MÓDULO DE PATRIMÓNIO - mestrados antropologia fcsh-unl



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MÓDULO DE PATRIMÓNIO

bloco 0

Apresentação

A gestão, o consumo e o recurso político ao património seguem, em Portugal, o duplo movimento impresso pela aceleração do globalismo e pelas concomitantes directivas das organizações internacionais que apostam hoje no princípio, enunciado pela UNESCO, da diversidade criativa.

Este módulo tentará, por isso, constituir-se como uma visita guiada a esse universo patrimonial que oscila, por vezes problematicamente, entre o princípio de uma universalidade proclamada e o desejo de promoção de especificidades culturais localizadas.

As tensões, contidas apenas pelos generosos e fluidos limites semânticos do termo (que podia abranger, em última análise, todas as matérias constantes dos diferentes módulos deste curso), têm tido o seu eco em Portugal, traduzindo-se nalgumas controvérsias teóricas, querelas administrativas e medidas governamentais por vezes contestadas, que acompanharam, naturalmente, o processo histórico do país.

Mais do que uma visita ao «nosso património» exibido, cada vez mais fácil de conhecer virtualmente, propõe-se então, aqui, um itinerário que percorra as reservas e pavilhões legais e administrativos desse recurso de complicada gestão.

Apesar disso, a visita colocar-nos-á, mimeticamente com o objecto em análise no registo do turismo cultural virtual. O itinerário proposto é o seguinte:

BLOCO A

O que é o património

1. Como se construiu o património?

2. De quem é o património?

BLOCO B

Retóricas e Instituições Internacionais

1. As Organizações e Directivas Internacionais: a UNESCO

a) Património Material 

b) Património Intangível ou Imaterial

c) Três movimentos importantes nas políticas patrimoniais

d) Topografia assimétrica do Património Mundial

e) Dois momentos importantes nas políticas patrimoniais

2. Outras Instâncias Internacionais: a Europa

a) A «excepção cultural» versus «diversidade» à solta

b) O que é o património europeu?

c) Património e Desenvolvimento: a alteração da paisagem

BLOCO C

Políticas Patrimoniais em Portugal

a) Arqueologia do património

b) Legislação fundamental

c) Classificando o património

d) Lista classificada e classificatória das principais instituições

e) Representação nos principais orgãos internacionais

f) Portugal e o Património Mundial

g) A democratização do património?

h) Património e Relações Internacionais

Boa visita

MÓDULO DE PATRIMÓNIO

bloco 1

O que é o património?

Embora tomemos imediatamente o património como aquilo que, de mais profundo e autêntico, nos liga às nossas raízes (e a metáfora remete para a Natureza), é claro que a noção de património não é natural, nem universal.  O conceito de património começou por ser uma construção histórica do Ocidente, logo, podemos dizer que o património é um património ocidental. 

O termo deriva do latim patrimoniu directamente associado à ideia de bem familiar. Daqui é possível tirar várias ilações que desde logo complexificam, mas também esclarecem, o debate em torno do conceito.

• Vinculam-no  a uma herança ocidental

• Inscrevem-no num registo legal de propriedade particular

• Obrigam à objectificação dos bens susceptíveis de constituir o que é património

• Inscrevem os proprietários do património numa rede analógica de parentesco

Se tomarmos o termo inglês - heritage - mais frequente na legislação internacional, a etimologia evoca os mesmos pressupostos [1].

1. Como se construiu o Património

A noção de património foi retomada para a sua acepção moderna pelo movimento romântico de oitocentos. Esse primeiro momento moderno de patrimonialização esteve fortemente associado à formação de nacionalismos e do colonialismo e concentra-se na fixação de critérios para objetificar aquilo que é susceptível de se tornar património, ou seja, de representar de forma simbólica, eficaz, uma comunidade.

É então que, segundo autores como Prats (1997), o passado (a história), a natureza, e a inspiração (o génio) criativa – forças que ultrapassam a dimensão da sociedade e, por isso, se instituem com uma aura de sagrado que lhes confere força legitimadora – se cristalizam como os critérios fundamentais para a constituição de um pool, ou repertório do que é, potencialmente, ou pode vir a ser, o património.

Os patrimónios realmente existentes são repertórios activados de referentes patrimoniais procedentes desse pool, quer se trate de monumentos classificados, espaços naturais protegidos, museus, parques arqueológicos, conjuntos monumentais ou acervos de tradição oral. Estes repertórios serão, em geral, activados por versões ideológicas da identidade [2]. Essas versões ideológicas sustentam-se, frequentemente, na ideia de autenticidade o que tem suscitado intenso debate em torno do conceito, animado por diversos autores em vários campos disciplinares [3].

Foi também o Grand Tour romântico que antecipou o tourist gaze (Urry 1990) contemporâneo, acompanhando a espetacularização e encenação progressiva da realidade, prometendo a diluição das fronteiras entre a viagem, o lazer e a educação que encontramos hoje na fruição do património, quer falemos de parques naturais, de centros históricos urbanos ou de museus.

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|The Artist in His Museum. |

|1822, por Charles Willson Peale. |

|© Museum of American Art of The Pensylvania |

|Academy of Fine Arts. |

Este processo de objetificação da Cultura e da Natureza foi acompanhado e legitimado academicamente por disciplinas que se desenvolveram no mesmo contexto socio-cultural, como a Arqueologia, a Antropologia ou as Ciências Naturais. É também nesse quadro (e desse quadro) que nasce a Museologia. Mas enquanto a ideia reificadora da cultura permanece na acepção comum do que é o património, algumas dessas disciplinas, como a Antropologia, a Museologia e a Arqueologia Social, contestam hoje essa ideia da cultura atávica (que elas próprias ajudaram a forjar), indelevelmente associada a um grupo social e circunscrita a um território.

Na verdade, a partir dos anos oitenta, as abordagens antropológicas relativas à cultura perspectivam-na, como ao património, como invenção social (a invenção da cultura – Roy Wagner; a invenção das tradições – Hobsbawm e Ranger; a invenção do passado – Lowenthal; as comunidades imaginadas – Andersen) ou, mais recentemente, como articulação (por exemplo James Clifford), como se de um corpo vivo, articulado, em constante mutação se tratasse.

Isso permite compreender melhor como a noção de património evoluiu: articulando-se com a própria cultura.

Também foi apenas no século XVIII que os europeus começaram a perceber o passado como «um País Estrangeiro». Foi por essa altura que se desenvolveu a atitude preservacionista: «o passado é um país estrangeiro cuja compleição é determinada pelas predilecções de hoje e cuja estranheza é domesticada pela própria preservação que empreendemos dos seus vestígios» (Lowenthal 1985: XVII, tradução livre).

Esta preocupação preservacionista traduzir-se-á em progressivos aferimentos relativos às teorias de conservação que primeiro se concentraram em peças isoladas emblemáticas da cultura, para logo passarem a insistir na necessidade da sua recontextualização (Quatremère de Quincy) e a afirmar o restauro como recuperação total da pureza ideal dos estilos (Viollet-le-Duc ), inspirando uma linha de actuação que ignorou, durante muito tempo, que restaurar é, também, intervir historicamente.

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Associado ao nacionalismo, o património serviu, desde o romantismo, para a construção de retóricas políticas, para a afirmação dos Estados e alimentação de sentimentos patrióticos ou regionalistas. Numa fase inicial predominou a visão monumentalista. Mas a exportação do conceito de património para fora do seu contexto de produção transformou-o, necessariamente, num conceito dialógico que progressivamente se alarga e, ao mesmo tempo, volatiliza. Este processo será, por seu turno, acentuado pela manifesta tendência contemporânea para a desdiferenciação entre artes, disciplinas e respectivas categorizações sociais (alta cultura vs baixa cultura).   

Concomitantemente, os movimentos contemporâneos de globalização activaram, como sabemos, novos processos identitários. Ao invés de alguns vaticínios em contrário, a desterritorialização inerente à globalização económica e cultural contemporânea, ao retirar à constituição identitária a dimensão nacional / territorial, leva ao inflacionamento da componente da cultura nas novas definições identitárias e espoleta uma verdadeira loucura do património (JEUDY 1990).

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|Las «legitimas» almendras de Ujue. (Navarra, |

|Espanha) |

A esta febre identitária associa-se um processo de mercadorização da cultura: ao mesmo tempo que é objectificada e reificada para fins identitários e políticos, a cultura – como a natureza – é transformada em mercadoria ou, para alguns autores, mais do que isso, em recurso que «deve ser fomentado e conservado a fim de manter a sua capacidade de desenvolvimento para satisfazer as necessidades e aspirações das gerações do presente e do futuro.» (Yúdice 2002:13, tradução livre).

Chegados a este ponto, podemos concordar com Barbara Kirshenblatt-Gimblett (1995) quando sistematiza:

• 1. O património é um modo de produção cultural do presente, com recurso ao passado

• 2. O património é uma indústria de «valor acrescentado»

• 3. O património produz o local para exportação

• 4. Uma característica do património é a relação problemática dos seus objectos com os seus instrumentos

• 5. A chave do património é a sua virtualidade, quer na presença, quer na ausência de factos e objectos (tradução livre).

2. De quem é o património?

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Assumindo-se o património como uma propriedade colectiva, quatro questões imediatas se levantam:

• De quem é o património

• Quem activa o património

• Quem tem direitos de propriedade sobre o património ©

• A quem cabe a responsabilidade de manutenção e promoção do património

No período que já muitos designam por pós-nacionalista, a retórica das relações internacionais tem enfatizado o conceito, a entidade, enquanto unidade política operativa, de «comunidade»: a Comunidade Internacional, a Comunidade das Nações, a Comunidade Europeia, os direitos das comunidades (muito embora, como demonstra Andersen em 1991, as nações assentem, também elas, na ideia de comunidade imaginada).

Dentro dessa nova gramática, o património deixou de ser exclusivamente propriedade das nações ou das regiões – entidades de definição espacial – para passar a ser propriedade da comunidade – entidades sociais.

Se é verdade que o termo é politicamente mais correcto na medida em que pode ignorar fronteiras territoriais para se suportar em mapeamentos culturais «mais coevos e autênticos», é também verdade que ele transporta consigo velhos problemas enquanto cria outros novos.

• O termo comunidade pode ser entendido como um termo compensatório num contexto de desigualdade. Como diz NOYES, «recognition is cheaper than representation or equality. Identity is a soft substitute for sovereignty…»   (2005:171.)

• Por outro lado, e de certa forma paradoxalmente, as comunidades subalternas que vêem a sua imaginação (Andersen 1991) reforçada pela retórica hegemónica que incentiva à patrimonialização, recorrem a meios de comunicação global para reforçar a sua voz local e o seu empoderamento

• Mas, finalmente, subalterna ou empoderada quem é essa comunidade? Não se trata novamente de uma entidade essencializada que se está reificando através de processos globais?

Se continuam a ser fundamentalmente os poderes políticos instituídos internacionais, nacionais e regionais – organizações como a UNESCO, o Parlamento Europeu, os Estados, os Municípios – a classificar e promover o património, é importante sublinhar a intervenção crescente, desde as duas últimas décadas, da sociedade civil – ONGs, ONGDs, Associações de Desenvolvimento Local e Defesa do Património – nesse âmbito.

É também importante sublinhar a intromissão cada vez mais evidente dos poderes económicos – sobretudo aqueles relacionados com o turismo – que tem contribuído para a crescente mercadorização da cultura e para o desenvolvimento das indústrias patrimoniais.

A mercadorização e transformação da cultura em recurso introduz no património as noções de valor, escassez, e perda de funcionalidade. No processo de atribuição de valor inerente à patrimonialização assume especial relevância, como vimos, o critério de autenticidade. Na verdade, o critério da autenticidade ajuda a perceber a cultura como um recurso raro [4].

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A arbitrariedade de critérios socialmente construídos como o de autenticidade torna os processos de patrimonialização mais permeáveis aos discursos e valores hegemónicos.

Assim sendo, ao falar-se de comunidade é preciso estar atento a quem tem, realmente, o poder e os recursos sociais para controlar os processos de objectificação cultural (Handler 1988, 2003). Quem activa as versões, os repertórios, os pools patrimoniais de determinada comunidade, região ou nação? Quem pode. Sem poder não há património. Se é verdade que o património contribui de forma evidente para o empoderamento das comunidades, é importante lembrar que, em termos legais, a última palavra cabe sempre aos poderes nacionais ou internacionais instituídos.

O processo de mercadorização da cultura, a progressiva tipificação legal do património e o desenvolvimento da legislação internacional sobre propriedade intelectual (desde os anos 50, no quadro da WIPO) envolvem o património mundial numa cerrada grelha legal de inspiração ocidental.

Três reacções, aparentemente paradoxais, respondem a isso:

• A contestação da universalidade da noção de património – e inerente concepção de  propriedade –  com base no princípio do relativismo cultural

• A adopção de uma alegação fundamentada no direito ocidental com vista à reclamação de direitos de propriedade cultural (de acordo com os modelos de propriedade intelectual) que pode manifestar-se pela exigência de direitos de autor ou pela reclamação de repatriamento de património deslocado da sua origem.

• A reacção, mais individualizada, às tensões inerentes aos articulados relativos ao património cultural, nos quais o direito colectivo entra frequentemente em conflito com os direitos de propriedade individual.

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Essas respostas são apenas algumas das que melhor evidenciam a eloquência do património nas relações internacionais, nas retóricas identitárias e outras reivindicações políticas e económicas, bem como os desafios que coloca, em diferentes registos e a diferentes escalas do globo. 

Bibliografia referenciada

APPADURAI, Arjun, 1986. (Ed) The Social Life of Things. Commoditites in cultural pesrpective. Cambridge : Cambridge University Press.

ANDERSEN, Benedict, 1991. Imagined Communities. London : Verso.

BOORSTIN, Daniel, 1961. The Image: A Guide to Pseudo-Events in America. N.Iorque: Vintage

CLIFFORD, James, 2000. "The Art of Taking: an interview - dialogue" Etnográfica, CEAS. Vol. IV, N. 2, PPS 371-389, Oeiras:Celta.

GABLE, Eric e HANDLER, Richard, 1996, “After Authenticity at an American Heritage Site”

American Anthropologist, New Series, Vol. 98, No. 3, pp. 568-578.

MacCANNEL, Dean, 1989 *1973* The Tourist: a new Theory of the Leisure Class. New York: Shocken Books

GONÇALVES, José Reginaldo “Autenticidade, memória e Ideologias Nacionais: o problema dos patrimónios culturais”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2, 1988, p. 264-275.

HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence (editors), 1992. The Invention of Tradition. Cambridge: Cambridge University Press

JEUDY, Henry Pierre (Dir.), 1990. Patrimoines en Folie. Paris: Edition de la Maison des Sciences de l’Homme.

KIRSHENBLATT-GIMBLETT, Barbara, 1995 “Theorizing Heritage”. Ethnomusicology, Vol. 39, No. 3., pp. 367-380.

LOWENTHAL, David, 1985 The Past is a Foreign Country. Cambridge: Camb.University Press.

NOYES, Dorothy, 2005 “The Judge of Solomon: global protections for traditional and the problem of community ownership” in Patrimonio cultural: politizaciones y mercantilizaciones. Sevilla

PERALTA, Elsa e ANICO, Marta (Coord), 1996, Património e Identidades: ficções contemporâneas, Oeiras: Celta.

PRATS, Ll., 1997. Antropología y Patrimonio. Barcelona: Ariel.

URRY, John, 1990. The Tourist Gaze: Leisure and Travel in Contemporary Society. Newbury Park, CA: Sage.

WAGNER, Roy , 1975. The Invention of Culture. Chicago: University of Chicago Press.

YÚDICE, George, 2002. El Recurso de La Cultura. Usos de la Cultura en la Era Global. Barcelona: Gedisa Editorial

HANDLER, R., 2003. “Cultural Property and Culture Theory”. Journal of Social Archaeology. N. 3: 353-365.

HEWISON, Robert, 1997. “La prise de conscience du Patrimoine en Grande-Bretagne” in Pierre Nora (org.), Science et Conscience du Patrimoine. Paris : Editions du Patrimoine.

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[1] Apesar de a diferenciação de termos assentar também no facto de a maior parte dos bens que constituem o património do Reino Unido serem, na realidade, propriedade privada, adquirida por herança. (Ver Hewison 1997)

[2] Ver, por exemplo, a obra conjunta organizada por Peralta e Anico 2006.

[3] (José Reginaldo Gonçalves, a propósito de dois estudos de caso no Brasil, faz uma resenha acessível desse debate). No domínio da autenticidade como mobilizadora da viagem e do turismo moderno veja-se Boorstin (1961) e MacCannel (1973), Mas a Conferência de Nara, organizada em 1994 em cooperação com a UNESCO, o ICCROM e o ICOMOS e regula e fixa a ideia de autenticidade para efeitos de patrimonialização.

[4] Sobre a importância da autenticidade num período de pos-autenticidade veja-se aqui Gable e Richard, 1996.

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MÓDULO DE PATRIMÓNIO

bloco 2

Retóricas e Instituições

1. As  Organizações e Directivas Internacionais: a UNESCO

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a) Património Material 

Continuando a política universalista inspirada pelos horrores e pela fragmentação do pós-guerra já enunciada na Convenção para a Protecção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, Haia, 1954 [documento em pdf] a UNESCO começa a desenvolver medidas relativas ao Património que culminam com a aprovação  da Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural da UNESCO, Paris, 1972 [documento em Word].

Esta convenção, elaborada com a consulta do ICOMOS [1], parte, entre outros, do princípio de que «a degradação ou o desaparecimento de um bem do património cultural e natural constitui um empobrecimento efectivo do património de todos os povos do mundo», e é nesse sentido que, desde logo, institui a Lista do Património Mundial.

Duas ideias interessantes a reter deste momento:

• Na Convenção de 1972, o património natural e cultural surgem como indissociáveis, sujeitos a legislação comum, e  isso serve, de alguma forma, o propósito de naturalizar, logo,  universalizar o património cultural  

• O que fica, então, definido como património cultural é um património edificado, integrado na natureza, fixo e substantivo que corresponde à materialização de um certo tipo de cultura, que se aproxima frequentemente daquilo que é entendido como a «alta» cultura ocidental

b) Património Intangível [2]

Já em 1972 a Bolívia propôs que a categorização de tradição oral se incluísse na de património. Mas só em 1989 se adoptará a primeira Recomendação para a Salvaguarda da Cultura Tradicional.

Após várias medidas como a dos Tesouros Humanos Vivos e dos Livros das Línguas em Perigo (1993) a UNESCO cria, em 1998, a distinção internacional das Obras Primas do Património Oral e Imaterial da Humanidade.

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|© Mongolian National Center for Intangible Heritage | |

|The Traditional Music of Morin Khuur ( Mongolia ) | |

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A ideia da protecção do património imaterial culminará com a aprovação da Convenção para a Salvaguarda do Património Imaterial (Paris, 2003) e a posterior Declaração de Yamato (2004).

A Convenção define cinco domínios principais de manifestação do património cultural intangível:

• Tradições e expressões orais, incluindo a língua como veículo de património intangível,

• Artes performativas

• Práticas Sociais, rituais e eventos festivos

• Conhecimentos e práticas relativas à natureza e ao universo

• Ofícios tradicionais

Se já a definição de património cultural parece demasiado estreita e encarcerante, que dizer da que ambiciona definir e classificar…o intangível?

c) Três movimentos importantes nas políticas patrimoniais internacionais

As políticas universalizantes da UNESCO em matéria de património têm seguido, sobretudo a partir dos anos noventa, três movimentos coadjuvantes:

• um no sentido da «volatilização» daquilo que é susceptível de ser considerado Património Mundial e outro

• outro no sentido da difusão europoexcêntrica e popularizante das classificações de Património Mundial

• e outro, talvez menos explícito, mas igualmente sensível, no sentido da valorização do pluralismo e diversidade cultural, não apenas enquanto prática social e política, mas também enquanto recurso patrimonial.

O primeiro movimento tenta impulsionar o segundo, na medida em que a implementação da categoria do património imaterial visa, entre outras coisas, equilibrar a visão eurocêntrica e mais elitista inicial do património. O terceiro, acompanhando formas emergentes e transnacionais da cultura, coloca novos desafios aos Estados.

d) Topografia assimétrica do património Mundial

Ainda assim, se olharmos hoje o mapa de distribuição dos 851 sítios declarados património da humanidade pela UNESCO (660 culturais, 160 naturais e 25 mistos em 141 Estados membros), deparamos com uma mancha densa na Europa contrastante com pequenos pontos dispersos na Ásia, África e América (à excepção de uma maior concentração no México; a verdade é que a Europa tem ainda mais sítios classificados do que a África e a Àsia juntas).

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|UNESCO World Heritage Map |

|Visite/clique em sítios declarados património da humanidade para mapa actualizado e informação |

|detalhada |

e) Dois momentos importantes nas políticas patrimoniais

O alargamento do espectro das tipologias do património teve que ver, por um lado, com alterações culturais da percepção do património e, por outro, com a constatação da importância política e económica da cultura nas políticas de desenvolvimento. Isso ficou patente em dois «momentos» discursivos da UNESCO

• People First[3]

Nos finais da década de oitenta enceta-se a ideia de desenvolvimento bottom-up, destacando a sociedade civil e as ONGs como protagonistas, promovendo-se o local com dinheiros globais, e apelando-se à descentralização e à participação.

Nesse quadro, o património surge como recurso para o desenvolvimento e são fortemente apoiadas «as indústrias do património», num contexto em que o turismo se populariza. As metas da indústria do património definidas pela UNESCO por altura da proclamação do Ano Internacional do Património Mundial em 2002 são a «reconciliação» e o «desenvolvimento».

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• Our creative diversity[4]

Em 1996, uma nova ética global é proposta num documento assinado por Pérez de Coéllar apelando ao empenho e compromisso com o pluralismo, ao incentivo à criatividade como forma de empoderamento, à resposta aos desafios e rentabilização dos novos media, às questões relativas ao género e cultura, às crianças e jovens e à herança cultural. Convém reter as recomendações relativas aos bens culturais contidas no documento – revistas e aumentadas em documentos posteriores (como a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural de 2001) – dado o impacto que tiveram nas políticas patrimoniais subsequentes e no intenso debate que provocaram nos meios políticos e na academia (ver Eriksen 2001 e Wright 1998).

    

2. Outras Instâncias internacionais: a Europa

Outras instâncias internacionais têm acompanhado e dialogado com estes pressupostos da UNESCO, entidade que, em todo o caso, tem assumido posição hegemónica no que respeita às directivas mundiais relativamente ao património.

a) «excepção cultural» versus «diversidade» à solta [5]

Já na Convenção Cultural Europeia de 1954 que comemorou 50 anos na Cimeira de Faro - se menciona a necessidade de intervenção no âmbito do património europeu e, em 1993, o Tratado da União Europeia estabelece bases legais para isso (Visite european-heritage e veja os textos básicos do Conselho da Europa).

Tal como a UNESCO, a Comunidade Europeia começa por debruçar-se sobre o património construído, numa lógica conservacionista. A Carta Europeia do Património Arquitectónico (1975) afirma já, no entanto, que o património «é formado pelos conjuntos que constituem as nossas cidades e as nossas aldeias tradicionais, integradas nos seus ambientes natural e construído». Desde então a Europa tem intervindo sobre o património móvel e imóvel, lidando com os aspectos culturais e económicos e orientando a sua acção de acordo com as duas principais linhas de acção também preconizadas pela UNESCO: o património como veículo de identidade cultural e como desenvolvimento económico.

Apesar disso, o parlamento europeu tem manifestado recentemente os seus receios relativamente a uma concepção demasiado mercantilista da cultura que possa emanar da Convenção sobre a Protecção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais.

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|Foto: em 2007 |

O Parlamento Europeu mostra sua preocupação no que respeita à compatibilidade da futura convenção com as regras do mercado internacional, alegando que, apesar da «dupla natureza dos serviços e dos produtos culturais enquanto bens económicos e culturais, estes não podem ser equiparados a uma simples mercadoria» (Ver Resolução do Parlamento Europeu sobre Rumo a uma convenção sobre a protecção da diversidade dos conteúdos culturais e das expressões artísticas). Ironicamente, esta resolução está ameaçada pela conformidade com o princípio da «diversidade cultural», subscrito pela UE, que leva a que, em matéria de cultura, cada membro/Estado se represente por si próprio, o que pode comprometer uma postura unânime da Europa face à Convenção a propor pela UNESCO [6]. 

b) O que é o património europeu?

Embora a preocupação da Europa em encontrar legitimidade cultural para o seu projecto político não seja de agora, a verdade é que tendências recentes, como a progressiva imigração de grupos culturais distintos e a concorrência de países como a Turquia à integração na comunidade, a concomitante mediatização de retóricas milenaristas do «choque de civilizações» e, como vimos, a lógica mercantilista de «livre circulação» das indústrias culturais, têm pressionado o desenvolvimento de medidas no sentido da afirmação de um património europeu.

A esse respeito lembrem-se, ainda, as acesas polémicas relativamente à tradução daquilo que deveria considerar-se a herança cultural comum, na discussão do texto da Constituição Europeia.

A Convenção Quadro do Concelho da Europa sobre o valor do Património Cultural para o Desenvolvimento da Sociedade assinada em 2005 em Faro será, talvez, o mais recente testemunho dessa preocupação identitária da Europa.

a.

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c) Património e Desenvolvimento: a alteração da paisagem

A outro nível, as políticas económicas, particularmente a política agrária comum, preconizou uma mudança radical para o espaço rural europeu apelando à diversificação socio-económica em que o património surge como matéria prima para um novo modelo de ruralidade.

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Países como a Espanha e Portugal aderiram, desde os anos noventa, a esse modelo implementado pelos programas de fundos europeus (FEDER e PRODER) que inflamaram a febre patrimonial, alteraram profundamente as paisagens e criaram nichos de mercado para os produtos rurais. O turismo acompanhou o processo.

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Mas as indústrias de património e a excessiva turistificação podem converter-se em agentes de homogeneização e a administrização e burocratização do património ameaçam o seu maior valor: apesar do perfil do turista ser múltiplo e estar em mudança, a autenticidade ainda é uma atracção e ela não se coaduna facilmente com uniformes nem gabinetes.

Bibliografia referenciada

ERIKSEN, T. H., 2001. “Between universalism and relativism: a critique of the UNESCO concept of culture”, in Culture and Rights. Anthropological Perspectives. COWAN, J. K., DEMBOUR, M-B. e WILSON, R. A. pps 127-149. Cambridge: Cambridge University Press

WRIGHT, Susan, 1998, “The ‘Politization of Culture’”, Anthropology Today, Vol. 14, nº 1

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[1] Outras Organizações Internacionais consultivas são o International Center for the Study of Preservation and Restoration of Culture Proprerty, ICCROM  e The World Conservation Union , IUCN.

[2]  Ou imaterial...na versão francesa. A polémica em torno do conceito começa logo relativamente à sua designação.

[3] CERNEA, Michael M. (1985), 1991. Putting People First: sociological variables in rural development. Word Bank. New York , Oxford University Press.

[4] Our Creative Diversity. Report of  the World Comission of Culture and Development. UNESCO 1996.

[5] APPADURAI, Arjun, 1996. Modernity at large. Cultural Dimensions of Modernity. Minneapolis : University of Minesota Press.

[6] Enquanto a França defende o princípio da «excepção cultural», que sublinha que a liberdade dos Estados para definir e executar políticas para preservar a diversidade das expressões culturais deverá ficar inscrita no direito internacional, o  tema desagrada os Estados Unidos, que vêem nisso uma lógica proteccionista, e provoca reservas de países como a Grã-Bretanha, Japão, Israel e Austrália.

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MÓDULO DE PATRIMÓNIO

bloco 3

Políticas patrimoniais em Portugal

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À semelhança do resto da Europa, Portugal tem regido as suas políticas patrimoniais de acordo com os princípios gerais emanados da UNESCO, tendo aderido à Convenção inicial em 1979 (DL nº 49/79). E se é verdade que do ponto de vista das políticas de salvaguarda e conservação não nos encontramos entre os países de ponta, podemos, contudo, sublinhar algum pioneirismo nacional em matéria da primeira legislação relativa ao Património.

a) Arqueologia do Património

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Segundo o Instituto Português do Património Arquitectónico (ver legislação fundamental), o primeiro registo regulamentar relativo ao Património terá sido o alvará régio de 20 de Agosto de 1721 em que D. João V atribuiu à Real Academia de História a tarefa pela qual: "daqui em diante nenhuma pessoa de qualquer estado, qualidade e condição que seja, [possa] desfazer ou destruir em todo nem em parte, qualquer edifício que mostre ser daqueles tempos ainda que em parte esteja arruinado e da mesma sorte as estátuas, mármores e cipos."

Mas é costume atribuir-se a Alexandre Herculano, impulsionador da Sociedade Conservadora dos Monumentos Nacionais (1840), o papel de fundador no desenvolvimento da ideia de património em Portugal, que, tal como noutros sítios, não escapando à lógica claramente monumentalista e nacionalista das primeiras aproximações, começou por se circunscrever a uma perspectiva histórica e arqueológica.

O património, ou melhor dizendo, os «monumentos pátrios» [1] começaram por ser domínio da Real Associação dos Arquitectos e Arqueólogos (1863) responsável, em 1880, pela primeira listagem de monumentos a classificar no país.

Em todo o caso, e apesar de já em 1907 se haver procedido à classificação de monumentos considerados emblemáticos (Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém em Lisboa, Mosteiro de Alcobaça, Mosteiro da Batalha, Convento de Cristo em Tomar, a Sé de Lisboa, de Évora, Coimbra e outras), será apenas com a República que encontraremos a primeira legislação efectiva, relativamente à administração, conservação e restauro.

Apurando a ideologia nacionalista, o Estado Novo usará e abusará do património como forma de propaganda, colocando-o, como as artes, ao serviço da nação. Depois de, numa primeira fase ter adoptado o esqueleto legislativo da República, o regime ditatorial, já sob a influência de Salazar, lança as bases do primeiro edifício normativo respeitante ao património. Ao mesmo tempo, e dentro da lógica da purificação estilística e do fachadismo propagandista que o acompanhou, o Estado Novo funda em 1929 a Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais [2].

O recurso continuado ao património - não apenas monumental e edificado, mas também artístico e popular - e os esforços pedagógicos e estetizantes da política do espírito terão a sua expressão final no articulado do Regulamento Geral dos Museus de Arte, História e Arqueologia de 1965. E ainda que a vocação educativa dos museus, referidos no decreto como «instrumentos de formação de espírito», tenha ficado por cumprir, o que é facto é que o Estado Novo burilou indelevelmente, sobretudo pela mão exímia de António Ferro, o imaginário patrimonial do portugueses.

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| |Castelo de Guimarães: Consagrado pelo|

| |Estado Novo como Berço da Nação e |

| |Altar da Pátria |

Isto não significa que, pelo menos nalguns domínios, Portugal tivesse ficado imune às directivas internacionais que, entretanto, ia ratificando, chegando a ter papel activo na elaboração de alguns deles, como por exemplo na Carta Internacional sobre a Conservação e Restauro dos Monumentos e Sítios (Carta de Veneza).

Assim sendo, é possível questionar, por exemplo, se a candidatura a Património Universal de Guimarães – encenada e celebrada como berço da Nação e altar do povo durante o Estado Novo e depois sujeita, em 1979, a um elaborado Plano de urbanização em conformidade com o proposto pela UNESCO – teria tido o mesmo sucesso, em 2001, sem essa estratigrafia de investimento patrimonial. É que o passado da patrimonialização também acrescenta valor – embora não necessariamente positivo - ao passado do património.

b) Legislação fundamental

A listagem de legislação fundamental relativa ao património indicada na página do extinto IPPAR - Instituto Português do Património Arquitectónico para o pós-25 de Abril refere

• A Constituição da República que, no seu artigo 78, incumbe, designadamente, ao Estado garantir a preservação de valores culturais de interesse histórico ou artístico e promover, em colaboração com as autarquias locais a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, nomeadamente no plano arquitectónico e da protecção das zonas históricas, e em colaboração com todos os agentes culturais promover a salvaguarda e a valorização do património cultural, tornando-o elemento vivificador da identidade cultural comum.

• A Lei n.º 13/85, de 6 de Julho, a qual, por nunca ter sido regulamentada, pouco contribuiu para a preservação e salvaguarda do património edificado, facto agravado com a ausência de um inventário sistemático do património, o que impediu que o Estado promovesse a salvaguarda e valorização do património cultural disperso por todo o território nacional. Sublinhe-se, no entanto que o seu articulado contempla a descentralização das políticas do património por delegação nos municípios.

À parte isso, a legislação reúne uma série de Decretos, Acordãos, Despachos e Portarias (elencada no mesmo site do IPPAR – muito embora este tenha sido absorvido pelo IGESPAR, IP, Ver adiante) referentes a normas de protecção e conservação de monumentos, intervenções em imóveis classificados, criação do Prémio de Defesa do Património Cultural e definição das atribuições e competências para as autarquias locais (para uma análise crítica mais detalhada e fundamentada da legislação anterior e da concepção de património na Constituição ver: Da protecção do Património Cultural, por Carlos Adérito Teixeira).

Não será, talvez, arriscado dizer que, até à publicação da Lei de Bases do Património n.º 107/2001 que estabelece as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural, o vocabulário jurídico e institucional relativo ao património se articulava, quase exclusivamente em torno do património construído e da gestão da conservação.

É nesta lei, que estabelece «as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural», que pela primeira vez surge juridicamente uma concepção mais alargada de património, a conservar e valorizar e que, embora timidamente (no artigo 91 e 92), se contemplam os «bens imateriais» [3].

A partir daí, a legislação avança classificando e tipificando discretamente outro tipo de património até aí não contemplado, como é o caso da gastronomia «considerada valor integrante do património cultural português», pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 96/2000, de 26 de Julho. [4]

O Programa do XVII Governo Constitucional concede alguma importância às políticas patrimoniais

«(...)  prioridade à regulamentação do quadro jurídico global sobre o património, aprovado nos últimos quatro anos e à promoção da gestão integrada do património, sob a direcção do Ministério da Cultura. (...) Paralelamente, intensificar-se-á o processo de inventariação do património cultural, com coordenação central própria. O Centro Português de Fotografia deve concentrar-se nas funções que já hoje são suas nos domínios do património e da produção, passando a área dos apoios à criação para a competência do Instituto das Artes.

Serão valorizadas as missões do Instituto Nacional dos Arquivos/Torre do Tombo e do Instituto Português de Conservação e Restauro. A política arquivística carece, contudo, de reorientação, transversal como é a todos os sistemas de informação de entidades públicas e privadas. Outro quadro normativo geral que pede revisão urgente é o regime de depósito legal, sob pena de se perder património precioso, nomeadamente em suporte digital. As funções patrimoniais da Biblioteca Nacional e da Cinemateca Nacional serão respeitadas, mas uma área hoje em défice merecerá atenção reforçada: a preservação e valorização do património fonográfico, com vista à futura criação de uma estrutura arquivística especializada neste domínio.»

Em 14 de Fevereiro de 2007, cumprindo-se o anunciado em programa do Governo, foi finalmente apresentada a Comissão nomeada para regulamentar a Lei do Património que, segundo a Ministra da Cultura, assume «uma perspectiva integrada e global do conceito de Bem Cultural (...) de acordo com as permissas já contempladas na nossa Convenção Quadro do Concelho da Europa sobre o valor do Património Cultural para o Desenvolvimento e da Sociedade que foi assinada em Faro, durante a Conferência Interministerial do Conselho da Europa decorrida em Outubro último [2006] sob a égide do governo português» (Ver bloco 2, ponto a.). Espera-se a promulgação da Lei para 2008….

Entretanto, também a Presidência da República tem recorrido à retórica e performance patrimonialista realçando o papel social e identitário do património nas celebrações do 10 de Junho e promovendo roteiros do património.

c) Classificando o património

A natureza dinâmica e a relevância política do património, bem como a necessidade de articulação da sua submissão a directivas e apoios internacionais e resposta a interesses nacionais e regionais, explicam o constante reajustamento de tutelas a que tem sido sujeito.

A seguir ao 25 de Abril, um Estado pós-revolucionário não podia ter nas suas prioridades controlar uma efervescência patrimonial que acompanhava um associativismo emergente e contrastava com – ou melhor contestava – a monumentalização da cultura nacional empreendida pelo Estado Novo.

Até aos anos oitenta, foi a Direcção-Geral do Património Cultural que concentrou as competências em matéria de monumentos, bibliotecas, arquivos e museus.

E se foi o governo de Maria de Lurdes Pintassilgo que proclamou o desejo de «quebrar a tradicional separação entre a cultura erudita, a cultura de massa e a cultura popular, institucionalizando meios de interpenetração entre essas diferentes áreas (e de ) igualmente, superar a dicotomia entre a cultura entendida como sedimento ou património adquirido e as expressões vivas da criação cultural de hoje», foi já o governo (VI) de Sá Carneiro que, afirmando pretender «a preservação efectiva do património cultural português e o estímulo à mobilização crescente e diversificada das energias culturais da Nação, pela intervenção não só do Estado, mas sobretudo pela participação activa das autarquias locais, fundações de utilidade pública, associações culturais, de recreio e juvenis, bem como da escola e da comunicação social» criou, em 1980, o Instituto Português do Património Cultural (IPPC),

A intenção – contrastante com um discurso aparentemente descentralizador – parecia ser a de concentrar a responsabilidade pela coordenação das acções de salvaguarda e valorização do património cultural português no que ao Estado competia assegurar como direito dos cidadãos, responsabilidade que até então se encontrava dispersa por diversos organismos.

Mas não tardou a que o património se tornasse demasiado para uma instituição só: a Biblioteca Nacional, autonomizou-se logo em 1980, a Torre do Tombo em 1985, os arquivos foram integrados no Instituto Português de Arquivos em 1988. Em 1990 o IPPC é sujeito a uma derradeira restruturação, sendo-lhe, no ano seguinte, retirada a tutela dos museus com a criação do Instituto Português de Museus (IPM), para onde vai também o Arquivo Nacional de Fotografia e o Instituto José de Figueiredo .

Em 1992 o IPPC é subsituído pelo Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico -IPPAR(Dec-Lei 106-F/92, de 1 de Junho), mas também este, logo dois anos depois, é sujeito a reestruturação de modo a poder incorporar a valência do restauro e dos «bens imóveis», passando a ter novamente sob a sua alçada o Instituto José de Figueiredo. Em 1997, é a vez da arquelogia se autonomizar no IPA (Instituto Português de Arqueologia) e o restauro se desvincular definitivamente para se colocar sob a tutela da Escola Superior de Restauro e depois, em 2000, do Instituto Português de Conservação e Restauro.

Daqui para a frente o organigrama das instituições tutelares do património sofre constantes flutuações, com promessas e anulações de fusões, reivindicações de competências e responsabilidades, sendo os principais protagonistas da querela o IPPAR, o IPA , o IPM e a DGMNE.

O último recorte institucional resultou do PRACE (Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado).

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d) Lista classificada e classificatória das principais instituições contemporâneas

• O IGESPAR

O Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, I. P., no âmbito do programa PRACE, resulta da fusão do Instituto Português do Património Arquitectónico - IPPAR - e do Instituto Português de Arqueologia – IPA - e incorpora ainda parte das atribuições da extinta Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais – DGEMN. O IGESPAR, tem por missão a gestão, a salvaguarda, a conservação e a valorização dos bens que, pelo seu interesse histórico, artístico, paisagístico, científico, social e técnico, integrem o património cultural arquitectónico e arqueológico classificado do País.

• Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, ICNB

Dependente do Ministério do Ambiente, Ordenamento do território e Desenvolvimento Regional, o ICNB é o Instituto responsável pelas actividades nacionais nos domínios da conservação da natureza e da gestão das áreas protegidas. O ICNB é responsável pelo Sistema de informação do Património Natural SIPNAT que visa a «actuação concertada, a nível nacional e internacional, relativamente à compilação, tratamento e disponibilização em tempo útil, de informação sobre o Património Natural.»

• Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, DGLB

O Decreto-Lei n.º 90/97 aprova a Orgânica do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas que sucede ao Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro resultante da fusão anterior entre Instituto Português do Livro e da Leitura e a Biblioteca Nacional.

No âmbito do Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE), cria-se, em 2007, a Direcção Geral do Livro e das Bibliotecas (DGLB).

O IPLB tem como missão «definir e assegurar, a nível nacional, a coordenação e execução de uma política integrada do livro não escolar e das bibliotecas».

• Direcção Geral de Arquivos DGARQ

Com a entrada em vigor da nova orgânica do Ministério da Cultura é criada a Direcção Geral de Arquivos que integra as atribuições até aqui cometidas ao Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (IAN/TT) e ao Centro Português de Fotografia - CPF -, os quais são extintos sendo objecto de fusão,mantendo, todavia, as respectivas identidades.

• Instituto dos Museus e da Conservação, IMC

Resulta da fusão, no âmbito do PRACES, do Instituto Português de Museus – IPM - , , com o Instituto Português de Conservação e Restauro – IPCR. A junção, num mesmo instituto, de competências na área dos museus e na área da conservação e restauro do património cultural móvel visa criar condições para que, de forma crescente e progressiva, se vá afirmando cada vez mais como um serviço de referência, normativo e regulador, difusor de boas práticas e novas metodologias, em ambas as áreas.

• Centro Nacional de Cultura, CNC

O Centro é uma Associação Cultural fundada em 1945, durante o Salazarismo, como um espaço de encontro e de diálogo entre os diversos sectores políticos e ideológicos, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Desde o 25 de Abril de 1974, (...) tem-se esforçado por transmitir uma noção de cultura sem fronteiras, quer disciplinares, quer geográficas. (...) Grande parte da sua acção é dedicada à defesa do património cultural português, à divulgação do papel desempenhado pela cultura portuguesa no mundo, e à actualização das suas relações com outras culturas.

e) Representação nos principais orgãos internacionais

O voto final no programa do XVII governo, item «valorizar a cultura», é o de «que Portugal tenha voz activa nas organizações e actividades internacionais em prol da cultura, designadamente no contexto da União Europeia, do Conselho da Europa e da UNESCO».

Para além da normal representação nas organizações, Portugal ocupa lugares institucionais específicos no que respeita ao património e sua gestão internacional

• Sublinhe-se algum pioneirismo nessa representação internacional, tendo em conta a participação (já referida), logo em 1964, na redacção da Carta de Veneza, documento inspirador (embora constestado) de todo o processo de patrimonialização europeia

• Portugal foi eleito em 1999 para integrar o Comité da Convenção para o Património Mundial da UNESCO – orgão  a quem compete a implementação da Convenção e a decisão sobre as inscrições na Lista do Património Mundial.  O seu mandato terminou em 2005.

• O Centro Nacional de Cultura é, desde Janeiro 2001, coordenador internacional das Jornadas Europeias do Património. (...) As JEP são uma actividade conjunta do Conselho da Europa e da União Europeia. Iniciaram-se em França em 1984, a nível nacional, e a partir de 1991 adquiriram uma dimensão europeia sob a égide do Conselho da Europa.

f) Portugal e o Património Mundial

Dos 851 bens inscritos na Lista do Património Mundial, 13 encontram-se em território nacional. Nos últimos 25 anos Portugal viu 12 dos seus bens culturais e um natural incluídos na Lista do Património Mundial, colocando-se assim entre os 15 países com mais bens inscritos)

1983 Centro Histórico de Angra do Heroísmo nos Açores

1983 Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém em Lisboa

1983 Mosteiro da Batalha

1983 Convento de Cristo em Tomar

1988 Centro Histórico de Évora

1989 Mosteiro de Alcobaça

1995 Paisagem Cultural de Sintra

1996 Centro Histórico do Porto

1998 Sítios Arqueológicos no Vale do Rio Côa

1999 Floresta Laurissilva na Madeira

2001 Centro Histórico de Guimarães

2001 Alto Douro Vinhateiro

2004 Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico

No Registo da Memória do Mundo, programa criado pela UNESCO em 1992 para a salvaguarda do património documental da humanidade, estão inscritos

2005. A Carta de Pêro Vaz de Caminha

2007. O Corpo Cronológico (Colecção de Manuscritos das Descobertas Portuguesas)

2008. Encontra-se em preparação conjunta por Portugal e Espanha a candiatura do Tratado de Tordesilhas.

Na Lista Indicativa para Património da Humanidade encontram-se ainda

1996. Furna do Enxofre (Açores)

1996. Centro Histórico de Santarém

1996. Algar do Carvão

2000. Cidade e Serra do Marvão

2002. Ilhas Selvagens (Madeira)

2004. Arrábida

2004. Universidade de Coimbra

2004. Parque Florestal das Carmelitas Descalças (Buçaco)

2004. Fortificações de Elvas

2004. Palácio de Mafra, Convento e Tapada

2004. Baixa Pombalina de Lisboa

2004. Costa Sudoeste, entre S. Torpes e Burgau

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No que respeita as Obras-Primas do Património Oral e Imaterial, Portugal não viu ainda nenhuma das suas propostas proclamadas pela UNESCO, mas a Lista Indicativa incluía, em 2000

• Impérios dos Açores

• Representação do Auto de Floripes, em Viana do Castelo

• Bailinhos de Carnaval da Ilha Terceira

• Fado

• Doçaria tradicional portuguesa

• Cante Alentejano (ver filme)

E, mais recentemente, as candidaturas multinacionais do

• Património Imaterial Galaico-Português (ver filme) retomada em 2007 e da

As candidaturas à Lista do Património Cultural Imaterial apenas poderão ser formalizadas após a ratificação da Convenção por Portugal, o que o Concelho de Ministros propôs já em Agosto de 2007. A resolução deverá agora ser submetida à aprovação da Assembleia da República.

g) A democratização do património?

Uma apresentação assim de listas de instituições e bens culturais classificados acaba por reproduzir a visão estreita do património que se quer desconstruir, tanto neste texto, quanto, alegadamente, na própria legislação nacional e internacional que, paradoxalmente, acaba por acumular tipificação e reificação.

Na verdade, e falando do caso português, a lei, logo desde 1985, descentraliza as políticas do património e atribui responsabilidades aos municípios na conservação e promoção do património. Por essa altura existiam já múltiplas Associações de Defesa do Património, muitas das quais tinham nascido do ímpeto descentralizador do pós 25 de Abril e dos posteriores impulsos para a regionalização, que exaltavam os direitos dos cidadãos sobre os seus bens culturais.

Assim, se é verdade que a defesa do património entrou em Portugal com a XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura do Concelho da Europa(1983), a verdadeira febre do património deflagrou em Portugal a partir dos anos noventa, e em grande medida por razão do processo de regionalização e dos incentivos ao desenvolvimento regional. A inflamá-la estava algum desconforto identitário devido à entrada de Portugal na comunidade Europeia.

Podemos encontrar nestas formas de associativismo, que espelha a emergência da sociedade civil em Portugal, algumas semelhanças com outras, mais elitistas, como as invectivas preservacionistas de Alexandre Herculano do romantismo nacionalista ou, mais tarde, com as sociedades de defesa e propaganda nacionalista do Estado Novo (ver Custódio: 1993) ou, ainda mais tarde, com a tendência, sempre elitista, de descoberta da autêntica cultura popular (sobretudo o artesanato) pela intelectualidade vanguardista da oposição ao regime. Mas, como lembra Furet (1996), o movimento de patrimonialização contemporâneo é social e identitário, enquanto que os que o precederam foram, primeiro, de natureza aristocrática e moderna, depois, revolucionária e romântica e, mais tarde, republicana e nacional.

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A transição não se faz facilmente. Por exemplo mexer nos símbolos nacionais como João Cutileiro fez em Lagos ou Guimarães, torna-se complicado. A concepção de cultura «desarticulada» como os corpos e armaduras do seu D.Sebastião (1973) e do seu D. Afonso Henriques (2001) não são de fácil popularização, sobretudo quando a imagética patrimonial do Estado Novo se mostrou tão eficaz na colonização dos nossos imaginários.

Os novos meios de comunicação aceleram, no entanto, sem dúvida, a democratização do património e multiplicam o acesso aos meios de decisão em relação àquilo que deve ser considerado património. No Portal do Cidadão é hoje fácil aceder à página fornecida pelo IGESPAR e aos requerimentos para instrução de processos de classificação do património cultural e zonas de protecção e muito mais operações e consultas relativas ao património.

Na mesma página se informa que o processo de classificação de um bem imóvel pode ser desencadeado pelo Estado, pelas Regiões Autónomas, pelas Autarquias Locais, pelo Instituto Português do Património Arquitectónico (IGESPAR), ou por qualquer Pessoa Singular ou Colectiva. Mas sabemos que o processo de uma eventual classificação apenas começa aí...

A democratização dos processos pela internet parece beneficiar sobretudo o património que, pela sua maior volatilidade e pela inexistência de «organismos de tutela», carece de classificação institucional. Nesse sentido, podemos, talvez, falar de uma maior capacidade de empoderamento do património imaterial que aproveita o vazio institucional para se afirmar...por baixo, muitas vezes a contra-gosto da (ainda) alta cultura.  (Ver, por exemplo folclore-online).

Assim, e a despeito das queixas da academia relativamente à falta de participação da sociedade civil (e da própria academia) nos processos de definição legislativa relativamente à definição do património imaterial (Ramos 2003), é talvez no registo desse tipo de património que encontramos hoje uma maior participação social.

Desde os anos noventa que alguns episódios têm também suscitado a opinião pública, dinamizado debate mediatizado mais aceso e, nalguns casos, feito (ou desfeito) lei.

As gravuras paleolíticas do Vale do Coa recorreram às instâncias internacionais e ganharam voz pública nacional suficiente para impedir a construção da barragem.

A transmissão de uma reportagem sobre os touros de morte em Barrancos, no ano de 1995, desencadeou a discussão de leis adormecidas e levou a que o articulado que proibia os touros de morte (Lei n.º 12-B/2000) e protegia os animais (Lei n.º 92/95) fosse alterado em nome da tradição e da cultura popular [5].

Mais recentemente, a casa de Almeida Garrett, mereceu também a mobilização da sociedade civil que, desta vez, não conseguiu contrariar a decisão estatal de demolição.

Estes episódios levantam questões pertinentes relativamente à tutela das competências para emissão de parecer relativamente ao «valor simbólico» dos «lugares de memória»...[6]

Também os media publicam cada vez mais reportagens de fundo sobre questões patrimoniais, em tom de zelo pelo interesse público. Em 2005, a revista Visão voltou para reavaliar «oito casos de património português» que havia visitado em 1995 [7]. Por seu turno, o Expresso denuncia o estado da «cidade romana desaparecida» [8], junto à Ria Formosa, expondo a «grande comédia da burocracia cultural».

A julgar pelos números públicos, também os visitantes do património parece terem aumentado nos últimos anos. No início de 2004, os monumentos do então ainda IPPAR registaram o maior número de entradas desde que havia registos nos locais da sua dependência. Os monumentos que observaram maiores subidas foram o Mosteiro de Tibães, o Convento de Cristo em Tomar, o Mosteiro da Batalha, Mosteiro dos Jerónimos e o Mosteiro de Alcobaça. Podem ler-se estes dados como testemunho do fascínio atávico do património histórico e nacional (ou nacionalista)? Mas, e a atracção de Tibães? Não lhe advêm, também, do valor acrescentado do cuidadoso processo de patrimonialização?

O Museu mais visitado em Portugal sempre foi o Museu Nacional dos Coches, e será ele a «âncora» do projecto «Belém Redescoberta» anunciado em Abril de 2006 pelo Ministério da Cultura. Como se lê em nota de imprensa ministerial «promocional» (2006-04-18),

«(...) as alterações reflectem uma oferta museológica ímpar no mundo que conjuga o antigo e o moderno. Desta forma, a zona passa a associar o Museu dos Coches (um dos museus portugueses que em 2005 recebeu mais de 204 mil visitantes) com o novo Museu Berardo de Arte Moderna e Contemporânea, um comodato de 863 peças, que passam a constituir o espólio a instalar no Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém (...). Este mix vai servir de ponto de partida para um programa de marketing internacional dedicado a esta zona da cidade, com especial incidência nos principais mercados emissores de turistas para Lisboa».

Mais tarde a Ministra da Cultura virá a anunciar a abertura do Museu Mar da Língua Portuguesa (clique para ver filme), que funcionará como Centro Interpretativo dos Descobrimentos no espaço do antigo Museu de Arte Popular.

Será isto uma tentativa de resposta à velha querela dos Antigos versus Modernos? [9]

De que lado se coloca essa proposta? Dos Modernos porque responde com uma nova museologia digital, sem acervo físico – afirmando que «a vida dos museus não é eterna» - ou ainda dos Antigos, retomando a lusofonia e as Descobertas como lightmotive do prestígio nacional?

h) Património e Relações Internacionais

O último ponto do programa do XVII Governo toma a cultura como um dos vectores principais, se não o principal, para a afirmação de Portugal no mundo... lusófono.

O património tem servido frequentemente a retórica das relações internacionais, independentemente do uso que dele fazem os interlocutores, por exemplo:



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• A iconoclastia é um «crime contra a cultura» – proclamou a UNESCO relativamente à destruição dos Budas de Bamiyan no Afeganistão [10] 

• Não queremos pertencer à comunidade internacional como definida pelas Nações Unidas e suas organizações (UNESCO) – seria a mensagem de Mullah Mohammed Omar, lider dos Taliban, que executou a destruição

• Vamos reconstruir os nossos laços com a comunidade internacional: quereria depois dizer Hamid Karzai ao anunciar a reconstrução dos budas

• O património é sinónimo de civilização e apanágio das sociedades civilizadas.

• A reconciliação histórica pode passar pelo repatriamento do património usurpado, por exemplo em períodos coloniais

• A reclamação de património usurpado pode também servir de provocação política [11]

• Os países irmãos são aqueles que têm património partilhado e isso legitima, muitas vezes, uma hierarquização das relações bilaterais e justifica a  geminação de cidades de diferentes países.

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No que respeita o património cultural, Portugal tem privilegiado as relações culturais com os países,  irmãos ou vizinhos, com quem manteve relações históricas ou coloniais. O património partilhado – por mais remoto que seja – é, muitas vezes, o alicerce para o discurso cooperativo. A retórica dominante nessas relações culturais é fortemente inspirada por um discurso de pendor luso-tropicalista que serve o propósito de acentuar a antecipação portuguesa à globalização e seus efeitos mais positivos, sobretudo a nível cultural: o florescimento antecipado da diversidade criativa.

O mesmo teor discursivo da diversidade criativa inspirado no luso-tropicalismo serve a leitura e o incentivo aos processos patrimonialização que o reforcem em território nacional. Veja-se, por exemplo o caso de Mértola que, depois de uma política do Estado Novo que negou a importância do passado e arqueologia  islâmicos,  reintegra, de forma multiculturalista, os árabes na história nacional, produzindo, concomitantemente,  mais argumento para as retóricas de cooperação cultural com os países árabes, sobretudo com Marrocos (SILVA, 2005)

A elevação a Património Mundial de bens culturais de origem portuguesa em contextos não nacionais [12] – que agora se pretendem organizar na Rede de Património de Origem Portuguesa –, reforçam uma narrativa que serve, para o efeito, também os países /Estados em causa.

A este nível, as relações culturais de Portugal com os países com quem manteve relações históricas ou coloniais inscrevem-se assim, claramente, num registo pós-colonial, não apenas do ponto de vista cronológico, mas também no sentido em que o próprio tempo colonial e seu património é objectificado por ambos os países para a construção de narrativas sobre o passado e o presente satisfatórias para cada um deles.

De um ponto de vista absolutamente universalista, como se supõe ser o objectivo da UNESCO, o património deveria ser propriedade universal e a cooperação cultural animar-se pelo princípio do desenvolvimento mútuo. Mas o ancoramento ocidental da ideia de património privatiza-o e a analogia com a herança, inscreve-a num registo genealógico que a liga, necessariamente, ao tempo histórico, e à cultura que a produziu, contrariando, muitas vezes, o espírito de partilha universal.

Uma cooperação cultural verdadeiramente despojada dos nossos interesses identitários, e por isso mais humanista, é mais fácil quando alheia à existência ou não de laços históricos partilhados e quando simultaneamente atenta ao nosso património e ao dos outros, ou melhor ainda: ao de todos nós. 

Biliografia Referenciada

CUSTÓDIO, Jorge. 1993. “Salvaguarda do património: antecedentes históricos”, in  Dar o Futuro ao Passado. Lisboa: IPPAR.

FURET, François, 1996. “Conclusion des Entretiens”, in François Furet (Org.). Patrimoine, Temps, Espace – Patrimoine en place, Patrimoine déplacé. Paris. Éditions du Patrimoine.

GOODY, Jack, 2005. “Os Taliban, Bamiyan e Nós. O Outro islâmico” ” in Análise Social, 173. Vol. XXXIX,   2005.

RAMOS, Manuel João (Coord). 2003. A Matéria do Património. Memórias e Identidades. Edições Colibri / DepAnt-ISCTE.

RIBEIRO, António Pinto, 2002. Abrigos. Lisboa: Cotovia

SILVA, Maria Cardeira, 2005. “O Sentido dos Árabes no nosso sentido” in Análise Social, 173. Vol. XXXIX,   2005.

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[1] "Monumentos Pátrios", texto publicado no segundo volume dos Opúsculos, retomam dois artigos de 1838 - "Monumentos I" e "Monumentos II" - seguidos, em 1839, por "Mais um Brado a favor dos Monumentos", previamente publicados na revista de O Panorama. Para uma história das práticas e do conceito de património em Portugal veja-se Custódio: 1993

[2] Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, DGEMN, desempenhou – até à sua incorporação no IGESPAR em 2007, uma actividade especializada nas áreas da instalação de serviços públicos e da salvaguarda e valorização do património arquitectónico. Eram atribuições da DGEMN a concepção, o planeamento e a coordenação das actividades que conduziam à construção e conservação dos edifícios do sector público do Estado, a salvaguarda e valorização do património arquitectónico, a avaliação e promoção da qualidade da construção. A DGEMN publicava a Revista Monumentos.

[3] Embora a lei de 1985 considerasse já que o património cultural português era «constituído por todos os bens materiais e imateriais que, pelo seu reconhecido valor próprio, devam ser considerados como de interesse relevante para a permanência através do tempo» nenhum dos artigos respeitava directamente o património intangível.

[4] No seguimento da aplicação da resolução citada foi criada, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 169/2001, de 19 de Dezembro, a Comissão Nacional da Gastronomia, à qual compete, designadamente, coordenar a criação, desenvolvimento e utilização de uma base de dados de receitas e produtos tradicionais portugueses.

[5] A realização de qualquer espectáculo com touros de morte é excepcionalmente autorizada no caso em que sejam de atender tradições locais que se tenham mantido de forma ininterrupta, pelo menos, nos 50 anos anteriores à entrada em vigor do presente diploma, como expressão de cultura popular, nos dias em que o evento histórico se realize.

[6] Comunicado do Ministério da Cultura em 26 de Abril de 2005

[7] “A Memória à Espera”. Mário David Campos e Sara Belo Luís, Visão, 19 Setembro 2005.

[8] “A Cidade Romana Perdida”. António Henriques. Expresso, 10 de Setembro 2005.

[9] Uma reprise interessante da querela foi a esgrimida por António Pinto Ribeiro e Vasco Graça Moura, em 2002, nas páginas do Público e do Diário de Notícias (Republicada em Ribeiro: 2004)

[10] Como demonstra Jack Goody, a iconoclastia não foi sempre, no entanto, um apanágio das civilizações bárbaras, i.e. como no vulgo, não ocidentais GOODY 2005).

[11] Um caso extremo: a vítima americana de um atentado em Israel reclama ser idemnizada através de bens culturais iranianos em depósito no Museu da Universidade de Chicago pelo facto de o Irão, alegadamente, ter suportado o atentado. Para ver filme clique em Art & Anti-Terrorism: Victim's Rights: CBS News.

[12] Em cujos processos de patrimonialização têm tido papel relevante a Fundação Oriente e a Fundação Calouste Gulbenkian

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