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Canto iii - Espírito de proibir: produção e promoção de estratégias de vida social

O poder é socialmente construído e produz lugares sociais mais propícios a proporcionar aos seus ocupantes poder. Há lugares sociais onde o poder parece estar. Por outro prisma, quem quer ser poderoso terá vantagem se conseguir ser reconhecido como legítimo ocupante de certas posições sociais, mais favoráveis às suas ambições e capacidades (ou apenas por sorte, quando a ocasião faz de um lugar particular uma oportunidade de exercício do poder).

Os indivíduos são sociais, por natureza. Por isso alguns de entre eles se orientam para organizaram as respectivas ocupações de forma a poderem sentir o, e viver com, o poder. O poder é, ao mesmo tempo, um facto social, uma evidência positiva, eventualmente encenada, possivelmente exagerada ou simplesmente imitada, e também o resultado das teias de outros tipos de relações sociais, eles próprios ritualizados e apresentados publica e privadamente de maneira a favorecer ou não o exercício do poder, tal e qual ele é praticado pelas diferentes pessoas poderosas.

Para o exercício do poder há, obviamente, que aprender com os já poderosos: ajuda muito para vir a ser poderoso ser filho ou afilhado ou das relações de pessoas já poderosas. Para além disso, é indispensável que a pessoa se disponha a comportar-se de molde a adaptar-se pessoalmente às imposições sociais feitas a quem detém o poder, nomeadamente ser capaz de seguir os determinismos que lhe sejam socialmente impostos, como se o estivesse a fazer por vontade própria. Como o dono do cão que diz passeá-lo, quando melhor vistas as coisas mais parece passeado pelo cão. Cão esse, todavia, educado pelo seu dono, no quadro de uma relação de ensino-aprendizagem.

Dominantes e dominados acabam por se entretecer em compromissos mútuos, referências culturais mutuamente reconhecidas, identidades partilhadas, afirmadas e vividas de acordo com os valores da época.

"Um Rei, por nome Afonso, foi na Espanha,

Que fez aos Sarracenos tanta guerra,

Que por armas sanguinas, força e manha,

A muitos fez perder a vida o a terra;

Voando deste Rei a fama estranha

Do Herculano Calpe à Cáspia serra,

Muitos, para na guerra esclarecer-se,

Vinham a ele e à morte oferecer-se.

No século XVI o compromisso social entre ordens sociais era claro: os dominantes, uns lutavam e outros oravam. A luta dessa época não tinha o mesmo sentido de actualmente. A nobreza distinguia-se precisamente pela forma como enfrentava a luta directa e física com seja quem for, sejam aliados-rivais, mais próximos, ou inimigos-aliados, mais longínquos. Faziam da luta física e das respectivas consequências identidade social e pessoal. Da reacção letal contra os opositores a sua linguagem própria, exclusiva dos da sua condição, incluindo o risco de ser vítima desses litígios. Faziam das alianças entre guerreiros as estratégias de vida (e de morte).

"Já tinha vindo Anrique da conquista

Da cidade Hierosólima sagrada,

E do Jordão a areia tinha vista,

Que viu de Deus a carne em si lavada;

Que não tendo Gotfredo a quem resista,

Depois de ter Judeia sojugada,

Muitos, que nestas guerras o ajudaram,

Para seus senhorios se tornaram;

Neste versos se descreve a situação das Cruzadas e do modo como elas foram uma oportunidade de construção de lugares de poder social pelos que se dispunham a tornarem-se guerreiros, na esperança de virem a ser reconhecidos como nobres.

"Mas o Príncipe Afonso, que desta arte

Se chamava, do avô tomando o nome,

Vendo-se em suas terras não ter parte,

Que a mãe, com seu marido, as manda e come,

Fervendo-lhe no peito o duro Marte,

Imagina consigo como as tome.

Revolvidas as causas no conceito,

Ao propósito firme segue o efeito.

Nobres que podem encontrar os seus inimigos bem entre os seus íntimos...

Mas já o Príncipe Afonso aparelhava

O Lusitano exército ditoso,

Contra o Mouro que as terras habitava

D'além do claro Tejo deleitoso;

… como entre os seus inimigos tradicionais e públicos.

"Qual co'os gritos e vozes incitado,

Pela montanha o rábido Moloso,

Contra o touro remete, que fiado

Na força está do corno temeroso:

Ora pega na orelha, ora no lado,

Latindo mais ligeiro que forçoso,

Até que enfim, rompendo-lhe a garganta,

Do bravo a força horrenda se quebranta:

Íntimos e inimigos, todos, apreciadores das capacidades performativas do guerreiro, tal como já então se encenavam também nas praças de touros.

"Lá do Germânico Albis, e do Rene,

E da fria Bretanha conduzidos,

A destruir o povo Sarraceno,

Muitos com tensão santa eram partidos.

Entrando a boca já do Tejo ameno,

Co'o arraial do grande Afonso unidos,

Cuja alta fama então subia aos Céus,

Foi posto cerco tos muros Ulisseus.

O projecto das Cruzadas foi razão e motivo de criação de alianças entre diferentes guerreiros oriundos de muitos povos atlânticos a partir da Península Ibérica, de que se fez Portugal. Uma justificação religiosa para organização do saque e da conquista. De Norte para Sul, precisamente:

"Porque levasse avante seu desejo,

Ao forte filho manda o lasso velho

Que às terras se passasse d'Alentejo,

Com gente e co'o belígero aparelho.

Estava em causa também a própria civilização, a dos muçulmanos e a dos cristãos, marcadas pela dureza das batalhas mas também pelas formas de organização da vida e das relações sociais.

"Entrava com toda esta companhia

O Miralmomini em Portugal;

Treze Reis mouros leva de valia,

Entre os quais tem o ceptro imperial;

E assim fazendo quanto mal podia,

O que em partes podia fazer mal,

Dom Sancho vai cercar em Santarém;

Porém não lhe sucede muito bem.

Sabendo hoje o resultado histórico do enfrentamento, ignoramos e esquecemos a dureza e a incerteza do que foi posto em jogo e o modo com os diferentes episódios históricos foram marcando as identidades dos povos e dos nobres (e também do clero) envolvidos (sem escolha, na maioria dos casos) nas vidas conflituosas da época.

"E coa famosa gente à guerra usada

Vai socorrer o filho; e assim ajuntados,

A Portuguesa fúria costumada

Em breve os Mouros tem desbaratados.

A história, essa, é sempre melhor contada e com mais satisfação pelos vencedores. O impacto das vitórias, no desporto mas ainda mais na guerra, transformam as pessoas em termos da segurança e confiança com que se fazem representar socialmente, aumentando as oportunidades de sucesso, tanto mais quanto mais resilientes forem às situações de desfeita ou derrota. Perder uma batalha é ou não perder a guerra conforma a avaliação que as partes em conflito, e sobretudo a parte derrotada, faça da situação e do seu ânimo de se manter em combate.

Este, que Afonso o bravo, se chamou,

Depois de ter o Reino segurado,

Em dilatá-lo cuida, que em terreno

Não cabe o altivo peito, tão pequeno.

O sacrifício consciente da vida em nome da fidelidade a um ideal ou a uma pessoa ou a uma identidade social era a vida dos guerreiros e o modo de acesso ao poder, regularmente posto à prova. Posto à prova por terceiros ou posto à prova pelos próprios, como foi o caso de Afonso III – e dos outros reis anteriores da primeira dinastia (como haveria de ser também na segunda dinastia, cujo sacrifício mais famoso terá sido o do Príncipe D. Fernando nas masmorras marroquinas para que a família real a que pertencia não entregasse Ceuta).

"Eis depois vem Dinis, que bem parece

Do bravo Afonso estirpe nobre e dina,

Com quem a fama grande se escurece

Da liberalidade Alexandrina.

Com este o Reino próspero florece

(Alcançada já a paz áurea divina)

Em constituições, leis e costumes,

Na terra já tranquila claros lumes.

Nem só de violência directa é feito o poder. Na verdade, mesmo a violência directa não é apenas força bruta. Vimos a necessidade de haver uma identidade suficientemente geral e reconhecida que possa ser adoptada e em nome da qual se auto-determine a própria intencionalidade e de organizem as alianças, tanto locais como regionais.

Pode ocorrer o esgotamento das condições essenciais para manter o rumo da conquista do poder, nomeadamente em termos de espaço-tempo. No caso do reino de Portugal, a terra acaba e o mar começa. Novas técnicas de luta – necessariamente não directamente físicas contra os inimigos – são necessárias mobilizar. A paz em terra torna-se uma oportunidade para consolidar as alianças sociais internas – nomeadamente entre as diferentes ordens sociais – de modo a assegurar a condição dominante dos dominantes, em particular substituir as fontes de rendimento pelo saque e pela partilha da nobreza entre os guerreiros vitoriosos por outros modos de o fazer, mais conservadores do status quo.

Mas porém, quando as gentes Mauritanas,

A possuir o Hespérico terreno

Entraram pelas terras de Castela,

Foi o soberbo Afonso a socorrê-la.

O complexo, irregular e instável processo de alianças estabelece na prática a prioridade dos critérios aplicados. No caso, sem dúvida, os critérios religiosos em primeiro lugar.

Pedindo ajuda ao forte Lusitano,

Lhe mandava a caríssima consorte,

Mulher de quem a manda, e filha amada

Daquele a cujo Reino foi mandada.

A instabilidade dos vínculos entre aliados foi um problema cuja solução não era fácil. Apenas as boas intenções e a boa-fé podiam ser empenhadas, através de alianças pessoais entre poderosos – como eram então entendidos os casamentos e respectivos dotes. O que potenciava, ao mesmo tempo, os inimigos potenciais dentro da própria casa. De o assassinato de Inês de Castro se tornou um símbolo dramático e romântico:

O velho pai sesudo, que respeita

O murmurar do povo, e a fantasia

Do filho, que casar-se não queria,

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"Tirar Inês ao mundo determina,

Por lhe tirar o filho que tem preso,

Crendo co'o sangue só da morte indina

Matar do firme amor o fogo aceso.

Que furor consentiu que a espada fina,

Canto iii - Espírito de proibir: obstáculos e constrangimentos aos sentidos de vida herdados e organizados

Ainda que o poder social seja geralmente pensado como um poder público, de preponderância de um individuo sobre a sociedade, na verdade as raízes do poder são de índole privada. Poder privado seja na perspectiva do habitus e da regularidade da selecção social dos poderosos principalmente junto dos filhos das classes poderosas, num sistema de reprodução do poder, seja na perspectiva da sucessão de alianças intrafamiliares, cujo sentido se estende necessariamente para fora do âmbito privado, mas cujas oportunidades estão praticamente reservadas por práticas privadas de trocas emocionais intensas e quotidianas entre pessoas que interagem na intimidade.

"Quando chegado ao fim de sua idade,

O forte e famoso Úngaro estremado,

Forçado da fatal necessidade,

O espírito deu a quem lhe tinha dado,

Ficava o filho em tenra mocidade,

Em quem o pai deixava seu traslado,

Que do mundo os mais fortes igualava;

Que de tal pai tal filho se esperava.

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"Mas o velho rumor, não sei se errado,

Que em tanta antiguidade não há certeza,

Conta que a mãe, tomando todo o estado,

Do segundo himeneu não se despreza.

O filho órfão deixava deserdado,

Dizendo que nas terras a grandeza

Do senhorio todo só sua era,

Porque, para casar, seu pai lhes dera.

A família é uma construção social cujas funcionalidades são múltiplas. Serve para gerar as condições sociais necessárias para a reprodução da espécie, a educação dos familiares como principais potenciais aliados uns dos outros e como forma de partilha do poder social entre si. Tudo centrado em jogos emocionais que tornam o social radicalmente depende dos estados de espírito adoptados em cada momento pelos indivíduos, ainda que a própria sociedade propicie – na sua qualidade de rede de transmissão de emoções – climas mais ou menos favoráveis a pandemias emocionais, como sejam as sedes de liberdade ou as paixões democráticas, mais ou menos espontâneas ou organizadas em movimentos sociais e em instituições.

"Eis se ajunta o soberbo Castelhano,

Para vingar a injúria de Teresa,

Contra o tão raro em gente Lusitano,

À distância no espaço e no tempo é mais fácil compreender como precisamente as emoções mobilizam as instituições – no caso contado por Camões, a casa do castelhano casado com a mãe do primeiro Henrique – como mobilizam os poderosos que por cima delas observam (alegadamente tendencialmente racionalmente) a realidade social, como se lhe fossem alheios. Não é verdade: não são só os movimentos sociais que expressam e reclamam dos seus públicos emoções mais ou menos pró-activas. Também as instituições o fazem, frequentemente de maneira violenta, para o que estão – muitas vezes melhor do que os movimentos sociais – preparadas. Na actual modernidade, através de instituições estatais e privadas cada vez mais requisitadas, especializadas e violentas.

"Em nenhuma outra cousa confiado,

Senão no sumo Deus, que o Céu regia,

Que tão pouco era o povo batizado,

Que para um só cem Mouros haveria.

Julga qualquer juízo sossegado

Por mais temeridade que ousadia,

Cometer um tamanho ajuntamento,

Que para um cavaleiro houvesse cento.

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"Cinco Reis Mouros são os inimigos,

Dos quais o principal Ismar se chama;

Todos exprimentados nos perigos

Da guerra, onde se alcança a ilustre fama.

As emoções do poder não estão reservadas às disputas intrafamiliares, onde o poder se estabelece através das primeiras alianças e disputas pela sua legitimidade e firmeza. Nos campos públicos as emoções sustentam a agressividade necessária para desconsiderar o inimigo da sua qualidade de potencial parceiro e de efectivo igual na nossa igual condição humana. A ponto de, mesmo em condições aparentemente sem possibilidade de sucesso, de um para cem, ainda assim a identidade porque se luta – a esta distância podemos dizer a nacionalidade – na altura provavelmente a fidelidade dos guerreiros aliados entre si às perspectivas de manterem ou conquistarem o estatuto social da nobreza, estarem preparados para disputar como inimigo dos (aparentemente enormes) poderes instalados o direito a ficarem para a história, vencendo a contenda, correndo os riscos inerentes de a perder, claro.

"Este sempre as soberbas Castelhanas

Co'o peito desprezou firme e sereno,

Porque não é das forças Lusitanas,

Temer poder maior, por mais pequeno.

O poder, porém, tem fama de ser perverso. Tem fama de ser abusador. Porque é perverso e abusador com muita frequência. Trata-se de consequências da necessidade de espantar o medo primordial com que cada sociedade se entrelaça, tanto na sua relação com o meio como na sua relação com outras sociedades que de dentro ou de fora de si se vão estabelecendo. Como quem luta de olhos fechados, sem querer saber o que faz. Apenas fazendo aquilo que pensa ser útil para atingir a sobrevivência da própria identidade, tão difícil e crítica.

"Estão de Agar os netos quase rindo

Do poder dos Cristãos fraco e pequeno,

As terras como suas repartindo

Antemão, entre o exército Agareno,

Que com título falso possuindo

Está o famoso nome Sarraceno.

Assim também com falsa conta e nua,

À nobre terra alheia chamam sua.

A vergonha que também os poderosos sentirão pelos actos cometidos é ultrapassada pela justificação de haver um comportamento não apenas necessário mas digno para com os inimigos que serão desadequados para com os mais próximos. É que perversos e abusadores são os inimigos e não o nosso partido. Tanto no campo de batalha como no campo das alianças matrimoniais:

"Ou foi castigo claro do pecado

De tirar Lianor a seu marido,

E casar-se com ela, de enlevado

Num falso parecer mal entendido;

Ou foi que o coração sujeito e dado

Ao vício vil, de quem se viu rendido,

Mole se fez e fraco; e bem parece,

Que um baixo amor os fortes enfraquece.

Canto iv - Espírito de proibir: obstáculos e constrangimentos aos sentidos de vida herdados e organizados

Uma das mais vulgares justificações do poder é a real dependência dos subordinados dos poderosos. Dependência prática mas sobretudo dependência subjectiva.

Das relações mais difíceis de entender é a relação abusador vítima. Recentemente o ocidente descobriu a violência doméstica e especialmente o abuso sexual de mulheres e crianças. Anteriormente, como ainda em muitas outras civilizações, tais problemas pura e simplesmente inexistem. E no Ocidente são problematizados mas mantém uma actividade muito grande, cujos números foram avaliados, no caso do abuso sexual de crianças, em ¼ das raparigas e 1/7 dos rapazes antes da puberdade.

Para além de um escândalo ali e acolá, significativamente não tem sido possível estabelecer uma política clara de combate a estas bestialidades. Secretamente, ou mesmo às claras, a organização social dos abusos, por exemplo em instituições fechadas de acolhimento ou reclusão, mas, em maior medida, as teias de caça de crianças por parte dos abusadores junto das suas relações mais próximas, profissionais, familiares ou de amizade, mantém-se, apesar da repressão criminal que efectivamente passou a fazer sentir-se.

Não há um diagnóstico estabelecido sobre como funcionam os abusos. Mas sabe-se que há uma relação profundamente afectiva, embora perversa, entre a vítima e o abusador. Em que a primeira é reduzida a um instrumento do bem-estar do último de uma forma subjectivamente amesquinhante mas voluntária. Como a mulher batida volta para o agressor e é mesmo capaz de o defender, ou a criança pode sentir prazer sexual entre as brutalidades do acto de abuso, ou o sequestrado desenvolve sentimentos de respeito e até de solidariedade pelos sequestradores, como se observa na famosa síndrome de Estocolmo.

A racionalidade do interesse próprio faz muito bem em condenar estes tipos de relacionamento. Mas, ao mesmo tempo, poderia passar a fazer um esforço para compreender o que se passa numa parte importante das nossas vidas pessoais e pessoais, cuja perversidade é evidente mas, por isso, cuja realidade é escamoteada não apenas pela moral social – que desqualifica as denúncias de abusos como desqualifica as conspirações – mas inclusivamente pelos sentidos, num processo a que chamamos de segredo social. Consiste o segredo social na capacidade humana de negar as evidências directamente observadas e reconstruir a realidade como os soviéticos ficaram famosos por fazer nas fotos da sua vida política ou a Igreja Católica é acusada por alguns por fazer com os textos da Bíblia ou os plagiadores fazem com os seus textos ou os falsificadores fazem com a arte ou com a ciência. De uma maneira geral como os vigaristas conseguem fazer vingar as suas versões distorcidas da realidade de modo a induzir as suas vítimas para a posição que lhes interessa de colaboração na sua própria vitimação.

Há muitos exemplos da presença do segredo social. Por exemplo, como foi possível os contemporâneos não se darem conta do Holocausto em marcha ou não compreenderem o significado do cheiro adocicado do fumo que saia dos crematórios dos campos de concentração? Como foi possível esconder a escravatura de centenas de milhares de afro-americanos nos Estados do Sul dos EUA entre a abolição constitucional da escravatura até aos anos sessenta do século XX, mesmo depois de sucessivos escândalos judiciários e das leves condenações de alguns poucos donos de escravos? Ao ponto de ainda hoje ser uma realidade praticamente desconhecida, nos EUA como fora? Como foi possível a actividade criminosa tornar-se prática corrente nos meios conservadores da banca internacional e ter sido mesmo denunciada por alguns dos principais actores bancários e permanecer não apenas impune mas activa, sem que os povos vítimas desse abuso reajam tirando a confiança ao sistema que assim procede?

A poesia entra facilmente nesse território ao mesmo tempo quotidiano e extraordinário das trocas emocionais entre o conquistador – no caso o termo benigno para quem se interpõe nas relações anteriormente vigentes na Índia – e o conquistado. Efectivamente um misto de imposição e transformação eventualmente benéfica da vida, cuja avaliação se fará em termos geralmente longe das preocupações práticas das pessoas simples. Neste caso fez-se e ainda se continua a fazer em termos do avanço do Império e da Fé católica romana. O poeta usa como interlocutor dominado o território, em vez das sociedades que o habitam. Usa o território como uma entidade não só colaborante mas também sedutor, desejoso de ser conquistado.

- "Ó tu, a cujos reinos e coroa

Grande parte do mundo está guardada,

Nós outros, cuja fama tanto voa,

Cuja cerviz bem nunca foi domada,

Te avisamos que é tempo que já mandes

A receber de nós tributos grandes.

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- "Eu sou o ilustre Ganges, que na terra

Celeste tenho o berço verdadeiro;

Estoutro é o Indo Rei que, nesta serra

Que vês, seu nascimento tem primeiro.

Custar-te-emos contudo dura guerra;

Mas insistindo tu, por derradeiro,

Com não vistas vitórias, sem receio,

A quantas gentes vês, porás o freio."-

A violência, a extrema violência é desde logo inevitável. O respeito dos combatentes directos entre si, mais do que respeitam as populações – actualmente tomadas como danos colaterais na gíria belicista – é outra dimensão da vida social que merece uma atenção da teoria social que até hoje não foi possível organizar. Os estrategas estudam as formas de luta mas estudam de forma secundária a organização social que sustenta os guerreiros e utiliza as suas ansias belicistas para benefício daqueles que lucram com as guerras.

"Podem-se pôr em longo esquecimento

As cruezas mortais que Roma viu

Feitas do feroz Mário e do cruento

Sila, quando o contrário lhe fugiu.

Por isso Lianor, que o sentimento

Do morto Conde ao mundo descobriu,

Faz contra Lusitânia vir Castela,

Dizendo ser sua filha herdeira dela.

Nesta estrofe é clara a comparação das proezas bélicas romanas no sentido da sua capacidade de resolver diferendos internos das sociedades conquistadoras, entre entidades de alto nível de respeitabilidade, como Portugal e Castela e as aristocracias respectivas alinhadas como partidos para decidir quem tomará o poder.

E se com isto enfim vos não moverdes

Do penetrante medo que tomastes,

Atai as mãos a vosso vão receio,

Que eu só resistirei ao jugo alheio.

A determinação subjectiva dos contendores e dos respectivos aliados, tanto ou mais quanto os dispositivos técnicos de guerra, pesam à partida nas possibilidades de sucesso final. Essa determinação é subjectiva, sim. Mas não quer dizer que baste querer sem convicção, isto é sem harmonia pessoal entre o que se deseje mentalmente e o que se deseja espiritualmente, quer dizer como um corpo inteiro, considerando não apenas a voz mas todo o ser, cujas dinâmicas bio-fisio-psicológicas não são facilmente dominadas pela simples vontade superficial da razão informada. (A luta contra os comportamentos de risco relativamente ao HIV/SIDA mostra como a informação não é suficiente para transformar comportamentos).

"Destas e outras vitórias longamente

Eram os Castelhanos oprimidos,

Quando a paz, desejada já da gente,

Deram os vencedores aos vencidos,

Depois que quis o Padre onipotente

Dar os Reis inimigos por maridos

As duas ilustríssimas Inglesas,

Gentis, formosas, ínclitas princesas.

Através das lutas e sacrifícios bélicos de sociedades inteiras, no fim espera-se dos guerreiros capacidade para organizarem a paz e de se comprometerem convictamente nela. Com a mesma convicção que foi necessária para na guerra se envolveram. Dividindo os benefícios adquiridos pela guerra entre si, sob o extremo cansaço dos subordinados, satisfeitos pela possibilidade de reorganizar agora a vida numa conjuntura teoricamente mais estável.

"Não sofre o peito forte, usado à guerra,

Não ter amigo já a quem faça dano;

E assim não tendo a quem vencer na terra,

Vai cometer as ondas do Oceano.

Este é o primeiro Rei que se desterra

Da Pátria, por fazer que o Africano

Conheça, pelas armas, quanto excede

A lei de Cristo à lei de Mafamede.

O cansaço não atinge do mesmo modo os povos e os seus dirigentes, sobretudo quando ficam entusiasmados com os benefícios da guerra. Ainda hoje os historiadores aprendem com Camões nestas linhas: terminada a conquista do Algarve, limite sul do país, e estabelecida a impossibilidade prática de intervenção a sudeste, território reservado aos conquistadores castelhanos, a realeza lusa desenvolveu, naturalmente, os meios para continuar a fazer aquilo que sabia fazer bem. Aprendeu a navegar para organizar a guerra para terras de África.

Manuel, que a Joane sucedeu

No Reino e nos altivos pensamentos,

Logo, corno tornou do Reino o cargo,

Tomou mais a conquista do mar largo.

A ambição cresceu e a ideia tornou-se mais larga. Estamos a imaginar as primeiras ideias sobre a globalização na mente dos estrategas portugueses, incapazes de imaginar as carreiras de voo regulares, a internet, o dinheiro electrónico, os jogos mundiais e olímpicos ou o securitarismo planetário contra as drogas ilícitas. Na verdade sabiam ser incapazes de imaginar sequer as gentes e os ambientes que iriam encontrar noutras partes do mundo, cujas descobertas deleitaram gerações de ocidentais, nos tornaram paulatinamente admiradores das capacidades de produção sistemática de conhecimentos por parte dos cientistas e nos engendraram um ego etnocêntrico que viria a legitimar um dos flagelos mais ignóbeis já promovidos pela espécie humana, que foi e é a exploração da escravatura. Hoje em dia ainda bem presente através da perseguição criminal dos imigrantes e no fenómeno de encarceramento em massa, particularmente evidente nos EUA, mas existente em toda a Europa, em menor proporção.

- "A que novos desastres determinas

De levar estes reinos e esta gente?

Que perigos, que mortes lhe destinas

Debaixo dalgum nome preminente?

Que promessas de reinos, e de minas

D'ouro, que lhe farás tão facilmente?

Que famas lhe prometerás? que histórias?

Que triunfos, que palmas, que vitórias?

Nem só os proletários, literalmente descendentes de escravos, sofrem com as políticas imperialistas então desenhadas. Isso era claro desde o princípio. Quem teria de preencher o vazio da ignorância que medeia a ideia estratégica e as práticas concretas visando concretizá-la, como fim a que não interessa verificar a moralidade os meios (eis o núcleo estratégico da racionalidade da produção dos segredos sociais), seriam os populares. Que não sonharam mas concretizaram sonhos alheios, como oportunidades de subir na vida ou como imposições por parte de instituições, nomeadamente as judiciais, a quem acusam, certamente com fundamento, de terem encontrado formas de criminalização e de determinação de penas à medida das necessidades de mão-de-obra para as Descobertas, cf. Boxer (??).

- "Deixas criar às portas o inimigo,

Por ires buscar outro de tão longe,

Por quem se despovoe o Reino antigo,

Se enfraqueça e se vá deitando a longe?

Buscas o incerto e incógnito perigo

Por que a fama te exalte e te lisonge,

Chamando-te senhor, com larga cópia,

Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia?

Será injusto não reconhecer existirem também perigos para os estrategas sonhadores. Perigos tangíveis e de longo prazo. Perigos diferentes consoante a decisão tomada. Mas não necessariamente perigos maiores por se tomarem decisões mais ambiciosas no espaço e no tempo.

A fama da reconquista alimentava a unidade dos guerreiros e do povo em torno da coroa. Gerir essa dinâmica social sem uma perspectiva de longo prazo que pudesse convencer os guerreiros a viverem em paz (com Castela, nomeadamente) o tempo suficiente para que novas tecnologias pudessem vir a ser adoptadas, em particular as de projecção de forças para zonas belicamente inóspitas, como o Norte de África primeiro e a África Ocidental depois, antes da Índia e do Brasil.

Canto iv - Espírito de proibir: obstáculos e constrangimentos aos sentidos de vida herdados e organizados

Para quem aspirasse por uma vida pacífica e moralmente sã, no sentido de uma estabilidade emocional geral capaz de oferecer aos outros a segurança e a companhia, as Descobertas foi um modo de tornar mais difícil vir a cumprir tal ambição, eventualmente tornando inevitável as lutas intestinas para ter direito à posse das riquezas alheias colectivamente saqueadas no ultramar em detrimento da apuramento da solidariedade social.

O Velho do Restelo representa também a zona sombra, o efeito de segredo social, sobre as malvadezes dos Descobrimentos, não tanto contra outros povos, mas sobretudo contra os próprios portugueses, sacrificados de forma particular pela decisão dos seus grupos dominantes.

"Nós outros sem a vista alevantarmos

Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,

Por nos não magoarmos, ou mudarmos

Do propósito firme começado,

Determinei de assim nos embarcarmos

Sem o despedimento costumado,

Que, posto que é de amor usança boa,

A quem se aparta, ou fica, mais magoa.

Canto v - Espírito de proibir: produção e promoção de estratégias de vida social

Era claro para Camões o negócio esclavagista. Embora não pudesse desconfiar daquilo que hoje sabemos que efectivamente veio a acontecer nesse domínio. Mas o modo romantizado de lidar com a vergonha da civilização, dela se demarcando sem contestação moral, esse já era presente:

Vejo um estranho vir de pele preta,

Que tomaram por força, enquanto apanha

De mel os doces favos na montanha.

Canto v - Espírito de proibir: obstáculos e constrangimentos aos sentidos de vida herdados e organizados

Temos vindo ver como o conhecimento é talvez mais um objectivo, uma finalidade, do que uma componente primeira do desenho estratégico. Conhecer é bom para estabelecer modos de vida. Mas para criar novas vidas e novos mundos é sobretudo um acto de vontade. Vontade não apenas no sentido de arbítrio mas também no sentido de convicção legitimada, nomeadamente através de um sistema de assuntos tabu, ou segredos sociais, sobre os quais se acorda não discutir, antes mesmo de discutir.

Salazar diria que a fé, a pátria e a família não se discutem. Precisamente. Para poder olhar em certas direcções estrategicamente arbitradas dá efectivamente jeito não ver uma parte daquilo que vem junto. Sob pena da disputa moral desmoralizar o nosso partido e, desse modo, abrir campo para a outra parte ganhar a guerra.

A guerra promove a consciência da importância da unidade contra o inimigo, como promove a intolerância perante qualquer coisa que possa abalar a necessária convicção de fazermos parte de nossa identidade colectiva. Mas o conhecimento de que nos fala Camões, já vem depurado do questionamento social, do conhecimento sobre a natureza humana entendida como algo partilhado por todos os indivíduos e sociedades.

De quem nenhum melhor conhecimento

Pudemos ter da índia desejada

Que estarmos ainda muito longe dela;

E assim tornei a dar ao vento a vela.

O conhecimento a que se aspira na renascença é o conhecimento positivo e funcionalista da natureza, incluindo nesta noção tanto a geografia dos caminhos marítimos como a sociologia das sociedades alienígenas. Representado na figura do Adamastor.

"Não acabava, quando uma figura

Se nos mostra no ar, robusta e válida,

De disforme e grandíssima estatura,

O rosto carregado, a barba esquálida,

Os olhos encovados, e a postura

Medonha e má, e a cor terrena e pálida,

Cheios de terra e crespos os cabelos,

A boca negra, os dentes amarelos.

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"Tão grande era de membros, que bem posso

Certificar-te, que este era o segundo

De Rodes estranhíssimo Colosso,

O conhecimento a que se aspira na renascença é o conhecimento positivo da natureza, incluindo nesta noção tanto a geografia dos caminhos marítimos como a sociologia das sociedades alienígenas.

- "Sabe que quantas naus esta viagem

Que tu fazes, fizerem de atrevidas,

Inimiga terão esta paragem

Com ventos e tormentas desmedidas.

E da primeira armada que passagem

Fizer por estas ondas insofridas,

Eu farei d'improviso tal castigo,

Que seja mor o dano que o perigo.

O conhecimento do meio ambiente, desde a metereologia ao conhecimento das correntes marítimas, foi evidentemente prioritário. E os riscos de vida necessários para produzir esse conhecimento são apenas metaforicamente mencionados, mas são calculados em metade da população embarcada nas viagens de ida da carreira da Índia, cf. Boxer (??). Havendo a considerar que a probabilidade de sobrevivência dos fidalgos, pilotos e capitães, como de todo o pessoal indispensável à navegação, teria de estar garantida – o que significa uma taxa de probabilidade de morbilidade maior para o resto dos embarcados que durante seis meses viviam nas naus, de preferência sem nunca verem terra – para evitarem doenças africanas e outros incidentes.

- "Eu sou aquele oculto e grande Cabo,

A quem chamais vós outros Tormentório,

Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,

Plínio, e quantos passaram, fui notório.

Aqui toda a Africana costa acabo

Neste meu nunca visto Promontório,

Que para o Pólo Antarctico se estende,

A quem vossa ousadia tanto ofende

O conhecimento positivo básico que faltava era o de saber onde era, se é que havia, a passagem marítima para a África Oriental. No tempo de Camões um tal conhecimento estava adquirido. A memória da transcendência desse conhecimento fez com que o poeta o antromorfizasse no antes terrível (depois dócil e humano) monstro, representando ao mesmo tempo a superação da ignorância e a empatia humana entre gentes apartadas pelo espaço, pelo tempo, pelas diferentes experiências de vida e cultura.

"Desta gente refresco algum tomamos,

E do rio fresca água; mas contudo

Nenhum sinal aqui da Índia achamos

No Povo, com nós outros quase mudo.

Ora vê, Rei, que tamanha terra andamos,

Sem sair nunca deste povo rudo,

Sem vermos nunca nova nem sinal

Da desejada parte Oriental.

O desconhecimento não era apenas dos navegadores. Os povos autóctones também não só desconheciam os conhecimentos positivos adquiridos pelos portugueses como desconheciam as suas ambições. O que os tornava, aos olhos épicos, tristes figurantes de um cenário cujo enredo lhes era radicalmente estranho.

"Ora imagina agora coitados

Andaríamos todos, perdidos,

De fomes, de tormentas quebrantados,

Por climas e por mares não sabidos,

E do esperar comprido tão cansados,

Quanto a desesperar já compelidos,

Por céus não naturais, de qualidade

Inimiga de nossa humanidade.

Tamanha ignorância dos povos autóctones não era apenas inútil aos portugueses. Era uma dificuldade tremenda e de alto risco. Uma irritante situação.

"Corrupto já e danado o mantimento,

Danoso e mau ao fraco corpo humano,

E além disso nenhum contentamento,

Que sequer da esperança fosse engano.

A falta de conhecimentos exaspera e pode desmoralizar quem deles precisa não tanto para deleite artístico e intelectual, nem sequer para concretização de planos desejados. Praticamente pode representar a morte do artista, neste caso navegadores, incapazes de se orientarem e ao mesmo tempo organizarem a sobrevivência, tal como a tinham conhecido nas sociedades de que eram originários.

Não tínhamos ali médico astuto,

Cirurgião subtil menos se achava;

Canto vi - Espírito de proibir: produção e promoção de estratégias de vida social

Apesar das grandes dificuldades, o caminho ambicioso faz os seus progressos. E a determinação convicta vai tendo chão para assentar, à medida que as dificuldades se vão acrescentando. Na verdade o centro da história contada pelo poema épico é aquilo, que o povo costuma dizer, esfolar o rabo, referindo-se ao final do trabalho de preparar o porco morto para ser aproveitado pela comunidade que o matou para saciar a fome.

Via estar todo o Céu determinado

De fazer de Lisboa nova Roma;

Quando Vasco da Gama preparou a sua viagem, muito saber geográfico e social levava na bagagem, resultado de muitas dezenas de anos de persistentes investimentos nas descobertas marítimas e nas técnicas de marear, guerrear, de fazer aliados e evitar escolhos marítimos e sociais. Nas embarcações e na abordagem dos poderes locais, em África e na Índia.

Julgando já Netuno que seria

Estranho caso aquele, logo manda

Tritão, que chame os Deuses da água fria,

Que o mar habitam duma e doutra banda.

Tritão, que de ser filho se gloria

Do Rei e de Salácia veneranda,

Era mancebo grande, negro e feio,

Trombeta de seu pai, e seu correio.

Mas as surpresas e os imprevistos continuavam a ter que ser enfrentados com a mesma determinação emocional dos primeiros tempos de ainda mais profunda ignorância, à descoberta. A necessidade da produção desta sabedoria, insistimos, impunha-se para cumprir desideratos irrecusáveis de passar, tarde ou cedo, para ocupar a posição estratégica previamente imaginada.

Que descuido foi este em que viveis?

Quem pode ser que tanto vos abrande

Os peitos, com razão endurecidos

Contra os humanos fracos e atrevidos?

Como permaneciam os altos e baixos do ânimo com que os detalhes e os episódios marcavam a convicção do querer dos navegantes.

Ao grande Eolo mandam já recado

Da parte de Netuno, que sem conto

Solte as fúrias dos ventos repugnantes,

Que não haja no mar mais navegantes.

Os segredos e a ignorância teriam de ser compensados por intuições e paciência, enquanto não fosse possível tudo dominar (não há nada mais incerto do que se atingir o conhecimento óptimo que possa substituir a experiência da vida).

"Já do seu Rei tomado têm licença

Para partir do Douro celebrado

Aqueles, que escolhidos por sentença

Foram do Duque Inglês experimentado.

Os limites do conhecimento são preenchidos pela bravura medieval do Magriço (versos acima) e pela fé na protecção divina manifestada por Vasco da Gama (versos abaixo), ao mesmo tempo finalidade e pretexto da acção das Descobertas.

"Divina Guarda, angélica, celeste,

Que os céus, o mar e terra senhoreias;

Tu, que a todo Israel refúgio deste

Por metade das águas Eritreias;

Tu, que livraste Paulo e o defendeste

Das Sirtes arenosas e ondas feias,

E guardaste com os filhos o segundo

Povoador do alagado e vácuo mundo;

Canto vi - Espírito de proibir: obstáculos e constrangimentos aos sentidos de vida herdados e organizados

Camões é um poeta muito consciente das dificuldades dos mareantes guerreiros e mercadores ao serviço da Coroa portuguesa, não tivesse ele sido um de entre ele. Neste canto refere-se aos guerreiros:

Só por dar aos de Luso triste morte

Com o ferro alheio, fala desta sorte:

Aos mareantes:

Pois se do ajuntamento aventureiro

Os ventos esta injúria assim sentiram,

Vós, a quem mais compete esta vingança,

Que esperais? Porque a pondes em tardança?

Aos capitães de esquadra:

A nau grande, em que vai Paulo da Gama,

Quebrado leva o masto pelo meio.

Quase toda alagada: a gente chama

Aquele que a salvar o mundo veio.

Não menos gritos vãos ao ar derrama

Toda a nau de Coelho, com receio,

Conquanto teve o mestre tanto tento,

Que primeiro amainou, que desse o vento.

Mas não menciona os religiosos, cuja função – à maneira do Renascimento – substituiu por referências clássicas, literárias, em parte tomadas pela psicanálise moderna.

"Estas obras de Baco são, por certo,

Disse; mas não será que avante leve

Tão danada tenção, que descoberto

Me será sempre o mil a que se atreve."

Canto vii - Espírito de proibir: produção e promoção de estratégias de vida social

À chegada à Índia rememoreia-se o significado civilizacional das cruzadas que tão longe levou os portugueses. Mostrando como os segredos sociais de cada um – e de cada sociedade – se projectam para de nós, independentemente do espaço e do tempo poderem ser fundamentalmente distintos. As mudanças e transformações pessoais e sociais são produzidas em cima daquilo que experiências anteriores fizeram de nós. E será à luz do balanço daquilo que foi – e continua a ser porque se sintetiza nos nossos sentimentos e pensamentos – e daquilo que será, por ambição mais ou menos bem informada sobre o que se deseja realizar, que voltaremos a ser aquilo que sempre fomos naquilo que haveremos de nos tornar.

É por isso que Camões começa por lembrar a complexidade da sociedade ocidental, para nos apresentar o resultado prático realizado da ambição daí emergente, a partir deste campo à beira mar plantado:

Aquelas invenções feras e novas

De instrumentos mortais da artilharia,

Já devem de fazer as duras provas

Nos muros de Bizâncio e de Turquia.

Fazei que torne lá às silvestres covas

Dos Cáspios montes, e da Cítia fria

A Turca geração, que multiplica

Na polícia da vossa Europa rica.

13

Gregos, Traces, Arménios, Georgianos,

Bradando-vos estão que o povo bruto

Lhe obriga os caros filhos aos profanos

Preceptos do Alcorão (duro tributo!)

Em castigar os feitos inumanos

Vos gloriai de peito forte e astuto,

E não queirais louvores arrogantes

De serdes contra os vossos muito possantes.

Eis cumpridos fins extraordinariamente adequados aos objectivos mais abstrata e secretamente culturais da civilização de que somos originários, incluindo as vantagens práticas que se esperavam também recolher, em termos de riquezas, então, como agora, sinónimo de vencimento na vida.

Ora, sus, gente forte, que na guerra

Quereis levar a palma vencedora,

Já sois chegados, já tendes diante

A terra de riquezas abundante.

O mistério da fonte de energia que promoveu persistentemente as Descobertas permanece hoje em dia. Como era também manifestamente surpreendente para quem recebeu os portugueses na Índia a visão da chegada de caravelas vindas de outro dos mundos de que nesse tempo era feita a humanidade.

"Quem te trouxe a estoutro mundo,

Tão longe da tua pátria Lusitana?"

- "Abrindo, lhe responde, o mar profundo,

Por onde nunca veio gente humana,

Vimos buscar do Indo a grão corrente,

Por onde a Lei divina se acrescente."

Humanidade ela própria ainda hoje misteriosa, mesmo quando a herança dos Descobrimentos já conta meio milénio e as tecnologias mostram a todos quase tudo (menos os tabus e os segredos sociais).

Deus por certo vos traz, porque pretende

Algum serviço seu por vós obrado;

Por isso só vos guia, e vos defende

Dos inimigos, do mar, do vento irado.

Humanidade que é uma ideia apenas possível a partir do momento em que é possível comparar nas diferenças radicais entre personalidades e povos, estados e conjunturas, aquilo que permanece em todas as pessoas de todas as qualidades. Aquilo que há de todos nós em cada um de nós.

E diz-lhe mais a mágica ciência

Que, para se evitar força tamanha,

Não valerá dos homens resistência,

Que contra o Céu não val da gente manha;

Mas também diz que a bélica excelência,

Nas armas e na paz, da gente estranha

Será tal, que será no mundo ouvido

O vencedor, por glória do vencido,"

O sucesso do projecto português de descobrir (e explorar o comércio de) a Índia revela-se mágico também para quem o viveu. A ciência acompanhou e beneficiou da magia belicosa, tanto pelo menos quanto o inverso. Como mais recentemente a ideia de projectar a vida humana para fora dos limites da Terra (e manter e animar a guerra) continua a ser pretexto para o desenvolvimento dos saberes positivos.

E se queres com pactos e alianças

De paz e de amizade sacra e nua

Comércio consentir das abastanças

Das fazendas da terra sua e tua,

Por que cresçam as rendas e abastanças,

Por quem a gente mais trabalha e sua,

De vossos Reinos, será certamente

De ti proveito, o dele glória ingente.

No imediato, porém, foi o comércio que ocupou os portugueses e os seus parceiros orientais. A que vieram juntar-se muitos outros ocidentais, com os seus parceiros, estendendo as guerras europeias ao Oriente e misturando-as com as guerras locais, a ponto de num certo período se poder falar de uma guerra mundial, quando os holandeses entenderam competir com as coroas ibéricas, em nome da divisão religiosa entre cristãos, cf. Boxer (??).

Olhai que há tanto tempo que, cantando

O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,

A fortuna mo traz peregrinando,

Novos trabalhos vendo, e novos danos:

Canto vii - Espírito de proibir: obstáculos e constrangimentos aos sentidos de vida herdados e organizados

Canto viii - Espírito de proibir: produção e promoção de estratégias de vida social

A tradição da ideia imperial, de predomínio de uma cultura de espaços tempos amplos capaz de organizar de outro modo diferentes maneiras de viver desenvolvidas localmente, cuja superioridade é primeiro doutrinária, depois militar e organizativa, é chamada por Camões para explicar a acção dos Portugueses, segundo uma perspectiva clássica própria da época renascentista.

- "Quem será estoutro cá, que o campo arrasa

De mortos, com presença furibunda?

Grandes batalhas tem desbaratadas,

Que as águias nas bandeiras tem pintadas."

(…)

"Não vês um ajuntamento, de estrangeiro

Trajo, sair da grande armada nova,

Que ajuda a combater o Rei primeiro

Lisboa, de si dando santa prova?

Caracterizado o império por ser uma entidade superior centrada num poder reclamante de especial grandeza e capacidade de realização e de intimidação:

Nisto trabalha só; que bem sabia

Que depois que levasse esta certeza,

Armas, o naus, e gente mandaria

Manuel, que exercita a suma alteza,

Com que a seu jugo e lei someteria

Das terras e do mar a redondeza;

Que ele não era mais que um diligente

Descobridor das terras do Oriente.

Centralidade, superioridade, grandeza, capacidade e força usadas para fazer aliados. Aliados e ao mesmo tempo bons negócios, em nome dos resultados potenciais que a iniciativa lusa produzirá pelo facto de poder beneficiar de largos espaços tempos nunca dantes navegados.

Que bem vê que grandíssimo proveito

Fará, se com verdade e com justiça

O contrato fizer por longos anos,

Que lhe comete o Rei dos Lusitanos.

Uma vez arrancadas as primeiras alianças, tudo é cada vez menos difícil, para o futuro, na medida em que se torna palpável a ideia na mente dos Navegadores.

"Crescendo com os sucessos bons primeiros

No peito as ousadias, descobriram

Pouco e pouco caminhos estrangeiros,

Que uns, sucedendo aos outros, prosseguiram.

Ideia essa montada sobre uma tecnologia específica, a mareação oceânica, auto demonstrada pela presença das naus nos portos dos futuros aliados.

Assim com firme peito, e com tamanho

Propósito, vencemos a Fortuna,

Até que nós no teu terreno estranho

Viemos pôr a última coluna.

Rompendo a força do líquido estanho,

Da tempestade horrífica e importuna,

A ti chegamos, de quem só queremos

Sinal, que ao nosso Rei de ti levemos.

Império cujo móbil mais imediato é a possibilidade de acumular riqueza a partir do aumento do volume e frequência das transacções comerciais:

Enfim ao Gama manda que direito

As naus se vá, e, seguro de algum dano,

Possa a terra mandar qualquer fazenda,

Que pela especiaria troque e venda.

Canto viii - Espírito de proibir: obstáculos e constrangimentos aos sentidos de vida herdados e organizados

O império não é uma obra divina, ainda que a inspiração o possa ser. É uma persistência resiliente às sucessivas derrotas e perigos com vista a um fito último, mais relevante, apesar dos escolhos sempre presentes. Estratégia que depende sobretudo da capacidade de compreensão e execução de tarefas longínquas por gente capaz de o fazer.

"Mas não vês quase já desbaratado

O poder Lusitano, pela ausência

Do Capitão devoto, que, apartado

Orando invoca a suma e trina Essência?

As aventuras são, na verdade, jamais experimentadas, apesar da têmpera de um povo feito de Cruzada e Reconquista:

Sinal lhe mostra o Demo verdadeiro,

De como a nova gente lhe seria

Jugo perpétuo, eterno cativeiro,

Destruição de gente, e de valia.

Vai-se espantado o atónito agoureiro

Dizer ao Rei (segundo o que entendia)

Os sinais temerosos que alcançara

Nas entranhas das vítimas que olhara.

A centralização da informação imperial foi, necessariamente, um trunfo indispensável para os portugueses navegantes. O que implica confiança prévia na Coroa, sem a qual impossível teria sido manter fidelidades a tão longas distâncias.

A isto mais se ajunta que um devoto

Sacerdote da lei de Mafamede,

Dos ódios concebidos não remoto

Contra a divina Fé, que tudo excede,

Em forma do Profeta falso e noto,

Que do filho da escrava Agar procede,

Baco odioso em sonhos lhe aparece,

Que de seus ódios ainda se não desse.

Fidelidades nada fáceis de manter, dado o estado de civilização muçulmana ser equiparável senão superior à situação dos cristãos.

Dizendo que são gentes inquietas,

Que, os mares discorrendo ocidentais,

Vivem só de piráticas rapinas,

Sem Rei, sem leis humanas ou divinas

E porque era dos aliados muçulmanos que os Portugueses teriam de desembaraçar os aliados de que precisavam para instalarem o novo comércio atlântico. Muçulmanos que conheciam bem os portugueses, como estes os conheciam a eles.

Embarcação que o leve às naus lhe pede;

Mas o mau Regedor, que novos laços

Lhe maquinava, nada lhe concede,

Interpondo tardanças e embaraços.

A guerra contra os mouros teve continuidade na Índia em novos termos estratégicos, no fim sobretudo ganha ou perdida através de balanços comerciais.

Por que razão lhe impede e lhe difere

A fazenda trazer de Portugal?

Pois aquilo que os Reis já têm mandado

Não pode ser por outrem derrogado.

Canto ix - Espírito de proibir: produção e promoção de estratégias de vida social

A estratégia longamente desenvolvida, do mais vago e abstracto para a sua concretização no terreno, adquire contornos geográficos específicos estáveis que podem ser descritos de forma objectiva.

Gidá se chama o porto, aonde o trato

De todo o Roxo mar mais florescia,

De que tinha proveito grande e grato

O Soldão que esse Reino possuía.

Daqui aos Malabares, por contrato

Dos infiéis, formosa companhia

De grandes naus, pelo Índico Oceano,

Especiaria vem buscar cada ano.

Ora, tal descrição coincide, com partes dos interesses dos inimigos e adversários de sempre, como de resto era o primeiro dos objectivos – o de expandir a Fé à custa da influência da mourama.

Por estas naus os Mouros esperavam,

Que, como fossem grandes e possantes,

Aquelas, que o comércio lhe tomavam,

Com flamas abrasassem crepitantes.

Neste socorro tanto confiavam,

Que já não querem mais dos navegantes,

Senão que tanto tempo ali tardassem,

Que da famosa Meca as naus chegassem.

Foi preciso ultrapassar os interesses instalados para desenvolver novos interesses materialmente favoráveis àqueles que se mantinham fiéis aos senhores da Fé que através do comércio espalharam. No poema épico nacional da Fé propriamente dita pouco se fala, como pouco se fala do papel dos religiosos, dos oradores, nesse processo.

Leva alguns Malabares, que tomou

Por força, dos que o Samorim mandara

Quando os presos feitores lhe tornou;

Leva pimenta ardente, que comprara;

A seca flor de Banda não ficou,

A noz, e o negro cravo, que faz clara

A nova ilha Maluco, com a canela,

Com que Ceilão é rica, ilustre e bela.

O sucesso dos Descobrimentos era também o sucesso de cada um dos mareantes que tinham a oportunidade de fazer o seu negócio privado, aproveitando a estadia nas paragens onde tudo era diferente.

O prazer de chegar à pátria cara,

A seus penates caros e parentes,

Para contar a peregrina e rara

Navegação, os vários céus e gentes;

Vir a lograr o prémio, que ganhara

Por tão longos trabalhos e acidentes,

Cada um tem por gosto tão perfeito,

Que o coração para ele é vaso estreito.

A bondade estratégica da construção imperial verifica-se pelo sucesso prático no terreno, apesar das duras tormentas e enganos.

"Quero que haja no reino Netunino,

Onde eu nasci, progénie forte e bela,

E tome exemplo o mundo vil, malino,

Que contra tua potência se rebela,

Por que entendam que muro adamantino,

Nem triste hipocrisia val contra ela:

Mal haverá na terra quem se guarde,

Se teu fogo imortal nas águas arde."

Glória social contra os elementos. Glória nacional contra os inimigos.

Ou dai na paz as leis iguais, constantes,

Que aos grandes não dêem o dos pequenos;

Ou vos vesti nas armas rutilantes,

Contra a lei dos inimigos Sarracenos:

Fareis os Reinos grandes e possantes,

E todos tereis mais, o nenhum menos;

Possuireis riquezas merecidas,

Com as honras, que ilustram tanto as vidas.

Glória pessoal através da riquezas, para os que voltaram.

Canto ix - Espírito de proibir: obstáculos e constrangimentos aos sentidos de vida herdados e organizados

A guerra continuou a ser o dia a dia dos portugueses na Índia, apesar das enormes vitórias. E os adversários e inimigos continuariam a ser os mesmos?

Tiveram longamente na cidade,

Sem vender-se, a fazenda os dois feitores

Que os infiéis, por manha e falsidade,

Fazem que não lha comprem mercadores;

Que todo seu propósito e vontade

Era deter ali os descobridores

Da Índia tanto tempo, que viessem

De Meca as naus, que as suas desfizessem.

Canto x - Espírito de proibir: produção e promoção de estratégias de vida social

Que tornará a vez sétima (cantava)

Pelejar co invicto e forte Luso,

A quem nenhum trabalho pesa e agrava;

Mas, contudo, este só o fará confuso.

Trará pera a batalha, horrenda e brava,

Máquinas de madeiros fora de uso,

Pera lhe abalroar as caravelas,

Que até'li vão lhe fora cometê-las.

Apresenta os portugueses como gente guerreira experimentada em luta contra inimigos aturdidos e surpresos, com reacções desajustadas e ineficazes.

Mais estanças cantara esta Sirena

Em louvor do ilustríssimo Albuquerque,

Mas alembrou-lhe üa ira que o condena,

Posto que a fama sua o mundo cerque.

O grande Capitão, que o fado ordena

Que com trabalhos glória eterna merque,

Mais há-de ser um brando companheiro

Pera os seus, que juiz cruel e inteiro.

Apresenta Afonso de Albuquerque como um chefe guerreiro que faz a diferença entre os inimigos, para quem é implacável, e os seus, com quem acamarada.

"Não vencerá somente os Malabares,

Destruindo Panane com Coulete,

Cometendo as bombardas, que, nos ares,

Se vingam só do peito que as comete;

Mas com virtudes, certo, singulares,

Vence os imigos d'alma todos sete;

De cobiça triunfa e incontinência,

Que em tal idade é suma de excelência.

A guerra feia organizada pelos portugueses na Índia é apresentada como uma luta pela virtude, afinal como todas as guerras. Virtude essa que está de um dos lados apenas.

Com forças e poder em que está posto,

Não vence; que a vitória verdadeira

É saber ter justiça nua e inteira.

A sabedoria efectivamente ensina que para obter a possibilidade de convivência com parceiros ou mesmo subordinados há que manter não apenas a intimidação próprias às circunstâncias mas também assegurar – para tranquilidade possível dos vencedores – a vigência de critérios de justiça estáveis.

Cantava a bela Deusa que viriam

Do Tejo, pelo mar que o Gama abrira,

Armadas que as ribeiras venceriam

Por onde o Oceano Índico suspira;

E que os Gentios Reis que não dariam

A cerviz sua ao jugo, o ferro e ira

Provariam do braço duro e forte,

Até render-se a ele ou logo à morte.

A estratégia comercial dos portugueses passava, é claro, por formas de intimidação radical dos poderes locais que fizessem oposição aos tratos que permitissem estabelecer a circulação comercial de produtos da Índia para a Europa.

Ali verão as setas estridentes

Reciprocar-se, a ponta no ar virando

Contra quem as tirou; que Deus peleja

Por quem estende a fé da Madre Igreja.

Tal como ainda hoje acontece nas guerras, surgem ideias miraculosas para demonstrar a invulnerabilidade de uma parte dos guerreiros por razões piedosas, isto é, por favor de forças sobrenaturais que são as que os enviam para a guerra em nome de virtudes supremas e indiscutíveis. Porque são as “nossas” contra as (inaudíveis razões) dos “outros” .

"Eis já sobr'ela torna e vai rompendo

Por muros, fogo, lanças e pelouros,

Abrindo com a espada o espesso e horrendo

Esquadrão de Gentios e de Mouros.

A heroicidade torna-se de loucura em bravura, ao mesmo tempo que a convicção firme se reforça com as vitórias sucessivas.

"Tendo assi limpa a Índia dos imigos,

Virá despois com ceptro a governá-Ia

Sem que ache resistência nem perigos,

Que todos tremem dele e nenhum fala.

Só quis provar os ásperos castigos

A justiça instalada não era uma justiça paternalista mas uma justiça de cárcere. Perante a presença dos portugueses, os que com eles convivessem saberiam que qualquer oposição poderia ser objecto de retaliação radical. A justiça seria, eventualmente, poderem ser avisados de terem passado o risco para poderem recuar ou estar de tal maneira claro qual fosse esse risco que somente em casos esperados a retaliação acontecesse, sem surpresa e sistematicamente. Pois a justiça, hoje como então, deve ser segura e tempestiva.

"Aqui, só verdadeiros, gloriosos

Divos estão, porque eu, Saturno e Jano,

Júpiter, Juno, fomos fabulosos,

Fingidos de mortal e cego engano.

Só pera fazer versos deleitosos

Servimos; e, se mais o trato humano

Nos pode dar, é só que o nome nosso

Nestas estrelas pôs o engenho vosso.

O poder de seduzir pela arte é trazido pelo poeta como alheio a todos os outros poderes. O que manifesta um desejo de distanciamento de Camões perante aquilo que observou e descreveu, pois bem se sabe como pelejou juntamente com outros pelo Oriente, como em Lisboa. Tal desejo dificilmente se confunde com denúncia da guerra ou da fé ou do império, cujo sentido não é contestado em nenhuma parte do texto e que seria contraditório com o elogio ao povo português e aos seus mareantes, tornados musas masculinas pelo poema épico.

Dificilmente a censura ou a ironia tornariam tão moderno e revolucionário aquilo que é um testemunho do seu tempo, com os preconceitos que lhe são próprios. Não seria de esperar de Camões uma crítica ao etnocentrismo como alguns cientistas fizeram à tradição de disciplinas como a geografia ou a antropologia modernas. E ainda hoje há quem faça à economia e sociologia actuais.

"E também, porque a santa Providência,

Que em Júpiter aqui se representa,

Por espíritos mil que têm prudência

Governa o Mundo todo que sustenta

(Ensina-lo a profética ciência,

Em muitos dos exemplos que apresenta);

Os que são bons, guiando, favorecem,

Os maus, em quanto podem, nos empecem;

Ao gosto da Renascença, Camões equipara e faz representar o Deus católico em Júpiter, consensualizando a tradição clássica e a sua evolução à época sem contradição mas antes como aprimoramento, de acordo com a lógica da ainda actual teoria da modernização.

Mesmo perante civilizações sofisticadas, como a indiana ou a chinesa, os portugueses mantiveram, em termos estratégicos, a convicção da sua superioridade fundamental em nome da fé, de uma via justa única, utilizada de forma banal pelos partidos comunistas e ainda hoje pelo neo-liberalismo do pensamento único, de que a última frase intimidatória e de fecho de argumentação é “não há alternativa!”

"Enfim que o Sumo Deus, que por segundas

Causas obra no Mundo, tudo manda.

E tornando a contar-te das profundas

Obras da Mão Divina veneranda,

Em várias passagens, nomeadamente as que fazem menção aos povos em que se instalaram os movimentos da Reforma, o autor manifesta a sua fidelidade à Igreja Romana, de que Portugal se entendia uma extensão no quadro das Cruzadas, da Reconquista e dos Descobrimentos, sem prejuízo – pelo contrário – dos conflitos com a Santa Sé para que esta reconhecesse o desempenho e desse oportunidade de acção aos reis portugueses, em nome da Fé.

Por este mar a gente Lusitana,

Que com armas virá despois de ti,

Terá vitórias, terras e cidades,

Nas quais hão-de viver muitas idades.

Fé profunda não só na religião mas sobretudo no valor e no papel dos portugueses, como povo predestinado, reconhecida pelos historiadores actuais como Boxer (??).

Acaso traz um dia o mar, vagando,

Um lenho de grandeza desmedida.

Deseja o Rei, que andava edificando,

Fazer dele madeira; e não duvida

Poder tirá-lo a terra, com possantes

Forças d' homens, de engenhos, de alifantes.

111

"Era tão grande o peso do madeiro

Que, só pera abalar-se, nada abasta;

Mas o núncio de Cristo verdadeiro

Menos trabalho em tal negócio gasta:

Ata o cordão que traz, por derradeiro,

No tronco, e fàcilmente o leva e arrasta

Pera onde faça um sumptuoso templo

Que ficasse aos futuros por exemplo.

O poeta recorre a resultados palpáveis dessa fé que conduziu os navegadores que são as igrejas, para demonstrar a natureza objectiva dos argumentos avançados sobre a força das crenças.

"Sabia bem que se com fé formada

Mandar a um monte surdo que se mova,

Que obedecerá logo à voz sagrada,

Que assi lho ensinou Cristo, e ele o prova.

A gente ficou disto alvoraçada;

Os Brâmenes o têm por cousa nova;

Vendo os milagres, vendo a santidade,

Hão medo de perder autoridade.

A superioridade das crenças dos portugueses é assegurada pelo poeta, desta vez com argumentos tão esdrúxulos que dificilmente se entende o que encantou de facto os Brâmanes que se aliaram aos novos senhores do Oriente.

As adesões de membros da casta hindu com funções religiosas aos interesses portugueses foi, naturalmente, entendido pelos portugueses como uma demonstração da superioridade da sua religião. Mas para os hindus não terá sido mais do que uma renúncia de pessoas em concreto de viverem segundo a sua maneira de organizar a vida. Pois o sistema de castas ainda hoje perdura, apesar de continuar a ser atacado, cada vez mais fortemente, pelos poderes instituídos.

Fazei, Senhor, que nunca os admirados

Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses,

Possam dizer que são pera mandados,

Mais que pera mandar, os Portugueses.

No horizonte já era evidente no século XVI a ambição de outros poderes europeus no uso dos caminhos abertos pelos portugueses para seu próprio benefício.

Canto x - Espírito de proibir: obstáculos e constrangimentos aos sentidos de vida herdados e organizados

Cantava dum que tem nos Malabares

Do sumo sacerdócio a dignidade,

Que, só por não quebrar cos singulares

Barões os nós que dera d'amizade,

Sofrerá suas cidades e lugares,

Com ferro, incêndios, ira e crueldade,

Ver destruir do Samorim potente,

Que tais ódios terá co a nova gente.

Há uma escolha que os poderosos na Índia terão de fazer, perante o avanço dos portugueses, como de resto ainda hoje é típico do poder revolucionário do capitalismo. Manter fidelidades antigas e tradicionais e enfrentar a guerra ou simplesmente negar o passado e começar tudo de novo, já que precisamente a ideologia das castas impunha uma pureza de contactos sociais incompatível com negociar com os portugueses. Quem o fizesse ficava impuro e, por isso, sem condições de voltar ao convívio dos seus antigos pares. O que foi uma ajuda para os portugueses, na medida em que uma vez feito um aliado ele ficava de tal modo socialmente isolado entre os seus que mais não poderia fazer do que continuar a negociar pelo resto da sua vida.

Virá ali o Samorim, por que em pessoa

Veja a batalha e os seus esforce e anime;

Mas um tiro, que com zunido voa,

De sangue o tingirá no andor sublime.

Já não verá remédio ou manha boa

Nem força que o Pacheco muito estime;

Inventará traições e vãos venenos,

Mas sempre (o Céu querendo) fará menos.

O poder dos portugueses é bélico e não argumentativo. Depende de Deus e, por isso, não é para ser negociado.

"Mas na Índia, cobiça e ambição,

Que claramente põem aberto o rosto

Contra Deus e Justiça, te farão

Vitupério nenhum, mas só desgosto.

Quem faz injúria vil e sem razão,

É de facto a diferença de habitus cristalizados em torno da religião que justifica, aos olhos dos portugueses, a acção dos que de opõe à sua entrada no mundo dos negócios entre o Oriente e o Ocidente.

Baticalá, que vira já Beadala.

De sangue e corpos mortos ficou cheia

E de fogo e trovões desfeita e feia.

O resultado é mortífero.

"Persas feroces, Abassis e Rumes,

Que trazido de Roma o nome têm,

Vários de gestos, vários de costumes

(Que mil nações ao cerco feras vêm),

Farão dos Céus ao mundo vãos queixumes

Porque uns poucos a terra lhe detêm.

Em sangue Português, juram, descridos,

De banhar os bigodes retorcidos.

Alianças vastas são forjadas contra a presença dos portugueses.

Olha as casas dos negros, como estão

Sem portas, confiados, em seus ninhos,

Na justiça real e defensão

E na fidelidade dos vizinhos;

Olha deles a bruta multidão,

Qual bando espesso e negro de estorninhos,

Combaterá em Sofala a fortaleza, Que

defenderá Nhaia com destreza.

Também em África houve oposição organizada contra a presença dos portugueses.

"São estes sacerdotes dos Gentios

Em quem mais penetrado tinha enveja;

Buscam maneiras mil, buscam desvios,

Com que Tomé não se ouça, ou morto seja.

A oposição aos portugueses é interpretada por estes como uma guerra religiosa, provavelmente por ser essa a interpretação auto-explicativa e favorável à mobilização própria das Cruzadas para seja que oposição for.

Os Brâmenes se encheram de ódio tanto,

Com seu veneno os morde enveja tanta,

Que, persuadindo a isso o povo rudo,

Determinam matá-lo, em fim de tudo.

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