Graça Machel, em Portugal, fala de Samora, de Mandela e do ...



Graça Machel, em Portugal, fala de Samora, de Mandela e do continente africano

Esteve em Lisboa para receber o diploma de membro emérito com que a Academia das Ciência quis honrar Nelson Mandela. Foi um bom pretexto para falar de dois libertadores, Samora Machel e Mandela.

António Melo, revista África 21

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Lisboa - Veio a Lisboa para receber o diploma de membro emérito com que a Academia das Ciência quis honrar Nelson Mandela. Foi um bom pretexto para falar de dois libertadores, Samora Machel e Mandela, mas também para dar testemunho de si mesma, menina de Incadine, na província moçambicana de Gaza, até se tornar em mulher-sábia no Grupo dos Anciãos da África Austral.

Foram três dias e chegaram para vencer e convencer. A afectividade da visitante, que não apaga uma determinação voluntariosa, fez dela a oradora responsável no Centro Cultural de Belém. Aí proferiu uma solene conferência sobre a esperança africana no século XXI. Depois, veio a discreta senhora que entrou nas salas da centenária Academia para falar de Nelson Mandela. Ao terceiro dia, amável, quase conterrânea, foi a doutora honoris causa na Universidade de Évora, onde invocou Catarina Eufémia, mártir da causa pela dignidade humana, num tempo em que fascismo e colonialismo faziam parelha na governação em Lisboa.

«Os desafios são enormes. Mas é possível fazer mais e melhor (…) É certo que há lados negativos, mas não se pode dizer que os 53 líderes [dos países africanos] estão de braços cruzados. Prefiro falar da África positiva, mas não iludo os aspectos negativos» – esta foi, em síntese, a mensagem que deixou na conferência inaugural, no Centro Cultural de Belém (CCB), numa iniciativa do Centro de História Contemporânea e Relações Internacionais e da ÁFRICA21, com o patrocínio da Fundação Luso-Americana.

Entre os desafios está a passagem para a sociedade do conhecimento, feita de modo sustentado, assente na pedagogia do apoio, que deve unir em parceria a União Europeia e a África com as suas instituições universitárias de pesquisa.

Do lado positivo está a democratização crescente dos países africanos, onde no quadro do Nepad (Nova Parceria para o Desenvolvimento de África), Graça Machel participa na avaliação interpares, ou seja, um Governo sujeita-se à apreciação da sua política administrativa por parte de outros dirigentes. «Oito já foram avaliados e 20 outros já aderiram a este projecto», sublinhou a oradora.

«Quanto aos erros, o Zimbabwe é um bom exemplo», explicável apenas por atavismos de reverência tradicional e apego excessivo ao poder e às suas benesses. Uma situação cuja solução democrática tarda a chegar, mas, acentuou, não escapou à observação do Grupo dos Anciãos, que já saiu da sua discrição inicial para assumir um papel interventor nas negociações entre Mugabe e Tsvangirai.

Preocupante é também a situação no Congo, designadamente na região de Kivu, onde os confrontos militares entre facções que se dizem inspiradas por conflitos étnicos não pressagiam bons tempos. Embora afastando a perspectiva de um genocídio – «Ruanda nunca mais» – não deixou de lamentar que não se tivessem desarmado as milícias que ficaram nas franjas desse conflito entre hutus e tutsis. Afirmou que a solução deve ser encontrada no quadro da SADC, e receou, acima de tudo, a formação de alianças particulares, que podem muito rapidamente descair para um amplo conflito regional, podendo levar a uma guerra generalizada a toda a África subsariana.

No capítulo negativo, a derradeira menção foi a para a Somália e para a recente lapidação de uma jovem de 13/14 anos, morta pelos familiares, acusada de adultério por ter sido violada. A afronta à dignidade da mulher é aqui muito grande, mas Graça, à crítica desesperada, preferiu apontar os sinais de «emergência de uma liderança feminina», a qual tornará impossíveis tais actos. Recordou que o seu país tinha uma primeira-ministra, Luísa Diogo, que a Libéria era dirigida por uma mulher, Ellen Johnson-Shirleaf, e que sendo esse o caminho, o da participação da mulher na esfera da governação, não podia deixar de recordar que «o Gana, o mais antigo país independente, tem 50 anos» e a África do Sul apenas há 14 anos se libertou do apartheid.

Daí a necessidade de «uma visão mais equilibrada, sem perder de vista a pedagogia do apoio», mais útil do que a destrutiva crítica do abandono.

A conferência no CCB prolongou-se por várias horas, com a participação interessada do público e a intervenção dos convidados da mesa, onde além da anfitriã, a ensaísta e antiga euro-deputada Maria Belo, estiveram a jornalista da ÁFRICA21 Nicole Guardiola e os embaixadores António Monteiro e Ana Gomes.

Foi neste período de diálogo que veio a pergunta sobre a opinião que o casal Mandela tinha sobre Barack Obama, o novo presidente dos EUA. Graça resumiu-a num apontamento tirado das recordações do dia da eleição, que ela e Nelson seguiram com atenção na TV. Quando ficou certo o resultado das urnas, Nelson bateu as palmas e, plagiando o slogan da campanha, «we can!» [nós podemos], transformou-o num elogioso «you can!» [tu podes].

"O poder corrosivo da generosidade"

Porém, o elogio de corpo inteiro a Mandela veio no dia seguinte, no cenário clássico da Academia das Ciências, onde os académicos, por feliz coincidência, debatiam, com colegas brasileiros, a influência de Machado de Assis na cultura universal, através do idioma português.

O momento alto desta cerimónia, realizada com todo o protocolo de Estado, com a presença do presidente da Assembleia da República, Jaime Gama, do primeiro-ministro, José Sócrates, e dos antigos Presidentes da República, Ramalho Eanes e Mário Soares, foi a entrega a Nelson Mandela, na pessoa da sua esposa, Graça, do título de sócio-honorário da Academia.

«Com toda a modéstia, é uma honra, é um privilégio estar nesta casa» e a estas palavras, onde se misturava emoção e responsabilidade, Graça acrescentou um suplemento de gravidade ao afirmar que através dela era a voz das mulheres do seu país e também da África que ali entravam. Passou depois a «falar de alguém com quem se está e vive», o que sinceramente é difícil, acentuou. Sobretudo quando esse outro é Nelson Mandela. Mas não se esquivou a essa dificuldade e quis deixar «algumas ideias» sobre o homem com quem nos últimos dez anos partilha a intimidade.

A primeira foi sobre o erro que persiste em «ver em Mandela um ícone e não o dirigente político». Considerou que com essa atitude se tentava envolver Mandela «num véu de santidade» e, assim, «absolverem-se» os que o incensam de seguir os seus ensinamentos. O primeiro deles, sublinhou, é que ele «simboliza a possibilidade de trazer a moralidade para a área política». Ou, como disse a concluir, Mandela actuou e actua «sempre com o objectivo de melhorar a vida dos homens; evitar mortes e pôr a política ao serviço de milhões e não milhões ao serviço da política».

No desfazer criterioso da visão «milagreira» com que alguns o querem apresentar, Graça valorizou a visão de um homem que assume a responsabilidade das suas opções e não se submete ao peso cego da autoridade, seja ela legitimada pela tradição ou pelo poder político. A fuga do Transval natal, quando aos 18 anos lhe queriam impor um «casamento arranjado», ilustra o primeiro caso e significa o corte com uma «aberração ideológica» que priva o indivíduo da sua própria vida.

Sobre a resistência ao poder sem peias da autoridade de Estado lembrou a atitude que Mandela assumiu quando, com uma falsa magnanimidade, Pieter Botha ao fim de 23 anos de prisão lhe ofereceu a liberdade condicional, sob a injunção: «renuncia à violência e serás livre». Recusou a proposta, mas fê-lo alterando os seus termos. Ao mesmo tempo que deixava claro ao carrasco que não aceitava ordens dele, pressionava o seu partido, o Congresso Nacional Africano (ANC), a não romper com as negociações, mesmo se estas pareciam impossíveis com o braço-de-ferro criado com Botha.

«Foi mais uma década na prisão», mas, constatou a sua actual mulher, foi a visão política de Mandela que se impôs. Quando Frederick de Klerck assumiu libertá-lo sem condições e todo o mundo assistiu à «modéstia» com que respondia aos aplausos, ficou a pairar uma ideia de fragilidade quanto à sua capacidade para afrontar os novos desafios.

De facto, «durante os primeiros anos de negociações houve tentativas por parte da polícia política do apartheid para complicar» as negociações. Mandela, porém, «rapidamente se despira da capa de libertador ingénuo para assumir a de negociador experimentado em negociações ríspidas». Houve um momento em que ameaçou com a saída do ANC do Executivo, com a sombra da guerra civil a pairar sobre todo o país. Contudo, ao mesmo tempo, usava «o poder corrosivo da generosidade» com quem tão pouco generoso fora para com ele.

Essa atitude de «desarmar» pelo exemplo moral teve o seu ponto alto quando no aceso da crise ele foi aclamado como o líder do país no decurso de uma grande cerimónia desportiva, onde a maioria dos adeptos eram brancos. É todo um percurso, sublinhou, que deixa as «marcas estratégicas de um dirigente político experimentado».

Catarina, minha irmã

O dia em Évora foi o das afectividades. O dia da Graça. Ela foi o centro da cerimónia e o seu discurso, mais do que uma intervenção académica, foi a fala de uma mulher que naquele lugar saúda todas as suas irmãs no sofrimento, mas, também, na luta por melhores condições de vida.

A referência foi a ceifeira Catarina Eufémia, baleada e morta por uma força policial no dia 19 de Maio de 1954, com 26 anos, quando com outras mulheres se batia em defesa das oito horas de trabalho diário. «Reencontro inúmeras Catarinas Eufémias no meu trabalho em Moçambique, na África Austral, em todo o continente africano. Mulheres de coragem, determinação, mulheres que não se vergam perante a injustiça» – disse logo no início do discurso solene de agradecimento pelo grau de doutor honoris causa, com que acabava de ser agraciada.

Em Évora, o sujeito foi a doutorada, que aludiu com prazer aos tempo de juventude, quando em Lisboa preparava a sua licenciatura em Filologia Germânica. Vivia-se o final da década de 1960, a resistência interna ao regime e a luta armada pela libertação nacional, em África, consolidava-se de ano para ano, apesar das vagas de repressão, que enchiam as prisões em Portugal e os campos de concentração nas colónias.

Graça abriu com o retrato desse tempo, aliando as duas lutas sociais no mesmo objectivo e fazendo da «pobreza campesina» o denominador comum. Dessa condição de carência resultaram inúmeras revoltas, reprimidas com ferocidade, porque essas «mulheres labutadoras» reclamavam por «pão e trabalho». Uma situação em tudo idêntica à que conhecera na sua aldeia natal, Incadine, na Gaza moçambicana.

Regressou, mais à frente, a este tema maior na sua intervenção, quando fez o balanço dos 18 anos de guerra pós-independência em Moçambique e do cortejo de miséria que deixou: «Mais de dois milhões de refugiados a regressar; cinco milhões de deslocados no interior do país; 45 por cento da rede escolar primária destruída; estradas, pontes, vias-férreas destruídas (…). Mais grave ainda: pessoas traumatizadas». Para sair desta depressiva situação foi preciso «recomeçar tudo de novo». A reconstrução fez-se a partir de três pilares: reassentamento, reabilitação, reconstrução. E o contributo de Graça Machel incidiu sobre o trabalho nas comunidades. O objectivo foi levá-las a acolher os órfãos como filhos seus, responsabilidade comunitária de todos, e dar-lhes o lar onde eles pudessem recuperar e crescer.

Daqui nasceu em 1994 a Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC), destinada às mulheres e às crianças, uma obra de que Graça Machel notoriamente se orgulha: «Alfabetizar uma mulher no seio de uma comunidade é como iniciar o trabalho de lapidação de um diamante. Ter uma enfermeira no seio da comunidade é constatar que a doença não tem de ser fatal. Ter uma estrada que liga a comunidade à sede do distrito é romper o isolamento. Ter um rádio é uma dádiva que vai revolucionar espíritos, que vai abrir novos horizontes». A estratégia da Fundação aponta para a «formação da mulher jovem a níveis médio e superior», com a intenção afirmada de com elas se constituir uma massa crítica «que irá servir de fermento para estágios mais elevados de desenvolvimento social».

Quem veio explicar o significado deste estudo e o que ele ainda hoje representa de lição prática e fonte sociológica em todo o mundo foi o seu «padrinho» na cerimónia, o académico Hélder Fonseca. Na extensa oração laudatória que proferiu, ele chamou a atenção para a mais recente publicação sobre o assunto, coordenada por Graça Machel e editada pela Unicef em 2007, em francês e inglês: Saurez-vous nous écouter? Voix de jeunes en zones de conflit [Sabereis escutar-nos? Vozes de jovens em zonas de conflito], mas sem deixar de aconselhar The Impact of War on Children, de Graça Machel, com fotos de Sebastião Salgado, e editado em 2001 pela Longres and Hursts.

A homenageada, porém, sem esquecer as crianças, quis pôr a tónica nas mulheres e no apoio de que elas necessitam para levar a cabo o colossal esforço de dar às crianças, órfãs e psicologicamente destroçadas, o afecto materno, a via por excelência para a sua reintegração social.

Qualificando-se a si própria como privilegiada, por ter podido ir à escola, quis que ecoasse naquele auditório a sua mensagem: «São ainda aos milhões em África as raparigas da minha origem que crescem sem ter a oportunidade de exercer o direito de se sentar num banco de escola. «É a elas que dedico esta homenagem. Para que cedo se lhes abra essa oportunidade. E que a oportunidade lhes revele um mundo de ciência e conhecimento que o século XXI lhes pode oferecer».

Artigo publicado na edição de Dezembro da revista África 21

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