo terá a urgência imposta por Judas: "a outros, salvem, arrebatando-os do fogo" (v. 23). Nem ainda nosso conhecimento de Deus ou o culto a ele estará de acordo com sua Palavra. Escreveu Arthur W. Pink:
A ira de Deus é a perfeição do caráter divino sobre o qual precisamos meditar freqüentemente. Primeiro, para que nosso coração possa ficar devidamente impressionado com o ódio divino contra o pecado. Temos a tendência de dar pouca atenção ao pecado, encobrir sua hediondez, desculpá-lo; mas, quanto mais estudamos e pensamos no horror que Deus tem pelo pecado e em sua terrível vingança contra ele, estaremos mais aptos a compreender sua infâmia. Segundo, criar o verdadeiro temor a Deus. em nossa alma para que "sejamos agradecidos e, assim, adoremos a Deus de modo aceitável, com reverência e temor, pois o nosso 'Deus é fogo consumidor'" (Hb 12:28,29). Não podemos servi-lo "aceitavelmente" a menos que haja "reverência" por sua impressionante majestade e "temor" por sua justa ira, e tudo fica mais fácil quando nos lembramos freqüentemente de que "nosso 'Deus é fogo consumidor'". Terceiro, levar nossa alma ao fervoroso louvor (a Jesus Cristo) por ter-nos livrado da "ira vindoura" (1Ts 1:10). Nossa presteza ou relutância em meditar sobre a ira de Deus torna-se um teste seguro para saber se nosso coração está realmente dedicado a ele.8
Pink está certo. Se quisermos conhecer verdadeiramente a Deus e ser conhecidos por ele devemos pedir-lhe que nos ensine a considerar a solene realidade de sua ira.
8
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Bondade e severidade
"Portanto, considere a bondade e a severidade de Deus", escreveu Paulo em Romanos 11:22. A palavra-chave neste ponto é o e.O apóstolo explica a relação entre judeus e gentios no plano de Deus, e acabou de recordar aos gentios que Deus rejeitara a grande massa de judeus, seus contemporâneos, por sua incredulidade, enquanto na mesma época levava muitos pagãos à fé salvadora, como fizera com eles. Paulo chama agora sua atenção para os dois lados do caráter de Deus que aparecem nesse procedimento. "Portanto, considere a bondade e a severidade de Deus: severidade para com aqueles que caíram, mas bondade para com você". Os cristãos de Roma não deviam contar apenas com a bondade de Deus, nem só com sua severidade, mas considerar as duas em conjunto. Ambas são atributos, aspectos de seu caráter. Aparecem lado a lado em todo o processo da graça e, para que se conheça verdadeiramente a Deus, devem ser juntamente conhecidas.
Papai Noel e o desespero gigante
Desde que Paulo escreveu, creio que nunca houve mais necessidade de explorar esse ponto que hoje. A confusão e o desnorteamento atuais a respeito do significado da fé em Deus é quase impossível de descrever. Os homens dizem crer em Deus, mas não têm idéia de quem seja aquele em quem crêem nem que diferença pode fazer acreditar nele.
O cristão que quiser ajudar os companheiros que se debatem com o que um tratado famoso e antigo costumava denominar Segurança, certeza e alegria1 fica constantemente confuso, sem saber por onde começar. A fantástica mistura de idéias sobre Deus com que se depara quase o faz perder o fôlego, e ele pergunta: Como as pessoas puderam chegar a tal confusão? Como ela começou? Por onde começar para tirá-los dessa situação?
Para essas perguntas há diversos tipos de respostas complementares. Uma delas é que as pessoas começam a seguir uma forma particular de religião em lugar de aprender sobre Deus na própria Palavra. Devemos tentar levá-las a esquecer o orgulho e, em alguns casos, as idéias erradas sobre as Escrituras que originaram sua atitude, e orientá-las a fundamentar suas convicções daí por diante não em seus sentimentos, mas no que a Bíblia diz.
A segunda resposta é que hoje as pessoas consideram todas as religiões iguais ou equivalentes e extraem suas idéias sobre Deus tanto de fontes pagãs como cristãs. É preciso esforçar-nos para mostrar ao povo a singularidade e finalidade do Senhor Jesus Cristo, a última palavra de Deus ao ser humano.
A terceira resposta é que as pessoas deixaram de reconhecer a realidade de sua pecaminosidade, o que comunica um grau de perversidade e inimizade contra Deus sobre tudo o que pensam e fazem. É nosso dever levá-los a reconhecer esse fato a respeito de si mesmos e assim fazê-los menos autoconfiantes e abertos à correção pela palavra de Cristo.
A quarta resposta, não menos fundamental que as anteriores, é que as pessoas têm hoje o hábito de dissociar a idéia da bondade de Deus de
1Referência a um artigo escrito por volta do ano 1900, com o título acima, por George Cutting (1834-1934).
sua severidade. Precisamos procurar demovê-las desse hábito, pois enquanto persistirem nele o resultado será sempre a descrença.
O hábito em questão, primeiramente aprendido de alguns talentosos teólogos alemães do século xrx, contagiou todo o protestantismo ocidental. Rejeitar todas as idéias da ira divina e do julgamento, e presumir que o caráter de Deus, mal-representado (sem dúvida!) em muitas partes da Bíblia, é realmente de indulgente benevolência sem nenhuma severidade, é a regra quase sem exceção entre as pessoas comuns hoje.
É verdade que alguns teólogos, reagindo a esse pensamento, têm tentado reafirmar a verdade da santidade de Deus, mas seus esforços parecem tímidos e suas palavras têm caído, na maior parte das vezes, em ouvidos moucos. Os protestantes modernos não desistirão de sua adesão "iluminada" à doutrina de um Papai Noel celestial simplesmente porque um Brunner2 ou um Niebuhr3 suspeitam de que a história não seja realmente assim. A certeza de que não há mais nada a dizer sobre Deus (caso ele exista) além de ser infinitamente paciente e bondoso é de tão difícil eliminação quanto uma erva daninha. Uma vez que ela tenha criado raízes, o cristianismo, no verdadeiro sentido da palavra, simples-
mente definhará, pois sua essência é a fé no perdão dos pecados pela obra redentora de Cristo na cruz.
Partindo da teologia de Papai Noel, entretanto, o pecado não traz problema algum e o sacrifício se torna desnecessário. A generosidade de Deus se estende tanto aos que desobedecem a suas ordens quanto aos que as cumprem. A
2Emil Brunner (1889-1966), teólogo neo-ortodoxo, membro da Igreja Suíça. Acreditava que as pessoas poderiam conhecer a Deus por meio do que denominava "teologia natural". O foco do trabalho de Brunner era a ética social.
3Reinhold Niebuhr (1892-1971), o mais proeminente pastor neo-ortodoxo dos Estados Unidos. Foi professor de teologia no Union Theological Seminary. Acreditava que a teologia cristã era mais um conjunto de doutrinas humanas que divinas, e que as narrativas bíblicas eram mais míticas que reais. Além disso, Jesus possuía uma natureza pecaminosa.
idéia de que a atitude de Deus para comigo é afetada pelo fato de eu fazer ou não o que ele diz não tem lugar na mente da pessoa comum. Qualquer tentativa de mostrar a necessidade do temor na presença de Deus e do tremor diante de sua palavra é tida por impossível, fora de moda, "vitoriana", "puritana" e "subcristã".
Entretanto, a teologia de Papai Noel porta em si mesma a semente do próprio colapso, pois não pode fazer frente à realidade do mal. Não foi por acidente que, ao espalhar-se a crença no "bom Deus" do liberalismo, mais ou menos no começo do século xx, o assim chamado "problema do mal" (que antes não era considerado um problema) de repente alcançou notoriedade, como a principal preocupação da apologética cristã. Isto era inevitável, pois não é possível ver a boa vontade de um Papai Noel celestial em coisas que causam sofrimento e destruição, como a crueldade, a infidelidade conjugai ou a morte nas estradas ou de câncer no pulmão. O único modo de salvar o conjunto da teologia liberal sobre Deus é dissociá-lo dessas coisas e negar que ele tenha qualquer relação direta com elas ou controle sobre elas. Em outras palavras, negam sua onipotência e domínio sobre o mundo.
A teologia liberal tomou esse rumo há uns sessenta anos e as pessoas hoje a aceitam. Assim ele é visto como um tipo de Deus que tem boas intenções, mas nem sempre pode afastar seus filhos de problemas e sofrimentos. Quando vêm as dificuldades não há o que fazer a não ser aceitá-las. Desse modo, por um irônico paradoxo, a fé no Deus todo-bondade e nada severo leva as pessoas a assumirem uma atitude fatalista e pessimista diante da vida.
Eis aí, então, uma das encruzilhadas religiosas de nossos dias, levando (como de um modo ou de outro o fazem) para a terra do "Castelo da Dúvida" e do "Gigante Desespero".4 Como pode voltar para a estrada certa quem tem trilhado este caminho? Só aprendendo a relacionar a bondade de Deus com sua severidade, de acordo com as Escrituras. Nosso propósito aqui é esboçar a essência do ensinamento bíblico sobre este ponto.
4Figuras encontradas em O peregrino.
A BONDADE DE DEUS
A bondade, tanto em Deus como no ser humano, significa o que é admirável, atraente e digno de louvor. Quando os escritores bíblicos chamam Deus bom, em geral estão pensando nas qualidades morais que levam seu povo a chamá-lo perfeito, e em particular na generosidade que os leva a chamá-lo misericordioso e gracioso e a falar de seu amor. Vamos pensar nisso um pouco.
A Bíblia atesta constantemente a perfeição moral de Deus, como declarado por suas palavras e pela experiência de seu povo. Quando Deus se colocou junto a Moisés no Sinai e "proclamou o seu nome [revelou o caráter]: o Senhor [Deus como o Jeová de seu povo, o soberano salvador que disse de si mesmo "Eu sou o que sou", na aliança da graça], o que ele declarou foi isto: "... Senhor, Senhor, Deus compassivo e misericordioso, paciente, cheio de amor e de fidelidade, que mantém o seu amor a milhares e perdoa a maldade, a rebelião e o pecado. Contudo, não deixa de punir o culpado..." (Êx 34:5-7).
Essa proclamação da perfeição moral divina foi executada como cumprimento de sua promessa de fazer toda a sua bondade passar diante de Moisés (Êx 33:19). A bondade de Deus, no sentido mais amplo da soma total de suas excelências manifestadas, se constitui de todas as perfeições específicas aqui mencionadas e tudo o mais que as acompanha — a fidelidade e lealdade de Deus, sua justiça e sabedoria infalíveis, sua brandura e paciência e completa suficiência para com todos os que penitentemente buscam seu auxílio, e sua nobre generosidade oferecendo às pessoas o sublime destino da convivência com ele em santidade e amor.
Quando Davi declarou: "Este é o Deus cujo caminho é perfeito" (2Sm 22:31; Sl 18:30), o que ele quis dizer é que o povo de Deus descobre pela experiência, como aconteceu com ele próprio, que a bondade de Deus nunca é menor do que ele afirmou ser. "Este é o Deus cujo caminho é perfeito; a palavra do Senhor é comprovadamente genuína. Ele é escudo para todos os que nele se refugiam". Todo o salmo é uma declaração retrospectiva de como Davi havia provado por si mesmo a fidelidade de Deus a suas promessas e sua suficiência como escudo protetor. Todos os filhos de Deus que não tenham perdido seu direito inato por causa da apostasia desfrutam uma experiência semelhante.
(Se você nunca leu esse salmo com muito cuidado, perguntando a si mesmo a cada instante quantas vezes seu testemunho se iguala ao de Davi, insisto para que faça isso imediatamente, e depois repita outras vezes de tempos em tempos. Você descobrirá que essa é uma disciplina salutar, ainda que perturbadora.)
Entretanto, há mais para dizer. Em meio ao aglomerado das perfei-ções morais divinas, há uma em particular para a qual o termo "bondade" aponta. Trata-se da qualidade que Deus separou especialmente de todas as outras quando, proclamando "toda a sua bondade" a Moisés, declarou-se "misericordioso, cheio de amor e de fidelidade" (Êx 34:6). A qualidade aqui referida é a generosidade, e quer dizer dar aos outros sem nenhum interesse mercenário, sem limitar-se ao que o receptor merece, mas indo sempre muito além. A generosidade expressa o simples desejo de que os outros tenham o que necessitam para ser felizes. É, por assim dizer, o ponto focai da perfeição moral divina, a qualidade que determina como as outras excelências de Deus devem ser manifestadas.
Deus é "abundante em benevolência" — ultro bônus, como os teólogos latinos costumavam dizer há tempos, espontaneamente bom, trans-bordante de generosidade. Os teólogos da escola reformada usam a palavra graça (bondade imerecida) do Novo Testamento para cobrir todos os atos da generosidade divina, de qualquer espécie, e assim distinguir a graça comum da "criação, preservação e todas as bênçãos da vida" da graça especial manifestada no processo da salvação. O ponto de contraste entre comum e especial é que todos se beneficiam da primeira, mas nem todos são alcançados pela última. A forma bíblica de fazer esta distinção seria dizer que Deus é bom para todos em alguns momentos e para alguns, todo o tempo.
A generosidade de Deus em conceder as bênçãos comuns é louvada no salmo 145: "O Senhor é bom para todos; a sua compaixão alcança todas as suas criaturas [...] Os olhos de todos estão voltados para ti, e tu lhes dás o alimento no devido tempo. Abres a tua mão e satisfazes os desejos de todos os seres vivos" (v. 9,15,16; cf. At 14:17). O ponto destacado pelo salmista é que, pelo fato de Deus controlar tudo o que acontece no mundo, cada refeição, prazer, bem, cada réstia de sol ou noite de sono, cada momento de saúde e segurança, tudo o que sustenta e enriquece a vida é dádiva divina. E como são abundantes essas dádivas! "Conta as bênçãos, dize quantas são", diz o coro de um de nossos hinos, e todos os que começarem realmente a anotar apenas as bênçãos mais comuns logo sentirão a força da linha seguinte: "Pois verás surpreso quanto Deus já fez".5 Mas as misericórdias de Deus no plano natural, embora abundantes, são encobertas pelas maiores misericórdias da redenção espiritual.
Quando os cantores de Israel convocavam o povo para dar graças a Deus porque "[...] ele é bom; o seu amor dura para sempre" (Sl 106:1; 107:1; 118:1; 136:1; cf. 100:4,5; 2Cr 5:13; 7:3; Jr 33:11), estavam geralmente pensando nas misericórdias redentoras, como "as obras poderosas" que libertaram Israel do Egito (Sl 106:2; 136), sua disposição de ter clemência e perdoar quando seus servos caem em pecado (Sl 86:5) e a disponibilidade de ensinar aos homens seu caminho (Sl 119:68). A bondade a que Paulo estava se referindo em Romanos 11:22 era a misericórdia de Deus em enxertar os gentios "selvagens" em sua oliveira; isto é, na comunidade dos salvos, do povo da aliança.
A exposição clássica da bondade divina está no salmo 107. Aqui, para reforçar seu convite a dar "graças ao Senhor, porque ele é bom", o sal-mista tira conclusões gerais das antigas experiências de Israel no cativeiro e da necessidade pessoal dos israelitas e dá quatro exemplos de como as pessoas "Na sua aflição, clamaram ao Senhor, e ele os livrou da tribu-lação" (v. 6,13,19,28).
A primeira experiência é Deus livrando os indefesos de seus inimigos e tirando-os da aridez do deserto para conduzi-los a um lar. A segunda é Deus livrando das "trevas e da sombra mortal" os que por sua rebeldia
5Hino n°. 118 do Hinãrio (da Igreja Anglicana), Porto Alegre: ieb, 1962, p. 118.
haviam sido levados pelo próprio Senhor nessa condição. A terceira é Deus curando as doenças daqueles "tolos" que ele próprio havia punido por causa de sua negligência. A quarta é Deus protegendo os viajantes quando acalmou a tempestade que poderia afundar seus navios. Cada episódio termina com este refrão: "dêem graças ao Senhor por seu amor leal e por suas maravilhas em favor dos homens" (v. 8,15,21,31). O salmo todo é um panorama majestoso da atuação da bondade divina transformando as vidas humanas.
A SEVERIDADE DE DEUS
O que dizer então sobre a severidade de Deus? A palavra que Paulo usa em Romanos 11:22 literalmente significa "cortar fora" e denota a retirada decisiva de sua bondade dos que a haviam rejeitado. Isto nos faz lembrar de um fato sobre Deus que ele próprio declarou ao proclamar seu nome a Moisés, ou seja, que, embora fosse "paciente, cheio de amor e de fidelidade", ele "não deixa de punir o culpado", isto é, o culpado obstinado e impenitente (Êx 34:6,7).
O ato de severidade citado por Paulo foi o de Deus rejeitar a Israel como um todo — cortando-o da oliveira, da qual ele era o ramo natural —, porque não creu no Evangelho de Jesus Cristo. Israel havia abusado da bondade de Deus ao desprezar a manifestação concreta de sua bondade em seu Filho, e a reação de Deus foi rápida, ele rejeitou Israel. Paulo aproveita essa ocasião para alertar seus leitores gentios cristãos de que, se eles se desviassem como Israel havia feito, Deus também os rejeitaria: "... Eles, porém, foram cortados devido à incredulidade, e você permanece pela fé. Não se orgulhe, mas tema. Pois, se Deus não poupou os ramos naturais, também não poupará você" (Rm 11:20,21).
O princípio aqui aplicado por Paulo é que por trás de toda manifestação de bondade divina encontra-se uma ameaça de severidade no julgamento, caso essa bondade seja desprezada. Se não deixarmos que ela nos conduza a Deus com gratidão e amor, seremos os únicos culpados quando Deus se voltar contra nós.
Em capítulos anteriores de Romanos, Paulo se dirigiu ao crítico da natureza humana, autocomplacente e não-cristão, da seguinte forma: "não reconhecendo que a bondade de Deus o leva ao arrependimento?" (Rm 2.4). John Bertram Phillips assim parafraseou corretamente: "tem o objetivo de conduzi-los ao arrependimento". "Portanto, você, que julga os outros, é indesculpável; pois está condenando a si mesmo naquilo em que julga".
Deus, porém, tem suportado suas faltas, as mesmas faltas que você considera dignas de juízo quando as vê em outros, e você deveria mostrar-se muito humilde e agradecido. Se, no entanto, enquanto estiver criticando outros, deixar de se voltar para Deus, então "... será que você despreza as riquezas da sua bondade, tolerância e paciência", "por causa da sua teimosia e do seu coração obstinado, você está acumulando ira contra si mesmo, para o dia da ira de Deus, quando se revelará o seu justo julgamento" (Rm 2:1-5).
De modo semelhante, Paulo fala aos cristãos romanos que a bondade de Deus lhes pertence sob certas condições "[...] desde que permaneça na bondade dele. De outra forma, você também será cortado" (Rm 11:22). É o mesmo princípio em ambos os casos. Os que se negam a responder à bondade de Deus com arrependimento, fé, confiança e submissão a sua vontade não podem surpreender-se ou reclamar se, cedo ou tarde, os sinais da bondade divina forem retirados, se a oportunidade de se beneficiar deles terminar e vier a retribuição.
Deus, porém, não é impaciente em sua severidade, ao contrário. Ele é "tardio em irar-se" (Ne 9:17; v.v. ra; Sl 103:8, 145:8; Jl 2:13; Jn 4:2) e "paciente" (Êx 34:6, Nm 14:18; Sl 86:15). A Bíblia fala muito mais sobre a paciência e clemência de Deus em adiar a merecida condenação a fim de ampliar o dia da graça e dar mais oportunidade para o arrependimento. Pedro nos lembra como, nos dias em que a terra estava corrompida e clamando pelo julgamento, mesmo assim "Deus esperava pacientemente" (1Pe 3:20), uma referência provável aos 120 anos de adiamento ao dilúvio (como parece ter havido) mencionado em Gênesis 6:3.
Em Romanos 9:22, Paulo nos fala que durante todo o curso da história Deus "suportou com grande paciência os vasos de sua ira, preparados para a destruição". Pedro também explica a seus leitores do primeiro século que a razão de não ter sido ainda cumprida a promessa da volta de Cristo para julgar é que Deus "é paciente com vocês, não querendo que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento" (2Pe 3:9). A mesma explicação provavelmente se aplica aos dias de hoje. A paciência de Deus dando tempo para o arrependimento (Ap 2:5) antes que o julgamento finalmente aconteça é uma das maravilhas da história bíblica. Não é de surpreender que o Novo Testamento destaque a paciência como virtude e dever cristão. Essa é na verdade parte da imagem de Deus (Gl 5:22; Ef 4:2; Cl 3:12).
Nossa resposta
Dessa linha de pensamento podemos tirar pelo menos três lições.
Apreço pela bondade de Deus. Conte suas bênçãos. Aprenda a não tomar os benefícios naturais, dons e prazeres como certos, e a agradecer a Deus por todos eles. Não despreze a Bíblia ou o Evangelho de Jesus Cristo, negligenciando ambos. A Bíblia nos mostra o Salvador que sofreu e morreu para que os pecadores pudessem se reconciliar com Deus. O Calvário é a medida da bondade de Deus. Pense seriamente nisso. Faça a si mesmo a pergunta do salmista: "Como posso retribuir ao Senhor toda a sua bondade para comigo?". Busque a graça para dar a mesma resposta dele: "Erguerei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor [...] Senhor, sou teu servo [...] Cumprirei para com o Senhor os meus votos..." (Sl 116:12-18).
Apreço pela paciência de Deus. Pense como ele o tem tolerado e ainda continua a fazê-lo, quando grande parte de sua vida é indigna dele e você tem merecido realmente sua rejeição. Aprenda a maravilhar-se com a paciência divina. Peça a Deus que o ajude a imitá-la em seu relacionamento com os outros. Procure não provocar mais sua paciência.
3. Apreço pela disciplina de Deus. Ele é quem o sustenta e também a tudo o que o cerca; todas as coisas vêm dele e você tem provado a bondade divina todos os dias de sua vida. Essa experiência tem levado você ao arrependimento e à fé em Cristo? Em caso negativo, você está menosprezando a Deus e colocando-se sob a ameaça de sua severidade. Se, porém, como disse Whitefield, ele "põe espinhos em sua cama" é apenas para fazê-lo levantar-se e buscar misericórdia.
Se você é um verdadeiro cristão, e ele ainda põe espinhos em sua cama, é apenas para impedir que você caia na complacência e para assegurar que você "permaneça na sua benignidade", deixando que seu sentido de necessidade o faça voltar constantemente, buscando sua face, com fé e humildade. Esta bondosa disciplina, na qual a severidade de Deus nos toca por uns momentos no contexto de sua bondade, tem a finalidade de impedir que soframos a violência de sua severidade separada desse contexto. É a disciplina do amor, e assim deve ser recebida. "Meu filho, não despreze a disciplina do Senhor" (Hb 12:5); "Foi bom para mim ter sido castigado, para que aprendesse os teus decretos" (Sl 119:71).
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O Deus ciumento
"O Deus ciumento" não soa ofensivo? Reputamos o ciúme por defeito, um dos piores e mais destrutivos que existem; ao passo que Deus, estamos certos, é perfeitamente bom. Como, então, pode alguém imaginar que haja ciúme nele?
O primeiro passo para responder a essa questão é tornar bem claro que não se trata de imaginar alguma coisa. Se estivéssemos imaginando um Deus, então é claro que o descreveríamos apenas com as características que admiramos, e o ciúme não faz parte do quadro. Ninguém imaginaria um Deus ciumento. Entretanto, não estamos criando uma idéia de Deus a partir de nossa imaginação, estamos, ao contrário, procurando ouvir as palavras das Sagradas Escrituras, em que Deus fala a verdade a respeito de si mesmo. Pois Deus, nosso Criador, a quem jamais poderíamos descobrir por meio da imaginação, revelou-se. Falou e tem falado por muitos agentes e mensageiros humanos e, sobretudo, por meio de seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo. Ele também não deixou que sua mensagem e a lembrança de seus atos poderosos fossem deturpadas e se perdessem mediante os processos distorcedores da transmissão oral. Deixou-os registrados de forma permanente. Na Bíblia — "o registro público" de Deus, como Calvino a denominava — descobrimos Deus falando diversas vezes de seu ciúme.
Quando Deus tirou Israel do Egito levando o povo para o Sinai, dando-lhes sua lei e aliança, seu ciúme foi um dos primeiros fatos a respeito de si mesmo que lhes ensinou. A sanção do segundo mandamento, pronunciado em voz audível para Moisés nas "tábuas de pedra, escritas pelo dedo de Deus" (Êx 31:18), era este: "porque eu, o Senhor, o teu Deus, sou Deus zeloso" (20:5). Mais tarde, Deus falou a Moisés de modo mais direto: "porque o Senhor, cujo nome é Zeloso, é de fato Deus zeloso" (34:14).
Por surgir neste ponto, este último versículo é muito significativo, pois o tema básico do Êxodo, como sempre vemos nas Escrituras, é tornar o nome de Deus conhecido, sua natureza e seu caráter. No capítulo 3, Deus declarou seu nome como "Eu Sou o que Sou", ou "Eu Sou" simplesmente, e no capítulo 6, como "Jeová" ("o Senhor"). Estes nomes se referem a ele como auto-existente, autodeterminado e soberano. A seguir, no capítulo 34:5, Deus proclamou seu nome a Moisés dizendo-lhe: o "Senhor" é "compassivo e misericordioso, paciente, cheio de amor e de fidelidade, que mantém o seu amor a milhares e perdoa a maldade, a rebelião e o pecado...". Este era "um nome" que determinava sua glória moral.
Finalmente, sete versículos adiante, como parte da mesma conversa com Moisés, Deus resumiu e completou a revelação declarando-se "Zeloso". Esta palavra inesperada determina claramente uma qualidade divina que, longe de ser incoerente com a exposição anterior de seu nome, foi de certo modo o resumo de tudo. Já que essa qualidade era no verdadeiro sentido "seu nome", era importante que seu povo a entendesse.
Aliás, a Bíblia fala bastante sobre o ciúme de Deus. Há diversas referências a ele no Pentateuco (Nm 25:11; Dt 4:24; 6:15; 29:20; 32:16,21), nos livros históricos 0s 24:19; 1Rs 14:22), nos proféticos (Ez 8:3-5; 16:38,42; 23:25; 36:5-7; 38:19; 39:25; Jl 2:18; Na 1:2; Sf 1:18; 3:8; Zc 1:14; 8:2) e nos Salmos (78:58; 79:5). O ciúme é constantemente apresentado como motivo para agir, seja em ira seja em misericórdia: "serei zeloso pelo meu santo nome" (Ez 39:25); "Eu tenho sido muito zeloso com Jerusalém e Sião" (Zc 1:14); "O Senhor é Deus zeloso e vingador!" (Na 1:2).
No Novo Testamento, Paulo pergunta aos presunçosos coríntios: "Porventura provocaremos o ciúme do Senhor?" (1Co 10:22), e está provavelmente certa a tradução da difícil sentença de Tiago 4:5: "o Espírito que ele fez habitar em nós tem fortes ciúmes?".
A NATUREZA DO CIÚME DIVINO
Perguntamos: qual a natureza do ciúme divino? Como pode o ciúme constituir virtude em Deus quando é defeito nos humanos? A perfeição divina é motivo de louvor, mas como podemos louvar a Deus por ser ciumento?
A resposta a essas questões será encontrada se tivermos dois fatos em mente:
1. As declarações bíblicas sobre o ciúme de Deus são antropomorfismos. Trata-se de descrições de Deus em linguagem extraída da vida humana. A Bíblia está cheia de antropomorfis-mos: braço, mão, dedo, ouvidos, vista, olfato, ternura, raiva, arrependimento, riso, alegria e assim por diante. Deus usa esses termos para automencionar-se porque se trata da linguagem usada em nossa vida pessoal. É o meio mais correto para comunicar o que pensamos sobre ele. Deus é pessoal, como nós somos, diferentemente de tudo o mais na criação. De todas as criaturas físicas, apenas ser humano, foi feito à imagem de Deus. Então, já que nos assemelhamos a Deus mais que a qualquer outro ser conhecido, é mais esclarecedor e compreensível que Deus se descreva a nós em termos humanos, em vez de em qualquer outro meio. Já estudamos este assunto em capítulo anterior.
Quando nos deparamos com os antropomorfismos de Deus, porém, é fácil enganar-se redondamente. Temos de lembrar que o ser humano não é a medida de seu Criador e que o fato de usar-se a linguagem por nós conhecida para referir-se a Deus, não significa que alguma das limitações da criatura humana esteja nele implícita: conhecimento limitado, poder, previsão, força, consistência ou qualquer coisa desse tipo.
Devemos também lembrar que os elementos das qualidades humanas que mostram o efeito corruptor do pecado não têm correspondência em Deus. Assim, por exemplo, sua ira não é a explosão indigna que normalmente caracteriza a raiva humana — sinal de orgulho e fraqueza —, mas é a santidade reagindo ao mal de modo moralmente certo e glorioso: "pois a ira do homem não produz a justiça de Deus" (Tg 1:20). A ira divina é precisamente sua justiça em ação. Do mesmo modo, o ciúme de Deus não consiste num conjunto de frustração, inveja e despeito, como geralmente é o ciúme humano; ao contrário, aparece como zelo, digno de louvor, para preservar alguma coisa muito preciosa. Isto nos leva ao ponto seguinte.
2. Há dois tipos de ciúme entre os homens, e apenas um deles é defeito. O ciúme maldoso expressa uma postura: "Eu quero o que você tem, e o odeio por não ter isso". É um ressentimento infantil que surge da cobiça irrefreável manifestada por inveja, malícia e atitudes indignas. É terrivelmente poderoso, pois alimenta e é alimentado pelo orgulho, a raiz de nossa natureza decaída. O ciúme provoca uma insensata obsessão, que, se tolerada, pode destroçar o caráter antes firme. "O rancor é cruel e a fúria é destruidora, mas quem consegue suportar a inveja?" (Pv 27:4), pergunta o sábio. É desse tipo o chamado ciúme sexual, a fúria cega de um pretendente rejeitado ou substituído.
Existe outro tipo de ciúme: o zelo em proteger de uma relação amorosa ou em vingá-la quando rompida. Este ciúme também opera na esfera do sexo. Nessa área, entretanto, não aparece como reação cega do orgulho ferido, mas como fruto da afeição marital. Como escreveu o prof. Tasker,1 as pessoas casadas "que não sentem ciúmes com a intrusão de um amante ou um adúltero em seu lar certamente têm falta de percepção moral, pois a exclusividade é a essência do casamento".2 Este tipo de ciúme é uma virtude positiva, pois mostra o entendimento do verdadeiro significado do relacionamento marido-mulher, aliado ao zelo por mantê-lo intacto.
A lei do Antigo Testamento reconhecia a propriedade de tal ciúme e prescrevia uma "oferta pelo ciúme" e um ritual de maldição pelo qual o marido, ao julgar que a esposa fosse infiel e por isso fosse ele possuído pelo "espírito do ciúme", poderia acalmar a mente de um modo ou de outro (Nm 5:11-31). Nem aqui nem em outra referência ao "ciúme" do marido ofendido em Provérbios 6:34 a Escritura sugere que sua atitude seja moralmente questionável; ao contrário, descreve a resolução de proteger seu casamento contra um ataque e de agir contra qualquer um que o viole como uma atitude natural, normal e certa, e ainda como uma prova de que ele dá à união o valor que lhe é devido.
As Escrituras coerentemente mostram o ciúme divino como deste último tipo, isto é, como um aspecto de sua aliança de amor por seu povo. O Antigo Testamento considera união a aliança divina com Israel, envolvendo a exigência de amor e lealdade ilimitados. A adoração de ídolos e todas as relações comprometedoras com os idólatras constituíam desobediência e infidelidade, que Deus via como adultério espiritual, provo-cando-lhe ciúme e vingança. Todas as referências mosaicas ao ciúme divino se referem a alguma forma de adoração idolátrica; elas incorrem sempre na penalidade do segundo mandamento, citada anteriormente.
O mesmo acontece em Josué 24:19; 1Reis 14:22; Salmos 78:58 e em 1Coríntios 10:22 no Novo Testamento. Em Ezequiel 8:3, um ídolo adorado em Jerusalém é chamado "o ídolo que provoca o ciúme de Deus". Em Ezequiel 16, Deus descreve Israel como sua esposa adúltera, enredada em uma ligação ímpia com ídolos e idólatras de Canaã, Egito e Assíria e pronuncia a seguinte sentença: "Eu a condenarei ao castigo determinado
1R.V.G. Tasker, estudioso protestante, especialista em Novo Testamento.
2The epistle of James, p. 106.
para mulheres que cometem adultério e que derramam sangue; trarei sobre você a vingança de sangue da minha ira e da indignação que o meu ciúme provoca" (v. 38; cf. v. 42; 23:25).
Por essas passagens podemos ver claramente o que Deus quis dizer a Moisés ao denominar-se "zeloso". Ele indicou a exigência de lealdade absoluta e total de todos a quem amou e redimiu, e que vingaria suas exigências agindo violentamente contra quem traísse seu amor sendo infiel. Calvino captou bem o significado dessa idéia quando explicou a sanção do segundo mandamento:
O Senhor muitas vezes se dirige a nós como um marido [...] Assim como ele desempenha todos os deveres de um marido fiel e verdadeiro, também requer de nós amor e castidade, isto é, que não prostituamos nossa alma com Satanás [...] Quanto mais puro e casto é o marido tanto mais fortemente se sente ofendido quando vê a esposa interessada em um rival; assim o Senhor, que, na verdade, nos desposou, declara arder em ciúmes sempre que, negligenciando a pureza de sua santa união, nos corrompemos pela luxúria; e, especialmente, quando a adoração de sua divindade, que devia ter sido mantida cuidadosamente, é transferida para outro ou adulterada com alguma superstição; desse modo não apenas violamos nossa promessa, mas desprezamos o leito nupcial, dando acesso a adúlteros.3
Mais um ponto, entretanto, deve ser visto, se quisermos esclarecer realmente este assunto. O ciúme de Deus por seu povo, como já vimos, está implícito em sua aliança de amor. Este amor não é
3Institutes II, viii, 18. (Publicado em português com o nome As institutas da religião cristã (São Paulo: Cultura Cristã).
uma afeição transitória, acidental e sem objetivo, mas sim a expressão de um propósito soberano. O objetivo da aliança do amor divino é que ele tenha um povo na terra enquanto perdurar a história, e depois disso tenha com ele, na glória, todos seus fiéis de todas as eras. A aliança do amor é o núcleo do plano de Deus para o seu mundo. E é à luz do plano total de Deus para o mundo que seu ciúme deve, em última análise, ser entendido.
O objetivo final de Deus, como diz a Bíblia, possui três partes: vin-dicar suas leis e sua justiça mostrando sua soberania no julgamento do pecado; resgatar e remir seu povo escolhido, e ser amado e louvado por ele por seus atos gloriosos de amor e auto-afirmação. Deus busca o que deveríamos buscar: sua glória nas pessoas e por meio delas; e é por assegurar este objetivo que ele é ciumento. Seu ciúme, em todas suas manifestações, é precisamente "O zelo do Senhor dos Exércitos" (Is 9:7; 37:32; cf. Ez 5:13), para cumprir seu propósito de justiça e misericórdia.
Assim, o ciúme de Deus o leva, por um lado, a julgar e destruir os infiéis entre seu povo que caíram na idolatria e no pecado (Dt 6:14,15; Js 24:19,20; Sf 1:18) e decerto a julgar os inimigos da justiça e da misericórdia onde quer que estejam (Na 1:2; Ez 36:5-7; Sf 3:8). Por outro lado, o leva a restaurar seu povo depois que o julgamento nacional os purificou e humilhou (a condenação ao cativeiro, Zc 1:14-17; 8:2; a praga dos gafanhotos, Jl 1). E o que motiva essas ações? Simplesmente o fato de que ele é "zeloso pelo [seu] santo nome" (Ez 39:25). Seu nome é sua natureza e seu caráter como Jeová, "o Senhor", governador da história, guardião da justiça e salvador dos pecadores. Deus quer que seu "nome" seja conhecido, honrado e louvado.
Eu sou o Senhor; este é o meu nome! Não darei a outro a minha glória nem a imagens o meu louvor [...] Por amor de mim mesmo, por amor de mim mesmo, eu faço isso. Como posso permitir que eu mesmo seja difamado? Não darei minha glória a nenhum outro.
Isaías 42:8; 48:11
Aqui nestes textos está a quintessência do ciúme divino.
A RESPOSTA CRISTÃ
Que sentido prático tem tudo isso para quem professa ser povo do Senhor? A resposta pode ser dada sob dois tópicos:
1. O ciúme de Deus exige que sejamos zelosos com Deus. Assim como a resposta ao amor de Deus é nosso amor a ele, também a resposta certa ao seu ciúme por nós é nosso zelo por ele. Seu interesse por nós é grande, o nosso por ele também deve ser. O que está implícito na proibição da idolatria encontrada no segundo mandamento é que o povo de Deus deve ser positiva e apaixonadamente devotado à sua pessoa, causa e honra. A palavra da Bíblia para tal devoção é zelo, às vezes realmente chamada zelo por Deus. Deus mesmo, como já vimos, manifesta seu zelo, e os fiéis devem manifestá-lo também.
A descrição clássica do zelo por Deus foi oferecida pelo bispo John Charles Ryle. Citamos na íntegra:
Na religião, zelo é o desejo ardente de agradar a Deus, realizar sua vontade e propagar sua glória no mundo de todos os modos possíveis. E um desejo que nenhum homem sente naturalmente — colocado pelo Espírito no coração de cada crente quando se converte, mas que alguns sentem com muito maior intensidade que outros, por isso só eles merecem ser chamados "zelosos" [...]
O homem zeloso na religião é acima de tudo o homem de uma só coisa. Não é bastante dizer que ele é fervoroso, sincero, inflexível, enérgico, cordial, fervoroso em espírito, ele apenas vê uma coisa, preocupa-se com uma só coisa, vive por uma coisa, é absorvido por ela, e esta coisa é agradar a Deus. Viva ou morra, tenha saúde ou doença, seja rico ou pobre, agrade aos homens ou os ofenda, seja sábio ou ignorante, seja culpado ou elogiado, seja honrado ou envergonhado, nada disso interessa a este homem zeloso. Ele se inflama por uma só coisa e essa é agradar a Deus e fazer crescer sua glória. E se for consumido por essa mesma chama, não se importa, está contente. Sente que, como a lâmpada, foi feito para queimar; e se for consumido ao se queimar, nada fez além da obra que lhe foi destinada por Deus. Tal pessoa sempre encontra o alvo para seu zelo. Se não puder pregar, trabalhar e dar dinheiro, ele clamará, suplicará e orará [...] Se não puder lutar no vale com Josué, fará o trabalho de Moisés, Arão e Hur na colina (Êx 17:9-13). Se não puder trabalhar ele mesmo, não dará descanso ao Senhor enquanto não for levantada ajuda de outro lado e a obra continue. Isto é o que quero dizer quando falo em "zelo" em religião.4
Notamos que o zelo é ordenado e comentado nas Escrituras. O cristão deve ser "zeloso de boas obras" (Tt 2:4; ra). Depois de serem reprovados, os coríntios foram elogiados por seu "zelo" (2Co 7:11; ra). Elias era "muito zeloso pelo Senhor, o Deus dos Exércitos" (1Rs 19:10,14) e Deus exaltou seu zelo enviando uma carruagem de fogo para levá-lo ao céu, escolhendo-o como o representante da "santa congregação dos profetas"5 para estar com Moisés no monte da transfiguração e falar com o Senhor Jesus. Quando Israel provocou a ira de Deus pela idolatria e prostituição, Moisés sentenciou os culpados à morte, e o povo pôs-se a chorar. Um homem escolheu aquele momento para receber uma midia-nita em casa, e Finéias, desesperado, quase fora de si, os matou com uma lança. Deus elogiou Finéias porque "foi zeloso, com o mesmo zelo [...] para que em meu zelo eu não os consumisse" (Nm 25:11).
Paulo era um homem zeloso, sincero e interiormente dedicado a seu Senhor. Enfrentando a dor e a prisão declarou: "Todavia, não me importo, nem considero a minha vida de valor algum para mim mesmo, se tão somente puder terminar a corrida e completar o
4Practical religion, 1959, p- 130.
5Expressão extraída do hino Te Deum laudamus (Livro de oração comum, Porto Alegre: ieab, 1988, p. 42).
ministério que o Senhor Jesus me confiou, de testemunhar do evangelho da graça de Deus" (At 20:24).
O próprio Senhor Jesus foi o supremo exemplo de zelo. Observan-do-o quando purificava o templo, "lembraram-se os seus discípulos de que está escrito: 'O zelo pela tua casa me consumirá'" (Jo 2:17).
E quanto a nós? O zelo pela casa de Deus e por sua causa nos consome? Devora-nos? Possui-nos? Podemos dizer como o Mestre: "A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou e concluir a sua obra" 0o 4:34)? Que espécie de discipulado é o nosso? Não temos necessidade de orar como o ardente evangelista George Whitefield, um homem tão humilde quanto zeloso: "Senhor, ajude-me a começar a começar"?
2. O ciúme de Deus ameaça as igrejas que não são zelosas por ele. Amamos nossas igrejas; elas têm associações consagradas, não podemos imaginá-las desagradando a Deus, pelo menos não gravemente. O Senhor Jesus, porém, certa vez mandou uma mensagem a uma igreja muito semelhante a algumas das nossas, a complacente igreja de Laodicéia, dizendo à congregação que o zelo deles lhe era fonte de suprema ofensa. "Conheço as suas obras, sei que você não é frio nem quente!". Qualquer coisa seria melhor do que a apática satisfação consigo mesmo! "Assim, porque você é morno, não é frio nem quente, estou a ponto de vomitá-lo da minha boca [...] seja diligente [zeloso] e arrependa-se" (Ap 3:15,16,19).
Quantas igrejas hoje são sólidas, respeitáveis e — mornas? Qual, então, deve ser a palavra de Cristo a elas? Que esperança podemos ter a não ser que, pela misericórdia de Deus, ele, em sua ira, se lembre da misericórdia e encontremos zelo para nos arrepender? Reaviva-nos, Senhor, antes que chegue o julgamento!
Parte III
Se Deus É Por Nós...
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o coração do Evangelho
O príncipe Páris havia raptado a princesa Helena de Tróia. Os expedicionários gregos levaram um navio para resgatá-la, mas foram impedidos no meio do caminho por um persistente vento contrário. Agamenon, o general grego, mandou buscar sua filha em casa e em uma cerimônia ofereceu-a em sacrifício para acalmar a evidente hostilidade dos deuses. Essa ação deu bom resultado, o vento este começou a soprar e a frota alcançou Tróia sem mais dificuldades.
Esta passagem da lenda referente à guerra de Tróia, que data de cerca de 1000 a.C, reflete uma idéia de propiciação sobre a qual a religião pagã em todo o mundo e em todas as eras foi construída. A idéia é a seguinte: Há vários deuses; nenhum deles tem domínio absoluto, mas cada um tem poder para tornar a vida mais fácil ou mais difícil. O temperamento deles é uniformemente incerto, ofendem-se com as menores coisas ou sentem ciúmes porque acham que você dá mais atenção a outros deuses e a outras pessoas, e o modo de impedir que você aja desse modo é criar circunstâncias que possam feri-lo.
A PROPICIAÇÃO NO PAGANISMO
A única coisa a fazer nesses casos é alegrá-los e acalmá-los com uma oferenda cuja regra é: quanto maior, melhor. Os deuses são inclinados a suspender sua ação por qualquer coisa de bom tamanho que se lhes ofereça. São cruéis e sem coração neste ponto, mas estão com todas as vantagens, então o que se pode fazer? O sábio se inclina ao inevitável e cuida para que sua oferta seja bem expressiva para produzir o resultado desejado. O sacrifício humano, em particular, é muito dispendioso mas eficiente. Assim a religião pagã aparece como um duro mercantilismo, um modo de negociar com seus deuses e manipulá-los, usando um astuto suborno. De acordo com a propiciação do paganismo, o aplacar da ira celestial acontece regularmente como parte da vida, uma das maçantes necessidades das quais não se pode escapar.
A Bíblia, porém, nos tira de imediato do mundo da religião pagã. Ela condena totalmente o paganismo como monstruosa distorção da verdade. Em lugar de um aglomerado de deuses feitos tão claramente à imagem do ser humano e que se comportam como artistas de cinema, a Bíblia apresenta o único Criador poderoso, o único Deus verdadeiro, em quem toda a bondade e verdade encontram origem, e para quem todo o mal é abominável.
Em Deus não há gênio mau, caprichos, vaidades nem má vontade. Podia-se esperar, portanto, que não houvesse na religião bíblica lugar para a idéia da propiciação. Mas não é isso o que vemos, e sim o contrário. A idéia da propiciação, isto é, acalmar a ira de Deus por meio de oferendas, é encontrada em toda a Bíblia.
A propiciação na Bíblia
No Antigo Testamento, ela é a base de todos os rituais prescritos para a expiação do pecado e da culpa ("expiação pela transgressão" no Antigo Testamento) e para o dia do sacrifício (Lv 4:1-6:7; 16:1-34). Ela é também claramente expressa em narrativas como a de Números 16:41-50, onde Deus ameaça destruir o povo por caluniar seu julgamento sobre Coré, Datã e Abirã: "e Moisés disse a Arão: 'Pegue o seu incensário e ponha incenso nele, com fogo tirado do altar, e vá depressa até a comunidade para fazer propiciação por eles, porque saiu grande ira da parte do Senhor e a praga começou. Arão [...] fez propiciação por eles [...] e a praga cessou" (v. 46-48).
No Novo Testamento a palavra propiciação aparece em quatro passagens de importância tão sublime que faremos bem em parar para estudá-las direito.
A primeira é a clássica declaração de Paulo sobre a base lógica da justificação dos pecadores por Deus.
Mas agora se manifestou uma justiça que provém de Deus [...] justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo para todos [e sobre todos] os que crêem. Não há distinção, pois todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente por sua graça, por meio da redenção que há em Cristo Jesus. Deus o ofereceu como sacrifício para propiciação mediante a fé, pelo seu sangue, demonstrando a sua justiça. Em sua tolerância, havia deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; mas, no presente, demonstrou a sua justiça, a fim de ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus.
Romanos 3:21-26
A segunda é parte da exposição em Hebreus da base lógica da encarnação do Filho de Deus.
Por essa razão era necessário que ele se tornasse semelhante a seus irmãos em todos os aspectos, para se tornar sumo sacerdote misericordioso e fiel com relação a Deus, e fazer propiciação pelos pecados do povo.
Hebreus 2:17
A terceira é o testemunho de João sobre o ministério celestial de nosso Senhor.
Se, porém, alguém pecar, temos um intercessor junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo. Ele é a propiciação pelos nossos pecados.
1João 2:1,2
A quarta é a definição do amor de Deus oferecida por João.
Deus é amor. Foi assim que Deus manifestou o seu amor entre nós: enviou o seu Filho Unigênito ao mundo, para que pudéssemos viver por meio dele. Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou seu Filho como propiciação pelos nossos pecados.
1João 4:8-10
A palavra propiciação tem algum lugar no seu cristianismo? Na fé contida no Novo Testamento ela é central. O amor de Deus, a encarnação do Filho, o significado da cruz, a intercessão celestial de Cristo, o caminho da salvação, tudo deve ser explicado em termos de propiciação, como vimos nas passagens citadas. Qualquer explicação que não inclua a propiciação será incompleta e, na verdade, mentirosa pelos padrões do Novo Testamento.
Dizendo isto, nadamos contra a corrente de muitos ensinamentos modernos e condenamos, com um só golpe, os pontos de vista de um grande número de destacados líderes da Igreja moderna. Entretanto, nada podemos fazer. Paulo escreveu "mas ainda que nós ou um anjo dos céus" — quanto menos um ministro, bispo, palestrante, professor de faculdade ou autor destacado — "pregue um evangelho diferente daquele que lhes pregamos, que seja amaldiçoado!" (anátema, ra, rc; maldito, bv; Gl 1:8). O evangelho que não tem como centro a propiciação é outro evangelho diferente do pregado por Paulo. As implicações disto não podem ser evitadas.
Não só propiciação
Entretanto, se você verificar algumas traduções modernas dos quatro textos citados, verá que a palavra propiciação não aparece. Nas duas passagens de ljoão, as possíveis traduções serão "reparação pela mancha" de nossos pecados; em outra parte, algumas versões substituem a propiciação pela idéia de expiação. Qual é a diferença entre essas duas palavras? A diferença é que expiação significa apenas a metade do que é a propiciação. Expiação é a ação que tem o pecado como objeto; denota a cobertura, o afastamento ou a extinção do pecado de modo que ele não mais constitua barreira à comunhão amigável entre a pessoa e Deus.
Na Bíblia, entretanto, a propiciação denota tudo o que a expiação abrange e mais a pacificação da ira de Deus. Esta é, de qualquer forma, a opinião mantida pelos estudiosos cristãos desde a Reforma, quando esses pontos começaram a ser estudados com precisão. Ainda hoje o caso pode se tornar constrangedor.1
No século passado, porém, certo número de estudiosos, especialmente o dr. Charles Harold Dodd,2 reviveu conceitos socinianos (unicistas do século xvi), idéia já levantada no início do século xx por Albrecht Ritschl, fundador do liberalismo alemão, com o propósito de afirmar a inexistência em Deus de algo como a ira ocasionada pelo pecado humano e, conseqüentemente, a não-necessidade ou possibilidade de propiciação. O dr. Dodd tem se esforçado para provar que a palavra propiciação no Novo Testamento não possui o sentido de acalmar a ira de Deus, apenas denota a extinção do pecado, portanto expiação é a melhor tradução.
Ele decifra esse caso? Não podemos aqui entrar em minúcias técnicas sobre o que trata a maior parte da discussão de teólogos, mas de qualquer forma daremos nosso veredicto no que valer a pena. Dodd parece ter mostrado que esta palavra não deve significar mais que expiação se o contexto não exigir um significado mais amplo. No entanto, ele não mostrou que ela não pode indicar propiciação em contextos onde este significado é exigido. Este é, porém, o ponto crucial: na epístola aos romanos (para tomar a mais clara e mais óbvia das quatro passagens), o contexto exige o significado de propiciação, em 3:25.
Em Romanos 1:18, Paulo prepara o terreno para sua declaração sobre o Evangelho afirmando que "a ira de Deus é revelada dos céus contra toda impiedade e injustiça dos homens que suprimem a verdade pela injustiça". "A ira de Deus opera de maneira eficiente e dinâmica no mundo dos homens e, por ser procedente dos céus, o trono de Deus, ela é
1V. Leon Morris, The apostolic preaching of the cross, p. 125-85.
2Charles Harold Dodd (1884-1973) foi um dos mais destacados estudiosos do evangelho de João.
ativa".3 No resto de Romanos 1, Paulo salienta a presente atividade da ira de Deus no endurecimento judicial dos apóstatas assim expresso repetidas três vezes: "Deus os entregou" (v. 24,26,28).
Em Romanos 2:1-16, Paulo nos confronta com a certeza do "[...] dia da ira de Deus quando se revelará o seu justo julgamento. Deus 'retribuirá a cada um conforme o seu procedimento [...] os que [...] rejeitam a verdade e seguem a injustiça [...] no dia em que Deus julgar os segredos dos homens, mediante Jesus Cristo [...]'" (v. 5,6,8,16).
Na primeira parte de Romanos 3, Paulo segue com sua argumentação para provar que todos, judeus ou gentios, estando "debaixo do pecado" (v. 9), permanecem expostos à ira de Deus tanto na manifestação presente como na futura. Aqui, então, estamos todos no estado natural, sem
o Evangelho. A ira ativa de Deus é a realidade que mantém o controle final de nossa vida, quer estejamos conscientes dela quer não. Agora, porém, diz Paulo, aceitação, perdão e paz são outorgados graciosamente a todos os que até aqui eram "ímpios" (4:5) e "inimigos" de Deus (5:10), mas que, agora, põem sua fé em Cristo Jesus, "a quem Deus propôs como propiciação [...] pelo seu sangue". Os cristãos sabem que "fomos justificados por seu sangue, muito mais ainda, por meio dele, seremos salvos da ira de Deus!" (5:9).
Que aconteceu? A ira de Deus contra nós, tanto agora como no futuro, foi extinta. Como isso se realizou? Por meio da morte de Cristo, "quando éramos inimigos de Deus fomos reconciliados com ele mediante a morte de seu Filho" (5:10). O "sangue" — isto é, a morte sacrificial — de Jesus Cristo aboliu a ira de Deus contra nós e assegurou-nos de que seu tratamento para conosco será sempre propício e favorável. Daqui por diante, em lugar de mostrar-se contra nós, ele será por nós, em nossa vida e experiência. O que então indica a expressão "a propiciação [...] pelo seu
3John Murray, Romanos, São José dos Campos: Fiel, 2003, p. 65.
sangue"? Ela expressa, no contexto da argumentação de Paulo, precisamente este pensamento: que por sua morte sacrificial por nossos pecados, Cristo acalmou a ira de Deus.
É verdade que há uma geração o dr. Dodd tentou escapar desta conclusão argumentando que a ira de Deus em Romanos é o princípio cósmico impessoal da retribuição. Nele a mente e o coração de Deus para com as pessoas não encontra real expressão. Em outras palavras, a ira de Deus é um processo exterior à vontade do próprio Deus. Hoje, porém, aumenta o número dos que admitem o fracasso dessa tentativa. "É inadequado", escreveu R. V. G. Tasker, "referir-se a este termo (ira) simplesmente como descrição do inevitável processo de causa e efeito no universo moral, ou como outro modo de se referir ao resultado do pecado. Trata-se mais de uma qualidade pessoal, sem a qual Deus deixaria de ser completamente justo e seu amor cairia no plano do sentimentalismo".4 A ira de Deus é tão pessoal e potente quanto seu amor. O derramamento do sangue do Senhor Jesus foi a manifestação frontal do amor do Pai para conosco, mas foi também o impedimento frontal da ira do Pai contra nós.
A ira de Deus
O que é na realidade a ira de Deus propiciada no Calvário?
Não é raiva caprichosa, arbitrária, geniosa e presunçosa que os pa-gãos atribuíam a seus deuses. Não é também a raiva infantil, pecaminosa, cheia de ressentimentos, maliciosa que encontramos entre as pessoas. É uma função da santidade expressa na exigência da lei moral de Deus ("Sejam santos, porque eu sou santo" — 1Pe 1:16) e da justiça divina, que se expressa nos atos de julgamento e recompensa: "Pois conhecemos aquele que disse: 'a mim pertence a vingança; eu retribuirei'" (Hb 10:30).
A ira divina é "a santa reação de Deus contra aquilo que é contrário a sua santidade", expressando-se por meio de "uma manifestação positiva
4New Bible Dictionary, s. v. "Wrath".
do desprazer divino".5 Esta é a justa ira, a reação reta da perfeição moral do Criador contra a perversidade moral da criatura. A manifestação da ira de Deus ao punir o pecado está longe de ser moralmente duvidosa, pois isto só seria verdadeiro se ele não mostrasse sua ira desse modo. Deus não é justo, isto é, ele não age do modo certo, ele não faz o que se espera de um juiz, a menos que inflija sobre todo o pecado e maldade o castigo merecido. Veremos dentro em pouco a argumentação de Paulo sobre este ponto.
DescriçAo da propiciação
Note agora três fatos sobre a propiciação, e como Paulo os descreve.
1. A propiciação é obra do próprio Deus. No paganismo, a pessoa propicia seus deuses, e a religião se torna uma forma de comércio e, na verdade, de suborno. No cristianismo, entretanto, Deus propicia sua ira mediante a própria ação. Ele anunciou Jesus Cristo, diz Paulo, para a sua propiciação. Ele enviou seu Filho, diz João, para ser a propiciação pelos nossos pecados. Não foi o homem a quem Deus era hostil que tomou a iniciativa de tornar Deus amigável, nem foi Jesus Cristo, o Filho Eterno, que tomou a iniciativa de transformar a ira de seu Pai contra nós em amor.
A idéia de que o filho bondoso tenha mudado a mente do pai cruel, oferecendo-se em lugar do ser humano pecador, não faz parte da mensagem do Evangelho. Na realidade, trata-se de uma idéia subcristã e mesmo anticristã, pois nega a unidade da vontade do Pai e do Filho e cai no politeísmo pedindo que creiamos em dois deuses diferentes. A Bíblia, porém, anula completamente essa idéia, insistindo na iniciativa divina de extinguir a própria ira contra quem, apesar de seu demérito, ele amou e escolheu salvar.
A doutrina da propiciação é precisamente essa, que Deus amou tanto os objetos de sua ira que deu o próprio Filho com a finalidade de, pelo seu
5John Murray, Romanos, p. 64,5.
sangue, propiciar a remoção dessa ira. Cristo solucionou de tal modo o problema da ira que os amados não são mais objeto dela, e o amor pôde alcançar o objetivo de transformar os filhos da ira em filhos do prazer de Deus.6
Paulo e João confirmam isto explícita e enfaticamente. Deus revela sua justiça, diz Paulo, não apenas em retribuição e juízo de acordo com sua lei, mas também "sem a lei" ao justificar os que crêem em Jesus Cristo. Todos pecaram, entretanto todos são justificados (resgatados, aceitos, restaurados, reconciliados com Deus) livre e gratuitamente (Rm 3:21-24). Como foi isso? "Pela graça (isto é, misericórdia em desacordo com o mérito; amor a quem não era digno dele e, como diríamos, não-amáveis). Como a graça opera? "Pela redenção" (salvo pelo resgate) "que há em Cristo Jesus".
Por que para os que crêem nele, Cristo Jesus é fonte, meio e essência da redenção? Porque, diz Paulo, Deus o estabeleceu como propiciação. A realidade e a possibilidade da redenção brotam dessa iniciativa divina.
Amar uns aos outros, diz João, é o fator comum na família dos filhos de Deus. Quem não ama os cristãos não pertence evidentemente à família, pois "Deus é amor" e concede a todos que o conhecem a natureza predisposta ao amor (1Jo 4:7,8). "Deus é amor", no entanto, é uma fórmula muito vaga. Como podemos ter uma idéia clara do amor que Deus produzirá em nós?
"Foi assim que Deus manifestou o seu amor entre nós: enviou o seu Filho Unigênito ao mundo, para que pudéssemos viver por meio dele" (v. 9). E isto não foi feito porque Deus reconheceu alguma devoção real
6John Murray, The atonement, p. 15.
de nossa parte, de modo algum. "Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que" — em uma situação na qual não o amávamos e não havia nada em nós que o levasse a fazer outra coisa senão nos destruir e arruinar por causa de nossa inveterada descrença — "ele nos amou e enviou seu Filho como propiciação pelos nossos pecados" (v. 10). Por esta iniciativa divina, diz João, se fazem conhecidos o significado e a medida do amor que devemos imitar.
O testemunho dos dois apóstolos sobre a iniciativa de Deus na propiciação não poderia ser mais claro.
2. A propiciação foi realizada pela morte de Jesus Cristo. O "sangue", como já nos referimos anteriormente, é uma palavra que indica a morte violenta infligida a um animal por ocasião do sacrifício da Antiga Aliança. O próprio Deus instituiu esses sacrifícios por sua ordem. Em Levítico 17:11, disse: porque "a vida da carne está no sangue, e eu o dei a vocês para fazerem propiciação por si mesmos no altar; é o sangue que faz propiciação pela vida".
Quando Paulo nos diz que Deus preparou Jesus para ser a propiciação "pelo seu sangue". Sua idéia central é que não foi a vida de Jesus, seus pensamentos, sua perfeição moral nem sua fidelidade ao Pai em si mesmas que extinguiram a ira de Deus e conseqüentemente nos redimiram da morte, mas o derramamento do sangue de Cristo na morte. Ao lado dos outros escritores do Novo Testamento, Paulo sempre aponta a morte de Jesus como a expiação, e a explica em termos de substituição representativa, o inocente tomando o lugar do culpado, sob o machado da retribuição judicial.
Podemos citar duas passagens para ilustrar isso. "Cristo nos redimiu da maldição da Lei." Como? "[...] se tornou maldição em nosso lugar" (Gl 3:13). Cristo levou a maldição da lei que estava dirigida a nós para que não recaísse sobre nós. Isto é substituição representativa.
"Um morreu por todos" e por meio da morte de Jesus, Deus estava "reconciliando consigo o mundo". O que essa reconciliação envolve? "... não levando em conta os pecados dos homens", mas fazendo com que em Cristo "nos tornássemos justiça de Deus", isto é, aceitos como justos por Deus. Como foi possível essa não-imputação? Atribuindo nossas transgressões a outro, para que assumisse as dívidas. "Deus tornou-se pecado por nós, aquele que não tinha pecado". Parece então que foi como um sacrifício pelos pecadores, suportando a pena de morte em lugar deles, que "um morreu por todos" (2Co 5:14,18-21). Isto é substituição representativa.
A substituição representativa, como meio e modo de expiação, foi ensinada de forma típica pelo sistema de sacrifícios do Antigo Testamento dado por Deus. Ali, o animal perfeito que deveria ser oferecido pelo pecado era inicialmente constituído representante, pelo ato de o pecador colocar a mão sobre a cabeça do animal, identificando-o assim consigo e a si próprio com ele (Lv 4:4,24,29,33). A seguir, o animal era morto como substituto de quem o oferecia; o sangue era espargido "perante o Senhor" e aplicado em um ou nos dois lados do altar no santuário (Lv 4:6,7,17,18,25,30) como um sinal de que tinha sido efetuada a expiação, afastando a ira e restaurando a comunhão.
Anualmente, no Dia da Expiação, eram usados dois bodes: um era morto do modo habitual como oferta pelo pecado, e o outro, depois que o sacerdote lhe impunha as mãos sobre a cabeça, colocando os pecados de Israel "sobre a cabeça" do animal, pela confissão que ali era feita, era mandado embora para levar "consigo todas as iniqüidades deles para um lugar solitário" (Lv 16:21,22). Esse ritual duplo ensinava uma só lição: que pelo sacrifício do substituto representativo, a ira de Deus é afastada e os pecados são retirados da vista, para nunca mais atrapalhar nosso relacionamento com Deus. O segundo bode (bode expiatório) ilustra o que, em termos de tipo, foi realizado pela morte do primeiro bode. Esses rituais são a base direta dos ensinamentos de Paulo sobre a propiciação: ela é o cumprimento do modelo de sacrifício do Antigo Testamento que ele proclama.
3. A propiciação manifesta a justiça de Deus. Paulo diz que longe de originar dúvidas sobre a moralidade dos meios que Deus usa para lidar com o pecado, a realidade da propiciação estabelece essa moralidade — explicitamente planejada para isso. Deus propôs seu Filho para propiciar a ira do Pai, "demonstrando a sua justiça [...] a fim de ser justo e justifica-dor daquele que tem fé em Jesus" (Rm 3:25,26). O ponto de Paulo é que o espetáculo público da propiciação na cruz foi uma manifestação não apenas do perdão misericordioso da parte de Deus, mas da justiça como base para esse perdão.
Tal manifestação era necessária, diz Paulo, "demonstrando a sua justiça [...] Em sua tolerância [Deus], havia deixado impunes os pecados anteriormente cometidos". O ponto aqui é que embora os homens tenham sido, desde tempos imemoriais, tão maus quanto Romanos 1 descreve, Deus em nenhum tempo, desde o dilúvio, tomou a resolução de tratar publicamente a humanidade como ela merece. Embora desde o dilúvio as pessoas não tenham sido melhores que seus pais, Deus não reagiu a sua impenitência, impiedade e desobediência às leis por nenhum ato público de providência desfavorável. Em vez disso, ele "mostrou sua bondade, dando-lhes chuva do céu, e colheitas no tempo certo, concedendo-lhes sustento com fartura e um coração cheio de alegria" (At 14:17).
Esta "remissão" dos pecados sob "a paciência" não era na verdade perdão, apenas uma dilação do julgamento; contudo, uma dúvida se apresenta. Se, como acontece, as pessoas praticam o mal, e o "Juiz de toda a terra" continua a beneficiá-las, pode ele estar tão interessado na moralidade e piedade, na distinção entre o certo e o errado na vida de suas criaturas, como parecia estar anteriormente, e como a perfeita justiça exige? Na verdade, se ele permite que os pecadores continuem impunes, não estará ele mesmo carecendo da perfeição em seu ofício de juiz do mundo?
Paulo já respondeu à segunda parte desta questão com a sua doutrina do "dia da ira de Deus, quando se revelará o seu justo julgamento" em Romanos 2:1-16. Aqui ele responde à primeira parte dizendo, com efeito, que, longe de Deus estar desinteressado das questões morais e da justa exigência de retribuição pelo erro, ele está tão consciente disso que não perdoaria os pecadores — na verdade, creio que Paulo ousadamente diria não pode — nem absolveria os ímpios a não ser com base na justiça manifestada pela punição. Nossos pecados foram punidos; a roda do castigo foi virada, o julgamento pela impiedade foi realizado, mas sobre Jesus, o Cordeiro de Deus, que tomou o nosso lugar. Deste modo, Deus é justo e justificador dos que crêem em Jesus, "o qual foi entregue por causa das nossas transgressões e ressuscitou por causa da nossa justificação" (4:25).
Assim a justiça de Deus, o juiz, que é tão vividamente estabelecida na primeira parte da carta de Paulo, é vista outra vez na doutrina de Paulo sobre como a ira divina foi anulada. É vital para sua argumentação mostrar que as verdades, tanto sobre a salvação como sobre a condenação, manifestam a justiça eqüitativa, essencial e inerente ao caráter divino. Em cada caso, na salvação dos que são salvos e na condenação dos que se perdem, é feita a retribuição e o castigo é infligido. Deus é justo e a justiça se cumpre.
A morte de Cristo
O que dissemos até agora pode ser resumido do seguinte modo: O Evangelho nos fala que nosso Criador se tornou nosso Redentor; anuncia que o Filho de Deus tornou-se homem "por nossa causa e para nossa salvação"7 e morreu na cruz para nos salvar da condenação eterna. A descrição básica da morte salvadora de Cristo, na Bíblia, é como uma propiciação, isto é, como aquilo que anula a ira de Deus contra nós ocultando de seus olhos nossos pecados. A ira de Deus é sua justiça reagindo contra a injustiça; ela mostra em si a justiça punitiva. Jesus Cristo, porém, nos protege do pesadelo da expectativa da justiça punitiva ao tornar-se nosso substituto, em obediência à vontade de seu Pai e recebendo em nosso lugar o salário do nosso pecado.
Desse modo foi feita a justiça e os pecados de todos que serão perdoados foram julgados e punidos na pessoa de Deus, o Filho, e é nessa base que o perdão é oferecido a nós os pecadores. O amor redentor e a
7Expressão retirada do Credo...
justiça punitiva juntaram as mãos, por assim dizer, no Calvário, pois lá Deus se mostrou "justo e justificador dos que crêem em Jesus".
Você entende isso? Se a resposta for afirmativa, você agora está adentrando o coração do Evangelho cristão. Nenhuma versão dessa mensagem penetra tão profundamente como a que declara ser o pecado a raiz de todos os problemas do ser humano diante de Deus, o que provoca a ira de Deus e a providência básica que ele tomou para que o ser humano fosse propiciado, o que traz a paz em lugar da ira. Algumas versões do Evangelho, na verdade, são passíveis de culpa porque nunca atingiram esse nível.
Todos já ouvimos falar do Evangelho apresentado como resposta triun-fante de Deus aos problemas humanos — problemas do homem em relação a si mesmo, com o seu próximo e com o seu ambiente. Bem, não há dúvida de que o Evangelho realmente nos traga soluções para esses problemas, mas ele o faz resolvendo um problema bem mais profundo, o mais profundo para o ser humano: o relacionamento com o Criador. A menos que tornemos claro que a solução dos primeiros problemas depende da solução deste último, representaremos mal a mensagem e seremos falsas testemunhas de Deus, pois a meia-verdade apresentada como completa torna-se falsidade. Nenhum leitor do Novo Testamento pode deixar de perceber o fato de que ele mostra tudo a respeito de nossos problemas — medo, covardia moral, doenças do corpo e da mente, solidão, insegurança, desesperança, desespero, crueldade, abuso de poder e muitos mais. Porém, do mesmo modo, nenhum leitor do Novo Testamento pode deixar de perceber que ele também resolve todos esses problemas de um modo ou de outro, dentro do problema fundamental do pecado contra Deus.
No Novo Testamento, o pecado não é, em primeiro lugar, erro nem fracasso social, mas rebelião, desafio, afastamento e conseqüentemente culpa diante de Deus, o Criador. O pecado, diz o Novo Testamento, é o mal básico do qual precisamos ser libertados e o motivo que levou Cristo a morrer para nos salvar. Tudo o que aconteceu de errado na vida humana é, em última análise, devido ao pecado. Nossa condição presente — permanecer no erro em relação a nós mesmos e ao nosso próximo — não pode ser sanada enquanto não formos retos diante de Deus.
Não temos espaço aqui para demonstrar que os temas do pecado, da propiciação e do perdão formam a estrutura básica do Evangelho do Novo Testamento, mas se nossos leitores quiserem ler Romanos 1 a 5, Gálatas 3, Efésios 1 e 2, Hebreus 8 a 10, 1João 1 a 3 e os sermões em Atos, penso que descobrirão que na realidade não há lugar para dúvida alguma sobre este ponto. Se for feita uma indagação baseada no fato de a palavra propiciação aparecer apenas quatro vezes no Novo Testamento, a resposta deve ser que a idéia de propiciação aparece constantemente.
Às vezes a morte de Cristo é descrita como reconciliação, ou pacificação depois do ódio e da guerra (Rm 5:10; 2Co 5:18; Cl 1:20); às vezes é descrita como redenção ou pagamento pelo resgate do perigo e do cativeiro (Rm 3:24; Gl 3:13; 4:5; 1Pe 1:18; Ap 5:9); às vezes é apresentada como sacrifício (Ef 5:2; Hb 9:1-10:8); o ato de dar-se a si mesmo (Gl 1:4; 2:20; 1Tm 2:6); levar o pecado (Jo 1:29; 1Pe 2:24; Hb 9:28) e derramamento de sangue (Mc 14:24; Hb 9:14; Ap 1:5). Todas essas idéias estão ligadas ao ato de apagar o pecado e restaurar um relacionamento sem empecilhos entre o ser humano e Deus, como se poderá ver nos textos mencionados. Todos eles mostram, como fundo, a ameaça da condenação divina que a morte de Jesus evitou. Em outras palavras, essas são muitas das figuras e ilustrações da realidade da propiciação, vista de diversos ângulos. Trata-se de argumentação falsa e superficial imaginar, como muitos estudiosos infelizmente fazem, que essa variedade de linguagem necessariamente implica a variação de conceito.
Outro ponto deve ser agora estabelecido. A propiciação não só nos leva ao coração do Evangelho do Novo Testamento, como nos coloca em posição de vantagem, de onde podemos observar o interior de muitas outras coisas. Quando você está no topo de uma montanha, consegue ver toda a região circunvizinha e tem uma visão muito mais ampla do que se estivesse em outro ponto da área.
Isso também acontece, quando você se coloca no topo da verdade da propiciação. Consegue ver toda a Bíblia em perspectiva e está em posição de avaliar os assuntos vitais que não podem ser propriamente compreendidos em outros termos. Cinco deles serão analisados a seguir: a força motriz na vida de Jesus, o destino dos que rejeitam a Deus, o presente da paz de Deus, as dimensões do amor divino e o significado da glória divina. Não há dúvida de que esses assuntos são de vital importância no cristianismo. Eles só podem ser entendidos à luz da verdade sobre a propiciação, e isso, creio, não pode ser negado.
A FORÇA MOTRIZ NA VIDA DE JESUS
Pense primeiro na força motriz na vida de Jesus.
Se você se sentar por uma hora e ler todo o evangelho de Marcos (um exercício muito proveitoso; sugerimos que o faça aqui e agora), terá uma impressão de Jesus que inclui pelo menos quatro aspectos.
A impressão básica será a de um homem de ação: um homem sempre em movimento, sempre mudando as situações e precipitando os acontecimentos, operando milagres, chamando os discípulos e ensinando-lhes o trabalho a ser feito, destruindo o erro que passava por verdade e a irreligião que passava por piedade; e finalmente caminhando firme e atento para a traição, condenação e crucificação — a seqüência singular de anormalidades que, de modo estranho, sentimos que ele mesmo controlava todo o tempo.
Outra impressão que você teria era a de um homem que se sabia uma pessoa divina (Filho de Deus) cumprindo um papel messiânico (Filho do Homem). Marcos deixa bem claro que quanto mais Jesus se dava aos discípulos maior e mais impressionante era para eles o enigma, quanto mais se achegavam a Jesus, menos o entendiam. Isto soa paradoxal, mas era estritamente a verdade. À medida que se aprofundava a convivência com ele, os discípulos tinham um contato cada vez maior com a compreensão que Jesus tinha de si mesmo como Deus e Salvador, e isto era algo que os confundia profundamente.
Jesus, no entanto, tinha plena consciência dessa dupla autoridade, confirmada pela voz do Pai vinda do céu durante o batismo e a transfiguração (Mc 1:11; 9:7). De um lado, temos de pensar aqui na espantosa naturalidade com que ele assumia absoluta autoridade em tudo o que dizia e fazia (v. 1:22-27; 14:27-33). De outro lado, temos de pensar em sua resposta à pergunta dupla feita pelo sumo sacerdote por ocasião de seu julgamento: "Você é o Cristo [Messias, o Rei-Salvador de Deus], o Filho do Deus Bendito?" [uma pessoa divina e sobrenatural?], ao que Jesus respondeu categoricamente: "Sou" (14:61,62).
Partindo disto, a impressão que você terá é a de Alguém cuja missão messiânica estava centralizada em sua morte — Alguém consciente e decididamente preparado para morrer desse modo muito antes de que a idéia do Messias sofredor ocorresse a alguém. Pelo menos quatro vezes depois de Pedro haver declarado, em Cesaréia de Filipe, que Jesus era o Cristo este predisse sua morte e ressurreição, embora os discípulos não entendessem o sentido de suas palavras (8:31; cf. v. 34; 9:9,31; 10:33,34). Jesus referiu-se outras vezes a sua morte como um fato realmente certo (12:8; 14:18,24), um fato predito nas Escrituras (14:21,49) e que conquistaria para muitos um novo e importante relacionamento com Deus: "... o Filho do homem veio [...] para [...] dar a sua vida em resgate por muitos" (10:45), "Isto é o meu sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos" (14:24).
A última impressão que você terá é a de Alguém para quem esta experiência de morte era a mais temida provação. No Getsêmani "começou a ficar aflito e angustiado. E lhes disse: A minha alma está profundamente triste, numa tristeza mortal...'" (14:33,34). A sinceridade de sua oração (para a qual "prostrou-se" em vez de ajoelhar-se ou permanecer de pé) era sinal de sua repulsa íntima e da desolação sentida ao contemplar o que ia acontecer. Jamais saberemos quão forte foi sua tentação de dizer "amém" depois de "Afasta de mim este cálice" em lugar de "não seja o que eu quero, mas sim o que tu queres" (14:36). Depois, na cruz, com seu grito de desamparo "Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?" (15:35), Jesus deu testemunho de que a escuridão interior era comparável à exterior.
Como poderíamos explicar a crença de Jesus na necessidade de sua morte? Como poderíamos explicar que foi a convicção de que precisava morrer que o instigou durante todo seu ministério, como os quatro evangelhos testificam? E como poderíamos explicar também o fato de que mártires como Estêvão enfrentaram a morte com alegria, e até mesmo Sócrates, um filósofo pagão, bebeu sua cicuta e morreu sem tremor, enquanto Jesus, o Servo perfeito de Deus, que jamais havia mostrado o mínimo temor do homem, da dor ou da perda, manifestasse no Getsêmani o que parecia ser pânico, e na cruz declarou estar abandonado por Deus? "Nenhum homem temeu tanto a morte como este", comentou Lutero. Por quê? Qual o significado disto?
Os que vêem a morte de Jesus como nada mais que um trágico acidente — sem nenhuma diferença da morte de outros homens bons, condenados injustamente — de modo algum poderão explicar esses fatos. O único caminho que lhes resta, de acordo com seus princípios, é supor que Jesus tinha em si um traço tímido e mórbido que de tempos em tempos o traía, primeiro despertando nele a vontade de morrer para depois oprimi-lo com pânico e desespero quando a morte se aproximava.
Jesus, porém, ressuscitou da morte, e no poder de sua vida ressurreta ainda mostrou a seus discípulos que sua morte tinha sido necessária (Lc 24:26,27). Esta assim chamada explicação parece tão insensata quanto dolorosa. Entretanto, os que negam a verdade da expiação não têm nenhuma explicação melhor a oferecer.
Se, no entanto, relacionarmos o fato em questão com o ensinamento apostólico sobre a propiciação, tudo se torna perfeitamente claro. "Não poderíamos afirmar", pergunta James Denney, "que essas experiências de temor da morte e da deserção estejam ligadas ao fato de que em sua morte e na agonia no jardim, mediante a qual ele aceitou a morte como um cálice que seu Pai lhe deu para beber, Jesus estava tomando sobre si o peso dos pecados do mundo, consentindo em ser, como realmente foi, contado entre os transgressores?".8
8The death of Christ, 1911, p. 46.
Se tivessem feito esta pergunta a Paulo ou a João, não há dúvida sobre o que eles teriam respondido. Foi por ter sido feito pecado e recebido a condenação divina pelo pecado que Jesus tremeu no jardim. Na realidade, foi por ter recebido essa condenação que ele afirmou estar desamparado por Deus na cruz. A força motriz na vida de Jesus foi a decisão de ser "obediente até a morte, e morte de cruz" (Fp 2:8). Portanto o pavor sem igual de sua morte está no fato de ter provado no Calvário a ira de Deus que nos era devida, fazendo-se propiciação pelos nossos pecados.
Séculos antes, Isaías havia declarado: "nós o consideramos [...] por Deus atingido e afligido [...] ele foi transpassado por causa das nossas transgressões [...], e o Senhor fez cair sobre ele a iniqüidade de todos nós [...] por causa da transgressão do meu povo ele foi golpeado [...] foi da vontade do Senhor esmagá-lo e fazê-lo sofrer [...] tenha feito da vida dele uma oferta pela culpa..." (Is 53:4-10).
Ó Cristo, que peso terrível curvou tua fronte!
Que peso foi jogado sobre ti;
Tomaste o lugar do pecador,
Suportaste todo o mal por mim.
Levado como vítima, teu sangue foi derramado,
Agora já não há castigo para mim.
O Santo escondeu sua face;
Ó Cristo, escondeu-a de ti;
Por um pouco as trevas envolveram tua alma,
A escuridão devida a mim.
Mas agora aquela face de graça radiante
Brilha continuamente, iluminando a mim.9
Demoramo-nos neste ponto por sua importância na compreensão dos fatos básicos do cristianismo. As próximas seções serão mais curtas.
9Este hino foi composto por Anne R. Cousin (data desconhecida).
O QUE SERÁ DOS QUE REJEITAM A DEUS?
Pense, em segundo lugar, no destino dos que rejeitam a Deus.
Os universalistas supõem que a classe de pessoas mencionadas neste título não terá sequer um membro, no final, mas a Bíblia indica o contrário. As decisões feitas nesta vida terão conseqüências eternas. "Não se deixem enganar" [como você o faria se ouvisse os universalistas] "de Deus não se zomba. Pois o que o homem semear, isso também colherá" (Gl 6:7). Os que nesta vida rejeitam a Deus serão para sempre rejeitados por ele.
O universalismo, no entanto, afirma que Judas será salvo como os demais, mas Jesus não achava que isso aconteceria. "O Filho do homem vai, como está escrito a seu respeito. Mas ai daquele que trai o Filho do homem! Melhor lhe seria não haver nascido" (Mc 14:21). Como poderia Jesus dizer estas palavras se ele esperava que Judas fosse salvo no final?
Alguns, portanto, defrontam uma eternidade de rejeição. Como podemos entender o que eles provocarão para si mesmos? Não podemos, é claro, ter uma noção adequada do inferno, assim como não fazemos idéia de como é o céu; sem dúvida é bom para nós que seja assim, mas talvez a noção mais clara que possamos formar seja aquela baseada na contemplação da cruz.
Na cruz, Deus julgou nossos pecados na pessoa de seu Filho, e Jesus suportou a retribuição de nossos erros. Olhe para a cruz e você verá como será a reação da justiça de Deus para com o pecado do ser humano. Qual a forma que tomará? Em uma palavra, separação e privação do que é bom. Na cruz, Jesus perdeu tudo o que possuíra de bom: consciência da presença e do amor do Pai, toda a consciência física, mental e espiritual de bem-estar e toda a alegria de Deus e das coisas criadas. Toda a alegria e o consolo da amizade lhe foram tirados. Em seu lugar, nada mais havia a não ser solidão, dor, consciência penosa da malícia e maldade humanas e horror da mais completa escuridão espiritual.
A dor física, embora grande (pois a crucificação permanece como a mais cruel forma de execução judicial conhecida), não passava de uma pequena parte da história. O maior sofrimento de Jesus foi mental e espiritual. O que se concentrou em menos de quatrocentos minutos foi a eternidade de agonia — agonia tal que cada minuto era uma eternidade em si mesmo, como os que já sofreram mentalmente podem bem avaliar.
Assim também, os que rejeitam a Deus enfrentam a perspectiva de perder tudo o que é bom, e o melhor modo de se ter uma idéia da morte eterna é demorar-se nesse pensamento. Na vida diária nunca notamos quanto de bom desfrutamos pela graça comum de Deus até que essas coisas nos sejam tiradas. Nunca valorizamos a saúde, a estabilidade da vida, a amizade e o respeito dos outros até que venhamos a perdê-los.
O Calvário nos mostra que no julgamento final de Deus nada daquilo a que tenhamos dado valor, ou que poderíamos valorizar, nada do que consideramos bom permanecerá conosco. É um pensamento terrível, mas a realidade, podemos estar certos, é mais terrível ainda. "Bom seria para tal homem não haver nascido". Que Deus nos ajude a aprender a lição que o espetáculo da propiciação pela substituição penal na cruz nos ensina com toda a clareza. Que possamos ser achados em Cristo com os pecados cobertos por seu sangue, no último dia.
O QUE É A PAZ?
Em terceiro lugar pense na oferta de paz de Deus.
O que o Evangelho de Deus nos oferece? Se dissermos "a paz de Deus", ninguém duvidará, mas será que todos entenderão? O uso de palavras certas não garante pensamentos corretos! Não raro a paz de Deus é interpretada como se fosse essencialmente um sentimento de tranqüilidade íntima, feliz e descuidada, brotando da certeza de que Deus nos protegerá dos golpes mais duros da vida. Entretanto essa interpretação está errada, pois, de um lado, Deus não protege seus filhos desse modo, e se alguém pensar que ele o faz deve preparar-se para um choque. Por outro lado, o que é básico e essencial para a verdadeira paz de Deus não está, de modo algum, contido nesse conceito.
A verdade que esta versão da paz de Deus está buscando (apesar de interpretá-las mal, como já dissemos) é de que ela nos traz duas coisas: força para enfrentar nossa maldade e nossas falhas, e viver com elas, e também contentamento mesmo sob "as ondas adversas da má fortuna" (para as quais o cristão dá o nome de sábia providência divina). A verdade que esta versão ignora é que o ingrediente básico da paz de Deus, sem o qual o restante não pode subsistir, é o perdão e a aceitação na aliança, isto é, a adoção na família de Deus. Entretanto, onde esta mudança de relacionamento com Deus — da hostilidade para a amizade, da ira para a plenitude do amor, da condenação para a justificação — não se realiza, o Evangelho da paz também não se estabelece.
A paz de Deus é primordialmente paz com Deus; é a situação na qual Deus, em lugar de estar contra nós, é por nós. Qualquer versão sobre a paz de Deus que
não tenha início aqui será enganosa. Uma das tristes ironias de nosso tempo é que embora os teólogos liberais e "radicais" creiam reafirmar o Evangelho para os dias de hoje, eles têm, na maioria das vezes, rejeitado as categorias de ira, culpa, condenação e inimizade de Deus. Com isso não se permitem apresentar realmente o Evangelho, pois dessa forma não podem explicar o problema básico que o Evangelho da paz soluciona.
A paz de Deus é fundamentalmente um novo relacionamento de perdão e aceitação — e a fonte da qual emana é a propiciação. Quando Jesus apareceu a seus discípulos no cenáculo, na tarde do dia de sua ressurreição, disse: '"Paz seja com vocês!' Tendo dito isso, mostrou-lhes as mãos e o lado" (Jo 20:19,20). Por que ele fez isto? Não foi apenas para estabelecer sua identidade, mas para lembrar sua morte propiciatória na cruz, mediante a qual fizera a paz entre seu Pai e eles. Tendo sofrido no lugar deles, como substituto, para fazer a paz por eles, vinha agora em seu poder ressurreto trazer-lhes essa paz.
"Vejam! É o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!" 0o 1:29). É aqui neste reconhecimento que, embora por natureza tenhamos diferenças com Deus e ele conosco, Jesus fez "a paz pelo seu sangue derramado na cruz" (Cl 1:20), que o verdadeiro conhecimento da paz de Deus começa.
AS DIMENSÕES DO AMOR DIVINO
Em quarto lugar pense nas dimensões do amor de Deus.
Paulo ora para que os leitores de sua carta aos Efésios possam "juntamente com todos os santos, compreender a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede todo conhecimento" (Ef 3:18,19). O toque de incoerência e paradoxo em sua linguagem reflete a idéia de Paulo de que o amor divino é inexplicavelmente grande; não obstante, ele acredita que se possa ter alguma compreensão dele. Como?
A resposta de Efésios é: considerando a propiciação em seu contexto, isto é, revendo todo o plano da graça apresentado nos dois capítulos da carta (eleição, redenção, regeneração, preservação, glorificação), cujo ponto central é o sacrifício expiatório de Cristo. Veja as referências chave à redenção e remissão de pecados, e à aproximação para junto de Deus dos que estavam separados, mediante o sangue (morte sacrificial) de Cristo (1:7, 2:13). Veja também os ensinamentos do capítulo 5 que por duas vezes apontam o sacrifício propiciatório de Cristo em nosso lugar como demonstração e medida de seu amor por nós — amor que deve ser imitado no tratamento de uns para com os outros: "e vivam em amor, como também Cristo nos amou e se entregou por nós como oferta e sacrifício de aroma agradável a Deus" (5:2), "Maridos, ame cada' um a sua mulher, assim como Cristo amou a igreja e entregou-se por ela" (v. 25).
O amor de Cristo era de graça, não foi despertado por nenhuma bondade em nós (cf. 2:1-5); era eterno, junto com a escolha dos pecadores para a salvação feita pelo Pai "antes da criação do mundo" (1:4); sem reservas, pois levou à mais profunda humilhação e, na verdade, ao próprio inferno no Calvário; e era soberano, pois alcançou seu objetivo: a glória final dos redimidos, sua perfeita santidade e felicidade na alegria do seu amor (cf. 5:26,27), que está agora garantida e assegurada (cf. 1:14; 2:7-10; 4:11-16,30).
Permaneçam nestas coisas, Paulo insiste, se quiserem ter uma idéia, embora pequena, da grandeza e da glória do amor divino. São estas coisas que fazem "o louvor da sua gloriosa graça" (1:6); só quem as conhece pode louvar o nome do Jeová triúno devidamente. Isto nos leva ao último ponto.
A glória de Deus
Pense, finalmente, no significado da glória de Deus.
No cenáculo, depois de Judas ter saído para trair o Mestre, Jesus disse: "Agora o Filho do homem é glorificado, e Deus é glorificado nele" (Jo 13:31). O que ele queria dizer? "Filho do homem" era o nome que dava a si mesmo como o Rei-Salvador que antes de ser entronizado deveria cumprir Isaías 53. Quando falou da glorificação presente do Filho do homem, e de Deus nele, estava pensando especificamente na morte sacrificial, no "levantamento" na cruz que Judas havia saído para apressar. Você vê a glória de Deus em sua sabedoria, seu poder, sua justiça, sua verdade e seu amor, excelsamente manifestada no Calvário, ao fazer a propiciação pelos nossos pecados? A Bíblia vê; e nos aventuramos a acrescentar que se você sentisse o verdadeiro peso do ônus e da opressão de seus pecados, você também a veria.
Nos céus, onde essas coisas serão entendidas melhor, os anjos e os seres humanos se unirão para louvar "o Cordeiro que foi morto" (Ap 5:12; 7:9-12). Aqui na terra os que pela graça foram feitos espiritualmente realistas fazem o mesmo.
Glória, glória ao nosso Rei! Mil, dez mil coroas tem! Cristo obedeceu à lei, Tudo fez para nosso bem; Cristo à vida ressurgiu; vencedor ao céu subiu.
Anjos ao redor do Rei aclamavam seu poder. Respondia a santa grei: "Sim, abrimos com prazer Os portais celestiais Ao Senhor que celebrais!"
Recebido o nosso Rei, no seu trono se assentou. Povos todos percebei Que hoje graça Sem demora procurais salvação, e em paz estais.
Reina nestes corações, faze-nos a ti fiéis. Livra-nos de tentações, guarda-nos em tuas leis; Pois nós somos da tua grei! Glória, glória a ti, ó Rei!
Estes são os hinos dos herdeiros do céu, dos que viram a "iluminação do conhecimento da glória de Deus na face [isto é, na pessoa, nos atos e realizações] de Cristo" (2Co 4:6). As alegres novas do amor redentor e da misericórdia propiciatória, que constituem o coração do Evangelho, os impelem ao louvor sem fim. Você está incluído entre eles?
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Filhos de Deus
O que é um cristão? A pergunta pode ser respondida de muitas maneiras, mas a melhor resposta que conheço é que o cristão é alguém que tem Deus como Pai.
Não se pode dizer isto, porém, de todas as pessoas, sejam cristãs ou não? Com certeza não! A idéia de que todas as pessoas são filhas de Deus não é encontrada em parte alguma da Bíblia. O Antigo Testamento mostra Deus como o Pai não de todos, mas apenas de seu povo, a descendência de Abraão. "Israel é meu primeiro filho, e eu já lhe disse que deixe o meu filho ir" (Êx 4:22,23).
O Novo Testamento, embora apresente uma visão mundial, também mostra Deus não como Pai de todos os homens, mas só dos que, reco-nhecendo-se pecadores, depositam sua confiança no Senhor Jesus Cristo como seu divino Salvador e Senhor, só assim tornam-se descendência espiritual de Abraão. "Todos vocês são filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus [...] pois todos são um em Cristo Jesus. E, se vocês são de Cristo, são descendência de Abraão e herdeiros segundo a promessa" (Gl 3:26-29).
Ser filho de Deus, portanto, não é um estado universal obtido por nascimento, mas um dom sobrenatural recebido por meio de Jesus. "Ninguém vem ao Pai" — em outras palavras, é reconhecido por Deus como filho — "a não ser por mim" 0o 14:6). O dom da filiação a Deus se torna nosso não por termos nascido, mas por meio do novo nascimento.
Contudo, aos que o receberam, aos que creram em seu nome, deu-lhes o direito de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome. Os quais não nasceram por descendência natural, nem pela vontade da carne, nem pela vontade de algum homem, mas nasceram de Deus.
João 1:12,13
Filiação a Deus é, então, um dom da graça. Não se trata, portanto, de filiação natural, mas adotiva; é assim que o Novo Testamento explicitamente a representa. Na lei romana quando um adulto desejava um herdeiro — alguém para continuar o nome da família —, era comum a prática de adotar um adulto por filho, geralmente já com certa idade, em vez de uma criança, como é comumente feito hoje em dia.
Os apóstolos proclamam que Deus ama tanto a quem ele mesmo redimiu na cruz que os adotou como herdeiros para contemplar e compartilhar da glória na qual seu unigênito Filho já entrou. "[...] Deus enviou seu Filho [...] a fim de redimir os que estavam sob a Lei, para que [nós] recebêssemos a adoção de filhos" (Gl 4:4,5). Nós, isto é, os que "[ele] pre-destinou para sermos adotados como filhos, por meio de Jesus Cristo" (Ef 1:5). "Vejam como é grande o amor que o Pai nos concedeu: sermos chamados filhos de Deus, o que de fato somos! [...] quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, pois o veremos como ele é" (1Jo 3:1,2).
Há alguns anos escrevi:
Englobamos todo o ensinamento do Novo Testamento em uma só frase se falarmos dele como a revelação da Paternidade do santo Criador. Do mesmo modo, resumimos toda a religião do Novo Testamento se a descrevemos como o conhecimento de Deus, nosso santo Pai. Se quiser julgar até que ponto uma pessoa entendeu o que é cristianismo, descubra que valor ela dá ao fato de ser filha de Deus e de ter a Deus por Pai. Se este pensamento não dominar e controlar suas orações, adoração e toda a sua atitude perante a vida, isso demonstra não ter entendido bem o cristianismo. Pois tudo o que Cristo ensinou — o que torna o Novo Testamento novo e melhor que o Antigo, tudo o que é distintamente cristão, em oposição ao judaísmo — está englobado no conhecimento da paternidade de Deus. "Pai" é o nome cristão para "Deus".1
Isto ainda me parece totalmente verdadeiro e muito importante. Nossa compreensão do cristianismo não pode ser melhor que nosso entendimento sobre a adoção. Para nos ajudar a compreendê-la melhor, escrevi este capítulo.
Para os que creêm, a revelação de que Deus é seu Pai é em certo sentido o ponto alto da Bíblia, justamente por ser como foi o passo final no processo de revelação registrado nela. Nos tempos do Antigo Testamento, como já vimos, Deus forneceu a seu povo um nome pelo qual podiam se referir a ele e chamá-lo: o nome Yahweh (Jeová, o Senhor). Por este nome, Deus se proclamou "o grande Eu Sou" — aquele que é completa e coerentemente ele mesmo. Ele é; e é por ele ser quem é que as demais coisas são o que são.
Ele é a realidade por trás de toda a realidade, a causa fundamental de todas as causas e todos os acontecimentos. O nome proclamou-o auto-existente, soberano e completamente livre de constrangimento ou da dependência de qualquer coisa fora de si mesmo. Embora Yahweh seja seu nome aliancístico, tal nome comunica a Israel o que seu Deus era em si mesmo, e não o que seria em relação a eles. Era o nome oficial do Rei de Israel, e havia alguma coisa da reserva real sobre ele. Era um nome enigmático, previsto acima de tudo para despertar humildade e temor diante do mistério do Ser divino.
Totalmente de acordo com isso, o aspecto de seu caráter que Deus salienta com mais firmeza no Antigo Testamento é sua santidade. O
1Evangelical Magazine 7, p. 19,20.
louvor dos anjos que Isaías ouviu no templo, com sua repetição enfática: "Santo, santo, é o Senhor dos Exércitos" (Is 6:3), pode ser usado como lema para resumir o tema de todo o Antigo Testamento. A idéia básica que a palavra "santo" expressa é separação. Quando Deus é declarado "santo", pensa-se em tudo o que o separa, coloca à parte e o torna diferente das criaturas: sua grandeza ("Majestade nas alturas", Hb 1:3; 8:1) e pureza ("Teus olhos são tão puros que não suportam ver o mal", Hc 1:13).
Todo o espírito da religião do Antigo Testamento era determinado pela idéia da santidade de Deus. A ênfase constante era que o ser humano, por causa de sua fraqueza como criatura e seu aviltamento como pecador, deve aprender a se humilhar e a ser reverente diante de Deus. A religião era "o temor do Senhor" — reconhecer a própria pequenez, confessar suas faltas e se humilhar diante da presença de Deus, abrigar-se agradecidamente sob sua promessa de misericórdia e procurar, acima de tudo, evitar o pecado do orgulho. Frisava-se repetidamente que devemos nos manter em seu lugar, a distância, na presença do Deus santo. Esta ênfase se sobrepunha a tudo.
Um novo relacionamento
No Novo Testamento, entretanto, descobrimos que as coisas mudaram. Deus e a religião não são menos que antes; a revelação do Antigo Testamento sobre a santidade divina e a exigência da humildade por parte do ser humano é pressuposta em toda a sua extensão. Algo, porém, foi acrescido. Um novo fator aparece. Os cristãos do Novo Testamento têm a Deus por Pai. Pai é o nome pelo qual o chamam. Pai agora é o nome da aliança — pois o pacto que o prende a seu povo permanece como uma aliança de família. Os cristãos são seus filhos e herdeiros.
A ênfase do Novo Testamento não está na dificuldade e no perigo da aproximação do Deus santo, mas na ousadia e confiança com as quais os crentes podem se aproximar dele — ousadia que brota diretamente da fé em Cristo e do conhecimento da obra salvadora: "por intermédio de quem temos livre acesso a Deus em confiança, pela fé nele [em Jesus]" (Ef 3:12). "Portanto, irmãos, temos plena confiança para entrar no Santo dos Santos pelo sangue de Jesus, por um novo e vivo caminho que ele nos abriu [...] aproximemo-nos de Deus com um coração sincero e com plena convicção de fé..." (Hb 10:19-22).
Para os que são de Cristo, Deus é um pai amoroso; eles pertencem a sua família, podem se aproximar dele sem temor e estar sempre certos de seu cuidado e interesse paternal. Esta é a mensagem central do Novo Testamento.
Quem pode compreender isto? Tenho ouvido o sério argumento de que a idéia da paternidade divina pode não significar nada para pessoas cujos pais agem de modo inapropriado, sem sabedoria nem afeição, ou ambas, e também para muitos que não tiveram a felicidade de ter um pai que os criasse. Ouvi a falha revelada do bispo Robinson2 ao falar sobre a paternidade divina em Honest to God [Honesto com Deus],3 defendida como brilhante movimento no sentido de recomendar a fé a uma geração cuja vida familiar se desintegrou quase completamente.
Isso, porém, é tolice. Em primeiro lugar, é certamente incorreto sugerir que, no campo das relações pessoais, conceitos positivos não possam ser formados por contraste, como a sugestão aqui implícita. Muitos jovens se casam com a resolução de não fazer de seu casamento um fracasso, como viram acontecer entre seus pais: este não pode ser um ideal positivo? É claro que sim. Do mesmo modo, a idéia de nosso Criador tornar-se um pai perfeito — fiel no amor e no cuidado, generoso e previdente, interessado em tudo o que fazemos, respeitando nossa individualidade, capaz de nos ensinar, sábio em dirigir, sempre à disposição, ajudando-nos a descobrir nossa maturidade, integridade e lealdade — é significativa para qualquer pessoa. Não importa se chegamos a esse pensamento dizendo: "Tive um pai maravilhoso, e vejo que Deus é semelhante, apenas muito maior" ou então: "Meu pai me desapontou em várias situações, mas Deus, louvado seja seu nome, será muito diferente", ou ainda dizendo: "Não sei o que é ter um pai na terra, mas graças a Deus agora tenho um no céu".
2John Axthur Thomas Robinson (1919-1983) foi bispo anglicano da Diocese de Woolwich (Inglaterra) e deão do Trinity College. Seu livro vendeu mais de um milhão de cópias.
3Scm Press: London, 1963.
A verdade é que todos nós temos um ideal positivo de paternidade pelo qual julgamos nossos pais e os pais dos outros. Pode-se dizer com certeza que não existe uma pessoa para quem a idéia da perfeita paternidade de Deus seja inexpressiva ou repulsiva.
Em todo o caso (e este é o segundo ponto), Deus não nos deixou às voltas com especulações sobre a natureza de sua paternidade baseadas em analogias com a paternidade humana. Ele revelou o significado completo e final deste relacionamento por meio de nosso Senhor Jesus Cristo, seu próprio Filho encarnado. É de Deus que "recebe o nome toda a família nos céus e na terra" (Ef 3:15). Assim, de sua manifesta atividade como "o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo" (Ef 1:3), é que aprendemos, neste caso particular que é também um critério universal, o que significa realmente esta relação paternal de Deus com os que estão em Cristo. Deus quer que a vida dos cristãos seja o reflexo e a reprodução do relacionamento entre ele e Jesus.
Onde podemos aprender isto? Principalmente no evangelho e na primeira carta de João. No evangelho de João, a primeira bênção evangélica a ser citada é a adoção (1:12), e o auge da primeira aparição de Jesus ressurreto é a declaração de que subiria para "meu Pai e Pai de vocês, para meu Deus e Deus de vocês" (20:17). O foco da primeira carta de João são os conceitos da filiação como o dom supremo do amor divino (1Jo 3:1); do amor ao Pai (2:15; ef. 5:1-3) e à irmandade de Cristo (2:9-11; 3:10-17,4:7,21) como a ética da filiação; da amizade com Deus, o Pai, como privilégio dessa filiação (2:13,23,24); da justiça e da fuga ao pecado como evidência da filiação (2:29; 3:9,10; 5:18); e da esperança de ver Jesus e ser semelhante a ele (3:3).
Nestes dois livros bíblicos podemos aprender com toda a clareza o que significava para Jesus essa paternidade e quais suas implicações para os cristãos atualmente.
De acordo com o testemunho do Senhor no evangelho de João, o relacionamento paternal de Deus com ele implicava quatro coisas.
Primeiro, paternidade implica autoridade. O Pai comanda e determina. A iniciativa exigida do Filho é a de resoluta obediência a seu desejo: "Pois desci dos céus não para fazer a minha vontade, mas para fazer a vontade daquele que me enviou"; "[...] completando a obra que me deste para fazer"; "[...] o Filho não pode fazer de si mesmo [...]"; "A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou [...]" (Jo 6:38, 17:4; 5:19; 4:34).
Segundo, paternidade implica afeição. "Pois o Pai ama ao Filho"; "Como o Pai me amou [...] assim como tenho obedecido aos mandamentos de meu Pai e em seu amor permaneço" (5:20; 15:9,10).
Terceiro, paternidade implica companhia. "[...] Mas eu não estou sozinho, pois meu Pai está comigo"; "Aquele que me enviou está comigo; ele não me deixou sozinho, pois sempre faço o que lhe agrada" (16:32; 8:29).
Quarto, paternidade implica honra. Deus quer exaltar seu Filho. "Pai [...] Glorifica o teu Filho"; "O Pai [...] confiou todo o julgamento ao Filho, para que todos honrem o Filho como honram o Pai" (17:1; 5:22,23).
Tudo isso se estende aos filhos adotivos de Deus. Em Jesus Cristo, seu Senhor, por meio dele e sob ele, os filhos são governados, amados, acompanhados e honrados pelo Pai celeste. Como Jesus obedeceu a Deus, também eles devem fazê-lo. "Nisto consiste o amor de Deus" — o Deus "que o gerou" — "em obedecer aos seus mandamentos" (1Jo 5:1,3).
Assim como Deus amou seu único Filho, ele ama seus filhos adotivos. "Pois o próprio Pai os ama" (Jo 16:27). Como o Pai teve comunhão com Jesus, ele tem também conosco: "Nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo" (1Jo 1:3),
Assim como Deus exaltou Jesus, também exalta seus seguidores como irmãos em uma só família. "Aquele que me servir, meu Pai o honrará"; "Pai, quero que os que me deste estejam comigo onde eu estou e vejam a minha glória, a glória que me deste" (Jo 12:26,17:24). Nestes termos a Bíblia nos ensina a entender a forma e a substância do relacionamento pai-filho que une o Pai e o servo de Jesus.
É necessário que se apresente agora a definição e uma análise do significado dessa adoção. Podemos extraí-la da Confissão de fé de West-. minster (cap. xii), um excelente exemplo:
A todos os que são justificados, Deus se digna fazer participantes da graça da adoção em e por seu único Filho Jesus Cristo. Por essa graça, eles são recebidos no número e gozam a liberdade e privilégios dos filhos de Deus, têm sobre si o nome dele, recebem o Espírito de adoção, têm acesso, com ousadia, ao trono da graça, e são habilitados a clamar: "Abba, Pai"; são tratados com piedade, protegidos, providos e corrigidos por ele, como por um pai; nunca, porém, abandonados, mas selados para o dia da redenção, e recebem as promessas como herdeiros da eterna salvação.4
Esta é a natureza da filiação divina conferida aos crentes, que passaremos a estudar.
Adoção: o maior privilégio
O primeiro ponto sobre a adoção: ela é o mais alto privilégio que o Evangelho oferece, maior ainda que a justificação. Esta afirmação pode causar dúvidas, pois a justificação é o dom de Deus ao qual, desde Lutero, os evangelistas têm dado grande ênfase. Estamos, portanto, acostumados a dizer quase sem pensar que a justificação gratuita é a suprema bênção de Deus para nós, pecadores. Não obstante, um estudo cuidadoso nos mostrará a verdade da afirmação que acabamos de fazer.
Não está em discussão aqui o fato de que a justificação — pela qual
4São Paulo: Cultura Cristã, 4. ed., 1999, p. 70,1.
pretendemos o perdão de Deus pelo passado junto com sua aceitação futura — é a bênção principal e fundamental do Evangelho. A justificação é a bênção principal porque vem ao encontro da necessidade espiritual mais importante. Todos nós, por natureza, estamos sob a condenação de Deus; sua lei nos condena; a culpa nos atormenta tornando-nos inquietos, miseráveis e temerosos nos momentos de lucidez; não temos paz em nós mesmos, por não termos paz com nosso Criador. Assim, precisamos do perdão de nossos pecados e da segurança do retorno à comunhão com Deus mais que qualquer outra coisa no mundo; e isto o Evangelho nos oferece antes de tudo. O primeiro sermão pregado, registrado em Atos, leva-nos à promessa do perdão dos pecados para todos os que se arrependem e recebem Jesus como Salvador e Senhor (v. At 2:38; 3:19; 10:43; 13:38,39; cf. 5:31; 17:30; 20:21; 22:16; 26:18; Lc 24:47).
Em Romanos, a mais completa exposição do evangelho de Paulo — "o evangelho mais claro", para a mente de Lutero —, a justificação pela cruz de Cristo é exposta em primeiro lugar (caps. 1 a 5), sendo a base de tudo o mais. Paulo fala regularmente sobre a justificação, remissão dos pecados e justiça como a primeira e imediata conseqüência da morte de Jesus (Rm 3:22-26; 2Co 5:18-21; Gl 3:13,14; Ef 1:7 etc). Por ser a justificação a bênção principal, ela é também a bênção fundamental, no sentido de que tudo o mais em nossa salvação se apropria e depende dela, incluindo a adoção.
Mas isto não quer dizer que a justificação seja a mais alta bênção do Evangelho. A adoção é maior por causa da riqueza do relacionamento com Deus que ela envolve. Alguns livros sobre doutrina cristã (o de Berkhof, por exemplo) tratam a adoção como simples subdivisão da justificação, mas isso não é apropriado. As duas idéias são distintas e a adoção é a mais sublime. A justificação tem conotação forense, concebida em termos da lei, tendo Deus por juiz. Na justificação, Deus declara que os cristãos penitentes não são e nunca serão sujeitos à morte merecida por seus pecados porque Jesus Cristo, mediante a substituição e o sacrifício, provou a morte na cruz no lugar deles.
Esta dádiva de resgate e paz, a nós doada à custa do Calvário, é suficientemente maravilhosa em sã consciência, mas a justificação não implica um relacionamento íntimo e profundo com Deus, o juiz. Em teoria, pelo menos, você pode ter a realidade da justificação sem que disso resulte nenhum relacionamento mais chegado com Deus.
Agora compare isso com a adoção. Adoção sugere a idéia de família, concebida em termos de amor, e vendo a Deus como pai. Na adoção, Deus nos recebe em sua família e comunhão e nos estabelece como filhos e herdeiros. Intimidade, afeição e generosidade são os pontos altos desse relacionamento. Estar bem com Deus, o juiz, é uma grande coisa, mas ser amado e protegido por Deus, o Pai, é algo muito maior.
Este ponto nunca foi tão bem colocado como no seguinte extrato de The doctrine of justification [A doutrina da justificação], de James Buchanan:5
De acordo com as Escrituras, o perdão, a aceitação e a adoção são privilégios distintos, um surgindo do outro na ordem em que foram citados [...] ao passo que os dois primeiros pertencem propriamente à justificação (do pecador), por estarem os dois fundamentados na mesma relação, a de Governante e Súdito — o terceiro é radicalmente distinto deles por estar fundamentado no relacionamento mais chegado, mais suave e mais duradouro — que há entre Pai e Filho [...] Há uma manifesta diferença entre a posição de um servo e a de um amigo, e também entre a de um servo e de um filho [...] Uma intimidade mais chegada e mais envolvente que a existente entre o senhor e o servo prevalece entre Cristo e seu povo. "Já não os chamo servos, porque o servo não sabe o que o seu senhor faz. Em vez disso, eu os tenho chamado amigos" (Jo 15:15); consta que um relacionamento mais chegado e caro existe em conseqüência da adoção; pois, "você já não é mais escravo, mas filho; e, por ser filho, Deus também o tornou herdeiro" (Gl 4:7). O privilégio da adoção pressupõe perdão e aceitação, mas é maior que os dois, pois "a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder", não força interior, mas autoridade, direito ou privilégio "de se tornarem filhos de Deus" (Jo 1:12). Este é um privilégio maior que a justificação, pois está fundamentado em um relacionamento mais
5Ministro escocês (1804-1870) ligado à Igreja Presbiteriana da Escócia. Foi professor do New College Seminary, em Edimburgo, e também um escritor muito prolífico.
chegado e mais duradouro. "Vejam como é grande o amor que o Pai nos concedeu: sermos chamados filhos de Deus" (1Jo 3:1).6
Não percebemos perfeitamente a maravilha da passagem da morte para a vida que tem lugar no novo nascimento até que a vejamos como uma transição, não apenas da condenação para a aceitação, mas da escravidão e do desamparo para a "segurança, certeza e alegria" da família de Deus. Esta é a visão da grande mudança que Paulo estabelece em Gáiatas 4:1-7, fazendo o contraste entre a vida anterior de seus leitores, vida de escravidão ao legalismo e superstição na religião (v. 3,5,8), com o conhecimento atual deles do Criador como Pai (v. 6) e benfeitor segundo a promessa (v. 7). Foi a isso, diz Paulo, que a sua fé em Cristo os conduziu; vocês receberam "a adoção de filhos" (v. 5); você não é mais "escravo, mas filho; e por ser filho, Deus também o tornou herdeiro" (v. 7).
Quando Charles Wesley encontrou a Cristo no domingo de Pentecos-tes de 1738, sua experiência se extravasou em alguns versos maravilhosos nos quais a transição de escravo para filho é o tema principal:
Onde minha alma surpresa começará?
Como poderei eu aspirar ao céu?
Um escravo redimido da morte e do pecado
Um tição arrancado do fogo eterno
Como exaltarei suficientemente
ou cantarei louvores ao meu grande Libertador?
Como falarei da bondade
Que tu, ó Pai, me tens mostrado?
Eu, um filho da ira e do inferno,
ser chamado de filho de Deus,
saber e sentir meus pecados perdoados.
Abençoado com este antepasto do céu!7
6Publicado originariamente em 1867, na edição usada por Packer (provavelmente da Banner of Truth de 1961), p. 276. Uma excelente condensação desse título foi publicada em português com o título Declarado inocente (São Paulo: pes, 1994).
7"The Wesleys' Conversion Hymn", Methodist Hymn Book, 361.
Três dias mais tarde, como Charles narra em seu diário, seu irmão John irrompeu com um "grupo de amigos nossos" para anunciar que ele também era agora cristão, e "cantamos o hino com grande alegria". Se você estivesse lá poderia com sinceridade ter-se juntado ao grupo? Você faria suas as palavras de Wesley? Se for um verdadeiro filho de Deus, e "o Espírito de seu Filho" estiver em você, as palavras de Wesley já terão encontrado eco em seu coração; mas se elas o deixaram frio, eu não sei como você pode pensar que é realmente cristão.
Mais uma coisa deve ser acrescentada para mostrar quão grande é a bênção da adoção: esta é a bênção que permanece. Atualmente os peritos sociais nos inculcam que a unidade familiar precisa ser estável e segura e que qualquer instabilidade no relacionamento entre pais e filhos pode produzir tensão, neuroses e até mesmo atrasar o desenvolvimento da criança. A depressão, a inconseqüência e a irritabilidade que marcam as crianças saídas de lares desfeitos são bem conhecidas de todos.
Isso não acontece na família de Deus. Nela você tem absoluta estabilidade e segurança, o pai é totalmente sábio e bom, e a posição do filho é permanentemente assegurada. O próprio conceito de adoção é em si mesmo prova e garantia da preservação dos santos-, pois somente os maus pais expulsam seus filhos da família, mesmo sob provocação. Deus não é mau pai, mas, ao contrário, é muito bom. Quando se observa depressão, inconseqü-ência e imaturidade nos cristãos não se pode deixar de pensar se eles realmente aprenderam o hábito saudável de se apoiar na segurança permanente dos filhos de Deus.
Adoção: a base de nossa vida
Nosso segundo ponto sobre adoção é que toda a vida cristã precisa ser entendida nos termos dessa adoção. A filiação deve ser a idéia determinante, talvez a categoria normativa em todos os sentidos. Isto resulta da natureza do caso e é admiravelmente confirmado pelo fato de todos os ensinamentos de Jesus sobre o discipulado cristão serem expressos nesses termos.
É claro que, como Jesus sempre pensou em si mesmo como Filho de Deus em sentido único, ele também pensava em seus seguidores como filhos de seu Pai celestial, membros da mesma família que ele. No início de seu ministério ouvimo-lo dizer: "Quem faz a vontade de Deus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe" (Mc 3:35).
Dois evangelistas registram como ele, depois da ressurreição, chamou seus discípulos de seus irmãos: "As mulheres saíram [...] foram correndo anunciá-lo aos discípulos [...] De repente, Jesus as encontrou [...] Então Jesus lhes disse: 'Não tenham medo. Vão dizer a meus irmãos que se dirijam para a Galiléia; lá eles me verão'" (Mt 28:8,9,10). "Vá, porém, a meus irmãos e diga-lhes: Estou voltando para meu Pai e Pai de vocês, para meu Deus e Deus de vocês. Maria Madalena foi e anunciou aos discípulos [...] E contou o que lhe dissera" (Jo 20:17,18).
O escritor aos Hebreus nos assegura que o Senhor Jesus considera irmãos aqueles por quem morreu e que foram feitos seus discípulos. "Ele diz: 'Proclamarei o teu nome a meus irmãos [...]' Novamente ele diz: 'Aqui estou eu com os filhos que Deus me deu'" (Hb 2:12,13). Assim como nosso Criador é também nosso Pai, nosso Salvador é nosso irmão quando entramos na família de Deus.
Então, assim como o conhecimento de sua filiação ímpar determinou-lhe a vida na terra, Jesus insiste em que o conhecimento de nossa adoção também deva determinar nossa vida. Isto pode ser observado muitas e muitas vezes em seus ensinamentos, mas em nenhum lugar está mais claro que no Sermão do Monte. Muitas vezes chamado a carta-patente do reino de Deus, este sermão poderia ser igualmente descrito como o código da família real, pois a idéia da filiação do discípulo de Deus é fundamental em todas as principais questões sobre obediência cristã abordadas no Sermão. Vale a pena mostrar isso em detalhes, especialmente porque este ponto é raramente exposto com o peso que lhe é devido.
Conduta cristã
Primeiro, a adoção aparece no Sermão como a base da conduta cristã. Muitas vezes se fala que o Sermão ensina a conduta cristã não porque apresente um esquema completo de regras e uma casuística detalhada para ser seguida com precisão mecânica, mas porque indica de modo geral e amplo o espírito, a direção e os objetivos, princípios e ideais diretivos, pelos quais o cristão deve dirigir sua trajetória. Ressalta-se constantemente que se trata de um código de ética de liberdade responsável, bem diferente do tipo de instrução do consultor de impostos, que era o recurso dos legistas e escribas judeus nos dias do Senhor.
O que em geral menos se observa é que se trata precisamente do mesmo tipo de instrução moral que os pais sempre tentam dar aos filhos: concreta, imaginativa, que ensine princípios gerais a partir de exemplos particulares e que procure durante todo o tempo levar os filhos a apreciar e compartilhar as atitudes e pontos de vista dos pais. A razão por que o Sermão tem esta qualidade não deve ser buscada muito longe: é por ser na realidade a instrução dos filhos de uma família — a família de Deus. Esta orientação básica é dada por meio de três princípios gerais de conduta que nosso Senhor apresenta.
O primeiro é imitar o Pai: "Mas eu lhes digo: Amem os seus inimigos [...] para que vocês venham a ser filhos de seu Pai que está nos céus [...] Portanto, sejam perfeitos como perfeito é o Pai celestial de vocês" (Mt 5:44,45,48). A conduta dos filhos deve retratar a família. Jesus aqui está dizendo: "Sejam santos, porque eu sou santo" — e falando isso em termos familiares.
O segundo princípio é glorificar o Pai: "Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que está nos céus" (5:16). É muito bom que os filhos se orgulhem de seus pais, que queiram que outros vejam quão maravilhoso ele é e procedam com cuidado em público de modo a dar-lhe crédito. Assim também os cristãos, diz Jesus, devem procurar agir entre as pessoas, ou seja, de tal maneira que seu comportamento produza louvor ao Pai que está no céus. A preocupação constante deve ser a que ele lhes ensinou no princípio de suas orações: "Pai nosso [...] Santificado seja o teu nome" (6:9).
O terceiro é o de agraciar ao Pai. No capítulo 6, versículos 1 a 18, Jesus se refere à necessidade de ter por único objetivo agradar a Deus no que diz respeito à religião, e assim estabelece esse princípio: "Tenham o cuidado de não praticar suas 'obras de justiça' diante dos outros para serem vistos por eles. Se fizerem isso, vocês não terão nenhuma recompensa do Pai celestial" (6:1). Tal "recompensa" não é com certeza inte-resseira, mas será uma recompensa dentro da família, um toque de amor especial como uma surpresa que os pais gostam de fazer aos filhos quando estes demonstram esforço especial para agradá-los. O propósito da promessa de recompensa do Senhor (6:4,6,18) não é nos levar a pensar em termos de salário e permuta, mas simplesmente para nos lembrar de que nosso Pai celestial notará e mostrará prazer especial quando concentrarmos nossos esforços em agradá-lo, e somente a ele.
A ORAÇÃO CRISTÃ
Segundo, a adoção aparece no Sermão como a base da oração cristã: "Vocês orarão assim: 'Pai nosso [...]'" (Mt 6:9). Jesus sempre orou a Deus chamando-o Pai (abba em aramaico, uma palavra íntima, usada na família); seus seguidores também devem fazê-lo. Jesus podia dizer ao Pai: "Eu sei que sempre me ouves" (Jo 11:42), e ele quer que seus discípulos saibam que, como filhos adotivos de Deus, o mesmo lhes ocorre. O Pai está sempre à disposição de seus filhos e nunca está preocupado demais que não possa ouvir o que eles têm a dizer. Esta é a base da oração cristã.
Duas coisas se seguem, de acordo com o sermão do Monte. Primeira, a oração não deve ser mecânica nem impessoal, como se fosse uma técnica para pressionar alguém que de outro modo não lhe dará atenção: "E quando orarem, não fiquem sempre repetindo a mesma coisa, como fazem os pagãos. Eles pensam que por muito falarem serão ouvidos. Não sejam iguais a eles, porque o seu Pai sabe do que vocês precisam, antes mesmo de o pedirem" (Mt 6:7,8).
Segunda, a oração deve ser livre e ousada. Não devemos hesitar em imitar o sublime "descaramento" da criança que não tem medo de pedir qualquer coisa a seus pais porque sabe que pode contar completamente com o amor deles. "Peçam, e lhes será dado [...] Pois todo o que pede, recebe [...] Se vocês, apesar de serem maus, sabem dar boas coisas aos seus filhos, quanto mais o Pai de vocês, que está nos céus, dará coisas boas aos que lhe pedirem!" (7:7-11).
Nosso Pai no céu, na verdade, nem sempre responde às orações de seus filhos nos moldes em que são oferecidas. Às vezes pedimos coisas erradas! É prerrogativa divina dar o que é bom, coisas das quais temos necessidade. Se, em nossa ignorância, pedimos o que não tem essa prioridade, Deus, como qualquer bom pai, reserva-se o direito de dizer: "Não, isso não! Não seria bom para você; receba isto que é melhor!". Os bons pais jamais ignoram as palavras dos filhos, nem desprezam seu sentimento de necessidade. Deus também não. Entretanto, não raro, ele nos dá o que deveríamos ter pedido em lugar do que pedimos de fato.
Paulo pediu ao Senhor Jesus que, pela graça, removesse seu espinho na carne. E o Senhor respondeu com a graça, deixando que esse espinho permanecesse, fortalecendo Paulo para viver com ele (2Co 12:7). O Senhor sabe o que é melhor! Sugerir que, por ter sido essa a resposta, a oração de Paulo não foi respondida seria inteiramente errado. Aqui está uma fonte de esclarecimento para o que é chamado erroneamente "a questão da oração não-respondida".
A VIDA DE FÉ
Terceiro, a adoção aparece no Sermão do Monte como a base da vida de fé — isto é, a vida de confiança em que Deus proverá as necessidades materiais quando se busca seu reino e sua justiça. Creio ser desnecessário ressaltar que se pode ter uma vida de fé sem renunciar a um emprego lucrativo — alguns, sem dúvida, são chamados a fazê-lo, mas tentar isso sem orientação específica não seria fé, e sim tolice — e a diferença é grande!
Todos os cristãos são chamados à vida de fé, no sentido de obedecer a Deus a qualquer custo, confiando-lhe as conseqüências. Todos, porém, são tentados, cedo ou tarde, a colocar sua posição e segurança, em termos humanos, em plano superior à lealdade ao chamado de Deus. Então, quando resistem a essa tentação, são levados a se preocupar com o provável resultado de sua atitude, como aconteceu com os discípulos a quem o Sermão foi primeiramente pregado e também tem acontecido com muitos desde então. Tal preocupação ocorre quando seguir Jesus os obrigou a desistir de parte da segurança ou prosperidade que de outra forma poderiam desfrutar. Para estes, portanto, tentados na vida de fé, Jesus traz a verdade de sua adoção.
"Não se preocupem com sua própria vida", diz o Senhor, "quanto ao que comer ou beber; nem com seu próprio corpo, quanto ao que vestir" (Mt 6:25). Alguém poderá objetar: "Isto não é ser realista. Como posso deixar de me preocupar quando enfrento isto, isso e aquilo?". Ao que Jesus responde: "Sua fé é muito pequena. Você se esqueceu de que Deus é seu pai?". "Observem as aves do céu [...] o Pai celestial as alimenta. Não têm vocês muito mais valor do que elas?" (v. 26).
Se Deus cuida dos pássaros, dos quais ele não é pai, não está claro que ele certamente cuidará de você, de quem ele é Pai? O ponto central está positivamente nos versículos 31 a 33: "Portanto, não se preocupem, dizendo: 'Que vamos comer?', ou 'Que vamos beber?' [...] o Pai celestial sabe que vocês precisam delas. Busquem, pois, em primeiro lugar o Reino de Deus [do Pai] e a sua justiça, e todas essas coisas lhes serão acrescentadas".
"Podemos sofrer um acidente", disse ansiosamente uma menina, à medida que o carro da família se desviava no meio do tráfego intenso. "Confie no papai, ele é um bom motorista", disse a mãe. A menina sentiu-se segura e imediatamente se acalmou. Você confia dessa maneira no seu Pai celestial? Caso contrário, por que não? Essa confiança é vital; é na realidade a mola principal da vida de fé, sem a qual ela se torna apenas uma vida de incredulidade parcial.
O QUE NOSSA ADOÇÃO NOS MOSTRA
Nos capítulos anteriores vimos que a idéia de propiciação aparece textualmente apenas quatro vezes no Novo Testamento, e nem por isso é menos importante, constituindo, na realidade, o núcleo e o ponto focai de todo o conceito da obra salvífica de Cristo no Novo Testamento. A palavra adoção (em grego significa "estabelecer como filho") aparece apenas cinco vezes, e nessas ocasiões só três se referem à presente relação dos cristãos com Deus em Cristo Jesus (Rm 8:15; Gl 4:5; Ef 1:5). Entretanto, este pensamento é o centro, o ponto focai de todos os ensinamentos do Novo Testamento sobre a vida cristã. Estes dois conceitos, na verdade, estão juntos. Se me pedissem que centralizasse a mensagem do Novo Testamento em três palavras, minha sugestão seria esta: adoção mediante propiciação, e não espero encontrar outra síntese do Evangelho mais rica e mais abundante que essa.
Não é apenas nos quatro evangelhos que a idéia de nossa filiação concedida por Deus é estabelecida como "nosso direito à fonte", como dizia John Owen, dominando o pensamento e a vida. As epístolas também estão repletas dela. Extrairemos nossas evidências principalmente das epístolas, à medida que avançamos para mostrar que a realidade de nossa adoção nos dá discernimento mais profunda permitido pelo Novo Testamento a respeito de mais cinco assuntos: primeiro, a grandeza do amor divino; segundo, a glória da esperança cristã; terceiro, o ministério do Espírito Santo; quarto, o significado do que os puritanos denominavam "santidade evangélica"e por quê; quinto, a questão da segurança do crente.
O AMOR DIVINO
Em primeiro lugar, então, nossa adoção nos mostra a grandeza da graça de Deus.
O Novo Testamento nos fornece duas medidas para avaliar o amor divino. A primeira é a cruz (v. Rm 5:8; lJo 4:8-10); a segunda é o dom da filiação. "Vejam como é grande o amor que o Pai nos concedeu: sermos chamados filhos de Deus" (lJo 3:1). Entre todos os dons da graça, a adoção é o maior. O dom do perdão dos atos passados é grande, por isso saber que...
Carregando vergonha e grosseria escarnecedora, Em meu lugar condenado ele permaneceu, Selou meu perdão com seu sangue8
... é uma fonte infinita de alegria e encantamento.
Resgatado, curado, restaurado, perdoado, Quem, como eu, seu louvor cantará?9
Assim também, o dom da imunidade e da aceitação, agora e na eternidade, é grande, uma vez você torne para si as palavras de Charles Wesley sobre Romanos 8:
Não temo agora qualquer [sic] condenação,
Jesus, e tudo nele, é meu;
Vivificado nele, meu Senhor vivo,
E vestido da justiça divina,
Com ousadia me aproximo do trono eterno
E reivindico a coroa, por meio de meu Cristo.10
Nosso espírito adquire asas e voa, como alguns que lêem este capítulo com certeza o sabem. Quando, porém, você se conscientiza de que
8Segundo verso do hino Hallelujah! What a Samor, letra e música compostas por Philip
P. Bliss {International Lessons Monthly, 1875).
9Expressão extraída do primeiro verso do hino Praise, my soul, the King of Heaven,
escrito por Henry F. Lyte (Spirit of the Psalms, 1834).
10Palavras do último verso do hino And can it be that I should gain (Charles Wesley,
Psalms and Hymns, 1738).
Deus o tirou, por assim dizer, da sarjeta e o constituiu filho em sua casa — você, um transgressor, culpado, ingrato, hostil, perverso, mas agora milagrosamente perdoado —, sua consciência do amor de Deus "que excede todo o entendimento" se faz maior que tudo o que suas palavras possam expressar. Você também perguntará como Charles Wesley:
Oh, como eu a bondade contarei, Que tu, ó Pai, me tens mostrado? Eu, um filho da ira e do inferno, Possa ser chamado de filho de Deus.11
No entanto, você, como ele, talvez não se sinta capaz de responder adequadamente.
No mundo antigo, a adoção em geral se restringia a pessoas ricas sem filhos. O objeto dela, como já dissemos, não era normalmente uma criança de pouca idade, como acontece hoje, mas sim jovens que se mostrassem dispostos a transmitir o nome de família de maneira honrosa e fossem capazes de fazê-lo. Nesse caso, entretanto, Deus nos adotou por amor, não porque nosso caráter e nossas ações tenham nos mostrado dignos de portar seu nome. Ele o fez apesar de demonstrarmos justamente o contrário. Não estamos aptos a ocupar um lugar na família de Deus; a idéia de que ele ama e exalta os pecadores como ama e exalta o Senhor Jesus soa cômica e fantástica — entretanto, isso, e nada menos que isso, é o significado de nossa adoção.
A adoção, pela própria natureza, é um ato de bondade desinteressada em favor da pessoa adotada. Se você se tornar pai mediante a adoção, o fará por escolha, não por obrigação. Do mesmo modo Deus nos adota; porque resolveu fazê-lo. Ele não foi obrigado. Não precisava fazer nada a respeito de nossos pecados a não ser castigar-nos como merecemos. Entretanto ele nos amou, redimiu, perdoou, tornou-nos seus filhos e se entregou a nós como nosso Pai.
11Quatro primeiras linhas do segundo verso do hino Where shall my wondering soul begin? (Hymns and sacred poems, 1739).
A graça de Deus, porém, não pára nesse ato inicial, como o amor dos pais adotivos não cessa quando o processo legal é completado e a criança passa a ser deles. O estabelecimento do status da criança como membro da família é apenas o princípio. A tarefa real permanece: estabelecer um relacionamento verdadeiramente filial entre você e a criança adotada. É isso, acima de tudo o que você deseja ver; assim, se esforça para conquistar o amor da criança mediante seu amor por ela. Você procura despertar a afeição oferecendo afeição.
O mesmo acontece com Deus, durante toda a nossa vida neste mundo e por toda a eternidade. Ele estará constantemente demonstrando, de um modo ou de outro, mais e mais seu amor, e assim, aumentando nosso amor por ele. A perspectiva apresentada aos filhos adotivos de Deus é a eternidade de amor.
Conheci uma família na qual o filho mais velho foi adotado em uma época em que seus pais pensavam não poder ter filhos. Quando, mais tarde, seus filhos nasceram, eles transferiram toda a afeição para eles, e o mais velho, adotivo, foi ignorado. Era doloroso ver aquilo e, a julgar pela expressão facial do filho mais velho, tratava-se de uma experiência muito triste. O casal em questão falhou totalmente no desempenho de seu papel.
Na família de Deus, porém, as coisas não são assim. Como o filho rebelde da parábola de Jesus, é possível que não consigamos dizer nada além destas palavras: "Pai, pequei [...] Não sou mais digno de ser chamado teu filho; trata-me como um de teus empregados" (Lc 15:18,19). Deus, no entanto, nos recebe como filhos e nos ama com a mesma afeição duradoura com a qual ele ama eternamente seu querido primogênito. Não há diferentes graus de afeição na família divina. Somos amados tão completamente quanto Jesus. Parece um conto de fadas — o monarca adota crianças abandonadas e perdidas da sociedade e as transforma em príncipes. Entretanto, louvado seja Deus, não se trata de ficção, e sim de um fato sólido, fundamentado na rocha da graça livre e soberana.
Isto e nada menos que isto é o significado da adoção. Não é de admirar que João exclame: "Vejam como é grande o amor!". Quando você entender realmente a adoção, seu coração se expressará do mesmo modo.
Isso, porém, não é tudo.
Esperança
Segundo, nossa adoção nos mostra a glória da esperança cristã.
O cristianismo do Novo Testamento é a religião da esperança, a fé que anseia pelo futuro. Para o cristão, o melhor ainda está por vir. Como poderemos, no entanto, fazer idéia do que nos espera no fim da estrada? Aqui também a doutrina da adoção vem em nosso auxílio. Para começar, ela nos ensina a pensar sobre a esperança não como possibilidade, nem como probabilidade, mas como certeza, porque é uma promessa relativa à herança.
No primeiro século, a adoção ocorria especificamente para constituir um her-
deiro para quem deixar a herança. A adoção divina também nos faz seus herdeiros, garantindo, portanto, o direito (podemos dizer) à herança guardada para nós: "... somos filhos de Deus. Se somos filhos, então somos herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo..." (Rm 8:16,17). "Assim, você já não é mais escravo, mas filho; e, por ser filho, Deus também o tornou herdeiro" (Gl 4:7). A riqueza de nosso Pai é incomen-surável, e vamos herdá-la inteiramente.
Em seguida, a doutrina da adoção nos diz que a soma e a substância da herança prometida é a participação na glória de Cristo. Seremos semelhantes em todos os aspectos a nosso irmão mais velho. O pecado e a mortalidade, a dupla corrupção das boas obras de Deus tanto na esfera moral como na espiritual, serão coisas do passado. "... co-herdeiros com Cristo [...] para que também participemos de sua glória" (Rm 8:17). "Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que havemos de ser, mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, pois o veremos como ele é" (lJo 3:2).
Esta semelhança se estenderá ao aspecto físico, bem como à mente e ao caráter. Na verdade Romanos 8:23 fala da concessão física como a própria adoção, usando claramente a palavra que significa a transmissão da herança, motivo de nossa adoção: "... nós mesmos, que temos os primeiros frutos do Espírito, gememos interiormente, esperando ansiosamente nossa adoção como filhos, a redenção do nosso corpo". A bênção do dia da ressurreição tornará real para nós tudo o que estava implícito no relacionamento da adoção, pois nos levará à plena experiência da vida celestial já desfrutada por nosso irmão mais velho.
Paulo se refere ao esplendor desse acontecimento assegurando-nos que toda a criação, mesmo indistintamente neste momento, espera e deseja "... que os filhos de Deus sejam revelados [...] a própria natureza criada será libertada da escravidão da decadência em que se encontra, recebendo a gloriosa liberdade dos filhos de Deus" (Rm 8:19, 21). Seja qual for o significado dessa passagem (lembremo-nos de que não foi escrita para satisfazer a curiosidade natural do cientista), ela claramente destaca a suprema grandeza do que nos espera no plano divino perfeito.
Quando pensamos em Jesus exaltado na glória, na plenitude da alegria para a qual ele suportou a cruz (um fato sobre o que os cristãos devem pensar constantemente), devemos sempre lembrar que todas suas posses serão um dia repartidas conosco, pois nossa herança não é menor que a dele; estamos entre os "muitos filhos" que Deus levará à glória (Hb 2:10), e sua promessa para nós, e sua obra em nós, não falharão.
Finalmente, a doutrina da adoção nos fala que a experiência no céu será uma reunião familiar, quando a grande multidão dos remidos se encontrará face a face com seu Pai-Deus e Jesus, seu irmão. Esta é a idéia mais clara e profunda do céu que a Bíblia nos dá. Muitas passagens das Escrituras mostram isso: "Pai, quero que os que me deste estejam comigo onde eu estou e vejam a minha glória" (Jo 17:24); "Bem-aventurados os puros de coração, pois verão a Deus" (Mt 5:8); "o veremos como ele é" (1Jo 3:2); "então, contemplarão a sua face" (Ap 22:4); "então veremos face a face" (1Co 13:12); "E assim estaremos com o Senhor para sempre" (1Ts 4:17).
Será como o dia em que uma criança doente deixa finalmente o hospital e encontra o pai e toda a família esperando na porta para recebê-la — um acontecimento realmente familiar. Ao atravessar as águas do Jordão, Fiel, personagem do livro O peregrino, de Bunyan, diz:
Eu me vejo agora no fim da minha jornada, meus dias de tribulação acabaram. A idéia daquilo para que vou e a conduta que me espera no outro lado parecem uma brasa ardente no meu coração... Eu vivia de ouvir dizer e pela fé, mas agora vou para onde viverei pelo que meus olhos virem e estarei com ele, em cuja companhia me deleito.
O que faz que o céu seja céu é a presença de Jesus e a do Pai divino reconciliado, que nos ama por causa de Jesus tanto e com a mesma intensidade que ao próprio Filho. Ver, conhecer e amar o Pai e o Filho e ser amado por eles, na companhia de toda a vasta família de Deus, é a essência da esperança cristã. Como disse Richard Baxter em sua expressão poética da aliança com Deus, apoiada "com boa disposição" por sua noiva no dia 10 de abril de 1660:
Meu conhecimento da vida é diminuto, O olho da fé está turvado, Mas é suficiente que Cristo saiba tudo; E que eu estarei a seu lado.12
Se você for cristão e, portanto, filho de Deus, esta perspectiva o satisfará completamente; se não a considerar satisfatória, provavelmente você ainda não seja nem uma coisa, nem outra.
O Espírito
Terceiro, nossa adoção nos dá a chave do entendimento do ministério do Espírito Santo.
Os cristãos de hoje enfrentam muitas armadilhas e perplexidades a respeito do ministério do Espírito Santo. O problema não está em encontrar o título correto, mas em saber qual é a experiência correspondente à obra de Deus referente ao título. Portanto, sabemos pelas Escrituras que o Espírito ensina o que vai na mente de Deus e glorifica o Filho de Deus; que ele é o agente do novo nascimento dando-nos compreensão para conhecer a Deus e também o novo coração para obedecer-lhe. Sabemos
12Parte do último verso do hino Lord it belongs not to my care (Poetical Fragments, 1681).
ainda que ele habita nos cristãos, santifica-os e fortalece-os para a peregrinação diária. Segurança, alegria, paz e poder são seus dons especiais. Todavia, muitos reclamam, confusos, que estas afirmações são para eles simples fórmulas, não correspondendo a nada que reconheçam em sua vida.
Naturalmente, tais cristãos se sentem perdendo algo vital e perguntam ansiosamente como poderão preencher o vazio entre a imagem de vida no Espírito apresentada pelo Novo Testamento e seu sentimento de aridez na experiência diária. Então, talvez em desespero, resolvem empreender por si mesmos a busca de um acontecimento psíquico transformador pelo qual possam sentir que a "barreira da falta de espiritualidade" pessoal foi rompida para sempre. O acontecimento pode ser denominado "experiência de Keswick",13 "rendição total", "batismo do Espírito Santo", "santificação total",14 "selamento com o Espírito", dom de línguas, a "segunda conversão" (se formos guiados por uma estrela católica em vez de protestante) ou a oração silenciosa ou em conjunto.
Entretanto, se alguma coisa acontecer, e eles se sentirem capazes de identificá-la com o que estavam procurando, logo descobrem que a "barreira da falta de espiritualidade" não foi afinal rompida e assim mudam ansiosos para alguma coisa nova. Muitos hoje são apanhados nessa confusão. Perguntamos: que ajuda pode ser oferecida a essas pessoas? A luz derramada pela verdade da adoção sobre o ministério do Espírito fornece a resposta.
A causa de problemas como os descritos é um tipo de sobrenaturalis-mo falso e mágico que leva as pessoas a ansiar pelo toque transformador, como o de uma força elétrica impessoal, que as libertará completamente de todos os fardos e cadeias da vivência consigo e com os outros. Elas
13Designação do movimento inglês (desde 1875) que oferecia palestras de quatro ou cinco dias sobre renovação espiritual. Essas palestras tinham por objetivo apresentar às pessoas o malefício do pecado, ensinar a viver de forma vitoriosa e desafiar ao comprometimento total com Deus e seu serviço.
14Expressão teológica usada nos círculos holiness para designar "o ato divino, posterior à conversão, mediante o qual os crentes são libertados do pecado original, ou depravação, e sua natureza carnal é erradicada e trazida ao estado de devotamento completo a Deus, e à santa obediência do amor, aperfeiçoada" ( entiresanctification.htm).
crêem ser esta a essência da verdadeira experiência espiritual. Pensam que a obra do Espírito é dar-lhes experiências como as viagens de lsd (que prejuízo causam os evangelistas quando prometem isto e os viciados equiparam suas fantasias a experiências religiosas! Será que nunca aprenderemos a fazer distinção entre coisas diferentes?).
O fato, porém, é que esta busca por uma explosão interior em lugar de comunhão íntima mostra a profunda incompreensão do ministério do Espírito. A verdade vital a ser aprendida é que o Espírito foi dado aos cristãos como o "Espírito que adota", e é assim que ele age em todo esse seu ministério. Por isso, sua tarefa e seu propósito é levar os cristãos a pensar com clareza cada vez maior no significado de seu relacionamento filial com Deus em Cristo e a reagir cada vez mais profundamente com relação a Deus. Paulo destaca essa verdade ao escrever: "[vocês] receberam o Espírito que os adota como filhos, por meio do qual clamamos 'Aba, Pai'" (Rm 8:15); "Deus enviou o Espírito de seu Filho ao coração de vocês, e ele clama: 'Aba, Pai'" (Gl 4:6).
Assim como a adoção em si mesma é o pensamento-chave para desvendar a idéia da vida cristã no Novo Testamento e o ponto focai para unificá-la, o reconhecimento de que o Espírito vem a nós como o Espírito que adota é a idéia-chave para desvendar tudo o que o Novo Testamento nos fala sobre seu ministério junto aos cristãos.
Partindo dessa idéia central, vemos que sua obra apresenta três aspectos. Em primeiro lugar, ele nos torna e nos mantém conscientes — às vezes mais claramente, mas sempre, de algum modo, conscientes, mesmo quando a parte maldosa que há em nós nos leva a negar tal consciência — de que somos filhos de Deus pela espontânea graça, por meio de Jesus Cristo. Esta é sua tarefa de prover fé, segurança e alegria.
Em segundo lugar, ele nos leva a olhar para Deus como Pai, mostrando para com ele respeitosa ousadia e confiança ilimitada, como é natural em filhos seguros do amor paterno. Esta é sua tarefa de nos fazer clamar "Aba, Pai" — a atitude descrita é a expressa pelo clamor.
Em terceiro lugar, ele nos impele a agir de acordo com nossa posição de filhos reais pela manifestação da semelhança familiar (isto é, de conformidade com Cristo), pela promoção do bem-estar da família (isto é, amando aos irmãos) e pela manutenção de sua honra (buscando a glória de Deus). Esta é sua obra de santificação. Por meio deste aumento progressivo da consciência e do caráter filial, no esforço de procurar o que Deus ama, evitando o que ele odeia "Somos transformados em sua própria imagem com um esplendor cada vez maior, e essa é a obra do Senhor, que é o Espírito" (2Co 3:18; cph).
Portanto, não é quando nos esforçamos na busca de sensações e experiências de qualquer sorte, mas quando buscamos a Deus, olhando para ele como nosso Pai, valorizando sua amizade e descobrindo em nós a preocupação cada vez maior em conhecê-lo e agradá-lo, que a realidade do ministério do Espírito se torna visível em nossa vida. Esta é a verdade necessária que pode nos tirar do pântano das suposições não-espirituais sobre o Espírito, no qual tantos estão se debatendo hoje em dia.
Santidade
Quarto, e seguindo-se ao que já dissemos, nossa adoção nos mostra o significado e os motivos da santidade evangélica.
Esta expressão — "santidade evangélica" — é sem dúvida alguma pouco conhecida. Era uma expressão puritana para designar a vida cristã autêntica, que brotava do amor e da gratidão a Deus, em contraste com a falsa "santidade legal", que consistia simplesmente em formas, rotinas e aparências externas, mantida por motivos egoístas. Temos aqui apenas duas pequenas observações a fazer sobre a "santidade evangélica".
Primeira, o que já dissemos mostra sua essência. Ela é apenas a vida coerente que resulta do relacionamento filial com Deus, ao qual somos levados mediante o Evangelho. Trata-se simplesmente do filho de Deus possuidor dos sinais característicos: fiel a seu Pai, ao seu Salvador e a si mesmo. É a expressão da adoção na vida de alguém. É uma questão de ser bom filho, diferente do filho pródigo, ou filho-problema na família real.
Segundo, o relacionamento adotivo, que mostra tão claramente a graça de Deus, proporciona em si mesmo o motivo desta vida autenticamente santa. Os cristãos sabem que Deus "nos predestinou para sermos adotados como filhos, por meio de Jesus Cristo" (Ef 1:5), e que isto envolve sua intenção eterna: "para sermos santos e irrepreensíveis em sua presença" (Ef 1:4). Eles sabem que caminham rumo ao dia em que este destino será total e finalmente realizado: "sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele; pois o veremos como ele é" (lJo 3:2).
O que resulta de tal conhecimento? O resultado é que "Todo aquele que nele tem esta esperança purifica-se a si mesmo, assim como ele é puro" (v. 3). Os filhos sabem que o Pai deseja sua santidade e que ela é o meio, a condição e a razão de sua felicidade aqui e no futuro. Por causa do amor que têm ao Pai procuram efetivamente o cumprimento deste propósito benéfico. A disciplina pa-ternal exercida pelas pressões e dificuldades externas ajuda o processo. O cristão, ainda que atolado em dificuldades, pode sentir-se confortado por saber que no plano de Deus isso tudo tem um propósito positivo: promover sua santificação.
Neste mundo os príncipes precisam se submeter à disciplina e ao treinamento extra, dos quais as outras crianças estão livres, a fim de prepará-los para seu destino. O mesmo acontece com os filhos do Rei dos reis. A chave para entender o procedimento divino em relação a eles é lembrar que, durante o transcurso de sua vida, Deus os está treinando para o que espera deles e esculpindo-os para alcançar a imagem de Cristo. Às vezes esse processo é doloroso e a disciplina, cansativa, mas aí as Escrituras nos lembram que "... o Senhor disciplina a quem ama, e castiga todo aquele a quem aceita como filho. Suportem as dificuldades, recebendo-as como disciplina; Deus os trata como filhos [...] Nenhuma disciplina parece ser motivo de alegria no momento, mas sim de tristeza. Mais tarde, porém, produz fruto de justiça e paz..." (Hb 12:6,7,11).
Só a pessoa que compreende isso pode experimentar o que diz Romanos 8:28 (ra): "Sabemos que todas as cousas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus"; igualmente, só ele pode manter a segurança da filiação contra os assaltos satânicos, quando as coisas não vão bem. Quem domina a verdade da adoção, no entanto, retém a segurança e recebe as bênçãos no dia da dificuldade: este é um aspecto da vitória da fé sobre o mundo. Entretanto, um ponto se destaca: o motivo principal para a vida santa do cristão não é negativo — a esperança (vã) que desse modo possa evitar a punição —, mas positivo: o impulso de demonstrar seu amor e gratidão pelo Pai adotivo, identificando-se com a vontade paterna em todos os aspectos de sua vida.
Isto esclarece ao mesmo tempo a questão do lugar da lei de Deus na vida cristã. Muitas pessoas acham difícil perceber o papel que ela exerce sobre o cristão. Estamos livres da lei, dizem, nossa salvação não depende do fato de mantê-la, somos justificados pelo sangue e pela justiça de Jesus Cristo. Que importância ou que diferença faz se de agora em diante guardamos a lei ou não? Já que a justificação significa perdão de todos os pecados passados, presentes e futuros, e ainda a completa aceitação por toda a eternidade, por que devemos nos preocupar se pecamos ou não? Por que devemos pensar que Deus se preocupa com isso? Não demonstra um entendimento errôneo da justificação o fato de o cristão relacionar seus pecados diários e passar tempo se lamentando por eles e buscar perdão? A recusa em buscar instrução na lei, ou se preocupar com os erros diários, não será parte da verdadeira ousadia da justificação pela fé?
Os puritanos tiveram de enfrentar estas idéias antinomistas e às vezes sentiram dificuldades em respondê-las. Se alguém crê que a justificação é o princípio e o fim do dom da salvação, terá sempre dificuldades para responder a esses argumentos. A verdade é que essas idéias devem ser respondidas não nos termos da justificação, mas da adoção — a realidade que os puritanos nunca exaltaram devidamente. Uma vez que se faça a distinção entre estes dois elementos no dom da salvação, a resposta correta se torna clara.
Qual é essa resposta? É esta: embora seja realmente verdade que a justificação nos liberta para sempre da necessidade de guardar a lei, ou de qualquer tentativa de fazê-lo como meio de merecer a vida, é igualmente verdade que a adoção impõe o dever permanente de guardar a lei como meio de agradar ao Pai recêm-encontrado. Guardar a lei é a semelhança existente entre os filhos de Deus; Jesus cumpriu toda a justiça e Deus nos chama a fazer o mesmo.
A adoção coloca a obediência à lei sob novo prisma. Como filhos de Deus reconhecemos a autoridade da lei como regra para a vida porque sabemos ser este o desejo de nosso Pai. Se pecamos, confessamos-lhes nossas faltas e lhe pedimos perdão, baseados na relação familiar, como Jesus nos ensinou: "Pai! [...] Perdoa-nos os nossos pecados" (Lc 11:2,4). Os pecados dos filhos de Deus não destroem sua justificação nem anulam sua adoção, mas arruinam a comunhão entre os filhos e seu Pai. "Sejam santos porque eu sou santo", são as palavras do Pai para nós, e não é parte da justificação pela fé perder de vista o fato de que Deus, o Rei, quer que seus filhos reais vivam de modo a honrar sua paternidade e posição.
Segurança
Quinto, nossa adoção fornece o indício necessário para resolver o problema da segurança.
Aqui temos uma questão difícil! Este tópico está em constante disputa na Igreja desde a Reforma. Os reformadores, Lutero em particular, costumavam fazer distinção entre "fé histórica" — que Tyndale15 denominou "fé na história", isto é, a crença nos fatos relatados pelo cristianismo sem resposta nem compromisso — e a verdadeira fé salvadora. A última, diziam, é essencialmente segurança. Eles a denominavam fiducia, "confiança" — primeiro na verdade da promessa do perdão divino e na vida para os pecadores que se tornaram crentes; e, segundo, a auto-aplicação como crentes.
15William Tyndale (1494-1536) foi um dos primeiros reformadores ingleses cujo principal objetivo era colocar a Bíblia na mente e no coração do povo. Cria que a confusão sobre os ensinamentos eclesiásticos originava-se da ignorância bíblica. Fugiu da Inglaterra para a Alemanha a fim de traduzir o Novo Testamento (e a maior parte do Antigo Testamento). Posteriormente, foi seqüestrado em Antuérpia e executado por seu trabalho de tradução da Bíblia.
"A fé", declarou Lutero, "é a confiança deliberada e viva na graça de Deus, tão certa que por ela alguém podia morrer mil mortes, e tal confiança [...] torna-nos alegres, intrépidos e contentes diante de Deus e de toda a criação". E ele ataca "a perniciosa doutrina dos papistas que ensinam que nenhum homem sabe com certeza se está ou não desfrutando do favor de Deus; deste modo eles desfiguram completamente a doutrina da fé, atormentam a consciência dos homens, banem Cristo da Igreja e negam todos os benefícios do Espírito Santo".
Ao mesmo tempo, os reformadores reconheciam que fiducia, a certeza da fé, podia existir em alguém que sob a prova da tentação sentia-se seguro de sua inexistência nele, deixando-o sem esperança em Deus. (Se isto soa paradoxal, seja grato por não ter sido nunca exposto ao tipo de tentação que assim transforma o estado de sua alma, como era na ocasião o estado de Lutero e de muitos mais.)
Os católicos romanos não compreendiam isto. Como resposta aos reformadores reafirmavam o conceito medieval: apesar de a fé ansiar pelo céu, não tem certeza de chegar lá, e afirmá-la seria presunção.
Os puritanos do século seguinte destacaram a idéia de que o essencial na fé não é a certeza da salvação, quer no presente ou no futuro, mas o arrependimento e a entrega a Jesus Cristo. Muitas vezes referiam-se à segurança como se fosse distinta da fé; o crente não a experimentaria normalmente a não ser que a buscasse de modo específico. Wesley, no século xviii, fazia eco à insistência de Lutero de que o testemunho do Espírito e a segurança resultante são parte da essência da fé, embora mais tarde ele tenha qualificado isto fazendo distinção entre a fé possuída pelo servo, da qual não faz parte a segurança, e a fé que existe no filho, que está de posse dela. Parece que ele ainda pensava em sua fé antes da experiência de Aldersgate Street como se fosse a de um servo — alguém nos limites da experiência cristã total, buscando a salvação e procurando conhecer o Senhor, mas ainda sem a certeza de sua situação na graça. Como todos os luteranos depois dele, embora não como o próprio Lutero, Wesley sustentou, porém, que a certeza se refere apenas à presente aceitação por Deus e que não pode haver certeza de constância.
O debate se mantém aceso entre os evangélicos e continua a provocar confusão. O que é segurança? E a quem Deus dá garantia? A todos os crentes, a alguns ou a nenhum? Quando ele garante, de que nos protege? Como ela é concedida? A confusão é grande, mas a verdade da adoção pode nos ajudar a desfazê-la.
Se Deus, por amor, fez dos cristãos seus filhos e se ele é Pai perfeito, duas coisas parecem surgir a respeito do assunto. Primeira, o relacionamento familiar deve ser duradouro, existindo para sempre. Pais perfeitos não desprezam seus filhos. Os cristãos podem agir como o filho rebelde, mas Deus não deixa de agir como o pai perdoador.
Segunda, Deus fará de tudo para que seus filhos sintam seu amor por eles, conheçam seus privilégios e sua segurança como membros da família. Crianças adotadas precisam da segurança devida, e pais perfeitos não deixarão de dá-la.
Em Romanos 8, a passagem clássica sobre a segurança no Novo Testamento, Paulo confirma os dois pontos. Primeiro, ele nos fala daqueles a quem Deus "predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos". Em outras palavras, aqueles a quem Deus resolveu tomar eternamente como filhos em sua família, junto com seu Unigênito, "ele chamou [...] justificou [...] glorificou" (Rm 8:29,30). "Glorificou", notamos, está no tempo passado, embora o fato em si mesmo seja no futuro; isto mostra que na mente de Paulo a situação é tão certa como se já tivesse acontecido, tendo sido fixada por decreto de Deus. Assim, Paulo mostra confiança ao declarar nos versículos 38 e 39:
Pois estou convencido de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus [o amor paternal, livre e redentor divino] que está em Cristo Jesus, nosso Senhor.
Segundo, Paulo nos fala que aqui e agora "o próprio Espírito testemunha ao nosso espírito que somos filhos de Deus. Se somos filhos, então somos herdeiros" (v. 16,17). A afirmação é inclusiva, pois, embora Paulo nunca se tivesse encontrado com os romanos, sentia-se capaz de assegurar que, se eles eram cristãos, então conheciam este testemunho íntimo do Espírito à sua feliz situação de filhos e herdeiros de Deus. Bem disse certa vez James Denney que enquanto a segurança é pecado no romanismo, para a maioria das denominações protestantes é um dever. No Novo Testamento ela é simplesmente um fato.
Notamos que neste versículo o testemunho de nossa adoção surge de duas fontes distintas: nosso espírito (isto é, nosso "eu" consciente) e o Espírito de
Deus, que testemunha com o nosso espírito e ao nosso espírito.
Qual é a natureza deste duplo testemunho? A análise de Robert Hal-dane,16 que refina a essência de mais de dois séculos de exposição evangélica, dificilmente poderá ser melhorada. "O testemunho de nosso espírito", ele escreve, "torna-se uma realidade quando o Espírito Santo nos possibilita determinar nossa filiação pela consciência e descoberta em nós mesmos das verdadeiras marcas de um estado renovado". Isto é segurança inferencial, uma conclusão tirada do fato de que conhecemos o Evangelho, confiamos em Cristo, produzimos obras de arrependimento e manifestamos os instintos do ser humano regenerado.
Continua Haldane:
Mas dizer que este é o significado pleno do testemunho do Espírito Santo seria ficar muito aquém da afirmação do texto; porque neste caso
l6Robert Haldane (1764-1842) foi um evangelista e escritor nascido em Londres, de ascendência escocesa. Deixou o ministério na Igreja da Escócia e tornou-se pregador itinerante. Fundou, com seu irmão, The Society for Propagating the Gospel at Home, que deu grande impulso ao desenvolvimento de igrejas congregacionais. Ensinou teologia na Universidade de Genebra e em Montauban.
o Espírito apenas ajudaria a consciência a ser testemunha, mas não poderia dizer que ele mesmo é um testemunho [...] O Espírito Santo testifica ao nosso espírito em um testemunho imediato e distinto, e também com nosso espírito em um testemunho harmonioso. Esse testemunho, embora não possa ser explicado, é sem dúvida alguma sentido pelo crente; é sentido por ele também em suas variações, às vezes mais fortes e palpáveis e outras fracas e menos distintas [...] Sua realidade é indicada nas Escrituras por expressões como as do Pai e do Filho vindo até nós, permanecendo conosco — Cristo se manifestando a nós, comendo conosco — dando-nos o maná escondido, e a pedra branca, comunicando-nos o conhecimento da quitação de culpa e escrevendo um novo nome, que ninguém conhece a não ser aquele que o recebeu. "O amor de Deus é derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado".17
Esta é a segurança imediata, a ação direta do Espírito no coração regenerado, vindo para suplementar o testemunho de nosso espírito induzido por Deus (isto é, de nossa consciência e reconhecimento como crentes). Embora este duplo testemunho possa ser temporariamente obscurecido pelo afastamento de Deus e pelo assalto satânico, todo cristão verdadeiro que não esteja magoando e extinguindo o Espírito pela infidelidade normalmente desfruta dos dois tipos de testemunho, de modo mais ou menos intenso, como experiência permanente; como o verbo no tempo presente ("testemunha ao nosso espírito") usado por Paulo torna bem claro.
Assim, esta é a realidade sobre a segurança: nosso Pai celestial quer que seus filhos saibam de seu amor por eles e da segurança que têm em família. Ele não seria Pai perfeito se não quisesse isso e se não agisse para concretizá-lo. Sua ação se manifesta fazendo que o duplo testemunho, já descrito, seja parte da experiência normal de seus filhos. Assim ele os leva ao júblio no seu amor. O testemunho é em si mesmo um dom — o elemento mais alto do complexo dom da fé, pelo qual os crentes
17Romans, p. 363.
obtêm o "conhecimento" de que a fé, a adoção, a esperança do céu e o infinito e soberano amor de Deus para com eles são "reais".
Sobre a dimensão desta experiência da fé, pode-se usar a expressão do sr. Squeers18 ao referir-se à "natureza": é "mais facilmente concebida que descrita"; entretanto todos os cristãos normalmente se beneficiam dela em maior ou menor escala, pois, na verdade, ela faz parte de seu direito de nascença. Sempre inclinados ao auto-engano, faremos bem em testar nossa segurança aplicando o critério ético e doutrinário que lJoão apresenta justamente com este propósito (v. lJo 2:3,29; 3:6-10,14,18-21; 4:7,8, 15; 5:1-4,18). Assim, o elemento conclusivo de nossa segurança será fortalecido, e a certeza como um todo será grandemente expandida.
A fonte da segurança, entretanto, não está em nossas deduções, mas na obra do Espírito, tanto à parte como por meio de nossas conclusões, convencendo-nos de sermos filhos de Deus e de que o amor salvador e as promessas divinas se aplicam diretamente a nós.
Que dizer então das disputas históricas? Os romanistas estavam errados. Vista à luz da adoção e da paternidade divina, sua negativa tanto da preservação como da segurança torna-se uma monstruosidade ridícula. Que tipo de pai é este que nunca diz a seus filhos que os ama, mas que ameaça expulsá-los da família se não se comportarem? A negativa dos wesleyanos e luteranos a respeito da preservação é um erro semelhante. Deus é um pai melhor que o apresentado por essa negativa. Ele guarda seus filhos na fé e na graça e não os deixa escapar da mão.
Os reformadores e Wesley estavam certos ao dizer que a segurança é essencial à fé. Os puritanos, entretanto, estavam certos também ao dar mais ênfase que os outros ao fato de que o cristão que magoa o Espírito pelo pecado e deixa de buscar a Deus de todo o coração deve esperar a perda da plena
18"Mr. Wackford Nickleby", um desagradável professor, personagem do conto The life and adventures of Nicholas Nickleby, de Charles Dickens.
fruição do dom maior do duplo testemunho, como a criança descuidada e malcriada provoca a carranca de seus pais em lugar dos habituais sorrisos. Alguns presentes são preciosos demais para serem dados a crianças descuidadas e desobedientes, e este é um presente que o Pai celestial negará, pelo menos por algum tempo, se nos vir em uma condição em que ele nos prejudicará ao fazer-nos pensar que nosso Pai não se importa se vivemos de maneira santa ou não.
O GRANDE SEGREDO
É estranho que a verdade da adoção tenha sido pouco apreciada na história cristã. Além de dois livros do século xrx, pouco conhecidos hoje (Robert Smith Candlish, The fatherhood of God; Robert Alexander Webb, The reformed doctrine of'adoption), não há mais títulos sobre o assunto nem houve mais deles desde a Reforma do que havia antes dela.
A compreensão de Lutero sobre a adoção foi tão forte e clara como a da justificação, mas seus discípulos se apegaram à última e nada fizeram sobre a primeira. Os ensinamentos dos puritanos sobre a vida cristã, tão fortes em outros assuntos, foram notavelmente deficientes neste ponto. Esta foi uma das razões para o surgimento de interpretações legalistas errôneas a esse respeito. Talvez os primeiros metodistas, e mais tarde outros santos metodistas, como Billy Bray, o filho do Rei, com seu inesquecível modo de se referir à oração: "Preciso falar ao Pai sobre isto", chegaram mais perto da vida filial descrita no Novo Testamento. Há certamente muito mais para dizer sobre a adoção nos dias de hoje.
Entretanto, de tudo o que estudamos neste capítulo, a mensagem imediata ao coração é certamente esta: Eu, como cristão, entendo a mim mesmo? Conheço minha identidade real? Meu destino real? Sou filho de Deus. Deus é meu Pai. O céu é meu lar. Cada dia estou mais perto dele. Meu Salvador é meu irmão. Cada cristão é meu irmão também. Diga isso muitas vezes a si mesmo: a primeira coisa de manhã e a última à noite, enquanto espera pelo ônibus e sempre que a mente estiver livre. Peça que você possa viver como quem sabe que tudo isso é total e completamente verdadeiro. É este o segredo cristão para a vida feliz? Sim, com toda a certeza; mas nós temos alguma coisa maior e mais profunda a dizer. Este é o segredo do cristão para uma vida cristã que honra a Deus, e estes são os aspectos da situação realmente importantes. Desejo que este segredo se torne totalmente seu e meu também.
Para nos ajudar a ver mais adequadamente quem e o que somos como filhos de Deus, e para que fomos chamados, aqui estão algumas perguntas mediante as quais faremos bem em nos examinar freqüentemente.
* Entendo minha adoção? Dou a ela o valor devido? Lembro-me diariamente meus privilégios como filho de Deus?
* Busco a segurança de minha adoção? Sinto diariamente o amor de Deus por mim?
* Trato Deus como meu Pai celestial amando-o, obedecendo-lhe e honrando-o, buscando e recebendo sua amizade, e tentando em tudo agradá-lo, como um pai gostaria que seu filho fizesse?
* Penso em Jesus Cristo, meu Salvador e Senhor, como meu irmão, dispensando a mim não apenas a autoridade divina, mas também simpatia divina e humana?
* Penso diariamente em como ele está perto de mim, como ele me compreende tão completamente e quanto, sendo meu remidor, ele se interessa por mim?
* Aprendi a odiar o que desagrada a meu Pai? Sou sensível às coisas erradas às quais ele também é sensível? Empenho-me em evitá-las para não magoá-lo?
* Aguardo ansioso o dia futuro quando a grande família dos filhos de Deus se reunirá finalmente no céu diante do trono de Deus, seu Pai, e do Cordeiro, seu irmão e Senhor? Tenho sentido a emoção dessa esperança?
* Amo meus irmãos cristãos com os quais convivo de tal modo que não ficarei envergonhado quando no céu eu me lembrar de meus dias?
* Tenho orgulho de meu Pai, e de sua família à qual, por sua graça, pertenço?
A semelhança dessa família é visível em mim? Se não for, por quê?
Deus nos humilha, Deus nos instrui, Deus nos faz seus filhos verdadeiros.
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Tu, NOSSO GUIA
Para muitos cristãos, a direção é um problema crônico. Por quê? Não porque duvidem de que a direção divina seja um fato, mas porque têm certeza disso. Sabem que Deus pode guiar, e prometeu guiar a todo cristão. Livros, amigos, oradores públicos lhes contam como a direção divina tem operado na vida de outras pessoas O temor, portanto, não é de que não haja essa direção para eles, mas que possam perdê-la por causa de alguma falta cometida. Quando cantam:
Guia-me, ó grande Jeová Peregrino por esta terra seca Sou fraco, mas tu és forte Sustém-me com tua mão poderosa Pão da Vida Alimenta-me agora e sempre!1
... não duvidam de que Deus possa guiar e proteger como pedem. Mas continuam ansiosos porque não têm certeza da própria receptividade à direção oferecida por Deus.
1Primeiro verso do hino galés Arglwydd, arwain trwy'r anialwch, 1745.
Nem todos, entretanto, foram tão longe. Nos dias de hoje, como notamos muitas vezes, o conhecimento de Deus tem sido obscurecido — transformado na realidade em ignorância — pelas distorções de nossas idéias sobre Deus. Assim, a realidade da lei, voz, independência, moral e bondade divinas, e até mesmo de sua personalidade, tem sido questionada não só fora da Igreja, mas dentro dela também. Com isso, muitos tiveram dificuldade de crer que a direção divina exista realmente. Como pode ser isso, se Deus não é o tipo de ser que pode ou que deseja dá-la? E isso é o que, de um modo ou de outro, todas essas sugestões implicam. Vale a pena, portanto, recordar neste instante algumas das verdades básicas indicativas da direção divina.
Deus tem um pLano
A crença na realidade da direção divina se baseia em dois fatos fundamentais: primeiro, a realidade do plano de Deus para nós; segundo, a capacidade de Deus de se comunicar conosco. Sobre estes dois fatos a Bíblia tem muito que dizer.
Será que Deus tem um plano para cada indivíduo? Na verdade ele tem. Ele formou um "plano eterno" (lit., "um plano de séculos"), "na plenitude dos tempos" segundo o propósito "daquele que faz todas as coisas, segundo o propósito da sua vontade" (Ef 3:11; 1:10,11). Ele possuía um plano para a libertação de seu povo da escravidão do Egito quando o guiou através do mar, e do deserto mediante uma coluna de nuvem de dia e de fogo à noite. Ele deu continuidade a seu plano, libertando o povo do exílio na Babilônia, ao colocar Ciro no trono: "o Senhor despertou o coração de Ciro" (Ed 1:1) para enviar os judeus de volta à sua terra para a reconstrução do templo.
Seu plano é perceptível na vida de Jesus (v. Lc 18:31; 22:22). Sua obra na terra era cumprir a vontade do Pai (Jo 4:34; Hb 10:7,9). Deus tinha um plano para Paulo (At 21:14; 22:14; 26:16-19; 1Tm 1:16). Em cinco de suas cartas, Paulo fala de si mesmo como um apóstolo "pela vontade de Deus". O Senhor tem um plano para cada um de seus filhos.
Será que Deus pode transmitir a nós esse plano? Certamente que sim. Assim como o ser humano é um animal comunicativo, seu criador também é um Deus comunicativo. Ele guiou Jesus e Paulo. O livro de Atos relata em diversos trechos minúcias dessa direção (Filipe enviado ao deserto para se encontrar com o etíope, 8:26,29; Pedro avisado para aceitar o convite de Cornélio, 10:19,20; a igreja de Antioquia encarregada de mandar Paulo e Barnabé como missionários, 13:2; Paulo e Silas chamados à Europa, 16:6-10; Paulo instruído a avançar com seu ministério em Corinto, 18:9,10).
Embora a direção por meio de sonhos, visões e mensagens verbais diretas deva ser julgada como exceção e não como regra, mesmo para os apóstolos e seus contemporâneos, ainda assim esses acontecimentos mostram que Deus não tem dificuldade alguma em fazer sua vontade conhecida a seus servos.
As Escrituras, além disso, contêm promessas explícitas da direção divina por meio das quais podemos conhecer os planos de Deus para nós. "Eu o instruirei e o ensinarei no caminho que você deve seguir; eu o aconselharei e cuidarei de você", disse Deus a Davi (Sl 32:8). Isaías 58:11 registra a certeza de que, se o povo se arrepender e obedecer, "O Senhor o guiará constantemente". A direção é o tema principal do salmo 25, onde lemos: "Bom e justo é o Senhor; por isso mostra o caminho aos pecadores. Conduz os humildes na justiça e lhes ensinas o seu caminho [...] Quem é o homem que teme o Senhor? Ele o instruirá no caminho que deve seguir" (v. 8,9,12). Assim também em Provérbios 3:6: "Reconheça o Senhor em todos os seus caminhos, e ele endireitará as suas veredas".
No Novo Testamento aparece a mesma expectativa de direção. A oração de Paulo pelos colossenses: "que sejam cheios do pleno conhecimento da vontade de Deus, com toda a sabedoria e entendimento espiritual", e a oração de Epafras: "para que continuem firmes em toda a vontade de Deus" (Cl 1:9; 4:12), mostram claramente que Deus está pronto e desejoso de tornar conhecida a sua vontade.
Sabedoria nas Escrituras sempre significa conhecimento do curso de uma ação que agradará a Deus e assegurará a vida; daí a promessa de Tiago 1:5: "Se algum de vocês tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá livremente, de boa vontade; e lhe será concedida", que é na realidade uma promessa de direção. "Mas transformem-se pela renovação da sua mente", aconselha Paulo, "para que sejam capazes de experimentar e comprovar a boa, agradável e perfeita vontade de Deus" (Rm 12:2).
Outras partes da verdade bíblica aparecem aqui para confirmar a confiança na direção de Deus. Primeiro, os cristãos são filhos de Deus; e se os pais humanos têm responsabilidade de dar orientação a seus filhos em assuntos cuja ignorância e incapacidade seriam perigosos, não devemos duvidar de que o mesmo se aplica na família de Deus. "Se vocês, apesar de serem maus, sabem dar boas coisas aos seus filhos, quanto mais o Pai de vocês, que está nos céus, dará coisas boas aos que lhe pedirem!" (Mt 7:11).
Mais uma vez as Escrituras são a Palavra de Deus "útil" (lemos) "para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra" (2Tm 3:16,17). "Ensino" significa instrução compreensível em doutrina e ética, a obra e a vontade de Deus. "Repreensão" e "instrução na justiça" significam a aplicação dessa instrução em nossa vida desordenada. O resultado prometido é: "plenamente preparado para toda boa obra", ou seja, uma vida dedicada a seguir a vontade de Deus.
Mais uma vez os cristãos têm um Instrutor permanente, o Espírito Santo: "Mas vocês têm uma unção que procede do Santo [...] a unção que receberam dele permanece em vocês [...] que é verdadeira e não falsa, os ensina acerca de todas as coisas" (1Jo 2:20,27). Dúvida quanto à possibilidade de direção seria um insulto quanto à fidelidade do Espírito Santo ao seu ministério. É notável que em Atos 8:29, 10:19, 13:2, 16:6 e mais surpreendente ainda no decreto do concilio de Jerusalém — "Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós" (15:28) — a direção seja especificamente atribuída ao Espírito.
Deus, além disso, busca sua glória em nossa vida, e ele é glorificado em nós quando obedecemos a sua vontade. Segue-se então que, como meios para os próprios fins, ele deve estar pronto a nos ensinar seu caminho, a fim de que possamos andar nele. O salmo 119 ressalta a confiança na disposição de Deus para ensinar quem deseja obedecer. No salmo 23:3, Davi proclama a realidade da direção de Deus para a própria glória: "Guia-me nas veredas da justiça por amor do seu nome".
Poderíamos continuar assim, mas a idéia já foi suficientemente estabelecida. É impossível duvidar de que a direção seja uma realidade planejada e prometida a todos os filhos de Deus. Os cristãos que a perdem mostram apenas que não a procuraram como deviam. É certo, portanto, cada um preocupar-se com sua receptividade à direção e estudar como buscá-la.
Como receber orientação
Cristãos sinceros à procura de orientação muitas vezes se enganam a esse respeito. Por que isso acontece? Geralmente é porque seu conceito da natureza e do método da direção divina esteja errado. Procuram por uma ilusão enganosa; desprezam a direção pronta, à mão, e se entregam a toda sorte de fantasias. O erro básico é pensar que a direção é basicamente uma inspiração íntima do Espírito Santo sem a participação da Palavra escrita. Esta idéia, que é tão velha quanto os falsos profetas do Antigo Testamento e tão nova quanto o Grupo de Oxford e o Rearma-mento Moral,2 é um canteiro no qual podem crescer todas as formas de fanatismos e insensatez.
2Também denominado buchmanismo, é um movimento internacional fundado pelo Grupo de Oxford, liderado por Frank N. D. Buchman (um proeminente evangelista americano) na década de 1920. Designa também o título de um livro: Moral rearmament: The battle for peace [Rearmamento moral. A batalha pela paz], de 1938. O movimento tem raízes cristãs, mas se tornou uma rede informal de pessoas de religiões diferentes. Sua fundamentação são os "Quatro Absolutos" (honestidade, pureza, altruísmo e amor), encorajando seus adeptos ao engajamento em questões políticas e sociais. Em 2001, o nome do movimento foi mudado para Iniciatives of Change [Iniciativas para mudar].
Como pode cometer tal engano o cristão atento? O que parece acontecer é o seguinte: eles ouvem a palavra direção e pensam imediatamente em um tipo particular de "direção para problemas", à qual talvez os livros que tenham lido e os testemunhos que ouviram façam constantes alusões. É o tipo de problema relacionado com o que poderíamos chamar "escolhas vocacionais" — escolha entre opções divergentes, todas parecendo perfeitamente boas e legais. Por exemplo: devo casar ou não? Devo casar com tal pessoa ou não? Devemos pensar em ter mais um filho? Devo entrar para esta igreja ou para aquela? Devo servir a Deus na minha terra ou em outro lugar? Que profissão devo seguir? Qual dos empregos oferecidos devo aceitar? Será que estou no ramo certo de trabalho? Que direito tem esta pessoa, ou causa, sobre minhas preocupações, atividades, energia ou generosidade? Que apelo para o meu serviço voluntário deve ter prioridade? — e assim por diante.
Já que as "escolhas vocacionais" moldam tão decisivamente nossa vida e significam tanto no que se refere à alegria ou à tristeza, é claro que pensamos muito nelas, e é certo fazê-lo. Mas o que não é certo é chegar à conclusão de que, em última análise, toda a orientação sobre problemas é apenas desse tipo. Aqui, ao que parece, está a raiz do engano.
Dois aspectos da direção divina, no caso de "escolhas vocacionais", são característicos. Ambos surgem da natureza da situação. Primeiro, esses problemas não podem ser resolvidos pela aplicação direta do ensinamento bíblico. Tudo o que se pode fazer é procurar nas Escrituras as possibilidades legais entre as opções elegíveis. (Nenhum texto bíblico, por exemplo, disse ao autor deste livro para pedir em casamento a senhora que é hoje sua esposa, ou para ser ordenado, ou para começar seu ministério na Inglaterra, ou para comprar seu carro grande e velho).
Segundo, justamente porque as Escrituras não podem determinar diretamente uma escolha, o fator inspiração e inclinação dado por Deus, pelo qual uma pessoa se compromete a um tipo de responsabilidade em detrimento de outra e sente-se em paz quando o contempla, torna-se decisivo.
A base do engano que estamos querendo determinar é presumir primeiramente que toda a direção para problemas apresenta estas duas características e, segundo, que a vida deve ser encarada como um campo no qual este tipo de direção deve ser buscado.
As conseqüências desse engano entre cristãos sinceros têm sido tão cômicas quanto trágicas. A idéia de que a voz interior do Espírito dirige e decide tudo soa muito atraente, pois parece exaltar o ministério do Espírito e promete maior intimidade com Deus. Na prática, porém, essa busca da superespiritualidade leva apenas à confusão frenética ou à conduta disparatada.
Hannah Whitall Smith, uma senhora quacre muito perspicaz e criteriosa, percebeu muito disto e comentou a respeito em seus "escritos
sobre o fanatismo".3 Nesses trabalhos ela conta a respeito de uma mulher que todas as manhãs, tendo consagrado o dia ao Senhor assim que acordava, "pedia que ele lhe dissesse se devia levantar da cama ou não", e não se mexia até que "a voz" a mandasse vestir-se. "À medida que ia se vestindo perguntava ao Senhor se deveria pôr aquela peça de roupa, e muitas vezes o Senhor a dizia que pusesse o sapato direito e não calçasse o esquerdo; às vezes devia calçar os dois pés de meia e nenhum sapato; outras vezes os dois pés de sapato sem meias, e assim ela fazia com todas as peças do vestuário...".
Há também a história da inválida que, quando sua hospedeira a visitou e por distração deixou algum dinheiro no cria-do-mudo, teve "a impressão" de que o Senhor a incentivara a ficar com o dinheiro a fim de ilustrar a verdade do texto "todas as coisas são suas". Ela escondeu a quantia debaixo do travesseiro, mentindo quando a hospedeira voltou a sua procura, e acabou sendo expulsa como ladra.
Encontramos também uma "senhora muito fina, já passada da meia-idade",
3Edição póstuma de Ray Strachey, primeiro como Religious fanaticism [Fanatismo religioso], 1928, e mais tarde com o título Group movements of the past and experiments in guidance [Movimento de grupos do passado e experiências com a direção], 1934.
que explicou que "houve ocasiões quando, a fim de ajudar os meus amigos a receber o batismo do Espírito Santo, senti-me claramente guiada pelo Senhor a levá-los comigo à cama, onde deitávamos de costas um para o outro sem usar nenhuma roupa".4 Estas histórias patéticas são lamentavelmente típicas do que acontece quando se desconhece o fundamento da direção divina.
O que esse tipo de conduta mostra é falta de compreensão da prática fundamental e racional do Criador para guiar criaturas racionais: por meio do entendimento e da aplicação racional da Palavra escrita. Este tipo de direção é essencial, tanto por limitar a área em que a direção "vocacional" é necessária e oferecida como porque somente os sintonizados com ela, e que mostram atitudes básicas corretas, estarão aptos a reconhecer a direção "vocacional" quando é fornecida. Ao aceitar os impulsos imorais e pouco razoáveis como inspirações do Espírito Santo, os amigos da sra. Smith se esqueceram de que a modéstia e decência no vestir, o respeito pela propriedade e o reconhecimento de que a sensualidade não é espiritual já faziam parte das exigências das Escrituras (lTm 2:9; 1Pe 4:15; Ef 4:19-22).
O modo certo de honrar o Espírito Santo como nosso guia, entretanto, é honrar as Sagradas Escrituras, seu instrumento para nos guiar. A direção fundamental dada por Deus para moldar nossa vida — isto é, insuflando convicções básicas, atitudes, idéias e valores sob os quais devemos viver — não se trata de indução interior desvinculada da Palavra, mas da pressão exercida na consciência pela representação do caráter e da vontade de Deus na Palavra, que o Espírito nos ilumina para que entendamos e apliquemos à vida.
A forma básica da direção divina, portanto, é a apresentação de ideais positivos como guias para a vida. "Seja o tipo de pessoa que Jesus era", "busque esta virtude, e esta outra, ou ainda esta e pratique ao máximo"; "reconheçam suas responsabilidades — maridos, para com suas esposas; esposas, para com seus maridos; pais, para com seus filhos; todos vocês, para com seus amigos cristãos e para com todos os seus semelhantes;
4Group movements, p. 184,245,198.
conheçam-nos e procurem constantemente forças para suportá-los". É assim que Deus nos guia através da Bíblia, como qualquer pessoa que estude os Salmos, Provérbios, os Profetas, o sermão do Monte e a parte ética das cartas logo descobrirá. "Afasta-te do mal e faça o bem" (Sl 34:14; 37:27); esta é a estrada ao longo da qual a Bíblia nos guia, e todas as admoestações são feitas com a intenção de nos manter nela. Deve-se notar que a menção a serem "guiados pelo Espírito" em Romanos 8:14 não se refere a "vozes" interiores ou coisas desse tipo, mas a mortificar o pecado conhecido e não viver pelo poder da carne!
Apenas dentro dos limites desta direção Deus nos incita interiormente em assuntos de decisão "vocacional". Assim, nunca espere ser orientado para se casar com um descrente ou fugir com uma pessoa casada enquanto existirem 1Coríntios 7:39 e o sétimo mandamento. O autor conheceu casos em que a direção divina foi responsabilizada por esses dois tipos de ação. As inclinações íntimas estavam sem dúvida alguma presentes; mas elas, com toda a certeza, não foram do Espírito de Deus, pois estavam contra a Palavra. O Espírito dirige dentro dos limites estabelecidos pela Palavra, não além deles. "Ele me guia nos caminhos da justiça", e em nenhum outro.
Seis armadilhas comuns
Mesmo com os conceitos corretos sobre a direção em geral, é fácil errar, particularmente em escolhas "vocacionais". Nenhuma área da vida demonstra mais claramente a fragilidade da natureza humana, mesmo a dos já regenerados. A obra de Deus nesses casos consiste em inclinar primeiro nosso julgamento, depois todo o nosso ser ao curso que, entre todas as alternativas, ele determinou ser o mais adequado para nós, para a, sua glória e para benefício de outros por nosso intermédio. O Espírito, porém, pode ser sufocado e podemos facilmente agir de modo a interromper completamente essa direção. Vale a pena relacionar algumas dessas armadilhas.
Primeiro, indisposição para pensar. É a falsa piedade, o supernaturalis-mo de um tipo pernicioso e prejudicial, que exige impressões interiores, sem nenhuma base racional, e evita atender à freqüente recomendação bíblica para refletir. Deus nos fez seres reflexivos e ele nos guia a mente quando resolvemos as coisas em sua presença — e de nenhum outro modo. "Quem dera fossem sábios [...] e compreendessem ..." (Dt 32:29).
Segundo, indisposição para pensar adiante e pesar as conseqüências de longo prazo das alternativas no curso de uma ação. "Pensar adiante" é parte da regra divina para a vida, tão boa quanto a humana para as práticas de trânsito. Não raro vemos apenas o que é sábio e certo (e o que é tolo e errado) quando consideramos os resultados a longo prazo. "Quem dera fossem sábios [...] e compreendessem qual será o seu fim!" (Dt 32:29).
Terceiro, indisposição para aceitar conselhos. As Escrituras enfatizam essa necessidade: "O caminho do insensato parece-lhe justo, mas o sábio ouve os conselhos" (Pv 12:15). É sinal de imaturidade e de presunção dispensar os conselhos ao se tomar uma decisão importante. Há sempre alguém que conhece a Bíblia, a natureza humana e nossas habilidades e limitações mais que nós mesmos, e ainda que não possamos aceitar seu conselho, alguma coisa boa tiraremos se pesarmos com cuidado o que disser.
Quarto, indisposição para suspeitar de nós mesmos. Não gostamos de ser realistas a nosso respeito e não nos conhecemos bem. Podemos reconhecer racionalizações nos outros e não percebê-las em nós. "Emoções" com base egoísta, escapista, auto-indulgente, auto-engrandecedora devem ser detectadas e desconsideradas, e não tomadas erroneamente como direção. Isto é particularmente verdadeiro a respeito das emoções sexuais ou sexualmente condicionadas. Como escreveu certo biólogo e teólogo:
A alegria e a sensação geral de bem-estar que muitas vezes (mas não sempre) sentimos quando "amamos" podem, com a maior facilidade, silenciar a consciência e inibir o pensamento crítico. Quantas vezes as pessoas dizem "sentir-se levadas" ao casamento (e provavelmente dirão "o Senhor me guiou tão claramente") quando sua descrição é apenas um estado particular recente de equilíbrio endócrino que os torna extremamente sanguíneos e felizes.5
Precisamos nos perguntar por que "sentimos" que uma determinada atitude é certa e nos obrigar a dar as razões disso. Seremos sábios se expusermos o caso diante de mais alguém, em cujo julgamento confiamos, para que avalie nossas razões. Precisamos também orar. "Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração; prova-me, e conhece as minhas inquietações. Vê se em minha conduta algo te ofende, e dirige-me pelo caminho eterno" (Sl 139:23,24).
Quinto, indisposição para descontar o magnetismo pessoal. Os que não estão profundamente conscientes do orgulho e do engano em si mesmos nem sempre conseguem percebê-los nos outros. De tempos em tempos, isso tem levado pessoas bem-intencionadas, mas iludidas, com talento para a dramatização, a conquistar um alarmante domínio sobre a mente e a consciência de outros que se rendem ao seu encanto e deixam de julgá-las pelos padrões comuns. Ainda que uma pessoa talentosa e atraente reconheça o perigo e tente evitá-lo, nem sempre consegue impedir que cristãos o tratem como a um anjo, ou um profeta, aceitando suas palavras como direção para si mesmos e seguindo cegamente sua liderança.
Não é assim, contudo, que Deus nos guia. Na verdade, pessoas de destaque não estão necessariamente errados, mas também não estão necessariamente certas! Tanto elas como suas idéias devem ser respeitadas, mas não veneradas. "Mas ponham à prova todas as cousas e fiquem com o que é bom" (1Ts 5:21).
Sexto, indisposição para esperar. "Espera no Senhor" é um refrão constante nos salmos e uma palavra necessária, pois Deus muitas vezes nos deixa esperando. Ele não tem tanta pressa quanto nós e não é seu costume dar mais esclarecimentos sobre o futuro do que precisamos para agir no presente, ou nos guiar em mais de um passo de cada vez. Quando em dúvida, não faça nada, continue esperando em Deus. Quando houver necessidade de ação, a luz virá.
5O. R. Barclay, Guidance, p. 29.
Não há respostas simples
Entretanto, não se deve concluir que a orientação certa signifique um caminho livre de problemas. Aqui está outra causa de perplexidade para muitos cristãos. Eles seguem um caminho que parece ser indicado por Deus e, como, por conseqüência direta disso, encontram uma série de novos problemas que de outro modo não teriam surgido: isolamento, crítica, abandono pelos amigos, frustrações de todo tipo. Imediatamente ficam ansiosos. Lembram-se do profeta Jonas, que, ao ser enviado para o leste para pregar em Nínive, tomou um navio que ia para o norte, para Társis, "fugiu da presença do Senhor" (Jn 1:3) e foi alcançado por uma tempestade, humilhado diante dos descrentes, atirado ao mar e engolido por um grande peixe para que voltasse a sua responsabilidade. Será que a presente experiência do lado rude da vida (perguntam a si mesmos) é um sinal divino dizendo-lhes que estão como Jonas, fora da rota, seguindo o próprio caminho em vez do determinado por Deus? Talvez seja, e a pessoa sábia aproveitará a ocasião para verificar com todo o cuidado sua direção original.
Os problemas devem sempre ser encarados como avisos para avaliar a própria conduta. Eles não são necessariamente sinal de que se está fora
da rota, pois a Bíblia em geral declara: "O justo passa por muitas adversidades" (Sl 34:19). Ela ensina que seguir a direção divina regularmente leva a dificuldades e aflições das quais de outro modo se poderia escapar. Há muitos exemplos. Deus guiou Israel por meio de uma coluna de nuvem que ia adiante deles (Êx 13:21,22), no entanto o caminho pelo qual os levou envolveu-os na travessia espantosa e enervante do mar Vermelho, longos dias sem água e sem carne "por todo aquele imenso e terrível deserto" (Dt 1:19), e em batalhas sangrentas com Amaleque, Seom e Ogue (Êx 17:8; Nm 21:21-23), e podemos entender, se não desculpar, a constante reclamação de Israel (v. Êx 14:10-12; 16:3; Nm 11:4; 14:2,3; 20:2-5; 21:4,5).
Além disso, os discípulos de Jesus foram duas vezes apanhados à noite pela tempestade no mar da Galiléia (Mc 4:37; 6:48), e em ambas a razão de eles estarem lá foi obediência à ordem de Jesus (Mc 4:35; 6:45).
Também o apóstolo Paulo atravessou a Grécia "concluindo", pelo seu sonho com um homem da Macedônia, "que Deus nos tinha chamado para lhes pregar o evangelho" (At 16:10) e não demorou muito para que fosse preso em Filipos. Mais tarde ele "decidiu no seu espírito ir a Jerusalém" (19:21) e contou aos anciãos de Éfeso a quem encontrou no caminho: "Agora, compelido pelo Espírito, estou indo para Jerusalém, sem saber o que me acontecerá ali. Só sei que, em todas as cidades, o Espírito Santo me avisa que prisões e sofrimentos me esperam" (20:22,23). Foi exatamente o que aconteceu: Paulo encontrou tribulações em grande escala ao seguir a direção divina.
Mas isso não é tudo. Como exemplo final e a prova de que seguir a direção de Deus traz dificuldades, preste atenção à vida do próprio Senhor Jesus. Nenhuma vida humana foi tão completamente guiada por Deus e nenhum ser humano jamais se enquadrou tão bem na descrição do "homem de dores". A direção divina afastou Jesus de sua família e de seus conterrâneos, levou-o a conflitos com todos os líderes nacionais, religiosos e civis, e finalmente à traição, prisão e cruz. O que mais pode o cristão esperar enquanto permanece na vontade de Deus? "O discípulo não está acima do seu mestre, nem o servo acima do seu senhor [...] Se o dono da casa foi chamado Belzebu, quanto mais os membros da sua família!" (Mt 10:24,25).
De acordo com todos os padrões humanos de avaliação, a cruz foi um desperdício — desperdício da vida jovem, do profeta influente, do líder em potencial. Sabemos o segredo de seu significado e alcance apenas pelas declarações do próprio Deus. Do mesmo modo, a vida cristã dirigida pode parecer desperdício — como no caso de Paulo, passando anos na prisão porque seguiu a direção divina para ir a Jerusalém, quando poderia estar todo o tempo evangelizando a Europa. Deus também não nos diz a razão das frustrações e perdas que são parte e parcela da vida dirigida.
A experiência de Elisabeth Elliot, viúva e biógrafa de seu marido missionário martirizado, ilustra vivamente isto. Confiante na direção divina, ela foi a uma tribo do Equador para converter a língua deles na forma escrita a fim de que a Bíblia pudesse ser traduzida. A única pessoa que poderia ou que queria ajudá-la era um cristão que falava espanhol e que vivia com a tribo, mas depois de um mês ele foi assassinado durante uma briga. Ela continuou lutando quase sem nenhum auxílio durante mais oito meses. Então mudou para outro campo deixando todo seu arquivo de material lingüístico com os colegas para que podessem dar continuidade ao trabalho de onde ela havia parado. Quinze dias depois ela soube que o arquivo fora roubado. Não havia nenhuma cópia, todo seu trabalho estava perdido. Este, em termos humanos, era o fim da história. Ela comenta:
Eu tive simplesmente de me curvar sabendo que Deus era seu intérprete [...] Devemos permitir que Deus faça o que quer fazer. E se você imagina saber qual é a vontade de Deus para sua vida e está ansioso por cumpri-la, provavelmente estará fadado a um rude despertar, porque ninguém sabe qual é a vontade de Deus para toda sua vida.6
É isso mesmo. Cedo ou tarde, a direção divina, que nos leva das trevas para a luz, também nos levará da luz para a escuridão. Isto faz parte do caminho da cruz.
Quando erramos o caminho
Se eu descobrisse ter entrado com meu carro em um pântano, deveria saber que tinha saído da estrada. No entanto, esse conhecimento não seria de muito conforto se tivesse, então, de ficar ali parado vendo o carro afundar e sumir: o mal estava feito, sem conserto. Será que a mesma coisa acontece quando o cristão descobre ter perdido a direção divina e toma o caminho errado? O dano será irrevogável? Deverá permanecer fora da estrada para sempre? Graças a Deus, não. Nosso Deus não apenas restaura, mas incorpora nossos erros e nossas tolices ao seu plano e tira proveito deles.
6Eternity, janeiro de 1969, p. 18.
Isso faz parte da maravilha de sua graciosa soberania. "Vou compensá-los pelos anos de colheitas que os gafanhotos destruíram [...] Vocês comerão até ficarem satisfeitos, e louvarão o nome do Senhor, o seu Deus, que fez maravilhas em favor de vocês" (Jl 2:25,26). O Jesus que restaurou a Pedro depois da traição e corrigiu seu curso mais de uma vez depois disso (At 10; Gl 2:11-14) é nosso Salvador hoje e não mudou. Deus não só faz a ira do ser humano transformar-se em louvor, como também as desventuras do cristão.
Recebi uma carta de um ministro que se sentiu obrigado a deixar sua congregação e também sua denominação, e que agora, como Abraão, segue sem saber para onde. Na carta ele cita um hino de Charles Wesley sobre a soberania e a segurança da direção divina. Esta é a nota com a qual concluiremos.
A direção, como todos os atos de bênção, sob a dispensação da graça, é um ato soberano. Deus não nos guia apenas para nos mostrar o caminho que devemos trilhar. Ele quer nos guiar também no sentido mais fundamental de assegurar que, aconteça o que acontecer, quaisquer que sejam os erros cometidos, chegaremos seguros ao lar. Haverá, sem dúvida, escorregadelas e desvios, mas os braços eternos estão por baixo, seremos alcançados, salvos e restaurados. Esta é a promessa divina; isto mostra quanto ele é bom.
Parece então que o contexto exato para discutir a direção é o da confiança em Deus, que não nos deixará arruinar a alma. Nossa preocupação, portanto, neste debate deve ser mais em relação a sua glória que a nossa segurança — pois esta já está determinada. A falta autoconfiança, embora nos mantenha humildes, não deve ofuscar a alegria com a qual nos inclinamos ao "Senhor Protetor" — nosso fiel Deus da aliança. Aqui está o verso de Wesley:
Capitão dos exércitos de Israel e Guia
de todos os que buscam a mansão celestial,
Debaixo de Tua sombra nós ficamos,
A nuvem do Teu amor protetor,
Nossa força, tua graça; nossa lei, tua Palavra;
Nosso objetivo, a glória do Senhor.7
Eis aqui a conclusão do assunto nas palavras de Joseph Hart:8
É Jesus o primeiro e o último, Cujo espírito nos guiará ao lar com segurança; Nós o louvamos por tudo o que passou, E confiamos nele por tudo o que há de vir.9
7Captain of Israel's lost, Short hymns, 1762.
8Joseph Hart (1712-1768), pregador e compositor de hinos de origem inglesa.
9Verso do hino "How good is the God we adore", Hymns composed on various subjects. 1759.
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Estas provações íntimas
Um certo tipo de ministério do Evangelho é cruel. Ele não quer sê-lo, mas é. Sua finalidade é exaltar a graça, mas acontece exatamente o oposto. Reduz o problema do pecado e perde o contato com o propósito divino. O efeito é duplo: primeiro, descreve a graça como inferior ao que é na realidade; segundo, deixa as pessoas com um Evangelho não suficientemente grande para poder satisfazer a todas suas necessidades. Isaías certa vez comparou a falta de recursos adequados com uma cama curta e um cobertor estreito (Is 28:20) — receita certa para o desconforto, o descontentamento duradouro e a possibilidade de contrair uma doença séria.
No campo espiritual, este tipo de ministério expõe todos os que o aceitam seriamente a uma infelicidade semelhante. Seu predomínio é um grande obstáculo para o conhecimento de Deus e o crescimento na graça nos dias de hoje. Esperamos ser úteis a algumas pessoas por esta exposição e pela tentativa de mostrar onde estão as falhas.
Que tipo de ministério é esse? A primeira coisa a dizer é que, por mais triste que pareça, trata-se de um ministério evangélico. Sua base é a aceitação da Bíblia como Palavra de Deus e suas promessas como garantia divina. Seus temas normais são a justificação pela fé por meio da cruz, o novo nascimento por meio do Espírito e a nova vida no poder da ressurreição de Cristo. Seu objetivo é levar as pessoas ao novo nascimento, conduzindo-as depois à experiência mais completa possível da vida ressurreta. É, em todos os sentidos, o ministério do Evangelho. Seus erros não são os de quem se desvia da mensagem central evangélica. São erros aos quais apenas um ministério do Evangelho poderia ser exposto. Isto deve ficar bem claro desde o início.
Se é um ministério evangélico doutrinariamente sólido, então o que pode estar errado com ele? Como pode alguma coisa estar seriamente errada quando sua mensagem e seus objetivos são tão bíblicos? A resposta é que o ministério totalmente preocupado com verdades evangélicas ainda pode estar errado por dar a essas verdades uma aplicação incorreta. As Escrituras estão cheias de verdade para curar almas, como uma farmácia tem um bom estoque de remédios para os males do corpo, mas em ambos os casos a aplicação errada daquilo que, usado corretamente, serve para curar terá um efeito desastroso. Se em vez de passar iodo você o beber, o efeito será o inverso da cura! As doutrinas do novo nascimento e da nova vida também podem ser mal aplicadas, com resultados infelizes. É isso o que acontece no caso que estamos discutindo, como veremos adiante.
Doutrinas mal-aplicadas
O tipo de ministério que temos em mente começa enfatizando, em um contexto evangelístico, a diferença que faz o fato
de tornar-se cristão. Isso não nos trará apenas o perdão dos pecados, paz de consciência, relacionamento com Deus como Pai, mas significa também que, pelo poder do Espírito, seremos capazes de vencer os pecados que antes nos dominavam. A luz e a direção dadas por Deus nos capacitarão a descobrir um caminho em meio aos problemas de direção, satisfação pessoal, relações pessoais, desejos do coração e outras coisas semelhantes, que até então não tínhamos conseguido vencer.
Agora, colocadas desse modo, em termos gerais, estas importantes declarações são bíblicas e verdadeiras, graças a Deus elas são! No entanto, é possível dar-se tanta ênfase a elas e negligenciar de tal modo o lado difícil da vida cristã — a punição diária, a guerra sem fim contra o pecado e Satanás, os momentos de trevas — que se pode dar a impressão que a vida cristã normal é um perfeito mar de rosas, uma situação em que tudo no jardim é sempre belo e não existe problema algum — ou, se houver, devem apenas ser levados ao trono da graça, e desaparecerão imediatamente. Isto sugere que, uma vez que nos tornemos cristãos, o mundo, a carne e o demônio não causarão dificuldades sérias. As circunstâncias e os relacionamentos pessoais não serão problemáticos, nem teremos problemas conosco. Tais sugestões são prejudiciais porque são falsas.
É claro que também pode ser dada uma impressão igualmente errada de outro modo. Você pode dar excessiva ênfase ao lado difícil da vida cristã e desprezar o lado luminoso, dando a impressão de que a vida cristã é na maior parte do tempo triste e escura — um inferno na terra com a esperança do céu futuro! Não há dúvida de que essa impressão tem sido passada muitas vezes, nem de que o ministério aqui examinado seja, em parte, uma reação contra isso. No entanto, deve-se dizer que entre os dois erros extremos, o primeiro é pior, na proporção exata de que falsas esperanças são males maiores que falsos temores. O segundo erro, pela graça de Deus, levará apenas à agradável surpresa da descoberta de que o crente passa tanto por alegrias como por tristezas. O primeiro, no entanto, que apresenta a vida cristã como livre de qualquer problema, está fadado a levar, mais cedo ou mais tarde, a uma triste desilusão.
Nossa afirmação é que, a fim de apelar para o desejo humano, o tipo de ministério examinado permite-se, neste ponto, prometer mais do que Deus se comprometeu a fazer neste mundo. Isto, afirmamos, é a primeira característica que o distingue como cruel, pois alcança resultados por meio de falsas esperanças. A crueldade aqui não é certamente maliciosa, mas fruto de uma bondade irresponsável. O pregador quer ganhar seus ouvintes para Cristo, portanto, enfeita a vida cristã fazendo-a parecer a mais alegre e despreocupada possível a fim de encantá-los. A ausência, porém, de um motivo ruim e a presença de um bom de modo algum reduz o mal produzido pelo exagero.
Os ministros bem sabem o que acontece: enquanto alguns ouvintes obstinados que já ouviram esse tipo de coisa não darão muita atenção a tais promessas, uns poucos à procura ansiosa da verdade acreditarão em suas palavras. Nesta base se convertem, têm a experiência do novo nascimento e prosseguem alegremente pela nova vida, cheios da alegre certeza de terem deixado para trás todas as antigas mágoas e dores de cabeça.
Depois de algum tempo descobrirão que na realidade não é assim, pois continuam a experimentar problemas referentes a temperamento, relações pessoais, desejos e tentações constantes, às vezes até com maior intensidade. Deus não tornou as coisas mais fáceis para eles; ao contrário, tudo piorou. Dificuldades com a esposa, ou marido, com os parentes ou com os filhos, com os colegas e vizinhos continuam a existir. As tentações e os maus hábitos aparentemente desaparecidos para sempre com a experiência da conversão reaparecem.
Quando as primeiras ondas de alegria os envolveram durante as primeiras semanas da experiência cristã, sentiram realmente que todos os problemas se resolveram, mas agora vêem que não foi assim e que a prometida vida cristã livre de problemas não se materializou. As frustrações anteriores à conversão ameaçam abater-se novamente sobre eles. Que devem pensar?
A verdade aqui é que o Deus de quem se disse: "Como pastor ele cuida de seu rebanho, com o braço ajunta os cordeiros" (Is 40:11) é muito gentil com os cristãos recém-convertidos, como o são as mães com seus bebezinhos. Muitas vezes o começo da carreira cristã é marcado por grande alegria emocional, atos providenciais marcantes, notáveis respostas a orações e frutos imediatos dos primeiros testemunhos; assim Deus os estimula e estabelece "na vida". Mas à medida que se tornam mais fortes e mais capazes de suportar as coisas, ele os exercita em uma escola mais rígida. Por meio da pressão de influências opostas e desestimulantes, ele os expõe aos testes que estão capacitados a suportar — não mais do que isso (v. a promessa de 1Co 10:13), nem menos (v. a admoestação em At 14:22). Desse modo Deus edifica nosso caráter, fortalece nossa fé e nos prepara para ajudar a outros. Assim ele cristaliza nosso senso de valores e glorifica a si mesmo em nossa vida, fazendo sua força perfeita em nossa fraqueza.
Não há nada, portanto, anormal no aumento do número de tentações, conflitos e pressões à medida que o cristão anda com Deus. Na verdade alguma coisa estará errada se isso não acontecer. Entretanto, o cristão a quem disseram não haver sombras nem problemas na vida cristã normal, à medida que experiências de ineficiência e imperfeição se acumulam em sua vida, só pode concluir que ele deve ter saído da normalidade. "Alguma coisa está errada", diz, "não está funcionando mais!" E sua indagação será: que devo fazer para que "funcione" de novo?
O REMÉDIO ERRADO
O segundo aspecto cruel desse ministério que temos em mente surge a partir deste ponto. Tendo criado dependência, pois é isso que acontece, ao levar pessoas recém-convertidas a se referir a todas as experiências de frustração e perplexidade como sinais de um cristianismo abaixo do padrão, agora provoca mais escravidão mediante uma solução semelhante a uma camisa-de-força, pela qual se propõe a acabar com essas experiências.
Esse recurso insiste em diagnosticar a "luta", comparada a "fracasso", como negligência causada pela falha em manter a "consagração" e a "fé". A princípio (sugere) o convertido estava totalmente vencido pelo novo Salvador; daí a razão de sua alegria, mas desde então foi ficando mais frio ou descuidado, ou comprometeu, de algum modo, sua obediência, ou deixou de sustentar em todos os momentos a confiança no Senhor Jesus, daí a razão de suas experiências atuais.
A solução, portanto, é descobrir, confessar e esquecer seu afastamento, reconsagrar-se a Cristo e manter diariamente essa consagração, adquirir o hábito de levar a Cristo todos os problemas e tentações que surgirem para que ele os solucione. Se assim fizer (afirmam) ele se encontrará mais uma vez no topo do mundo, tanto no sentido teológico como no metafórico.
É verdade que se o cristão se torna descuidado diante de Deus e volta para os caminhos do pecado, sua alegria interior e o sossego do coração diminuem, e uma sensação de descontentamento virá a marcá-lo cada vez mais. Os que por meio da união com Cristo estão "mortos para o pecado" (Rm 6:1) — isto é, afastados dele como o princípio que lhes rege a vida — não podem encontrar no pecado nem mesmo aquele prazer limitado que tinham antes de nascer de novo. Nem podem permitir-se trilhar caminhos errados sem que ponham em perigo seu privilégio de desfrutar dos favores divinos — Deus fará que isso aconteça!
Por causa da sua cobiça perversa fiquei indignado e o feri; fiquei irado e escondi o meu rosto. Mas ele continuou extraviado, seguindo os caminhos que escolheu.
Isaías 57:17
É assim que Deus reage quando seus filhos seguem caminhos errados. Os apóstatas não-regenerados são alegres, mas os cristãos que se desviam são sempre miseráveis. Assim o cristão que se descobre perguntando:
Onde está a bênção que conheci Quando vi o Senhor pela primeira vez?1
deve certamente perguntar a si mesmo, antes de tudo, se tem havido o particular desejo de
pecados que te fazem lamentar E te retiram de meu coração.2
1Segundo verso do hino O for a closer walk with God, composto por William Cowper, in Conyer's Collection of psalms and hymns, 1772. 2Quarto verso do mesmo hino.
Se assim for, a solução apresentada acima é correta, pelo menos em termos gerais.
Talvez não seja este o caso, afinal, e mais cedo ou mais tarde cada cristão vai perceber isso. A verdade aparecerá: Deus está agora provando seus filhos — seus filhos consagrados, nos caminhos da santidade adulta como fez com Jó, com alguns salmistas e com os leitores da carta aos hebreus, expondo-os a fortes ataques do mundo, da carne e do Diabo para que seus poderes de resistência aumentassem e seu caráter como povo de Deus se tornasse mais forte. Como dissemos acima, todos os filhos de Deus sofrem esse tratamento — é parte da "disciplina do Senhor" (Hb 12:5; ecoando Jó 5:17; Pv 3:11) —, ao qual ele sujeita todos os filhos amados.
Se é isto o que acontece com o cristão perplexo, então a solução proposta é desastrosa. Pois o que ela faz? Ela sentencia os cristãos devotos ao trabalho árduo e monótono de procurar todos os dias por fracassos inexistentes na consagração, na crença de que, somente se encontrarem algumas falhas para confessar e abandonar, poderão ter de novo a experiência da infância espiritual que Deus quer que eles agora deixem para trás.
Assim, essa proposta não apenas resulta em regressão e irrealidade espiritual, como os coloca em dificuldade com Deus, que os tirou da euforia da infância espiritual, com seus risos e passividade satisfeita, precisamente a fim de levá-los a uma experiência mais adulta e madura. Os pais gostam de bebês, mas ficam tristes, e isso é o mínimo, se seus filhos crescidos quiserem ser bebês outra vez, e hesitam em deixá-los voltar aos hábitos infantis. O mesmo acontece com o Pai celestial. Ele nos quer crescidos em Cristo, e não permanentemente bebês. Entretanto, o ensinamento que temos em vista aqui nos coloca contra Deus neste ponto e apresenta a volta à infância como bem supremo.
Mais uma vez, isto é crueldade, do mesmo modo como era crueldade o antigo costume japonês de atar os pés das meninas forçando-os a uma deformação permanente. O fato de ter sido realizado por uma questão de bondade não faz nenhuma diferença. O mínimo que poderá acontecer quando se aceita a solução proposta será a interrupção do desenvolvimento espiritual — o surgimento de um tipo de adultos evangélicos infantis, sorridentes, irresponsáveis e egoístas. Os piores efeitos entre os crentes sinceros e honestos surgirão na forma de introspecção mórbida, histeria, perturbação mental e perda da fé, pelo menos na forma evangélica.
Perder a graça de vista
O que está basicamente errado com este ensinamento? Está sujeito a críticas sob muitos aspectos. Ele falha na compreensão do ensinamento do Novo Testamento sobre a santificação e a luta cristã. Não compreende o significado do crescimento na graça. Não entende a operação do pecado interior. Confunde a vida cristã na terra com a do céu. Tem uma concepção errada da psicologia da obediência cristã (atividade impulsionada pelo Espírito, não passividade impulsionada pelo Espírito). A crítica básica, porém, deve ser certamente não levar em conta o método e o propósito da graça. Tentaremos explicar isto.
O que é graça? No Novo Testamento graça significa o amor de Deus que age em favor das pessoas merecedoras exatamente do oposto. Graça significa Deus movendo céus e terras para salvar pecadores que não poderiam erguer um dedo sequer para salvar-se. Graça significa Deus enviando seu único Filho para descer ao inferno na cruz, para que os culpados pudessem ser reconciliados com Deus e recebidos no céu. "Deus tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado, para que nele nos tornássemos justiça de Deus" (2Co 5:21).
O Novo Testamento reconhece tanto o desejo da graça como a obra da graça. O primeiro é o plano eterno de Deus para salvar; o segundo é a "boa obra" (Fp 1:6) de Deus em nós, pela qual ele chama os homens à vida de comunhão com Cristo (1Co 1:9), ressuscita-o da morte para a vida (Ef 2:1-6), sela-o como sua propriedade pelo dom do Espírito (Ef 1:13), transforma-o à imagem de Cristo (3:18) e finalmente ressuscitará seu corpo em glória (Rm 8:30; 1Co 15:47-54).
Há alguns anos foi moda entre os estudiosos protestantes dizer que graça significa a atitude amorosa de Deus, distinta de sua obra de amor. Essa distinção, entretanto, não é bíblica. Veja, por exemplo, em 1Coríntios 15:10: "mas, pela graça de Deus, sou o que sou, e sua graça para comigo não foi inútil; antes, trabalhei mais do que todos eles; contudo, não eu, mas a graça de Deus comigo", a palavra graça denota claramente o amor de Deus agindo em Paulo, fazendo dele primeiro cristão, e depois ministro.
Qual é o propósito da graça? Primeiramente restaurar nossa comunhão com Deus. Quando Deus lança o fundamento deste relacionamento restaurado, pelo perdão de nossos pecados ao confiarmos em seu Filho, o faz para que a partir desse momento nós e ele possamos viver em comunhão. Ao renovar nossa natureza, Deus tenciona nos capacitar e, na realidade, nos levar ao exercício do amor, da confiança, da alegria, da esperança e da obediência concentrada nele — atos que, de nossa parte, compõem a realidade da comunhão com Deus, que se faz constantemente conhecido a nós. Este é o objetivo da obra da graça — conhecimento de Deus mais profundo e comunhão mais constante com ele. A graça é Deus conduzindo os pecadores cada vez para mais perto de si.
Como Deus, pela graça, executa esse propósito? Não é nos escudando dos ataques do mundo, da carne e do Diabo, nem nos protegendo das circunstâncias cansativas e frustrantes, nem ainda amparando-nos contra os problemas criados por nosso temperamento e psicologia. Ao contrário, ele nos faz ao expor-nos a todas essas coisas, para que nos convençamos de nossa incapacidade e assim levar-nos a nos agarrar a ele mais firmemente. Esta é a razão principal, de acordo com nosso ponto de vista, pela qual Deus enche nossa vida com problemas e perplexidades de toda sorte — é para ter certeza de que aprenderemos a confiar plenamente nele.
A razão de a Bíblia reiterar que Deus é rocha forte, amparo firme, refúgio e auxílio para o fraco é que Deus passa muito de seu tempo trazendo-nos à lembrança nossa fraqueza, tanto mental quanto moral, e que não devemos ousar por nós mesmos descobrir ou seguir o caminho certo. Quando andamos por uma estrada clara sentimo-nos muito bem e, se alguém nos toma o braço para nos ajudar, certamente nos livraremos dele com impaciência. Entretanto, se, ao contrário, estivermos no escuro, num caminho ruim, no meio de uma tempestade, com as forças se esgotando, e alguém nos pegar o braço para nos ajudar, nos apoiaremos nele, agradecidos.
Deus quer que sintamos o caminho da vida áspero e cheio de perplexidades para aprender a nos apoiar nele. Portanto, ele toma as providências para nos despojar de nossa autoconfiança, a fim de confiarmos nele — na frase clássica da Bíblia para o segredo da vida da pessoa temente a Deus: "espera no Senhor".
O Deus restaurador
Esta verdade tem muitas aplicações. Uma das mais surpreendentes é que Deus realmente usa nossos pecados e enganos para este fim. Ele emprega muitas vezes a disciplina educativa dos fracassos e enganos. É surpreendente ver como a Bíblia se refere ao povo de Deus que cometeu enganos e como Deus os puniu por isso.
A Abraão foi prometido um filho, mas, como tivesse de esperar por ele, perdeu a paciência e cometeu o engano de tomar o lugar da providência, gerando Ismael — e teve de esperar mais treze anos antes que Deus falasse outra vez com ele (Gn 16:16—17:1). Moisés cometeu o erro de tentar salvar seu povo agindo de acordo com sua vontade, usando sua força, matando um egípcio, insistindo em resolver os problemas particulares dos israelitas — viu-se banido por muitas décadas no meio do deserto para perder sua presunção.
Davi cometeu uma série de erros — seduziu Bate-Seba e mandou Urias para a morte, negligenciou sua família, levantou o censo de seu povo apenas para ganhar prestígio —, e em cada um desses casos foi castigado amargamente. Jonas cometeu o erro de fugir do chamado de Deus e encontrou-se no interior do grande peixe.
Poderíamos ir longe com os exemplos. Mas o que queremos destacar é que o erro humano e o conseqüente desagrado divino não foram em nenhum dos casos o fim da história. Abraão aprendeu a esperar o momento determinado por Deus. Moisés foi curado de seu convencimento (na verdade sua subseqüente falta de autoconfiança foi também quase pecaminosa! — v. Êx 4:10-14). Davi se arrependeu depois de cada um de seus erros e no final ficou mais perto de Deus que estava no começo. Jonas orou no interior da barriga do peixe e viveu para cumprir sua missão em Nínive.
Deus pode tirar proveito dos extremos de nossa loucura; pode restaurar o tempo devorado pelo gafanhoto. Dizem que quem nunca erra jamais faz coisa alguma; certamente esses homens cometeram erros, mas por meio deles Deus os ensinou a conhecer sua graça e a se apegar a ele como jamais aconteceria de outro modo. Seu problema é um sentimento de fracasso? O conhecimento de ter cometido algum horrível engano? Volte-se para Deus, sua graça res-tauradora espera por você.
A irrealidade na religião é execrável. A irrealidade é a maldição do tipo de ensino a que nos opusemos neste capítulo. Irrealidade para com Deus é uma doença devastadora do cristianismo moderno. Precisamos de Deus para ser realistas conosco e com ele. Talvez haja uma palavra para nós no famoso hino em que John Newton descreve a passagem para a realidade que estamos tentando apresentar:
Pedi ao Senhor que eu pudesse crescer Na fé, no amor, e em toda a graça, Saber mais de sua poderosa salvação E buscar com mais fervor sua face.
Esperei que em alguma hora favorável De repente ele respondesse a meu pedido E pela força constrangedora de seu amor Eliminasse meus pecados e me desse paz.
Em vez disso, ele me fez sentir O mal escondido em meu coração E deixou que as raivosas forças do inferno Assaltassem completamente minha alma.
Ainda mais, com a própria mão pareceu que ele quis agravar meu sofrimento Anulou todos os projetos que idealizei Desmanchou meu jogo e me destruiu.
"Senhor, por que isso?", clamei a tremer
"Perseguir teu verme até a morte?"
"É deste modo", disse o Senhor
"Que eu respondo aos rogos por graça e fé"
Estas provações íntimas eu uso
Para livrá-lo do orgulho e egoísmo
E quebrar teu esquema de alegria terrena
Para que possas buscar-te todo em mim.3
3l asked the Lord hat I may grow, 1779.
[pic]
a suficiência de Deus
A carta de Paulo aos romanos é o ponto alto das Escrituras, não importa de qual ângulo você a observe. Lutero a chamou "o mais claro de todos os Evangelhos". "Quem a entender", escreveu Calvino, "terá seguramente uma porta aberta para a compreensão de toda a Escritura". Tyndale, em seu prefácio a Romanos, ligou os dois pensamentos, chamando Romanos "a parte principal e mais excelente do Novo Testamento, e o mais puro evangelion, isto é, as boas-novas chamadas Evangelho, e também luz e caminho para perscrutar toda a Escritura". Todas as estradas da Bíblia levam a Romanos, e todas as idéias apresentadas nas Escrituras são vistas com mais clareza nessa carta. Quando sua mensagem adentra o coração da pessoa não é possível avaliar as conseqüências.
Romanos: livro de riquezas
O que você procura na Bíblia? O homem sábio tem os olhos abertos para diversas coisas, e Romanos é supremo em todas.
É doutrina — verdade sobre Deus, ensinada por Deus — que você está buscando? Caso seja, descobrirá que Romanos apresenta todos os temas integrados: Deus, ser humano, pecado, lei, julgamento, fé, obras, graça, criação, redenção, justificação, santificação, o plano da salvação, eleição, reprovação, a pessoa e a obra de Cristo, a obra do Espírito, a esperança cristã, a natureza da Igreja, o lugar dos judeus e dos gentios no propósito divino, a filosofia da Igreja e a história universal, o significado e a mensagem do Antigo Testamento, o significado do batismo, os princípios de piedade e ética, os deveres do cidadão cristão etc!
Entretanto, a pessoa sábia também lê a Bíblia como o livro da vida, mostrando mediante exposição e exemplo que significa servir a Deus e não servi-lo, encontrá-lo e perdê-lo na experiência humana real. O que Romanos tem para oferecer aqui? A resposta é: a mais completa representação da vida de pecado e da vida de graça, e a mais profunda análise da estrada da fé apresentada pela Bíblia (sobre o pecado, v. caps. 1 a 3; 5 a 7; 9; sobre a graça, 3 a 15; sobre a fé, 4,10 e 14).
Outro modo de ler a Bíblia, muito recomendado atualmente por professores, é tê-la como livro da igreja, que expressa a fé concedida por Deus e a compreensão recíproca existente na comunhão dos fiéis. Deste ponto de vista, Romanos, justamente por ser a declaração clássica do Evangelho pelo qual a Igreja vive, é também a narrativa clássica da identidade da Igreja. O que é a Igreja? É a verdadeira semente do fiel Abraão, judeus e não-judeus, escolhidos por Deus, justificados pela fé e libertados do pecado para a nova vida de retidão pessoal e ministério mútuo. É a família do Pai celestial amoroso vivendo na esperança de herdar toda sua fortuna. É a comunidade da ressurreição, na qual os poderes da morte histórica de Cristo e sua presente vida celestial já agem. Em nenhum outro lugar isto é apresentado tão completamente como em Romanos.
A pessoa sábia também lê a Bíblia como carta pessoal de Deus a cada filho espiritual e, portanto, destinada a ele como para os outros. Leia Romanos desse modo e você descobrirá que essa carta tem uma força ímpar para sondar e tratar de coisas tão arraigadas em você que normalmente não se lembra delas: hábitos e atitudes pecaminosos; instinto para a hipocrisia; farisaísmo natural e autoconfiança; descrença constante; frivolidade moral e superficialidade no arrependimento; indiferença, mundanismo, timidez, desânimo; convencimento espiritual e insensibilidade.
Você também descobrirá que esta carta perturbadora tem o poder sem par de despertar alegria, segurança, ousadia, liberdade e espírito ardoroso que Deus requer e dá a quem o ama. Diz-se de Jonathan Edwards que sua doutrina era aplicação e que sua aplicação era doutrina. Romanos é exatamente assim.
Escreveu Tyndale:
Nenhum homem pode verdadeiramente lê-la com demasiada freqüência ou estudá-la muito bem, pois quanto mais é estudada mais fácil se torna e quanto mais profundamente forem buscadas, as coisas mais preciosas são encontradas nela, tão grande é o tesouro espiritual que jaz escondido aí [...] Por esse motivo todos os homens, sem exceção, devem exercitar-se diligentemente neste ponto e gravá-lo (lembrar) dia e noite continuamente até que todos estejam completamente acostumados com ele.
Entretanto, nem todos os cristãos apreciam a magnificência de Romanos, e há razão para isso. Alguém que tocasse o topo do monte Everest em um helicóptero (se é que isso pode acontecer) não sentiria naquele momento nada parecido com o que Hillary e Tensing sentiram quando estiveram naquele lugar depois de ter subido a montanha. Do mesmo modo, o impacto de Romanos sobre você vai depender dos acontecimentos anteriores.
A lei operante aqui é que quanto mais você explora outras partes da Bíblia, quanto mais exercitado nos problemas intelectuais e morais de ser cristão, quanto mais tenha sentido o peso da fraqueza e a força da fidelidade na vida cristã, mais verá Romanos falando a você. João Crisóstomo1
1Crisóstomo significa "boca de ouro" (347-407). Bispo de Constantinopla reverenciado como um dos quatro grandes doutores da Igreja. Monge dedicado e eloqüente pregador, adepto da interpretação histórico-gramatical das Escrituras, Crisóstomo enfatizava a reverência no culto divino. Foi exilado e encarcerado por seu desafio às autoridades romanas.
fazia que essa carta fosse lida em voz alta para ele uma vez por semana; você e eu podíamos fazer muito mais que isso.
Agora, assim como Romanos é o ponto alto da Bíblia, o capítulo 8 é o ponto alto de Romanos. Nas palavras do comentarista puritano Edward Elton:
[O capítulo 8 de Romanos é] como um favo de mel, bem cheio da doçura do céu e de conforto para a alma... Nossos conceitos sobre o consolo são apenas sonhos, até que tenhamos uma idéia verdadeira sobre o amor de Deus por nós em Cristo Jesus, despejado e derramado amplamente em nosso coração pelo Espírito Santo que nos foi dado, e enche o coração com uma alegria gloriosa e indescritível, fazendo-nos mais que vencedores [...] E onde encontrar esta base para o consolo mais ampla e vigorosamente interpretada se não neste capítulo?2
O consolo é claramente usado aqui no velho e forte sentido de algo encorajador e animador, não no sentido moderno de algo que tranqüiliza e debilita. A busca do "consolo", no sentido moderno, é auto-indulgente, sentimental e irreal, e a religião do "vou à igreja para obter consolo" não é cristianismo; Elton, porém, fala da certeza cristã, que é algo diferente.
Mais uma vez, porém, o princípio do Everest tem aplicação neste ponto. Você não penetrará no segredo de Romanos 8 estudando apenas este capítulo. O caminho para Romanos 8 é através dos capítulos 1 a 7, e o impacto de Romanos 8 sobre você refletirá quanto lhe custou aceitar o que foi dito nos capítulos anteriores. Somente se você aceitar a si mesmo como pecador perdido e sem salvação (caps. 1 a 3) e, como Abraão, confiar na divina promessa que parece boa demais para ser verdade no seu caso, a promessa de aceitação, porque Jesus, o cabeça da aliança, morreu e ressuscitou (caps. 4 e 5); somente se, como nova criatura em Cristo, você se entregou à total santidade e então descobriu em si que a carne está em luta com o espírito, de modo que você vive em contradição, nunca alcançando totalmente os seus bons propósitos,
2Dedicatória de The triumph of a true Christian described.
nem evitando todo o mal ao qual renunciou (caps. 6 e 7), apenas se, acima de tudo, "perdas e cruzes" recaírem sobre você (doenças, tensões, acidentes, choques, desapontamentos, maus-tratos — v. cap. 8:18-23,35-39), só então Romanos 8 revelará sua imensa riqueza e tornará conhecido seu grande poder.
Em Romanos 8 vemos Paulo reafirmar de forma bastante ampliada o que já dissera em Romanos 5:1-11. Normalmente ele não é repetitivo; por que, então, voltou ao assunto aqui? Por que afinal ele escreveu Romanos 8? A resposta mais curta, e não tão tola quanto parece, é esta: porque escreveu Romanos 7! Em Romanos 7:7 ele levantou a questão: a lei é pecado? A resposta que devia dar era: não; mas a lei é uma fonte de pecado, pois na realidade fomenta o que proíbe, e assim desperta o impulso para desobedecer, de modo que
quanto mais a pessoa se dispõe a obedecer à lei, mais a transgride.
Para mostrar isto de modo rápido e vivido, Paulo descreveu sua experiência nesse assunto. Falou como antes de ser cristão "o pecado, aproveitando a oportunidade dada pelo mandamento, enganou-me e por meio do mandamento me matou" (v. 11); e ele foi adiante (v. 14-25), fazendo uma revisão do presente no qual, embora cristão e apóstolo: "tenho o desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá-lo [...] tenho prazer na Lei de Deus, mas vejo outra lei atuando nos membros do meu corpo, guerreando contra a lei da minha mente, tornando-me prisioneiro da lei do pecado que atua em meus membros" (v. 18,22,23).
Ao descrever isso, sua reação brotou espontaneamente: "Miserável homem que eu sou! Quem me libertará do corpo sujeito a esta morte?" (v. 24). A pergunta era apenas de retórica, pois ele sabia que um dia teria total livramento do pecado por meio de Cristo pela "redenção do nosso corpo" (8:23), mas no presente, como continuou falando, teria de suportar a amarga experiência de ser incapaz de alcançar a perfeição procurada, porque a lei que a exigia — a lei na qual, como homem regenerado, ele se deleitava (v. 22) — era impotente para levá-lo até ela. "De modo que, com a mente, eu próprio (isto é, no meu íntimo, o meu "eu" real) sou escravo da Lei (ordens) de Deus; mas, com a carne, da lei (princípio) do pecado" (7:25).
Paulo apresentou sua opinião e agora faz uma pausa. O que ele fez? Apresentou a seus leitores o que a lei diz a respeito dele mesmo, e desse modo leva-os a se lembrarem das declarações dessa mesma lei sobre eles. A lei não fala de privilégios nem de realizações, apenas de fracasso e culpa. Para os cristãos sensíveis, cientes de quanto Deus odeia o pecado, ser diagnosticado pela lei é, portanto, uma experiência desagradável e deprimente.
Escrever esses versículos obscureceu a alegria de Paulo, e como um bom pastor, sempre pensando no efeito de suas palavras, ele sabia que a leitura delas espalharia a melancolia. Ele, porém, não achava certo deixar os cristãos romanos contemplando o lado triste de suas experiências, sentindo como se estivessem novamente debaixo da lei. Ao contrário, ele acha necessário lembrar-lhes, de uma vez por todas, que o decisivo não é o que a lei diz sobre eles, mas o que o Evangelho diz.
Assim, por uma lógica tanto evangélica como pastoral — evangélica porque o Evangelho dá a última palavra; pastoral porque os pastores devem sempre ser "cooperadores para que tenham alegria" (2Co 1:24) —, Paulo agora retoma o tema da segurança cristã e o desenvolve o mais vigorosamente possível desde a "não-condenação" no começo até a "não-separação" no fim.
Romanos 8 não "tira os cristãos de Romanos 7" no sentido de apresentar uma possibilidade presente de não mais haver em nós imperfeições descobertas pela lei. Este foi o ponto salientado por Alexander Whyte3 quando falou a sua congregação: "Vocês não sairão do capítulo 7 de Romanos enquanto eu for seu ministro", e esse ponto é verdadeiro. Entretanto, no sentido de levar os cristãos à segurança dada por Deus no Evangelho e ensiná-los a se regozijar "na graça soberana sobre o pecado", como antídoto à desgraça de ser medido pela lei, Romanos 8 "tira totalmente os cristãos de Romanos 7".
O que Romanos 8 contém? Podemos dividi-lo em duas partes de tamanho desigual. Os primeiros treze versículos falam da suficiência da graça de Deus para tratar de uma série completa de categorias — a culpa e o poder do pecado (v. 1-9); a realidade da morte (v. 6-13), o terror de ser confrontado com a santidade divina (v. 15); fraqueza e desespero em face do sofrimento (v. 17-25); entorpecimento na oração (v. 26); a sensação de que a vida é sem sentido e sem esperança (v. 28-30).
Paulo apresenta sua opinião discorrendo longamente sobre os quatro dons divinos dados a todos que pela fé estão em "Cristo Jesus". O primeiro é justiça: "nenhuma condenação" (v. 1); o segundo é o Espírito Santo (v. 4-27); o terceiro é filiação — adoção na família divina da qual o Senhor Jesus é o primogênito (v. 14-17,29); o quarto é segurança, agora e na eternidade (v. 28-30). Este dote conjunto — um status, mais a dinâmica, a identidade e um salvo-conduto — é mais que suficiente para amparar o cristão independentemente do problema.
Então nos versículos 31 a 39, Paulo chama a atenção de seus leitores para que reajam ao que ele disse: "Que diremos, pois, diante dessas coisas?" (v. 31), e continua a expor a reação dele (que deveria também ser a nossa). À medida que ele o faz, seu tema muda ligeiramente e torna-se a suficiência do Deus da graça. O interesse passa do dom para o Doador, da idéia de libertação do pecado para a de Deus sendo para cada cristão o mesmo que foi para Abraão — "Eu sou o seu escudo; grande será a sua recompensa!" (Gn 15:1).
Se os versículos 1 a 30 dizem: "Tu me diriges com o teu conselho, e depois me receberás com honras", então os versículos 31 a 39 dizem: "A quem tenho nos céus senão a ti? E na terra, nada mais desejo além de estar junto a ti. O meu corpo e o meu coração poderão fraquejar, mas Deus é a força do meu coração e a minha herança para sempre" (Sl 73:24-26). É esta reação que exploraremos a seguir.
A APLICAÇÃO DAS DOUTRINAS
"Que diremos, pois, diante dessas coisas?" O nós aqui não é o plural de majestade, nem o literário; o Novo Testamento não conhece nenhum desses recursos. É na verdade uma fórmula inclusiva, exortativa, da pregação cristã, que quer dizer: "Eu, e espero que você e todos os crentes conosco". A idéia por trás de "O que diremos?" é: "Eu sei o que vou dizer, você concorda comigo?"
Pedindo resposta a seus leitores, Paulo os conclama primeiro a pensar. Ele quer que resolvam com ele como "essas coisas" influem na presente situação — em outras palavras, apliquem o fato a si mesmos. Embora não os conheça pessoalmente (nem nós que o lemos no século xxi), Paulo sabe que o que determina sua situação são dois fatores comuns a todos os cristãos verdadeiros em qualquer lugar e em qualquer tempo. O primeiro é o compromisso com toda a justiça. Romanos 8:31-39 admite que seus leitores estão sujeitos a Deus como "escravos da justiça" (6:18), e procuram executar a vontade de Deus sem meias medidas.
O segundo fator é a exposição a todas as pressões. Romanos 8:31-39 fala de dificuldades materiais e hostilidades humanas como coisas comuns para os cristãos, somos "nós", e não apenas Paulo, que enfrentamos "tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez (maior privação), ou perigo, ou espada" (v. 35). Como Paulo havia ensinado aos convertidos de sua primeira viagem missionária: "É necessário que passemos por muitas tribulações para entrarmos no Reino de Deus" (At 14:22). Muitas tribulações (não todas) podem talvez ser evitadas no momento (não para sempre), ajustando nossa vela espiritual, mas Paulo sabe que as pessoas dispostas ao que os puritanos chamavam "obediência universal" têm de nadar constantemente contra as correntes deste mundo e sempre estão sendo levados a sentir isso.
Assim Paulo imagina seus leitores; e nós nos reconhecemos em seu espelho. Nele se vê refletido o cristão preocupado com a lembrança de um lapso moral; o cristão cuja integridade o fez perder um amigo ou um trabalho; os pais cristãos desapontados com os filhos; a mulher cristã se adaptando à mudança; o cristão sentindo-se um estranho em casa ou no trabalho por causa de sua fé; a pessoa magoada pela morte de alguém que desejava ver vivo ou pelo prolongamento da vida de um parente senil ou pelo sofrimento de um filho que deveria ter sido abreviado; o cristão sentindo que Deus não cuida dele ou que a vida deveria ser menos difícil, e muitas coisas mais. Entretanto, são exatamente pessoas assim, em outras palavras, pessoas como nós, que Paulo está desafiando: "Que diremos (nós), pois, diante dessas coisas?". Pense, pense, pense!
O que Paulo deseja que nos aconteça? Ele quer que usufruamos nossas posses (para usar uma frase um tanto batida). As posses não usufruídas não são, como às vezes se pensa, técnicas de impecabilidade, mas a paz, a esperança e a alegria no amor de Deus, privilégios do cristão. Paulo sabe que o "pensamento emocional" debaixo das pressões da vida, isto é, a racionalização das reações, prejudica essas posses, daí o seu pedido para reagir, agora não contra aquelas coisas, mas contra "estas coisas" apresentadas nos versículos 1 a 30.
"Pense no que você sabe sobre Deus por meio do Evangelho", diz Paulo, "e aplique isso". Oponha-se mentalmente a suas emoções, argumente consigo procurando afastar-se da tristeza que elas espalham; desmascare a incredulidade que elas alimentavam; domine-se, fale consigo, esforce-se para tirar os olhos dos problemas e fixe-os no Deus do Evangelho, deixe que o pensamento evangélico corrija o pensamento emocional. Deste modo (segundo Paulo) o Espírito Santo que habita em nós, e nos assegura de nossa filiação e herança (v. 15), nos levará ao ponto em que a última conclusão triunfante de Paulo — "Pois estou convencido de que nem morte nem vida [...] nem qualquer outra coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor" (v. 38,39) — extrairá de nós a resposta: "E a mim também! Aleluia!", pois nesta resposta, como Paulo sabe, está o segredo da experiência dos "mais que vencedores", que é a vitória que vence o mundo e o céu dos cristãos na terra.
"Que diremos, pois, diante dessas coisas?" A resposta-modelo de Paulo consiste em quatro idéias, cada uma focalizada em outra pergunta. (As perguntas afinal fazem as pessoas pensar!) "Se Deus é por nós, quem será contra nós? [...] como não nos dará juntamente com ele (Cristo), e de graça, todas as coisas? [...] Quem fará alguma acusação contra os escolhidos de Deus?" (v. 31-33). A palavra-chave nas três primeiras perguntas é: por (grego, hyper, "em lugar de"): "Deus é por nós [...] seu próprio Filho [...] entregou por todos nós [...] Cristo [...] intercede por nós" (v. 31-34). O quarto pensamento é a conclusão dos três juntos: nada "poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor". Estudaremos cada uma dessas idéias em ordem.
Se Deus é por nós
1. "Se Deus é por nós, quem será contra nós?". A idéia é que nenhuma oposição poderá nos esmagar. Para expressar isso Paulo coloca diante de nós a suficiência de Deus como nosso soberano protetor e a determinação de sua aliança de compromisso conosco.
"Se Deus é por nós..." Quem é Deus? Paulo fala do Deus da Bíblia e do Evangelho, o Senhor Yahweh; "Senhor, Deus compassivo e misericordioso, paciente, cheio de amor e de fidelidade" (Êx 34:6), aquele a quem "o Deus Unigênito, que está junto do Pai, o tornou conhecido" (Jo 1:18). Este é o Deus que falou e anunciou sua soberania: "Eu sou Deus, e não há nenhum outro; eu sou Deus, e não há nenhum como eu. Desde o início faço conhecido o fim, desde tempos remotos, o que ainda virá. Digo: Meu propósito permanecerá em pé, e farei tudo o que me agrada" (Is 46:9,10).
Este é o Deus que mostrou sua soberania tirando Abraão de Ur, Israel do cativeiro do Egito e mais tarde da Babilônia, e Jesus do túmulo; e que mostra a mesma soberania todas as vezes que levanta um pecador da morte espiritual para a vida. Este é o Deus de Romanos, o Deus cuja ira se manifesta "contra toda impiedade e injustiça dos homens" (1:18), mas que, no entanto, "demonstra seu amor por nós: Cristo morreu em nosso favor quando ainda éramos pecadores" (5:8).
Este é o Deus que chama, justifica e glorifica aqueles que desde a eternidade "predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho" (8:29). Este é o Deus do primeiro dos 39 artigos de religião (anglicanos):4 o "único Deus, vivo e verdadeiro, eterno [...] de infinito poder, sabedoria e bondade; o Criador e Conservador de todas as coisas visíveis e invisíveis". Este é (devo acrescentar) o Deus cujos caminhos temos estudado neste livro.
"Se Deus" — este Deus — é por nós — o que significa isto? As palavras por nós afirmam a aliança de compromisso. O objetivo da graça, como já vimos, é criar uma relação de amor entre Deus e os que crêem, o tipo de relacionamento para o qual fomos criados, e o laço de comunhão pelo qual Deus se une a nós é sua aliança. Ele impõe isso unilateralmente pela promessa e pela ordem. Vemo-lo fazendo isso quando fala a Abraão em Gênesis 17: "Eu sou o Deus todo-poderoso [...] estabelecerei a minha aliança entre mim e você e multiplicarei muitíssimo a sua descendência [...] para ser o seu Deus e o Deus dos seus descendentes [...] guarde a minha aliança" (v. 1,7,9).
Gálatas 3 e 4 mostram que todos os que colocam sua fé em Cristo, quer gentios quer judeus, são incorporados por meio de Cristo à descendência de Abraão, que faz parte da aliança. Uma vez estabelecida, o concerto permanece, pois Deus cuida para que assim seja. Como Pai, Esposo e Rei (estes são os modelos de relacionamento humano em que seu relacionamento de aliança é apresentado), Deus é fiel a sua promessa e a seu propósito. A promessa em si mesma — de ser "seu Deus""ser o teu Deus" — é ampla, pois, quando revelada, prova conter em si todas as "grandiosas e preciosas promessas" (2Pe 1:4) com as quais Deus se comprometeu a suprir nossas necessidades. Este relacionamento de aliança é a base de toda a religião bíblica: quando os adoradores dizem "meu Deus" e Deus diz "meu povo" está sendo utilizada a linguagem da aliança, como também na expressão "Deus é por nós”.
O que se proclama aqui é a garantia divina de nos sustentar e proteger quando as pessoas e as circunstâncias nos ameaçam; cuidar de nós durante todo o tempo de nossa peregrinação na terra e levar-nos afinal para o regozijo total de si mesmo, não importa quantos obstáculos apareçam, no presente, estar no caminho que nos leva até lá. Esta simples afirmação "Deus é por nós" é na realidade uma das mais ricas e valiosas da Bíblia.
O que significa para mim o fato de poder dizer: "Deus está a meu favor"? A resposta é encontrada no salmo 56, em que a declaração "Deus está a meu favor" (v. 9) é a mola propulsora. O salmista foi colocado contra a parede: "Os meus inimigos pressionam-me sem parar; muitos atacam-me arrogantemente" (v. 2). No entanto, o conhecimento de que Deus está a seu lado traz uma nota de triunfo a sua oração. Em primeiro lugar, assegura-lhe que Deus não o esqueceu ou fez pouco caso de suas necessidades: "Registra, tu mesmo, o meu lamento; recolhe as minhas lágrimas em teu odre (para preservar!); acaso não estão anotadas em teu livro (permanentemente registradas)?" (v. 8).
Segundo, dá-lhe a confiança de que "Os meus inimigos retrocederão, quando eu clamar por socorro" (v. 9). Terceiro, oferece a base para a confiança "que vence o pânico". "Mas eu, quando estiver com medo, confiarei em ti [...] em Deus eu confio, e não temerei. Que poderá fazer-me o simples mortal?" (v. 3,4).
O que quer que a "carne" ou o "homem", como está no versículo 11, possa fazer ao salmista exteriormente, por assim dizer, no mais profundo sentido não poderá tocá-lo, pois sua vida real é a vida interior de comunhão com o Deus amoroso, e o Deus que o ama, não importa o que aconteça, lhe preservará a vida.
O salmo 56 também ajuda a responder à pergunta: Quem são as pessoas ("nós") favorecidas por Deus ("por")? O salmista apresenta três qualidades que em conjunto identificam o verdadeiro crente. Primeiro ele louva, e o que ele louva é a palavra de Deus (v. 4,10) — isto é, ele observa a revelação de Deus e o adora nela e de acordo com ela, em lugar de abandonar-se a suas descontroladas fantasias teológicas. Segundo, ele ora, e o desejo que impulsiona sua oração é a comunhão com Deus como objetivo e finalidade da vida "para que eu ande diante de Deus" (v. 13). Terceiro, ele paga — paga seus votos de fidelidade e gratidão (v. 12). A pessoa que louva, ora, agradece e é fiel tem em si as marcas do filho de Deus.
Qual foi, então, o propósito de Paulo ao fazer essa pergunta? Ele se opunha ao medo — o medo que o cristão tímido tem das forças agregadas contra si, as forças, por assim dizer, dele, dela ou deles. Paulo sabe que há sempre algumas pessoas, ou grupos delas, cuja ridicularização, desagrado ou hostilidade o cristão se sente incapaz de enfrentar. Paulo sabe que cedo ou tarde isso se torna um problema para todos os cristãos, mesmo para os que, antes da conversão, não se importavam com o que os outros pensassem ou dissessem a seu respeito. Ele sabe quão inibidor ou desolador esse medo pode ser. Mas ele também sabe a resposta para isso.
Pense, diz Paulo. Deus é por você, e você sabe o que isso significa. Agora veja quem está contra você, faça uma comparação entre os dois lados (note que a tradução "quem pode estar contra nós" é errada, e não atinge a idéia de Paulo; o que ele pede é a revisão realista da oposição humana e demoníaca, não a pretensão romântica de sua não-existência. A oposição é uma realidade: o cristão que não tem consciência dessa oposição precisa cuidar-se, pois está em perigo. Essa irrealidade não é exigência para o discipulado cristão, mas, ao contrário, evidência de fracasso).
Você "os" teme? Paulo pergunta. Não precisa mais temer, assim como Moisés já não precisava ter medo do faraó depois de Deus lhe haver dito: "Eu estarei com você" (Êx 3:12). Paulo adverte seus leitores para que façam o tipo de cálculo feito por Ezequias: "Não tenham medo nem desanimem por causa do rei da Assíria e do seu enorme exército, pois conosco está um poder maior do que o que está com ele [.-..] conosco está o Senhor, o nosso Deus, para nos ajudar e para travar as nossas guerras" (2Cr 32:7,8).
Augustus M. Toplady, que é o poeta da segurança cristã, como Isaac Watts é o poeta da soberania de Deus e Charles Wesley o da nova criação, expressa do seguinte modo a idéia da pergunta de Paulo:
Eu tenho um protetor soberano
Invisível, porém sempre ao meu alcance
Imutavelmente fiel para salvar
Poderoso para dirigir e ordenar.
Ele sorri e meu conforto aumenta
Sua graça como o orvalho cairá e muralhas de salvação rodearão a alma que ele se alegra em defender.5
Compreenda isto, diz Paulo; firme-se nisso, deixe que essa certeza tenha impacto sobre você em relação ao que enfrenta nesse exato momento; ao conhecer a Deus como seu soberano protetor, irrevogavelmente comprometido com você pela aliança da graça, você encontrará tanto a libertação do medo quanto novas forças para a luta.
Nada de bom é negado
2. "Aquele que não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós, como não nos dará juntamente com ele, e de graça, todas as coisas?". A idéia expressa por Paulo nesta segunda pergunta é que nenhuma coisa boa finalmente nos será negada. Ele confirma essa idéia mostrando-nos a suficiência de Deus como nosso soberano benfeitor e a firmeza de sua obra redentora por nós.
Três comentários reforçarão o argumento de Paulo.
Note, primeiro, o que Paulo infere sobre o preço de nossa redenção: "não poupou seu próprio Filho". Para nos salvar Deus foi ao máximo. O que
5Terceiro verso do hino Inspirer and hearer of prayer, 1774.
mais ele poderia nos dar? Que mais tinha para dar? Não podemos saber quanto o Calvário custou para o Pai, assim como não podemos calcular o que Jesus sentiu ao provar o castigo por nossos pecados. "Não podemos saber, não podemos contar as dores que ele sofreu."6 Entretanto podemos dizer que se a medida do amor é o que ele proporciona, então nunca houve amor como o demonstrado por Deus aos pecadores no Calvário, nem qualquer outra dádiva de amor feita a nós custará tanto para Deus. Assim, se Deus já mostrou seu amor por nós quando, apesar de pecadores, Cristo morreu em nosso lugar (5:8), é de crer que, no mínimo, ele prossiga e nos dê além disso "todas as coisas". Muitos cristãos conhecem o temível sentimento de que Deus não tem mais nada para lhes dar além do que já receberam, mas o olhar atento para o Calvário desfará esse sentimento.
Isso não é tudo. Em segundo lugar, observe o que Paulo fala sobre a eficácia de nossa redenção. Deus, ele diz, "o entregou por todos nós" — e este fato é em si mesmo a garantia de que "todas as coisas" nos serão dadas, porque nos virão como resultado direto da morte de Cristo. Acabamos de falar que a grandeza da dádiva divina na cruz torna suas doações posteriores (se é que essas palavras são permitidas) naturais e prováveis. Entretanto, o que precisamos observar agora é a unidade do propósito salvífico de Deus ao tornar essas doações necessárias e, portanto, certas.
Neste ponto, o conceito sobre a cruz do Novo Testamento envolve mais do que se imagina. É indiscutível que os escritores apostólicos apresentam a morte de Cristo como fundamento e penhor da oferta de perdão feita por Deus, e recebemos esse perdão mediante o arrependimento e a fé em Cristo. Isso significa, porém, que da mesma forma que um revólver carregado é apenas potencialmente perigoso, já que é necessário puxar o gatilho para ser disparado, também a morte de Cristo resultou apenas na possibilidade da salvação, sendo obrigatório o exercício da fé por parte do homem para dispará-la, tornando-a real?
6Frase do segundo verso do hino There is a green Hill far away, de Cecil F. Alexander, Hymns for little children, 1848.
Se assim for, então não é estritamente a morte de Cristo que nos salva, não mais do que o fato de carregar o revólver o fará atirar: no sentido exato da palavra, nós nos salvamos mediante nossa fé; e, pelo que sabemos, a morte de Cristo poderia não ter salvo ninguém, se nenhuma pessoa cresse no Evangelho. Mas não é assim que o Novo Testamento vê isso. A idéia apresentada por ele é que a morte de Cristo realmente salvou a "todos nós" — todos, quer dizer, os que Deus já havia conhecido de antemão, chamou, justificou e no tempo determinado glorificará. Nossa fé, que do ponto de vista humano é o meio da salvação, para Deus é parte da salvação, e é tão direta e completamente dom divino como o são o perdão e a paz dos quais a fé se apossa.
Do ponto de vista psicológico, a fé é um ato que parte de nós, mas a verdade teológica a esse respeito é que se trata da obra de Deus em nós: tanto a fé quanto o novo relacionamento com Deus, como crentes, e todos os dons divinos desfrutados nesse relacionamento nos foram do mesmo modo assegurados pela morte de Cristo na cruz. A cruz não foi um fato isolado; ao contrário foi o ponto focai do plano eterno de Deus para salvar seus eleitos. Ela assegura e garante em primeiro lugar o chamado (o ato de levar a fé à mente, por meio do Evangelho, e ao coração, através do Espírito Santo), depois a justificação e finalmente a glorificação para todas as pessoas pelas quais Cristo morreu específica e pessoalmente.
Agora vemos por que o grego desses versículos nos diz literalmente: como não nos dará também com ele todas as coisas? É simplesmente impossível para ele não fazê-lo, pois Cristo e "todas as coisas" são um conjunto, partes do dom singular da vida eterna e da glória. A dádiva de Cristo a nós, para remover "a barreira do pecado" pelo sacrifício da substituição, abriu efetivamente a porta para que o restante nos seja dado. O propósito divino, salvífico, desde a eleição eterna até a glória final, é um só. É vital, tanto para nosso entendimento como para nossa segurança, que não percamos de vista os laços que unem suas várias partes e estágios. E isso nos leva ao próximo ponto.
Note, em terceiro lugar, que Paulo fala sobre as conseqüências de nossa redenção. Ele diz que Deus com Cristo nos dará "todas as coisas". O que isto abrange? Chamado, justificação e glorificação (que no v. 30 inclui todos os acontecimentos, desde o novo nascimento até a ressurreição do corpo) já mencionados, assim como as muitas facetas do ministério do Espírito Santo apresentadas por todo o capítulo 8 de Romanos. Aqui há na verdade muita riqueza, que poderia ser incrementada com base em outras partes das Escrituras.
Poderíamos, por exemplo, citar a garantia do Senhor de que quando os discípulos buscam primeiro "o Reino de Deus e a sua justiça, [...] todas essas coisas [suas necessidades materiais] lhes serão acrescentadas" (Mt 6:33) — uma verdade surpreendente confirmada por ele ao dizer: "Ninguém que tenha deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou campos, por causa de mim e do evangelho, deixará de receber cem vezes mais, já no tempo presente, casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, e com eles perseguição [!]; e, na era futura, a vida eterna" (Mc 10:29,30).
Ou poderíamos nos demorar no pensamento de que "todas as coisas" significam tudo o que há de bom, não o que nós podemos pensar, mas o que Deus pode, à medida que a sabedoria infinita e o poder guiam sua generosidade.
Entretanto, chegaremos mais perto da idéia de Paulo se entendermos esta frase como motivada, da mesma forma que o "pois" do versículo 1, pelo tipo especial de lógica pastoral de Paulo, que contraria por antecipação as inferências errôneas de seus leitores. A conclusão errada que ele contraria no versículo 1 (e veremos que no v. 33 ele também o faz) era que os pecados de fraqueza do cristão podem interromper a aceitação do cristão por Deus. A conclusão errônea de que seguir a Cristo significa a perda de bens de valor, sem nenhuma compensação correspondente é aqui retratada, pois se isto fosse verdade, assemelharia o discipulado cristão aos partidários de Oliver Cromwell no livro 1066 and all that [1066 e todo o resto]:7 "corretos, mas repulsivos".
A garantia de Paulo de que com Cristo Deus nos dará "todas as coisas" corrige essa conclusão por antecipação, pois proclama a suficiência de Deus, nosso soberano benfeitor, cuja conduta para com seus servos não deixa base para nenhum sentimento ou temor de verdadeiro empobrecimento pessoal em qualquer estágio. Vamos falar mais sobre isso.
O cristão, como Israel no Sinai, enfrenta a ordem exclusiva do primeiro mandamento. Deus disse a Israel: "Eu sou o Senhor, o teu Deus, que te tirou do Egito, da terra da escravidão. Não terás outros deuses além de mim" (Êx 20:2,3). Este mandamento, como todo o Decálogo, foi expresso na forma negativa porque se tratava de uma convocação para cessar o antigo modo de vida e fomentar o novo começo. A razão para isso foi o politeísmo egípcio, bem conhecido dos israelitas e dos cananeus, que seria enfrentado a seguir.
O politeísmo — adoração de muitos deuses — era universal no antigo oriente próximo. A idéia básica era a limitação do poder de uma divindade por outra. O deus do milho, ou da fertilidade, por exemplo, jamais poderia exercer as funções do deus da tempestade ou dos mares. A ação auxiliadora de um deus que habitasse em um santuário particular, gruta sagrada ou árvore limitava-se apenas à região onde estava; em outros lugares outros deuses eram soberanos. Portanto, não era suficiente adorar apenas um deus; era preciso, tanto quanto possível, estar em bons termos com todos eles ou incorrer na má vontade constante dos deuses negligenciados, com a conseqüente perda das boas dádivas possivelmente concedidas por eles.
Foi a pressão dessas idéias que anos depois tornou tão forte a tentação dos israelitas de adorar "outros deuses". Não há dúvida de que no Egito eles haviam aceitado o politeísmo, independentemente do grau de reverência aos deuses egípcios. Todavia, o primeiro mandamento tocou exatamente nesse modo de pensar e de agir. "Não terás outros deuses além de mim".
7Livro escrito por Walter Carruthers Sellar e Robert Julian Yeatman (publicado por Methuen & Company em 1930).
Observe agora como Deus se conduz quanto à questão de dividir a fidelidade entre ele e os "outros deuses". Ele expressou essa realidade perante Israel não em termos de teologia, mas de lealdade; um assunto não apenas da mente, mas do coração.
Em outras partes das Escrituras, especialmente em Salmos e Isaías, nós o encontramos falando explicitamente a seu povo sobre a loucura da adoração de deuses pagãos, pois, na realidade, eles não são deuses. Aqui, porém, ele não menciona esse ponto. Por enquanto ele deixa em aberto a questão da existência ou não de outros deuses. Ele não decretou o primeiro mandamento para decidir este assunto, mas para resolver a questão da lealdade. Deus não diz: "Não existem outros deuses além de mim para serem adorados", mas simplesmente: "Não tenha outros deuses além de mim". Baseia sua exigência no fato de ser o Deus deles, que os tirou do Egito. É como se dissesse: "Ao salvar vocês do faraó e de seus exércitos 'com forte mão e braço estendido', por sinais e maravilhas, pela Páscoa e pela travessia do mar Vermelho, dei-lhes um exemplo do que posso fazer por vocês, e mostrei de modo bastante claro que em qualquer lugar e tempo, contra qualquer inimigo, sob qualquer privação, posso protegê-los, cuidar de vocês e dar-lhes tudo o que constitui a verdadeira vida. Vocês não precisam de outro deus a não ser de mim. Portanto, não devem me trair buscando outro deus, devem servir apenas a mim e a ninguém mais".
Em outras palavras, no primeiro mandamento, Deus disse a Israel que o servisse exclusivamente, não apenas porque lhe devessem isso, mas também por ser ele digno de toda a confiança. Deviam se curvar diante de sua absoluta autoridade com base na confiança em sua suficiência total. É evidente que ambas as coisas precisam estar juntas, pois eles dificilmente o serviriam de todo o coração se, ao excluir os outros deuses, duvidassem da suficiência de Deus para suprir suas necessidades.
Agora, se você é cristão, sabe que também está sendo chamado a agir do mesmo modo. Deus não poupou seu Filho, mas o entregou por sua causa. Cristo ama você e se entregou para livrá-lo da escravidão do pecado do Egito espiritual e de Satanás. Jesus Cristo lhe apresenta o primeiro mandamento na forma positiva: "Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento. Este é o primeiro e maior mandamento" (Mt 22:37,38). A exigência se apóia em seu direito de Criador e Redentor, e não se pode escapar dela.
Você conhece, como discípulo, o estilo de vida ao qual foi chamado por Cristo. Seu exemplo e ensinamento nos evangelhos (sem seguir mais adiante no livro de Deus) tornam a idéia perfeitamente clara. Você é chamado a viver como peregrino neste mundo, um simples residente temporário, viajando com pouca bagagem e desejoso, segundo o direcionamento de Cristo, de fazer o que o moço rico não quis: deixar as riquezas materiais e a segurança proporcionada por elas e conviver com a possibilidade de empobrecimento e perda de bens. Tendo seu tesouro no céu, você não precisa pensar em tesouros terrenos, nem na vida de alto padrão —Jesus pode lhe pedir a renúncia de ambos. Você é chamado a seguir a Cristo, carregando sua cruz.
O que isso quer dizer? Bem, as únicas pessoas no mundo antigo que carregavam cruzes eram criminosos condenados a caminho da execução. Eles, como o Senhor Jesus, eram obrigados a carregar a cruz sobre a qual seriam executados. Assim, o que Cristo quis dizer é que você deve assumir a posição de tal pessoa no sentido de renunciar a todas as expectativas sociais futuras e aprender a tomar como naturais o desprezo de seus companheiros e o olhar de desdém e aversão como se você fosse um estranho. É possível que muitas vezes você seja tratado desse modo por causa da lealdade ao Senhor Jesus Cristo.
Você é também chamado a ser uma pessoa mansa, nem sempre lutando por seus direitos, nem preocupado em reaver o que lhe pertence, nem entristecido por maus-tratos e desprezos (embora, se você for sensível, estas coisas possam feri-lo). Em vez disso, deve simplesmente entregar seus problemas a Deus e deixar que ele o defenda se e quando ele achar conveniente. Sua atitude para com seus companheiros bons e maus, agradáveis e desagradáveis, tanto cristãos como descrentes, deve ser a do bom samaritano para com o judeu na estrada, e isto quer dizer que seus olhos devem estar abertos para as necessidades espirituais e materiais dos outros. Seu coração deve estar pronto para cuidar das almas necessitadas quando as encontrar; sua mente precisa estar alerta para planejar o melhor modo de ajudá-las e sua vontade deve estar firmada contra a armadilha (na qual somos especialistas) de "transferir responsabilidades", livrando-nos de situações difíceis em que se impõe a ajuda mediante sacrifício.
Nada disso, evidentemente, é estranho a qualquer de nós. Sabemos que Cristo nos chama para esse estilo de vida, muitas vezes pregamos e falamos sobre ele, mas será que o vivemos realmente? Bem, veja as igrejas. Observe a falta de ministros e de missionários, especialmente de homens; observe a riqueza material nos lares cristãos; o problema de se angariar fundos para as sociedades cristãs; a presteza dos cristãos em todos os níveis de vida em reclamar de seu salário; a falta de preocupação com os idosos e solitários, ou mesmo com qualquer pessoa fora do círculo dos "verdadeiros crentes".
Somos bem diferentes dos cristãos do Novo Testamento. Nossa vida é estática e convencional, a deles não era. A idéia de "primeiro a segurança" não era obstáculo em seus empreendimentos, como acontece em nossos dias. Por viver o Evangelho de modo exuberante, não-convencional e desinibido, eles viraram o mundo de cabeça para baixo; mas nós, cristãos do século xxi, não podemos ser acusados de fazer algo semelhante. Por que somos tão diferentes? Por que comparados com eles parecemos apenas meios cristãos? De onde vêm o nervosismo, o medo, que não aceitam riscos e que tanto prejudicam o discipulado? Por que não estamos livres do medo e da ansiedade de modo a nos permitir seguir a Cristo em todos os sentidos?
Uma razão parece ser a de que, em nosso íntimo, tememos as conseqüências advindas de uma vida totalmente cristã. Esquivamo-nos da responsabilidade por outras pessoas por medo de não ter forças suficientes para suportá-las. Esquivamo-nos de aceitar certo estilo de vida que despreza a segurança material porque tememos o fracasso. Esquivamo-nos de ser mansos por temermos ser pisados, feridos se não nos mantiver-mos altivos, terminando a vida em meio a fracassos e desventuras. Esquivamo-nos de romper com as convenções sociais a fim de servirmos a Cristo, pois tememos que nossa estrutura de vida sofra um colapso, deixando-nos sem nenhum ponto de apoio.
São esses temores semiconscientes, essa ameaça de insegurança, em vez de outra recusa deliberada de enfrentar o custo de seguir a Cristo, que nos fazem recuar. Sentimos que os riscos do discipulado total são grandes demais para aceitá-los. Em outras palavras, não estamos certos da suficiência de Deus para suprir as necessidades dos que se lançam, de todo o coração, no mar profundo da vida não-convencional em obediência ao chamado de Cristo. Portanto, sentimo-nos obrigados a quebrar um pouquinho o primeiro mandamento, tirando parte de nosso tempo e de nossa energia do serviço a Deus para servir às riquezas. Isto, no fundo, pode ser o que está errado conosco. Temos medo de aceitar totalmente a autoridade de Deus por causa de nossa secreta incerteza quanto à sua suficiência para cuidar de nós.
Vamos agora dar o nome certo às coisas. O nome do jogo que estamos praticando é incredulidade, e a afirmação de Paulo: "Ele nos dará todas as coisas" permanece como um desafio para nós. O apóstolo nos diz que não devemos temer nenhuma perda nem empobrecimento irreparável; se Deus nos nega alguma coisa é apenas para dar outras que ele tem em mente. Será que aceitamos o conceito de que a vida de alguém consiste, pelo menos em parte, nas coisas que ele possui?
Isto apenas alimenta o descontentamento e bloqueia as bênçãos, pois a expressão "todas as coisas" de Paulo não significa excesso de bens materiais. A paixão por eles deve ser extirpada a fim de que "todas as coisas" possam tomar seu lugar. Essa expressão está relacionada com o conhecimento e com a alegria de Deus, e a nada mais. O significado de "ele nos dará todas as coisas" pode ser este: um dia veremos que nada — literalmente nada — que possa aumentar nossa eterna felicidade nos foi negado e que nada — literalmente nada — que possa reduzir essa felicidade nos foi tirado. Que maior garantia queremos?
Ainda assim, quando se fala em auto-renúncia inabalável a serviço de Cristo, estremecemos. Por quê? Por falta de fé, pura e simplesmente.
Tememos que Deus não tenha força ou sabedoria para cumprir o propósito estabelecido? Mas foi ele quem fez o mundo, quem o governa e quem ordena tudo o que acontece, desde o curso seguido pelo faraó e por Nabucodonosor até a queda de um pardal. Tememos que ele vacile e em seu propósito, e que — a exemplo de pessoas boas com boas intenções que às vezes falham com seus amigos — ele também possa falhar em cumprir suas boas intenções para conosco? Paulo, porém, afirma que "Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam" (Rm 8:28). Quem é você para imaginar-se a primeira exceção, a primeira pessoa a ver Deus vacilar e deixar de cumprir sua palavra? Você não percebe que desonra a Deus com tais temores?
Você duvida de sua constância, supondo de que ele tenha "aparecido", "evoluído" ou "morrido" no intervalo entre os tempos bíblicos e o nosso (todas essas idéias foram exploradas nos tempos modernos), e que agora ele não é mais o mesmo Deus santo da Bíblia? Entretanto, ela afirma: "Eu, o Senhor, não mudo" e "Jesus Cristo é o mesmo, ontem, hoje e para sempre" (Ml 3:6; Hb 13:8).
Você tem evitado uma vida de riscos e custos para a qual sabe, no íntimo, que Deus o chamou? Não se detenha mais. Seu Deus é fiel e suficiente. Você nunca precisará de nada além do que ele pode dar, e seu suprimento, quer material quer espiritual, será sempre o bastante para o presente. O Senhor "não recusa nenhum bem aos que vivem com integridade" (Sl 84:11). "Deus é fiel; ele não permitirá que vocês sejam tentados além do que podem suportar. Mas, quando forem tentados, ele mesmo lhes providenciará um escape, para que o possam suportar" (1Co 10:13). "Minha graça é suficiente para você, pois o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza" (2Co 12:9). Pense nessas coisas e deixe que seus pensamentos afastem as dificuldades para servir ao Mestre.
Quem nos acusará?
3. "Quem fará alguma acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará?" (v. 33,34). A idéia expressa por Paulo na terceira questão é que nenhuma acusação poderá jamais nos deserdar. Ele a justifica apontando a suficiência de Deus como nosso soberano campeão e a determinação de seu veredicto justificador sobre nós.
Paulo escreveu os dois versículos anteriores para contrabalançar o medo que os cristãos têm da oposição e privação entre as pessoas; ele escreve este versículo contra o medo da rejeição divina. Há dois tipos de consciência doentia, a não suficientemente consciente do pecado e as sem idéia do perdão; e é a este segundo tipo que Paulo agora se dirige. Ele sabe com que facilidade a consciência de um cristão que esteja sob pressão pode se tornar mórbida; particularmente ao ler Romanos 7:24,25, o cristão é confrontado com a realidade do pecado e do fracasso contínuos.
Paulo sabe da impossibilidade da esperança cristã de alegrar o coração de alguém enquanto permanecem dúvidas a respeito de sua segurança como crente justificado. Assim, no estágio seguinte de sua descrição sobre "estas coisas", o apóstolo fala diretamente do medo (ao qual cristão nenhum é estranho) de que a presente justificação seja apenas provisória e que possa um dia ser perdida devido às imperfeições de nossa vida cristã.
Paulo em nenhum momento nega que os cristãos caiam e errem, às vezes gravemente, nem questiona o fato (como todo cristão verdadeiro sabe, e como suas palavras em Romanos 7 revelam) de que, depois de se tornar cristão, a lembrança dos pecados cometidos é muito mais dolorosa que qualquer recordação de um lapso moral, embora grave, antes dessa época. Entretanto, ele nega enfaticamente que qualquer erro possa agora prejudicar nossa situação de justificados. A razão, diz ele, é simples: ninguém está em posição de rever o veredicto divino. "Quem fará alguma acusação contra os escolhidos de Deus?" As palavras de Paulo reforçam o ponto de muitos modos.
Primeiro, ele traz à lembrança a graça da eleição divina. "Quem fará alguma acusação contra os escolhidos de Deus?" Lembre-se, diz Paulo, de que os que Deus justificou agora foram escolhidos desde a eternidade para a salvação final e, se sua justificação fosse em qualquer tempo revogada, o plano de Deus para eles seria inteiramente desfeito. Portanto, a perda da justificação é inconcebível.
Segundo, Paulo traz à lembrança a soberania do julgamento. "É Deus quem os justifica. Quem os condenará?" Se é Deus, Criador e Juiz de todos, quem pronuncia a sentença — isto é, quem declara que você está de acordo com sua lei e com ele mesmo, e não está mais condenado à morte por seus pecados, mas foi aceito em Cristo — e se Deus assim sentenciou apesar de conhecer todos seus erros, justificando-o explicitamente com base na compreensão clara de que você não era justo, mas ímpio (cf. Rm 4:5), então ninguém jamais poderá duvidar do veredicto, nem mesmo o próprio "acusador dos nossos irmãos" (Ap 12:10).
Ninguém pode alterar a decisão de Deus sem sua aquiescência. Há apenas um Juiz! Ninguém pode apresentar novas evidências de sua de-pravação que façam Deus mudar de idéia. Ele o justificou (por assim dizer) de olhos abertos. Ele conhecia o pior sobre você quando o aceitou por amor de Jesus; e o veredicto apresentado então era, e é, final.
No mundo bíblico, o julgamento era uma prerrogativa real, e esperava-se que o juiz real, sobre quem pesavam todos os poderes reunidos do legislativo, judiciário e executivo, uma vez determinados os direitos da pessoa, agisse no sentido de que ela os obtivesse. Assim o rei tornava-se o herói e protetor de quem havia perdoado no tribunal. Esta é a base dos pensamentos de Paulo neste ponto: o Senhor soberano que o absolveu tomará as medidas necessárias para manter a situação em que o colocou e para que você possa fruir dela inteiramente. Assim, perder o perdão é inconcebível.
Terceiro, Paulo lembra a eficácia da mediação de Cristo. É melhor que o texto com referência a Cristo seja lido como uma pergunta: "Quem os condenará? Foi Cristo Jesus que morreu; e mais, que ressuscitou e está à direita de Deus, e também intercede por nós?" Tudo o que Paulo diz serve para mostrar que a idéia de Cristo nos condenando é absurda. Ele morreu para nos salvar da condenação, levando a culpa de nossos pecados em nosso lugar. Ele ressuscitou e foi exaltado "como Príncipe e Salvador, para dar a Israel arrependimento e perdão de pecados" (At 5:31).
Agora, em razão de sua presença en-tronizada à mão direita do Pai, ele intercede por nós com autoridade, isto é, ele intervém em nosso favor a fim de certificar-se de que receberemos tudo aquilo por que ele morreu. Será que agora ele nos condenará? Ele, o Mediador, que amou e se deu por nós e cuja preocupação constante no céu é que desfrutemos todos os frutos de sua redenção? A idéia é grotesca e impossível.
Mais uma vez, portanto, parece inconcebível a perda da justificação. É isso o que o cristão confuso precisa dizer a si mesmo, como procedente de Deus. Mais uma vez é o poeta Toplady quem coloca as palavras certas em nossos lábios, em um hino intitulado Confiança em Deus:
Deus é por mim! Não temo O mundo e seu furor; Minha alma tem refúgio Na graça do Senhor. De Cristo sou amado, O meu Amigo é Deus. Que raivem inimigos: Valido sou dos céus. Declaro com firmeza Que Deus comigo vai; O eterno Ser supremo É meu amante Pai. Por toda parte sempre Me cerca o seu amor; Perigo algum me afasta Do excelso Protetor. É firme esta esperança No Salvador Jesus. Por ele assegurado, Jamais me falta a luz. É nele que eu exulto, Eu, frágil pecador: Seu sangue expiatório Tem divinal Valor. Se Deus me justifica Quem me condenará? Do grande amor de Cristo Ninguém me apartará. A morte, a vida, os homens, Tristeza e tentação, Debalde esperam todos Romper esta união.
Quem pode nos separar?
4. "Quem nos separará do amor de Cristo?". O auge do pensamento de Paulo nesta quarta pergunta é que nenhuma separação do amor de Cristo jamais sobrevirá. Ele comprova a sua afirmação ao colocar diante de nós Deus, o Pai e o Filho, como nossos soberanos amparadores, e ao deixar clara a determinação do amor divino em estabelecer nosso destino.
Estudamos o amor de Deus em um capítulo anterior e não precisamos nos demorar aqui nesse assunto. O ponto crucial, para o qual a argumentação de Paulo se volta, já é bem conhecido: considerando que o amor humano, com todo seu poder em outros sentidos, não pode assegurar a realização do que realmente deseja para a pessoa amada (como multidões de apaixonados infelizes e pais com corações partidos o sabem), o amor divino é uma função da onipotência e tem como núcleo o propósito poderoso de abençoar que não pode ser contrariado.
Essa resolução soberana se refere aqui tanto ao "amor de Cristo" quanto ao "amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor" (v. 35,39). A dupla descrição lembra que ambos, o Pai e o Filho (juntos com o Espírito Santo, como a parte anterior do capítulo mostrou), são um só no amor aos pecadores. Lembra ainda que o amor que escolhe, perdoa e glorifica é o amor "em Cristo Jesus", amor conhecido apenas daqueles de quem Cristo Jesus é "Senhor".
O amor a que Paulo se refere é o que salva. O Novo Testamento não permite a pessoa alguma supor que este amor divino possa envolvê-la a não ser que ela tenha ido a Jesus como pecadora e tenha aprendido a dizer-lhe como Tomé: "Senhor meu e Deus meu!" (Jo 20:28). No entanto, uma vez que a pessoa tenha se entregado inteiramente ao Senhor Jesus, diz Paulo, nunca mais sentirá a incerteza do personagem dos quadrinhos que murmura à medida que despetala a margarida: "Bem-me-quer, mal-me-quer". É privilégio do cristão saber com certeza que Deus o ama constantemente e que nada poderá, em tempo algum, separá-lo desse amor ou interpor-se entre ele e a fruição final de seus frutos.
Isto é o que Paulo proclama na triunfante declaração do versículo 38 em diante, na qual se ouve o batimento cardíaco da segurança cristã: "Pois estou convencido", "persuadido", "estou bem certo", "de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor". Aqui Paulo apresenta toda a suficiência de Deus de dois modos pelo menos.
Primeiro, Deus é suficiente como nosso protetor. Nada "será capaz de nos separar do amor de Deus" porque o amor de Deus nos segura firme. Os cristãos "mediante a fé, são protegidos pelo poder de Deus até chegar a salvação" (1Pe 1:5). O poder de Deus os mantém na crença e firmes pela fé. Sua fé não falhará enquanto Deus a sustentar. Você não é bastante forte para apostatar enquanto Deus estiver determinado a segurá-lo.
Em segundo lugar, então, Deus é suficiente como nosso objetivo. Os relacionamentos amorosos do ser humano — entre filhos e pais, de esposo e esposa, ou entre amigos — são fins em si mesmos, tendo valor e alegria próprios. O mesmo acontece com o conhecimento do Deus que nos ama, do Deus cujo amor é visto em Jesus. Paulo escreveu:
Considero tudo como perda, comparado com a suprema grandeza do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor, por quem perdi todas as coisas. Eu as considero como esterco para poder ganhar Cristo [...] Quero conhecer Cristo, o poder da sua ressurreição e a participação em seus sofrimentos, tornando-me como ele em sua morte para, de alguma forma, alcançar a ressurreição dentre os mortos [...] mas prossigo para alcançá-lo, pois para isso também fui alcançado por Cristo Jesus [...] esquecendo-me das coisas que ficaram para trás e avançando para as que estão adiante, prossigo para o alvo, a fim de ganhar o prêmio do chamado celestial de Deus em Cristo Jesus.
Filipenses 3:8-14
O propósito de nossa comunhão com Deus em Cristo é o aperfeiçoamento desta comunhão. Como poderia ser diferente quando se trata de uma comunhão de amor? Assim, Deus é suficiente em mais este sentido, pois conhecendo-o nos satisfaremos por completo, sem precisar de coisa alguma nem desejar nada além disso.
Mais uma vez Paulo se opõe ao medo — desta vez, do desconhecido, quer em termos de sofrimento sem precedentes (v. 35), de um futuro horrendo (" nem o futuro"), quer de forças cósmicas que não podemos medir nem dominar {altura e profundidade, no versículo 39, são termos astrológicos para designar forças cósmicas misteriosas). O ponto focai do medo é o efeito que essas coisas possam ter na comunhão da pessoa com Deus, superando tanto a fé quanto a razão, destruindo desse modo a sanidade e a salvação.
Em uma época como a nossa (não muito diferente da de Paulo neste aspecto!), os cristãos, especialmente os mais imaginativos, conhecem um pouco desse medo. É a versão cristã da Angst existencialista ante a perspectiva da destruição pessoal. Entretanto, diz Paulo, precisamos combater esse medo, pois a idéia é irreal. Nada, literalmente nada, pode nos separar do amor de Deus, "Em todas estas cousas somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou" (v. 37).
Quando Paulo e Silas estavam presos no cárcere de Filipos, sentiram-se tão exultantes que à meia-noite começaram a cantar, e é assim que reage quem conhece o amor soberano de Deus quando se encontra em situações aflitivas. Mais uma vez é o poeta, em um hino chamado Confiança em Cristo, que encontra palavras para expressar tudo o que isso envolve:
Em ti confio, ó Cristo!
Morreste em meu lugar
Teu sangue precioso,
Na cruz a derramar.
Agora os meus pecados cobertos já estão
E gozo em tua morte perfeita redenção.
Justiça e santidade me dás aqui, Senhor;
Delícias e entendimento desfruto, em teu amor.
Aqui achei descanso, conforto em tua cruz,
E a minha vida inteira repousa em ti, Jesus.
Contigo lá na glória, Senhor, habitarei;
Teu rosto, face a face, feliz contemplarei.
E, junto ao coro de anjos, teu nome e teu louvor
Celebrarei contente, Jesus, meu Salvador!
Aprender a conhecer a Deus em Cristo
Chegamos ao ponto culminante de nosso livro. Propusemo-nos a saber o significado de conhecer a Deus. Descobrimos que o Deus que está "lá" para que o conheçamos é o Deus da Bíblia, o Deus dos romanos, o Deus revelado em Jesus, o Triúno do ensinamento cristão histórico. Concluímos que conhecê-lo começa com o saber a seu respeito, e assim estudamos seu caráter e atitudes revelados, e chegamos a conhecer algo de sua bondade e severidade, e de sua ira e graça. À medida que assim fazíamos, aprendemos a nos reavaliar como criaturas caídas, não fortes e auto-suficientes como supúnhamos ser, mas fracas, tolas e na verdade más, não nos dirigindo para a Utopia mas para o inferno, se a graça não interviesse.
Vimos também que conhecer a Deus envolve um relacionamento pessoal mediante o qual você se entrega a Deus com base na promessa feita por ele de se dar a você. Conhecer a Deus significa pedir sua misericórdia e descansar na promessa de perdoar os pecadores por amor de Jesus. Ainda mais, significa tornar-se discípulo de Jesus, o Salvador vivo que está "lá" hoje, chamando a si os necessitados como fez na Galiléia nos dias de sua vida na terra.
Conhecer a Deus, em outras palavras, envolve fé — assentimento, consentimento, compromisso —, e a fé se expressa em oração e obediência. "A melhor medida da vida espiritual", disse Oswald Chambers, "não é o êxtase, mas a obediência". O bom rei Josias "defendeu a causa do pobre e do necessitado [...] Não é isso que significa conhecer-me?', declara o Senhor" (Jr 22:16).
Agora, com base em todas as afirmações anteriores, finalmente aprendemos que a pessoa que conhece a Deus será mais que vitoriosa, e viverá em Romanos 8, exultando com Paulo na suficiência divina. E aqui temos de parar, pois isto é o máximo que a pessoa pode atingir no conhecimento de Deus deste lado da glória.
Aonde tudo isto nos leva? Exatamente ao centro da religião bíblica. Chegamos ao ponto em que a oração e a profissão de fé feitas por Davi no salmo 16 podem tornar-se nossas:
Protege-me, ó Deus, pois em ti me refugio. Ao Senhor declaro: 'Tu és o meu Senhor; não tenho bem nenhum além de ti' [...] Senhor, tu és a minha porção e o meu cálice [...] Bendirei o Senhor, que me aconselha [...] Sempre tenho o Senhor diante de mim. Com ele à minha direita, não serei abalado. Por isso o meu coração se alegra e no íntimo exulto [...] Tu me farás conhecer a vereda da vida, a alegria plena da tua presença, eterno prazer à tua direita.
Podemos dizer então com Habacuque diante da ruína econômica ou outra privação qualquer: "Mesmo não florescendo a figueira, e não havendo uvas nas videiras, mesmo falhando a safra de azeitonas, não havendo produção de alimento nas lavouras, nem ovelhas no curral, nem bois nos estábulos, ainda assim eu exultarei no Senhor e me alegrarei no Deus da minha salvação. O Senhor, o Soberano, é a minha força" (Hc 3:17-19). Feliz é o homem que pode dizer conscientemente estas coisas!
Mais uma vez, chegamos ao ponto onde podemos aprender a verdade nas descrições da vida cristã em termos de "vitória" e "Jesus satisfaz". Usada de maneira simples, essa linguagem pode ser mal-interpretada, pois a "vitória" não é ainda o fim da guerra, nem a fé no Deus triúno pode ser reduzida à "jesuslatria". Entretanto, essas expressões são preciosas, pois mostram a ligação entre o conhecimento de Deus, de um lado, e o cumprimento humano, de outro. Quando falamos sobre a suficiência de Deus, este é o vínculo que queremos realçar, e este vínculo é a essência do cristianismo. Quem conhece a Deus em Cristo descobriu o segredo da verdadeira liberdade e da verdadeira humanidade. No entanto, seria preciso outro livro para falar sobre isso!
Finalmente: atingimos o ponto onde podemos e devemos estabelecer as prioridades de nossa vida. Por meio das atuais publicações cristãs você pode pensar que a coisa mais importante no mundo para qualquer cristão real ou potencial é a união da igreja, o testemunho social, o diálogo com outros cristãos e com religiões diferentes, refutar este ou aquele "ismo", desenvolver uma filosofia e uma cultura cristãs, ou qualquer outra coisa que você queira. No entanto, este nosso estudo faz a concentração nessas idéias parecer uma conspiração gigantesca no que diz respeito à falta de direção. É claro que não é isso; os assuntos são reais e devem ser tratados em seus devidos lugares. Entretanto, ao prestar atenção neles, é trágico observar que muitas pessoas hoje se desviem do que era, é, e sempre será a mais alta prioridade de todo ser humano: aprender a conhecer a Deus em Cristo.
"A teu respeito diz o meu coração: Busque a minha face! A tua face, Senhor, buscarei" (Sl 27:8). Se este livro levar algum de seus leitores a se identificar mais de perto com o salmista, ele não terá sido escrito em vão.
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