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Resumo das obras da Covest / Upe – Paulo Neto

Cartas Chilenas (Tomás Antônio Gonzaga): poemas satíricos que narram os desmandos do governador das Minas Gerais, Luís da Cunha Meneses, tratado no poema por Fanfarrão Minésio. Os versos são assinados por Critilo (Tomaz A. Gonzaga) e enviados a Doroteu (Cláudio Manoel da Costa).

As Cartas Chilenas são 13 cartas escritas por Critrilo (pseudônimo do autor que por muito tempo ficou obscuro) relatando os desmandos, atos corruptos, nepotismo, abusos de poder, falta de conhecimento e tantos outros erros administrativos, jurídicos e morais quanto pudessem ser relatados em versos decassílabos do "Fanfarrão Minésio" ( o governador Luís Cunha Meneses) no governo do "Chile" (a cidade de Vila Rica). Elas são sempre dirigidas a "Doroteu" (que tem uma epístola após as 13 cartas), ninguém mais do que Cláudio Manuel da Costa.As Cartas chilenas, por outro lado, completam a obra de Gonzaga. São poemas satíricos que circularam em Vila Rica pouco antes da Inconfidência Mineira. Esses poemas eram escritos em versos decassílabos e tinham a estrutura de uma carta, assinada por Critilo e endereçada a Doroteu, residente em Madri. Nessas cartas, Critilo, habitante de Santiago do Chile (na verdade Vila Rica), narra os desmandos e arbitrariedades do governador chileno, um político sem moral, despótico e narcisista, o Fanfarrão Minésio (na realidade, Luís da Cunha Meneses, governador de Minas Gerais até pouco antes da Inconfidência). Estes poemas foram escritos numa linguagem bastante satírica e agressiva, e sua verdadeira autoria foi discutida por muito tempo. Após os estudos de Afonso Arinos e, principalmente, do trabalho de Rodrigues Lapa, a dúvida acabou: Critilo é mesmo Tomás Antônio Gonzaga e Doroteu é Cláudio Manuel da Costa.   

SENHORA

José de Alencar

Dividido em quatro partes: O Preço, Quitação, Posse e Resgate, o livro não segue uma ordem cronológica, como a que veremos aqui. Na realidade ele vai e vem do passado. Narrado em 3ª pessoa conta a história do romance entre Aurélia Camargo e Fernando Seixas. Ele vive com a mãe viúva e um irmão num subúrbio carioca. Ao conhecer Fernando, a paixão entre eles surge para valer e pensam até em casamento. Mas ele a abandona por causa de outra mulher. Arrasada, Aurélia descobre que ele a trocou porque a outra possuía um dote. Inesperadamente, Aurélia recebe uma herança e, a partir daí, surge a oportunidade de vingança ou, de reconquista. Através de seu tutor, seu tio Lemos, Aurélia propõe a Seixas que ele se case com uma moça possuidora de grande dote, mas impõe a condição de que ele só conheça a identidade dela quando for casar. Endividado, Seixas aceita... Mas fica muito feliz ao ver que a noiva é Aurélia. No entanto, na noite de núpcias, ela mostra-lhe o recibo e expulsa-o do quarto, chamando-o de vendido. Deste momento em diante passam a viver um casamento hipócrita, de fachada. Na frente das pessoas, na sociedade formam um perfeito casal apaixonado... Quando estão sozinhos, Aurélia o trata com desprezo e autoridade... Ele se deixa levar. Mas, com trabalho e um pouco de sorte, consegue juntar dinheiro suficiente e salda sua dívida com a mulher... Despedem-se. Mas ... o amor triunfa!!! Aurélia, já arrependida do que havia feito, pede perdão ao marido e confessa todo seu amor e que nunca deixaria de pertencê-lo... Ele também faz a mesma confissão e por fim, vão para a câmara nupcial (onde já estiveram por duas vezes) e consumam o “santo amor conjugal”, que até então não havia acontecido.

DOM CASMURRO

Machado de Assis

São os personagens principais: Bentinho, Capitu, Escobar, D. Glória, tio Cosme, Justina, José Dias e Ezequiel. A narração, feita em 1ª pessoa, se passa no final do século passado e conta a história de um rapaz, Bentinho,que foge da vocação religiosa imposta pela mãe e se vê envolvido num triângulo amoroso. Tema tão comum nas novelas de hoje. É comum ficarmos em dúvida, se alguns fatos aconteceram ou não, como a traição de Capitu... e isto se deve à perfeita forma como foi feita a narrativa Capitu era vizinha, amiga e companheira de infância de Bentinho. Muito bonita e tentadora, quando cresceu, após algumas dificuldades, eles acabam casando-se. Sua melhor amiga, Sinhá Sancha, casa-se com o melhor amigo de Bentinho, Escobar. A narrativa segue três áreas: primeiro Bentinho conta sua vida antes da ida ao seminário. Seus encontros com Capitu e as tentativas de escapar da profissão de padre... é aqui também que ele explica a razão de ser o “Dom Casmurro” (como era muito calado e fechadão o chamavam de casmurro. O ‘dom’era o toque de ironia para dar-lhe um título nobre). Na segunda já o veremos no seminário. O início de sua amizade com Escobar e as visitas que fazia em sua casa todos os finais de semana. Por fim... sua vida de casado com Capitu, o nascimento do filho Ezequiel (depois de muitas tentativas!), as desconfianças de se é ou não, pai do menino, pois ele acha a criança muito parecida com o amigo Escobar... e a separação. Com a morte daqueles que ele desconfiava, Capitu, Escobar e o próprio Ezequiel, ficamos sem saber se a traição aconteceu ou não. Afinal, quem está contando os fatos é justamente a suposta vítima ou, no caso, aquele que foi traído.

Resumo da obra Vidas Secas – Graciliano Ramos

      “Será um romance? É antes uma série de qua-dros, de gravuras em madeira, talhadas com precisão e firmeza.” (Lúcia Miguel-Pereira)

      Chamar este romance de “série de quadros, de gravuras em madeira, talhada com precisão e firmeza” é aludir a um de seus traços estilísticos fundamentais: o caráter autônomo e completo de seus capítulos.

      Estes podem ser lidos como peças independen-tes, e como tal foram publicados em jornais, mas reúnem-se com uma organicidade exemplar. Os capítulos de Vidas Secas mantêm uma estrutura descontínua, não-linear, como que reafirmando o isolamento, a instabilidade da família de retirantes: Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo e a cachorra Baleia.

      Formado por treze capítulos que se justapõem sem nexos lógicos, o enredo de Vidas Secas organiza-se principal-mente pela proximidade entre o primeiro Mudança – a chegada da família de retirantes a uma velha fazenda abandonada e arruinada – e, o último, Fuga – a saída da família, que, diante de um novo período de seca, foge para o Sul.

      Do capítulo 2 ao 12, a família vive como agre-gada na fazenda, para cujo proprietário Fabiano trabalha. Assim, passa uma fase de descanso, em relação ao seu nomadismo, provocado pela seca.

      No entanto, além da tortura gerada pela lem-brança do passado e pelo medo do futuro, o romance enfoca outras faces da opressão que se exerce sobre os membros da família – seja entre eles e os outros homens, os moradores da cidade, seja consigo próprios.

      No capítulo, Cadeia, por exemplo, Fabiano vai à cidade, bebe e joga com o soldado amarelo; quando resolve partir, este o provoca e o leva à cadeia, onde é preso e surrado. Um ano depois, Fabiano o reencontra, agora em seu território, a caatinga. Embora deseje vingança, acaba se curvando e ensinando o caminho ao sol-dado amarelo (cap. 11).

      No episódio Contas (cap. 10), Fabiano é lesado financeiramente pelo patrão. Embora as contas do patrão não coincidam com as da Sinhá Vitória, que as confere, Fabiano não se defende; ao contrário, humilha-se e pede desculpas.

      Outro exemplo de opressão e de falta de comunicação entre os seres da família animalizados pela misé-ria em que vivem, encontra-se no capítulo 6, em que o menino mais velho ouve a palavra inferno, acha-a bonita e procura aprender o seu significado com a mãe, que o repele brutalmente. Já no capítulo 7, Inverno, há uma cena em que a família se reúne numa noite de inverno, e Fabiano tenta contar histórias incompreensíveis enquanto os meninos passam frio.

      Enfim, a questão central do romance não está nos acontecimentos, mas nas criaturas que o povoam, nas gravuras de madeira.

      Com a análise psicológica do universo mental das personagens, que expõem por meio de discurso indireto livre, o narrador nos vai decifrando sua humanidade embotada, confundida com a paisagem áspera do sertão, neste romance transcende o regionalismo e seu contexto específico – a seca do Nord-este, a opressão dos pobres, a condição animalesca em que vivem – para esculpir o ser humano universal.

      Resumo por capítulo

      1. Mudança

      Começando o livro, o narrador coloca diante do leitor o primeiro quadro:

      a) uma tomada à distância: a família no ambiente da seca.

      b) a caracterização de cada membro da família pelas suas atitudes.

      2. Fabiano

      O narrador mostra a desintegração progressiva de Fabiano:

      a) Fabiano e a vida

      b) Fabiano e a seca

      c) Fabiano, a família e a seca.

      3. Cadeia

      Continua o narrador a mostrar Fabiano diante da sociedade. Ele vai comprar querosene: está com água. Vai comprar chita: é cara. É levado ao jogo, não sabe se co-municar, e é preso.

      4. Sinhá Vitória

      A apresentação de Sinhá Vitória é semelhante à de Fabiano. Aparece a sua dificuldade de relacionamento com os meninos, com a Baleia, com Fabiano. Sua aspira-ção: ter uma cama.

      5. Menino mais novo

      Quer espantar o irmão e Baleia. Observa o pai montar a égua. Fabiano cai, de pé. Ele vibra. Sinhá fica indiferente diante da façanha do pai, ele não se conforma com a indiferença da mãe. Tenta se comunicar com o pai, mas não consegue, fica chateado. A Baleia dormia. Foi tentar conversar com a mãe, levou um cascudo. Dorme, Sonha com um mundo adulto. No dia seguinte tenta montar o bode, mas sai sem honra da façanha. Cai, leva coices.

      6. Menino mais velho

      Quer saber o que seja inferno. Sinhá Vitória fala em es-petos quentes, fogueiras. Ele lhe perguntou se vira. A mãe zanga-se, achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote. Baleia era o único vivente que lhe mostra simpatia.

      7. Inverno

      Família reunida em torna do fogo. Não havia conversa, apenas grunhidos. Ninguém entende ninguém, já são poucos humanos.

      8. Festa

      Iam à festa de Natal na cidade. Na cidade se vê-em distantes da civilização. Fabiano não fala, mas admi-ra a loquacidade das pessoas da cidade.

      9. Baleia

      A cachorra Baleia aparecera doente. Fabiano imaginara que ela estivesse com hidrofobia, e amarrara-lhes no pescoço um rosário de sabugo de milho queima-do. Ela, de mal a pior. Resolvera matá-la.

      10. Contas

      Fabiano diante do imposto e da injustiça do pa-trão Nascera com esse destino, ninguém era culpado por nascer com destino ruim.

      11. O soldado amarelo

      Fabiano ia corcunda, parecia farejar o solo, quando encontrou o soldado amarelo. Lembrou-se do passado. Quis se vingar. Reviveu todo o passado. Pensou e repensou sua condição.

      O soldado, antes cheio de medo, vendo Fabiano acanalhado, ganha coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo. “Governo é governo.”

      12. O mundo coberto de penas

      Depois do inverno, de novo seca anunciada nas arribações. Fabiano luta contra a natureza, atira nas arri-bações.

      13. Fuga

      O mesmo quadro do primeiro capítulo. No primeiro quadro os meninos se arrastavam atrás dos pais, neste os pais se arrastam atrás dos meninos. Os meninos corriam. Era o destino do Norte – O (nor)destino.

Morte e Vida Severina – João Cabral de Melo Neto

O retirante Severino deixa o sertão pernambucano em busca do litoral, na esperança de uma vida melhor. Entre as passagens, ele se apresenta ao leitor e diz a que vai, encontra dois homens (irmãos das almas) que carregam um defunto numa rede. Severino conversa com ambos e acontece uma denúncia contra os poderosos, mandantes de crimes e sua impunidade. O rio-guia está seco e com medo de se extraviar, sem saber para que lado corria o rio, ele vai em direção de uma cantoria e dá com um velório. As vozes cantam excelências ao defunto, enquanto do lado de fora, um homem vai parodiando as palavras dos cantadores. Cansado da viagem, Severino pensa em interrompê-la por uns instantes e procurar trabalho. Ele se dirige a uma mulher na janela e se oferece, diz o que sabe fazer. A mulher, porém, é uma rezadeira. O retirante chega, então, à Zona da Mata e pensa novamente em interromper a viagem. Assiste, então, ao enterro de um trabalhador do eito e escuta o que os amigos dizem do morto. Por todo o trajeto e em Recife, ele só encontra morte e compreende estar enganado com o sonho da viagem: a busca de uma vida mais longa. Ele resolve se suicidar, como que adiantando a morte, nas águas do Capibaribe. Enquanto se prepara para o desenlace, conversa com seu José‚ mestre carpina, para quem uma mulher anuncia que seu filho havia nascido. Severino, então, assiste à encenação celebrativa do nascimento, como se fora um auto de Natal. Seu José tenta dissuadi-lo do suicídio. A peça é apresentada com músicas de Chico Buarque de Hollanda.

PRIMEIRAS ESTÓRIAS – Guimarães Rosa

Obra publicada em 1962, reúne 21 contos.

Trata-se do primeiro conjunto de histórias compactas a seguir a linha do

conto tradicional, daí o "Primeiras" do título. O escritos acrescenta, logo após, o

termo estória, tomando-o emprestado do inglês, em oposição ao termo História,

designando algo mais próximo da invenção, ficção.

No volume, aborda as diferentes faces do gênero: a psicológica, a fantástica, a autobiográfica, a anedótica, a satírica, vazadas em diferentes tons: o cômico, o trágico, o patético, o lírico, o sarcástico, o erudito, o popular.

As estórias captam episódios aparentemente banais.

As ocorrências farejadas através dos protagonistas transformam-se de uma

espécie de milagre que surge do nada, do que não se vê, como diz o próprio

Guimarães Rosa;

"Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo".

Este milagre pode ser então, responsável pela poesia extraída dos fatos

mais corriqueiros, pela beleza de pensar no cotidiano e não apenas vivê-lo, pelo

amor que se pode ter pelas coisas da terra, pelo homem simples, pelo mistério da

vida. Dos "causos " narrados brotam encanto e magia frutos da sensibilidade de um poeta deslumbrado com a paisagem natural e/ou recriada de Minas Gerais.

ENREDOS

I - "As margens da alegria".

Um menino descobre a vida, em ciclos alternados de alegria (viagem de avião, deslumbramento pela flora, e fauna) e tristeza (morte do peru e derrubada de uma árvore).

II - "Famigerado".

O jagunço Damázio Siqueira atormenta-se com um problema vocabular: ouviu a palavra "famigerado" de um moço do governo e vai procurar o farmacêutico, pessoa letrada do lugar, para saber se tal termo era um insulto contra ele, jagunço.

III - "Sorôco, sua mãe, sua filha".

Um trem aguarda a chegada da mãe e da filha de Sorôco, para conduzi - las ao manicômio de Barbacena.

Durante o trajeto até a estação, levadas por Sorôco, elas começam surpreendentemente a cantar.

Quando o trem parte, Sorôco volta para casa cantando a mesma canção, e os amigos da cidadezinha , solidariamente, cantam junto.

IV - "A menina e lá".

Nhinhinha possuía dotes paranormais : seus desejos, por mais estranhos que fossem, sempre se

realizavam. Isolados na roça, seus parentes guardam em segredo o fenômeno, para dele tirar proveito. As reticentes falas da menina tinham caráter de premonição: por exemplo, o pai reclamara da impiedosa seca. Nhinhinha "quis" um arco-íris, que se fez no céu, depois de alentadora chuva. Quando ela pede um caixãozinho cor-de-rosa com enfeites brilhantes ninguém percebe que o que ela queria era morrer...

V - "Os irmão Dagobé".

O valentão Damastor Dagobé, depois de muito ridicularizar Liojorge, é morto por ele. No arraial, todos dão como certa a vingança dos outros Dagobé : Doricão , Dismundo e Derval. A expectativa da revanche cresce quando Liojorge comunica a intenção de participar do enterro de Damastor.

Para surpresa de todos, os irmãos não só concordam, como justificam a atitude de Liojorge, dizendo que Damastor teve o fim que mereceu.

VI - "A terceira margem do rio".

Um homem abandona família e sociedade, para viver à deriva numa canoa, no meio de um grande rio. Com o tempo, todos, menos o filho primogênito, desistem de apelar para o seu retorno e se mudam do lugar. filho, por vínculo de amor, esforça-se para compreender o gesto paterno: por isso, ali permanece por muitos anos.

Já de cabelos brancos e tomado por intensa culpa, ele decide substituir o pai na canoa e comunica-lhe sua decisão. Quando o pai faz menção de se aproximar, o filho se apavora e foge, para viver o resto de seus dias ruminando seu "falimento" e sua covardia.

VII - "Pirlimpsiquice".

Um grupo de colegiais ensaia um drama para apresentá-lo na festa do colégio. No dia da apresentação, há um imprevisto, e um dos atores se vê obrigado a faltar. Como não havia mais possibilidade de se adiar a apresentação, os adolescentes improvisam uma comédia, que é entusiasticamente bem recebida pela platéia.

VIII - "Nenhum, nenhuma".

Uma criança, não se sabe se em sonho ou realidade, passa férias numa fazenda, em companhia de um casal de noivos, de um homem triste e de uma velha velhíssima, de quem a noiva cuidava.

O casal interrompe o noivado, e o menino, que conhecera o Amor observando-os, volta para a casa paterna. Lá chegando, explode sua fúria diante dos pais ao notar que eles se suportavam, pois tinham transformado seu casamento num desastre confortável.

IX - "Fatalidade".

Zé Centeralfe procura o delegado de uma cidadezinha, queixando-se de que Herculinão Socó vivia cantando

sua esposa. A situação tornara-se tão insuportável que o casal mudara de arraial. Não adiantou: o Herculinão foi atrás. O delegado, misto de filósofo, justiceiro e poeta, depois de ouvir pacientemente a queixa, procura o conquistador e, sem a mínima hesitação, mata-o, justificando o fato como necessário, em nome da paz e do bemestar do universo.

X - "Seqüência".

Uma vaca fugitiva retorna a sua fazenda de origem. Decidido a resgatá-la, um vaqueiro persegue-a com incomum denodo. Ao chegar à fazenda para onde a vaca retornara, o vaqueiro descobre que havia outro motivo para sua determinação: a filha do fazendeiro, com quem o rapaz se casa.

XI - "O espelho".

Um sujeito se coloca diante de um espelho, procurando reeducar seu olhar. apagando as imagens do seu rosto externo. A progressão desses exercícios lhe permite, daí a algum tempo, conhecer sua fisionomia mais pura, a que revela a imagem de sua essência.

XII - "Nada e a nossa condição".

O fazendeiro Tio Man 'Antônio, com a morte da esposa e o casamento das filhas, sente-se envelhecido e solitário. Decide vender o gado, distribuindo o dinheiro entre as filhas e genros.

A seguir, divide sua fazenda em lotes e os distribui entre os empregados, estipulando em testamento uma condição que só deveria ser revelada quando morresse. Quando o fato ocorre, os empregados colocam seu corpo na mesa da sala da casa-grande e incendeiam a casa: a insólita cerimônia de cremação era seu último desejo.

XIII - "O cavalo que bebia cerveja".

Giovânio era um velho italiano de hábitos excêntricos: comia caramujo e dava cerveja para cavalo. Isso o tornara alvo da atenção do delegado e de funcionários do Consulado, que convocam o empregado da chácara de "seo Giovânio", Reivalino, para um interrogatório.

Notando que o empregado ficava cada vez mais ressabiado e curioso, o italiano resolve então abrir a sua casa para Reivalino e para o delegado: dentro havia um cavalo branco empalhado.

Passado um tempo, outra surpresa: Giovânio leva Reivalino até a sala, onde o corpo de seu irmão Josepe, desfigurado pela guerra, jazia no chão. Reivalino é incumbido de enterrá-lo, conforme a tradição cristã. Com isso, afeiçoa-se cada vez mais ao patrão, a ponto de ser nomeado seu herdeiro quando o italiano morre.

XIV - "Um moço muito branco".

Os habitantes de Serro Frio, numa noite de novembro de 1872, têm a impressão de que um disco voador atravessou o espaço, depois de um terremoto. Após esses eventos, aparece na fazenda de Hilário Cordeiro um moço muito branco, portando roupas maltrapilhas.

Com seu ar angelical, impõe-se como um ser superior, capaz de prodígios: os negócios de Hilário Cordeiro, o fazendeiro que o acolheu, têm uma guinada espantosamente positiva. Depois de fatos igualmente miraculosos, o moço desaparece do memo modo que chegara.

XV - "Luas-de-mel".

Joaquim Norberto e Sa- Maria Andreza recebem em sua fazenda um casal fugitivo, versão sertaneja de Romeu e Julieta. Certos de que os capangas do pai da moça virão resgatá-la, todos se preparam para um enfrentamento: a casa da fazenda transforma-se num castelo fortificado.

É nesse clima de tensão que se celebra o casamento dos jovens, a que se segue a lua-de-mel, que

acontece em dose dupla: dos noivos e do velho casal de anfitriões, cujo amor fora reavivado com o fato. Na manhã seguinte, a expectativa se esvazia com a chegada do irmão da donzela, que propõe solução satisfatória para o caso.

XVI - "Partida do audaz navegante".

Quatro crianças, três irmãs e um primo, brincam dentro de casa, aguardando o término da chuva. A caçula, Brejeirinha , brinca com o que lhe dava mais prazer: as palavras. Inventa uma estória do tipo Simbad, o marujo, que ganha novos elementos quando todos vão brincar no quintal, à beira de um riacho. Liberando sua fantasia, Brejeirinha transforma um excremento de gado no "audaz navegante", colocando-o para navegar riacho abaixo.

XVII - "A benfazeja".

Mula-Marmela era mulher de Mumbungo , sujeito perverso que se excitava com o sangue de suas vítimas.

Esse vampiro tinha um filho, Retrupé , cujo prazer só diferia do do pai quanto à faixa etária das vítimas: preferia as mais frescas.

Apesar de amar seu homem e ser correspondida, Mula-Marmela não hesitara em matá-lo e depois cegar Retrupé, de quem se torna guia. Passado algum tempo, resolve assassiná-lo: percebe que esta seria a única maneira de refrear o instinto de lobisomem do rapaz.

XVIII - "Darandina".

Um sujeito bem- vestido rouba uma caneta, é surpreendido e, para escapar dos que o perseguem, escala uma palmeira. Uma multidão acompanha atentamente os esforços das autoridades, que procuram convencer o rapaz a descer.

Resistindo, ele diz frases desconexas e tira toda a roupa, revelando notável equilíbrio físico. A sessão de nudismo leva um médico a nova tentativa de diálogo. Ao se aproximar, o médico percebe que o sujeito voltara à normalidade e que, envergonhado, pedia socorro.

A multidão, sentindo-se ludibriada, não aceita essa sanidade repentina e se dispõe a linchá-lo. Sentindo o risco, o sujeito berra um grito de louvor à liberdade, motivo bastante para a multidão ovacioná-lo e carregá-lo nos ombros.

XIX - "Substância".

O fazendeiro Sionésio apaixona-se por sua empregada Maria Exita , que fora abandonada pela família e criada pela peneireira Nhatiaga . Na fazenda, o ofício de Maria Exita era o de quebrar polvilho, trabalho duro mas que a moça realizava com prazer e competência.

Embora preocupado com a ascendência da moça, Sionésio sente que a paixão é maior que o preconceito e pede-a em casamento.

XX - "Tarantão, meu patrão".

O fazendeiro João - de - Barros - Dinis - Robertes tem uma surpreendente explosão de vitalidade em sua velhice caduca. Como se fora um Quixote, determina-se a matar seu médico: o Magrinho, seu sobrinho - neto. Ao longo da viagem rumo à cidade, recruta um bando de desocupados, ciganos e jagunços, que acatam sua liderança, pelo carisma natural do velho.

Chegando à "frente de batalha", Tarantão percebe que era dia de festa: uma das filhas de Magrinho fazia aniversário. O susto inicial, provocado pela invasão do "exército", transforma-se em alívio quando o velho discursa, dizendo de seu apreço pela família e pelos novos amigos, colecionados ao longo da última cavalgada.

XXI - "Os cimos".

O menino da primeira estória revela agora a face do sofrimento, causado pela doença da Mãe, fato que apressa sua viagem de volta à casa paterna.

Os últimos dias de férias são de preocupação. O Menino só relaxava quando via, todas as manhãs e sempre à mesma hora, um tucano se aproximar da casa dos rios, onde se hospedava. Num processo de sublimação, desencadeado pela beleza da ave, o Menino ganha energia para resistir e para transferir à Mãe uma carga de fluidos mentais positivos, que lhe permitam superar a doença.

Quando o Tio o procura para comunicar a melhora da Mãe, o Menino experimenta momentos de êxtase, pois só ele sabia do motivo da cura.

Auto da Compadecida – Ariano Suassuna

a) João Grilo é uma figura típica do nordestino sabido, analfabeto e amarelo. 

· Habituado a sobreviver e a viver a partir de expedientes, trabalha na padaria, vive em desconforto e a miséria é sua companheira. 

· Sua fé nas artimanhas que cria, reflete, no fundo, uma forma de crença arraigada na proteção que recebe, embora sem saber, da Compadecida. É essa convicção que o salva. E ele recebe nova oportunidade de Manuel (Cristo), retornando- à vida e à companhia de Chicó. É uma oportunidade inusitada de ressurreição e retorno à existência. Caberá a ele provar que essa oportunidade foi ou não bem aproveitada. 

b) CHICÓ. Companheiro constante de João Grilo e, especialmente, seu diálogo. Chicó envolve-se nos expedientes de João Grilo e é seu parceiro, mais por solidariedade do que por convicção íntima. Mas é um amigo leal. 

c) PADRE JOÃO, O BISPO e o SACRISTÃO. Essas personagens, embora de atuação diversa, estão concentradas em torno de simonia e da cobiça, relacionada com a situação contida no testamento do cachorro. 

d) ANTÔNIO MORAIS. É a autoridade decorrente do poder econômico, resquício do coronelismo nordestino, a quem se curvam a política, os sacerdotes e a gente miúda. 

e) PADEIRO e sua MULHER. Encarnam, um lado, a exploração do homem pelo homem e, de outro, o adultério. 

f) SEVERINO DO ARACAJU e o CANGACEIRO. Representam a crueldade sádica, e desempenham um papel importante na seqüência de número cinco, porque nessa seqüência matam e são mortos. Com isso propicia-se a ressurreição e o julgamento. 

g) O ENCOURADO e o DEMÔNIO. Julgam, aguardando seu benefício, isto é, o aumento da clientela do inferno. É importante verificar que representam, de alguma forma, um instrumento da Justiça, encarnado em Manuel (O Cristo). 

h) MANUEL. É o Cristo negro, justo e onisciente, encarnação do verbo e da lei. Atua como julgador final dos da prudência mundana, do preconceito, do falso testemunho, da velhacaria, da arrogância, da simonia, da preguiça. Personagem a personagem têm seu pecado definido e analisado, com sabedoria e com prudência. 

i) A COMPADECIDA. É Nossa Senhora, invocada por João Grilo, o ser que lhe dará a Segunda oportunidade da vida. Funciona efetivamente como medianeira, plena de misericórdia, intervindo a favor de quem nela crê, João Grilo. 

B- Estrato metafísico. Pela atuação das personagens, pelo sentido global que encima a peça, percebemos claramente que nela existe uma proposição metafísica, vinculada à Igreja Católica e à idéia da salvação. 

Ao lado da significação global do texto, como estrutura, o Palhaço define essa proposição claramente. 

O Palhaço realiza, nessa peça, o papel do Corifeu, no teatro clássico, e sua intervenção corresponde à parábase da comédia clássica – trecho fora do enredo dramático em que as idéias e as intenções ficam claramente expressas: 

PALHAÇO: “Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua lama é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre, é um povo e tem direito a certas intimidades” (p.23-24). 

... Espero que todos os presente aproveitem os ensinamentos desta peça e reformem suas vidas, se bem que eu tenho certeza de que todos os que estão aqui são uns verdadeiros santos, praticantes da virtude, do amor a Deus e ao próximo, sem maldade, sem mesquinhez, incapazes de julgar e de falar mal dos outros, generosos, sem avareza, ótimos patrões, excelentes empregados, sóbrios, castos e pacientes (p.137). 

A intenção moral, ou moralidade da peça, fica muito clara, desde que se torne claro, também, que essa intenção vincula-se a uma linha de pensamento religioso, e da Igreja Católica. 

O Santo E A Porca

(Ariano Suassuna)

Eudoro Vicente manda uma carta a Eurico dizendo que lhe pedirá o seu bem mais precioso.

Na casa do comerciante, moram a filha Margarida, a irmã de Eurico, Benona, a empregada Caroba e, já há algum tempo, Dodó, filho do rico fazendeiro Eudoro. Dodó vive disfarçado, finge-se de torto, deformado e sovina. Assim conquistou Eurico, que lhe atribuiu a função de de guardião da filha, quem Dodó namora às escondidas.

O desenrolar dos fatos se desencadeira com a carta enviada por Pinhão, empregado de Eudoro e noive de Caroba, empregada de Euricão. Eudoro informa que fará uma visita para pedir esse bem tão precioso a Eurico, que fica apreensivo, pois pensa que lhe pedirá dinheiro emprestado. Eurico insiste em de dizer pobre, repetindo as frases: "Ai a crise, ai a carestia".

Na sala da casa de Eurico, onde as cenas se desenrolam, há uma estátua de Santo Antônio, de quem Eurico é devoto, e uma antiga porca de madeira, a quem ele dedica especial atenção e que logo o público saberá que esconde maços de dinheiro.

Caroba, muito esperta, percebe que Eudoro pedirá margarida em casamento, é assim que ela entende o bem mais precioso de Eurico que o fazendeiro, pai de Dodó, quer saber. Então ela arma um circo para alcançar alguns objetivos: ganhar algum dinheiro, pois quer casar com Pinhão, casar Dodó e Margarida além de Eudoro e Benona, que já tinham sido noivos há muitos anos. Eudoro, viúvo, querias Margarida, mocinha; Benona, solteirona, queria Eudoro, fazendeiro; Margarida queria Dodó, pois o amava; Caroba e Pinhão se queriam; Euricão queria a porca, ou será que queria a proteção de Santo Antônio para a porca?

Caroba negocia uma comissão com Eurico para ajudá-lo a tirar vinte contos de Eudoro Vicente, antes que este peça dinheiro a Eurico. Acertam-se. Aí Caroba convence Benona que Eudoro virá pedi-la em casamento e se dispõe a ajudá-la. São então tramas de Caroba: fazer Eurico pedir vinte contos a Eudoro para o casamento (na realidade, para um jantar); convencer Benona de que Eudoro viria pedi-la em casamento; fazer Eudoro acreditar que pede Margarida; fazer Eurico crer que Eudoro pede Benona; armar um encontro entre Eudoro e Margarida na penumbra; ficar no lugar de Margarida, com o vestido dela.

Conseqüências das armações de Caroba: Dodó sente ciúme de Margarida, pois pensa que ela irá encontrar-se com Eudoro; Pinhão sente ciúme de Caroba quando sabe que ela irá em lugar de Margarida; Euricão desconfia que querem roubar sua porca recheada, pois ouve falarem em devorar porca e pensa ser a sua, quando é a do jantar que se encomendou para receber Eudoro; Pinhão desconfia de Eurico e o observa, porque este age estranhamente.

Na hora do encontro entre Margarida e Eudoro, Caroba tranca Margarida no quarto, manda Benona permanecer também no seu e vai, vestida de Margarida, receber Eudoro. Dodó vê Caroba e pensa ver Margarida, pois está com o vestido dela. Para não ter que se explicar, Caroba o empurra e tranca no quarto com Margarida. Caroba então veste roupa de Benona e esta a de Margarida. Caroba então recebe Eudoro vestida de Benona. Ele é enganado: pensa estar conversando com a antiga noiva, que se insinua a ele, na penumbra não percebe que é Caroba. Ela o leva ao quarto de Benona e o tranca com a ex-noiva, por quem agora já está novamente interessado.

Pinhão ao sair do esconderijo onde estivera observando a cena, vê Caroba e pensa ser Benona e tenta seduzí-la. Ela reage e bate em Pinhão e o manda esperar por Caroba, que tira as roupas de Benona e diz que acompanhou toda a cena, bate outra vez em Pinhão, mas na confusão começam a se beijar. Aí destrancam as portas dos quartos de Margarida e Dodó, Benona e Eudoro, e entram em outro.

Dodó e Margarida saem do quarto e pensam ter sido surpreendidos por Eurico, que entra em casa dizendo estar perdido.Na verdade Eurico havia saído para enterrar sua porca recheada dentro do cemitério. A conversa entre Eurico e Dodó é engraçada, pois ambos se enganam: Dodó fala de Margarida, enquanto Eurico fala da porca que desapareceu. Eurico pensa que o rapaz lhe roubou a porca, já que este o traiu. No desespero, Eurico finalmente revela que a porca estava cheia de dinheiro guardado há tantos anos.

Com os gritos da discussão, Pinhão e Caroba saem do quarto. Depois Eudoro e Benona do seu. A cena é divertida: são três casais que de repente estão juntos e felizes ante Euricão lamentando a perda da porca. Graças a Caroba os casais se entendem sem Euricão nem Eudoro perceberem o engano de que foram vitimas. Margarida desconfiou de Pinhão e afirmou que ele pegara a porca. Eurico lhe salta no pescoço e Pinhão acaba contando, mas exige vinte contos para dizer onde escondeu a porca, os vinte contos que Eurico conseguiu emprestados de Eudoro com a ajuda de Caroba. Com o vale do dinheiro na mão, mostra a porca que estava na casa mesmo.

Então, Eudoro faz Eurico perceber que aquele dinheiro era velho e havia perdido o valor. Eurico se desespera. Tentam dissuadi-lo da importância do dinheiro, mas ele manda todos embora e fica só, com a porca e o Santo, tentando entender o que aconteceu, qual o sentido de tudo que houvera.

O TEATRO DE NELSON RODRIGUES

Boca de Ouro

1- O comportamento obsessivo, paroxístico do protagonista. Nelson Rodrigues não teme o exagero: seus personagens são prisioneiros de paixões avassaladoras. Tornam-se protótipos, já que o autor ultrapassa as conveniências realistas e os constrói com um vigor desmedido.

2- A morbidez que, no seu teatro, serve para aguçar a sensibilidade, abrindo desvãos psicológicos que de outra forma continuariam vedados, escondidos. Ele é "nosso primeiro dramaturgo a sublinhar de forma sistemática os comportamentos mórbidos da personalidade, coexistindo com as facetas consideradas normais".

3- "Mais um traço que acompanha a obra inteira: a ironia feroz (...) Os prazeres são sempre efêmeros, as alegrias escondem apenas uma realidade que não se desvendou ainda." Os desfechos irônicos e trágicos das peças remetem biograficamente às tragédias familiares, de que Nelson nunca se recuperou (por exemplo: o assassinato de seu irmão Roberto).

4- Nelson Rodrigues é um mestre do "diálogo". Isento de literatice, seu diálogo é direto, enxuto, preciso, funcional. A linguagem é predominantemente coloquial.

5- Família e sexo: o que é socialmente transmitido como proibição, na esfera sexual e das relações afetivas, é sistematicamente violado. Neste sentido, o seu teatro constitui uma abordagem crítica à estrutura social brasileira, cujo sistema de relações e cujos valores de base têm sua aparente segurança abalada. Neste contexto se inserem os comportamentos de incesto (relação sexual entre parentes) e outras formas de relacionamento sexual culturalmente proibidas (entre pessoas do mesmo sexo, entre pessoas de raças ou classes sociais diferentes...) Na família, predomina uma aura de pudor e de repressão na esfera sexual, e o autor vai explicando a quebra de tabus familiares e sexuais, tais como a virgindade, a fidelidade, a intocabilidade entre os membros da família, o papel do pai e da mãe, e assim por diante.

6- A violência marca as relações inter-pessoais através de três situações típicas: a traição, o antagonismo e a exploração.

7- Crítica à imprensa: O teatro rodriguiano apresenta forte crítica às instâncias formadoras da opinião pública, sobretudo a imprensa, mostrando como e por que são construídos os fatos supervalorizados socialmente e como é falsa a neutralidade desses órgãos.

III - Enredo

Há, na obra de Nelson Rodrigues, duas fases distintas, embora complementares. em primeiro lugar, existe a fase mítica, em que o autor trabalha predominantemente com realidades arquetípicas, sem qualquer compromisso substancial com o mundo objetivo.

Já na sua segunda fase, balzaquiana, por assim por dizer, Nelson Rodrigues faz com que seus personagens desçam do Olimpo e se plantem no chão do mundo, no chão do subúrbio carioca, de onde passam a brotar com um vigor e uma autenticidade admiráveis. Esta transição se processa, no entanto, sem prejuízo dos aspectos míticos da obra, que continuam encravados no coração do teatro de Nelson Rodrigues e lhe conferem a sua grandeza poética e a sua universalidade.

Em Boca de Ouro, esse casamento entre o particular e o universal, entre o subúrbio, no que dele tem de mais peculiar, e a simbologia arcaica do inconsciente, no que esta possui de mais genérico, se faz de maneira psicológica e artisticamente perfeita. É claro que tal inserção de planos pode confundir e desorientar a crítica, mesmo avisada e experiente. Daí, por exemplo, a impressão de "salada", de desunidade, que um crítico da lucidez e da experiência de Paulo Francis denuncia em seu contato com a obra. Esta desunidade é, porém, aparente e não essencial. Ela decorre da perplexidade do espectador ante o encontro entre o mito e o subúrbio, e das surpresas e desdobramentos que surgem deste conúbio. Boca de Ouro, sendo um autêntico rei do jogo do bicho, brasileiríssimo e suburbano, é, ao mesmo tempo, o fulvo felino imemorial que nos habita a todos, o leão de Judo onipotente que cada um alimenta nas testas de sua fantasia profunda, todo músculo e toda força, além da morte, além do risco, além da solidão e do abandono.

Nelson Rodrigues, na estrutura de sua peca, mostra, sem qualquer dúvida, a sua intenção de universalizar certas realidades inconsciente fundamentais, que Boca de Ouro representa. Tanto é assim que o personagem só aparece, como presença autônoma, na primeira cena, no dentista, quando manda arrancar todos os dentes sadios para substituí-los por uma dentadura de ouro. Neste gesto o personagem define, desde logo, com um vigor absoluto, o cerne de seu projeto existencial. Boca de Ouro escolhe aí o caminho da potência onipotente da força desmesurada e agressiva através da qual espera agarrar a invulnerabilidade a que aspira. Os dentes naturais são perecíveis, envelhecem e morrem. Seu poder de domínio triturador está limitado pelas travas insuperáveis da condição humana. Boca de Ouro, ao optar pela dentadura que lhe deu o nome, busca transfigurar-se e imortalizar-se pelo caminho da agressão primitiva, aquém ou além do bem e do mal. Nesta medida, coroado rei por si mesmo(corado nos dentes), sentado no trono de seu despotismo sem limite, o personagem transcende o subúrbio e se configura como herói da espécie, violento e terrível.

Em virtude desta dimensão mítica é que Boca de Ouro, como ser autônomo, individual e individuado, já não mais aparece na peça. Ele existirá pelos olhos dos outros, terá as múltiplas faces que os outros lhe atribuem, será, além de si próprio, a encarnação das fantasias de onipotência que os outros, através dele, buscam exprimir. Esta é a linha psicológica pela qual a peça ganha unidade e profundidade, uma vez que os personagens: D.Guigui, Agenor, os jornalistas, a comparsaria que faz fila no necrotério, o locutor de rádio ao falar de Boca de Ouro, falam também de si e, ao criar a sua imagem mítica, se revelam nos seus sonhos de poder e despotismo. Os demais personagens ligados ao Boca de Ouro, e trazidos à cena pela narrativa de D. Guigui ao repórter, participam deste mesmo, desdobramento de planos psicológicos e, sendo vivos e autônomos, também representam focos de clarificação que iluminam o herói da peça e são por ele iluminado, desvendando, por último, a realidade interna da narradora que os faz viver.

Qual será, por fim, o significado profundo da peça de Nelson Rodrigues, e que alcance ético poderá ter? A chave da pergunta nos é dada pelo próprio autor, através da força intuitiva dos símbolos que cria. Boca de Ouro, nascido de mãe pândega, parido num reservado de gafieira, tendo perdido o paraíso uterino para defrontar-se com uma realidade hostil e inóspita, sentiu-se condenado `a condição de excremento. Seu primeiro berço foi a pia de gafieira, onde a mãe, aberta a torneira, o abandonou num batismo cruel e pagão. Esta é a situação simbólica pela qual o autor, com um vigor de mestre, expressa o exílio e a angústia humana do nascimento, o traumatismo que nos causa, a todos, o fato de sermos expulsos do Éden e rojados ao mundo, para a aventura do medo, do risco e da morte. Boca de Ouro, frente a esta angústia existencial básica, escolheu o caminho da violência e do ressentimento para superá-la. Ele, excremento da mãe, desprezando-se na sua imensa inercidade de rejeitado, incapaz de curar-se desta ferida inaugural, pretendeu a transmutação das fezes em ouro, isto é, da sua própria humilhação e fraqueza em força e potência. Esta alquimia sublimatória ele a quis realizar através da violência, da embriaguez do poder destrutivo pelo qual chegaria à condição de deus pagão, cego no seu furor, belo e inviolável na pujança de sua fúria desencadeada. Ao útero materno mau, que o expulsou e o lançou na abjeção, preferiu ele, na sua fantasia onipotente, o caixão de ouro, o novo útero eterno e incorruptível onde, sem morrer, repousaria. Acabou mal esse Boca de Ouro, esse belo sinistro, terrível e ingênuo herói, tão grande e tão miserável na sua revolta contra a condição humana. Ele que, pela violência homicida, pretendeu realizar o velho sonho da alquimia, de transmutação dos elementos, transformando-se a si próprio em ouro imperecível, acabou lançado à sarjeta, com a cabeça no ralo, crivado de punhaladas, reduzido à matéria de que tinha horror.

Depois de morto, roubaram-lhe a dentadura. Eis o nosso rei destronado, devolvido à sua solidão, fraco e pobre como o mais fraco e mais pobre dos seres.

Nelson Rodrigues, em Boca de Ouro, faz implicitamente o processo metafísico da violência, da vontade de poder, e sua lição é construtiva. Ele mostra a impossibilidade do homem de, pelo furor destrutivo, chegar a salvar-se. O ressentimento, como paixão existencial, e a raiva cega que dele decorre arrastam o ser humano para o abismo do aniquilamento da morte. O homem, sem dúvida, traz consigo, no mais íntimo de sua substância ontológica, a vocação da alquimia, a sede de transfiguração, o instinto que o leva a tentar a transformação do barro em ouro. Mas este milagre só se opera na medida em que o homem se aceita e se ama na sua fragilidade, na argila perecível e corruptível que ele também é, para além de qualquer ressentimento. Nesse instante, sem o saber, eis que encontra em suas mãos a pedra filosofal que o transfigura e lhe abre as portas da luz que não se apaga.

Osman Lins

Os melhores contos de Osman Lins, de Sandra Nitrini

No livro Os melhores contos de Osman Lins, seleção de Sandra Nitrini, encontram-se contos cuja obra revela um narrador dos mais seguros e fortes da moderna ficção brasileira, revelando, igualmente, o mais importante representante da ficção nordestina atual.

Lins não incorporou a tradição ficcional regionalista, sendo Lisbela e o Prisioneiro o exercício dramatúrgico que carrega no sotaque nordestino.

Os contos escolhidos para a seleção de Sandra Nitrini reúnem dois momentos diferentes da carreira de Osman.

Alguns contos foram extraídos da obra Os Gestos, seu segundo livro, publicado em 1957, no qual ele já fugia de temas que podiam acorrentá-lo ao rótulo regionalista (em Osman, a ação costuma ocorrer de dentro para fora). Esses contos abordam temas como a perda, o conflito de gerações, a falta de afeto, a passagem do tempo, a transição da infância para a adolescência e a busca da liberdade. São eles: "Os Gestos", "Reencontro", "A Partida", "Cadeira de Balanço", "O Vitral" e "Elegíada".

Outros contos foram tirados da obra Nove, Novena, publicada em 1966, quando o autor dava pistas do caminho de experimentações radicais que iria gerar o livro Avalovara. Esses contos são: "Os Confundidos", "Conto barroco Ou Unidade Tripartida", "Pentágono de Hahn", "O Pássaro Transparente", "Pastoral" e "Retábulo de Santa Joana Carolina".

Os contos pertencentes ao livro Nove, Novena diferenciam-se dos contos de Os gestos pela quebra da ilusão da realidade com a rarefação e a dispersão do enredo, por novos processos de composição da personagem e por alta dose de reflexão sobre o texto, o que lhes permite representarem um momento de decisiva modernidade na Literatura Brasileira na década de 70.

Por linhagem machadiana, a organizadora Sandra Mitrini aponta o fato de Osman sempre investigar o universo interior das suas personagens. Muitas delas, dentro daquela elástica classificação de excluídos, flagrados em situações cotidianas, banais à primeira vista.

Confinados no espaço doméstico, vivenciando relacionamentos familiares tensos e opressores, as personagens, flagradas em instantâneos do cotidiano, em alguns casos, com maior, em outros com menor densidade dramática, impõem-se pela consistência e complexidade de sua fisionomia interna, sempre traçada com firmeza.

Em Osman, todos os detalhes e objetos servem como complemento da narrativa, nada está ali em vão. Tudo é calculado. Em "A partida", do livro Os gestos, por exemplo, o arrastar dos chinelos da avó, o tique-taque do relógio, o ranger das janelas servem como trilha sonora do amor opressor em que vive a personagem, que deseja largar a família para conhecer e demarcar o mundo.

Seus livros entrelaçam narrativas paralelas e lançam mão de símbolos gráficos que permitem ainda mais interpretações. A incomunicabilidade das personagens está presente em muitos textos. O protagonista do conto "Os Gestos", por exemplo, o velho André, está fisicamente enclausurado, encarando a impossibilidade das palavras e ambigüidade dos gestos incompreendidos.

Vejamos a seguir, observações sobre alguns dos contos que compõem essa seleção de Sandra Nitrini.

No conto "A partida", Osman Lins narra o momento em que ele saiu da casa de sua avó. Em "Os confundidos", um casal soterrado pelo cotidiano, pelo ciúme, mistura identidades e tempos verbais. Cada um é si próprio e também o outro em um caminho que parece sem volta – Quero sair disto, não foi de modo algum para este sofrimento que meu corpo reagiu à morte. Mas como, se perdi a identidade e não sei mais quem sou? Somos como dois corpos enterrados juntos, corroídos pela terra, os ossos misturados. Não sei mais quem eu sou.

O conto "O pássaro transparente" ou o conto "Os confundidos", por envolver um único conflito dramático para cuja resolução se encaminha de pronto o fio fabular, pode ser visto como conto, embora não-linear.

Nos monólogos interiores de "O pássaro transparente", misturam-se em ziguezague o passado e o presente do protagonista, um homem de meia-idade bem posto na vida, mas existencialmente frustrado, ao passo que sua ex-namorada acaba por realizar o sonho de juventude de ambos: partir para a Europa e lá desenvolver suas aptidões artísticas. A condensação de sentidos possibilitada por essa montagem descontínua de flagrantes temporais, com dinamizar a forma do conto, ameaça romper os limites que a separam da forma da novela.

Aliás, em matéria de condensação de sentidos, "Os confundidos" vão às últimas conseqüências. Por permutação e confusão, as terminações verbais ora separam em dois, ora fundem num só "eu" os dois interlocutores da narrativa, ele a acusá-la de infidelidade, ela a defender-se do seu ciúme doentio. Esses amantes a girar obsessivamente um em torno do outro são passíveis de várias e igualmente ambíguas leituras como figurações da fusão amorosa ("transforma-se o amador na coisa amada"), da fenomenologia do ciúme (caçador e caça confundidos na entreperseguição) ou da paixão imaginária (o "eu" esquizofrenicamente desdobrado em "ele" e "ela").

Por sua vez, o conto "Retábulo de Santa Joana Carolina", tem narrativa longa e, embora esteja centrada na biografia de sua protagonista, narra-a numa sucessão de células dramáticas, cada uma delas com começo, meio e fim, entremeadas de trechos digressivos, pelo que fica bem caracterizada a forma de novela.

Embrião de romance ou micro-romance, pela sua pluralidade de ações e vozes monologantes ou dialogantes, é uma narrativa como a do conto "Pentágono de Hahn". Há nela um núcleo singular, típico do conto, a emocionante chegada de Hahn, uma elefanta de circo, à cidade de Vitória, em Pernambuco, e a sua partida de lá dias depois. Só que esse núcleo, em si e por si, nada tem de dramático. Serve apenas de agente catalítico para desencadear reações de vária espécie no íntimo de alguns dos moradores da cidade. Mais precisamente, em cinco deles, de cujas reações tomamos conhecimento através de seus monólogos interiores, agrupados em torno da figura central da elefanta, à maneira de um pentágono.

Nesta narrativa de Osman Lins, os diversos monólogos interiores focalizam na elefanta, figuração do exótico, seus desejos de fuga para longe da mesquinharia e da repetitividade de um cotidiano onde os sonhos jamais se poderão realizar.

Cada um dos monologantes de "Pentágono de Hahn" é identificado por um sinal gráfico específico, que lhe encabeça toda vez as ruminações ou falas consigo mesmo. Sinais que fazem lembrar as cifras, abreviaturas ou símbolos astrológicos, alquímicos e musicais, sendo que a lembrança destes últimos tem pertinência mais próxima: com a sua polifonia de mudas vozes autodialogantes, o texto de certas narrativas de Nove, Novena semelha uma partitura musical que se lê em silêncio, como os músicos de profissão.

A hora da estrela – Clarice Lispector

Neste, que foi seu último livro publicado em vida, Clarice constrói a personagem de Macabéa como vista pelo fictício, irônico e auto- depreciativo escritor/narrador Rodrigo S.M. Macabéa era uma miserável alagoana criada por uma cruel e ignorante tia beata (os pais, cujo nome Macabéa ignora, morreram quando ela tinha dois anos). Macabéa cresce vazia e sem ciência da própria existência ou de sua finitude. Após ser despedida e a tia morrer, ela emigra para o RJ, onde passa a morar num cubículo com quatro colegas de seu novo trabalho (é datilógrafa) e começa a namorar um paraibano chamado Olímpico de Jesus. O ganancioso Olímpico, que não media esforços para ascender socialmente, a troca por Glória, sua colega de trabalho, que lhe possibilitaria esta ascensão. Depois de um pouco tempo ela visita Carlota, uma cartomante, que lhe prevê um belo futuro. Ao sair da cartomante "grávida do futuro", como diz a autora, ou seja, ciente de algo além do presente, é atropelada por um carro de luxo e morre. Mas a história em si tem menor importância no todo: para Clarice Lispector, a reflexão é mais importante do que a ação. Macabéa é uma personagem sem conteúdo, pobre de alma, um acaso que ensaia agir e pensar, mas com pouco sucesso. Ela pouco faz, simplesmente reage e por vezes se indaga perguntas cuja resposta ela não consegue. Isto vai até o momento de sua morte, quando está mais ciente de si; ao ser atropelada, torna-se a estrela do que acontece: é sua hora de estrela.

MODERNISMO EM PORTUGAL

Fernando Pessoa

Um dos maiores poetas de língua portuguesa, comparado a Camões: Fernando

António Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa a 13 de junho de 1888 e ali faleceu em 1935.

Viveu a maior parte de sua juventude na África do Sul, deixando-se influenciar pela

língua inglesa (traduzindo, escrevendo, trabalhando e estudando no idioma). Trabalhou

em jornalismo, em publicidade, no comércio e, principalmente, na literatura, criando

vários outros EUS, conhecidos como seus heterônimos. A figura misteriosa em que se

transformou incita grande parte dos estudos sobre sua vida e obra - é considerado o

maior autor da heteronímia. Morre aos 47 anos. Sua última frase foi escrita em inglês: "I

know not what tomorrow will bring...” Entre pseudônimos, heterônimos e semiheterônimos

contam-se 72 nomes.

Pessoa por Almada Negreiros

Ortônimo: Sua obra ortônima (assinando Fernando Pessoa) tem diferentes etapas,

temos aí um certo patriotismo perdido (sebastianismo reinvento) e influenciado por

doutrinas religiosas como a teosofia e sociedades secretas como a Maçonaria. Tem

poesia de certo ar mítico, heróico (quase épico, mas não na acepção original do termo), e

por vezes trágico. Vê o mundo de uma forma múltipla, o que explica ter criado os

célebres heterônimos - Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, sem

contarmos ainda com o semi-heterônimo Bernardo Soares. A principal obra de "Pessoa

ele-mesmo" é Mensagem, coletânea de poemas sobre os grandes personagens históricos

portugueses, publicada enquanto estava vivo. Vemos em sua extensa obra a influência

do Simbolismo e das Vanguardas Européias.

Heterônimos

Álvaro de Campos: foi o único a manifestar fases poéticas diferentes. Era um

engenheiro de educação inglesa e origem portuguesa, mas sempre com a sensação de

ser um estrangeiro em qualquer parte do mundo. Começa sua trajetória como simbolista

mas logo adere ao Futurismo. Com as desilusões da existência, assume uma veia

niilista, expressa naquele que é considerado um dos poemas mais conhecidos e

influentes da língua portuguesa, Tabacaria.

Ricardo Reis: um médico que se definia como latinista e monárquico. De certa maneira,

simboliza a herança clássica na literatura ocidental, expressa na simetria, harmonia, um

certo bucolismo, com elementos filosóficos. O fim de todos os seres vivos é tratado de

forma clássica, depurada e disciplinada. Mudou-se para o Brasil em protesto à

proclamação da República em Portugal e não se sabe o ano de sua morte. Ricardo

revela-se na ode Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia, dois jogadores de xadrez

prosseguem a partida mesmo sabendo que a destruição e a morte campeiam na sua

cidade que o inimigo invadiu. E sentencia: “Quando o rei de marfim está em perigo / Que

importa a carne e o osso / Das irmãs e das mães e das crianças? / Quando a torre não cobre / A

retirada da rainha branca, / O sangue pouco importa”.

Alberto Caeiro: nasceu em Lisboa mas viveu como camponês, quase sem estudos formais, teve apenas a instrução primária, mas é considerado o mestre entre os heterônimos (pelo ortônimo,

inclusive). Com a morte dos pais, ficou na casa com uma tia-avó, com pouco dinheiro e morreu

de tuberculose. Também é conhecido como o poeta-filósofo mas, rejeitando este título, pregava

uma "não-filosofia". Acreditava que os seres simplesmente são e nada mais: irritava-se com a

metafísica e qualquer tipo de simbologia para a vida. Dos principais heterônimos de Fernando

Pessoa, Caeiro foi o único a não escrever em prosa. Alegava que somente a poesia seria capaz

de dar conta da realidade. Possuía uma linguagem direta, concreta e simples mas, ainda assim, bastante complexa do ponto de vista reflexivo: Há metafísica bastante em não pensar em nada.

Álvaro de Campos é amoral, imoral. Nos seus poemas, vemos: a idéia da perda

da inocência de uma criança de oito anos (Ode II, ad finem) [Ode Triunfal] e se satisfaz

das sensações muito fortes – a crueldade e a luxúria, por exemplo. Esta postura percorre

seus poemas futuristas. Há semelhante teor presente nos poemas de Alberto Caeiro e

Ricardo Reis. Caeiro, no poema Ontem o pregador de verdades dele: “Haver injustiça é como

haver morte / Eu nunca daria um passo para alterar / Aquilo a que chamam a injustiça do

mundo”. Este aspecto é um daqueles em que é mais notória a influência, ou, pelo menos,

a proximidade, da estética futurista de Marinetti (que, contudo, Pessoa sempre

recusou). Detectamos aí falta de solidariedade social e mesmo humana comum na obra

do poeta. Autor de direita? É absurdo tentar classificar um poeta como Pessoa de

acordo com critérios políticos.

Pessoa estava mais interessado em uma arte maior, onde questões políticas,

sociais ou mesmo morais não importavam. Apresentam também exemplos que

desencorajam conclusões simplistas. Contudo, no final da sua vida, Pessoa foi autor de

textos (e mesmo de poemas) que transpareciam um profundo mal-estar em relação a

Salazar e à recém estabelecida ditadura do Estado Novo. Há também poemas do Pessoa

ortônimo imbuídos da tal solidariedade — e mesmo moralismo — que a hortonomia

parece tendencialmente negar, como "O menino de sua mãe" ou "Tomamos a vila

depois de um intenso bombardeamento".

Trabalhou como free lancer. Assim, podia trabalhar dois dias por semana,

deixando os demais apenas para dedicar-se à sua grande paixão: a literatura. A poetisa

brasileira Cecília Meireles foi a Portugal, para proferir conferências na Universidade de

Coimbra e Universidade de Lisboa, em 1934. Um grande desejo seu era conhecer o

poeta de quem se tinha tornado admiradora. Através de um dos escritórios para o qual

trabalhava o poeta, conseguiu comunicar-se com ele e marcar um encontro. Esse

encontro ficou fixado para o meio-dia, mas ela esperou inutilmente até as duas da tarde,

sem que Fernando Pessoa desse o ar de sua presença. Cansada de esperar, Cecília

voltou ao hotel e teve a surpresa de encontrar um exemplar do livro Mensagem e um

recado do misterioso poeta, justificando que não comparecera porque consultara os

astros e, segundo seu horóscopo, “os dois não eram para se encontrar”. Realmente, não

se encontraram, nem houve mais muita oportunidade para isso, já que no ano seguinte

Fernando Pessoa faleceu.

Frases de Pessoa:

1 - Navegar é preciso, viver não é preciso

2 - Mar Portuguez: Claro que o vocábulo português não é escrito com guez. Já foi. Nem

sei dizer quando mudou, tantas as mudanças ortográficas da língua. A expressão faz

parte do poema Mensagem, que canta a "possessio maris". Todas as reedições das obras

de Fernando Pessoa mantêm determinadas expressões de Mensagem à antiga, como esta,

o Mar Portuguez, assim mesmo, de antigamente, Occidente e Oriente.

3 - Rio da minha aldeia: "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha

aldeia" Alberto Caeiro

4 - “Todas as cartas de amor são rídiculas”

5 – “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”: também é de Mensagem, Mar

Portuguez, vejam:

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu.

Em duas estrofes, três pérolas: o mar salgado; o tudo vale a pena, o Bojador. Ler

Pessoa? Devia ser prazer obrigatório.

6 - “Cadáver adiado que procria”: igualmente, é de Mensagem

7 - “O poeta é um fingidor”

TABACARIA

Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,

Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é

(E se soubessem quem é, o que saberiam?),

Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,

Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,

Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,

Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,

(...)

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.

Estou hoje dividido entre a lealdade que devo

À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,

E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.

Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

A aprendizagem que me deram,

Desci dela pela janela das traseiras da casa.

Fui até ao campo com grandes propósitos.

Mas lá encontrei só ervas e árvores,

E quando havia gente era igual à outra.

Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?

Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!

E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!

(...)

Não, não creio em mim.

(...)

O mundo é para quem nasce para o conquistar

E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.

Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.

Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,

Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.

(...)

Serei sempre o que não nasceu para isso;

Serei sempre só o que tinha qualidades;

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem

porta,

E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,

E ouviu a voz de Deus num poço tapado.

Crer em mim? Não, nem em nada.

Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente

O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,

E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.

Escravos cardíacos das estrelas,

Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;

Mas acordamos e ele é opaco,

Levantamo-nos e ele é alheio,

Saímos de casa e ele é a terra inteira,

Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;

Come chocolates!

Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.

Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.

Come, pequena suja, come!

Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!

Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,

Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei

A caligrafia rápida destes versos,

Pórtico partido para o Impossível.

Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,

Nobre ao menos no gesto largo com que atiro

A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,

E fico em casa sem camisa.

(...)

Meu coração é um balde despejado.

Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco

A mim mesmo e não encontro nada.

Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.

Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,

Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,

Vejo os cães que também existem,

E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,

E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,

E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.

Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,

E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses

(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);

Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo

E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube

E o que podia fazer de mim não o fiz.

O dominó que vesti era errado.

Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.

Quando quis tirar a máscara,

Estava pegada à cara.

Quando a tirei e me vi ao espelho,

Já tinha envelhecido.

Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.

Deitei fora a máscara e dormi no vestiário

Como um cão tolerado pela gerência

Por ser inofensivo

E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,

Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,

E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,

Calcando aos pés a consciência de estar existindo,

Como um tapete em que um bêbado tropeça

Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.

Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada

E com o desconforto da alma mal-entendendo.

Ele morrerá e eu morrerei.

Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.

A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.

Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,

E a língua em que foram escritos os versos.

Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.

Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente

Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como

tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,

Sempre uma coisa tão inútil como a outra,

Sempre o impossível tão estúpido como o real,

Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,

Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)

E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.

Semiergo-me enérgico, convencido, humano,

E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Álvaro de Campos, 15-1-1928

O Primo Basílio, de Eça de Queirós

Análise da obra

Publicado em 1878, O Primo Basílio é um dos mais famosos "romances de tese" de Eça de Queirós.

Narrado em 3ª pessoa, apresenta um narrador onisciente que não consegue distanciar-se por completo de suas personagens, o que se caracteriza pela sua onisciência pelo emprego do discurso livre indireto. Há uma intimidade-identificação entre quem narra e quem vive a história.

Eça de Queirós reproduz os acontecimentos, os tipos e os comportamentos humanos das personagens de forma fiel. Há um abuso do recurso da descrição e um exagero no uso de adjetivos. A ironia é também intensamente presente neste romance.

A história de passa na segunda metade do século XIX.

O espaço é Lisboa, o Alentejo, o Paraíso e Paris. Estes últimos lugares não são mencionados diretamente pelo narrador, mas apenas referidos.

Lisboa é o cenário da crítica de Eça de Queirós, é por onde transitam as personagens e onde elas expõem suas condições sócio-econômicas e históricas, é a sociedade portuguesa. O Alentejo é o espaço que rouba Jorge de Luísa, deixando-a num marasmo sem fim. Paris é o cenário que devolve Basílio à Luísa, trazendo alegria e a novidade de uma vida de prazeres e aventuras. A casa é o espaço privilegiado do romance, onde se passam as cenas entre Luísa e Juliana. O Paraíso serve de contraponto da vida doméstica e do mundo das alcovas.

As personagens de O Primo Basílio podem ser consideradas o protótipo da futilidade, da ociosidade daquela sociedade.

Influenciado pela fase realista de Balzac e por Flaubert, Eça de Queirós faz, nesta etapa de sua carreira, um inquérito da vida portuguesa.

A obra combate as principais instituições: a Burguesia, a Monarquia e a Igreja. Critica a cidade, a fim de sondar e analisar as mesmas mazelas, desta vez na capital: para tanto, enfoca um lar burguês aparentemente feliz e perfeito mas com bases falsas e igualmente podres.

A criação dessas personagens denuncia e acentua o compromisso de O primo Basílio com o seu tempo: a obra deve funcionar como arma de combate social. A burguesia - principal consumidora dos romances nessa época - deveria ver-se no romance e nele encontrar seus defeitos analisados objetivamente, para, assim, poder alterar seu comportamento. O autor critica veementemente o comportamento medíocre da família lisboeta de classe média e usa o adultério como pano de fundo.

Personagens

Luísa: representa a jovem romântica, inconseqüente em suas atitudes, a adúltera ingênua e, no final, arrependida. É o retrato da futilidade, da fragilidade e da ociosidade que caracterizavam as mulheres de sua classe e de seu tempo. Mimada a sonhadora, Luísa precisava ser amparada por uma figura masculina; por isso, quando se vê sem o apoio do marido por perto, procura abrigo a proteção nos braços do primo.

Basílio: o conquistador e irresponsável, "bom vivant" pedante e cínico. Personagem desprovido de qualquer senso moral. Joga com o sentimento alheio. Não tem compromisso com nada nem com ninguém. É o protótipo do filho pródigo, do janota, do "almofadinha". É ele quem serve de elo na medição de forças entre duas mulheres tão diferentes: a frágil Luísa e a obstinada Juliana.

Jorge: Personagem caracterizada por certa hipocrisia masculina aliada à sua tranqüilidade, à sua capacidade de ponderação. Achava que tinha o direito de julgar as mulheres que tinham amantes, chamando-as de promíscuas, devassas, mas ele próprio teve um caso passageiro em Alentejo do qual apenas o amigo Sebastião tinha conhecimento.

Conselheiro Acácio: Homem de palavratório complicado e inútil. Tipifica o formalismo próprio da época, o falso moralismo, o apego às aparências. Amigo do pai de Jorge e padrinho do casamento, gosta de frases feitas e citações morais, mas, na vida privada, lê poemas obscenos de Bocage e mantém como amante a empregada, Adelaide, a qual, por sua vez, o trai com um caixeiro. É um dos tipos mais famosos da galeria queirosiana, e responsável pelos adjetivos "acaciano" e "conselheiral", usados quando se deseja aludir ao falso padrão moral de alguém.

Juliana: personagem mais completa e acabada da obra, tem sido vista como o símbolo da amargura e do tédio em relação à profissão. Feia, virgem, solteirona, bastarda, é inconformada com sua situação e por isso odeia a tudo e a todos, não se detendo diante de qualquer sentimento de fundo moral. É a representante maior da população que circundava o lar do engenheiro.

Leopoldina: encarna o avesso da moral da época. Adúltera, fumante, escandaliza a toda a sociedade. Age conscientemente, possui vários amantes.

Ernestinho Ledesma: primo de Jorge, é um escritor vazio, preocupado com dramalhões românticos, os quais escreve para o teatro.

Enredo

Os protagonistas dessa obra são Jorge que além de ser um bem-sucedido engenheiro, é funcionário de um ministério, e Luísa, uma moça romântica e sonhadora. Formam o típico casal burguês de classe média da sociedade lisboeta do século XIX. Para completar a felicidade do casal faltavam-lhe apenas um filho.

Havia um grupo de amigos que freqüentava sempre a casa do casal, como era chamada a residência pela vizinhança pobre. Este grupo era constituído por D. Felicidade, a beata que sofria de crises de gasosas, que morria de amores pelo Conselheiro; Sebastião, amigo íntimo de Jorge; Conselheiro Acácio, o bem letrado; Ernestinho, e as empregadas Joana, que era assanhada e namoradeira, e Juliana que era revoltada, invejosa, despeitada e amarga, responsável pelo conflito do romance.

Luísa ainda mantém amizade com uma antiga colega, Leopoldina - chamada a "Pão-e-Queijo" por suas contínuas traições e adultérios, o que não é bem visto pelo marido. Por conta disso, Juliana, a empregada maldosa, espera apenas uma oportunidade para apanhar a patroa "em flagrante".

A felicidade e a segurança de Luísa passam a ser ameaçadas quando Jorge viaja a trabalho para Alentejo afim de fiscalizar suas minas. Após a partida, Luísa fica enfadada sem ter o que fazer, no marasmo e em uma melancolia pela ausência do marido. É nesse meio-tempo que Basílio chega do exterior. Ele e Luísa haviam namorado antes dela conhecer Jorge.

Conquistador e "bon vivant", o primo não leva muito tempo para reconquistar o amor de Luísa, agora transformado em ardente paixão e isso faz com que Luísa pratique o adultério.

Os encontros entre os dois se sucedem, há troca de cartas de amor. Uma delas é interceptada por Juliana, graças aos conselhos "sábios" de tia Vitória. A empregada começa chantagear a patroa, Luísa. Com isso, Luísa se transforma em escrava de Juliana, e começa a adoecer. Por causa de sua frágil constituição, os maus tratos que sofre de Juliana logo lhe tiram o ânimo, minando-lhe a saúde. Basílio foge covardemente, deixando-a sem apoio.

Jorge volta e de nada desconfia, pois Luísa satisfaz todos os caprichos da criada, enquanto tenta todas as soluções possíveis, até que encontra a ajuda desinteressada e pronta de Sebastião, o qual, armando uma cilada para Juliana, intentando levá-la presa, acaba por provocar-lhe um ataque e a morte.

É um novo tempo para Luísa, cercada do carinho de Jorge, de Joana e da nova empregada, porém, tarde demais: enfraquecida pela vida que tivera de suportar sob a tirania de Juliana, é acometida por uma violenta febre. Em delírio, conta a Jorge seu adultério, fazendo-o entrar em desespero e, no entanto, perdoar-lhe a traição. De nada adiantam os carinhos e cuidados do marido e dos amigos de que foi cercada, nem o zelo médico que chegou a raspar-lhe os longos cabelos. Luísa morre e o lar antes "formalmente feliz", se desfaz.

O romance termina com a volta de Basílio e seu cinismo, ao saber da morte da amante, quando comenta com um amigo que se soubesse que Luísa havia morrido teria trazido Alphonsine, a amante que tem em Paris.

José Saramago – Ensaio sobre a cegueira

O Caos das sensações.

Contexto

 

Publicado inicialmente em 1995, a obra mostra o caos que se chega quando um dos sentidos falta a uma grande parcela da população. Evidencia uma epidemia de cegueira que atinge toda a população.

Intitulada Ensaio, a obra de Saramago critica os valores sociais, mostrando-os frágeis, pois onde ninguém vê, teoricamente nada aparece, elucidando que os valores, sejam morais ou materiais, são atribuições que homem faz. Neste contexto, a obra mostra desde aventuras sexuais, o pudor, que já não existe porque não é visto, até à imundície que se instala por toda a cidade.

Resumo

O Ensaio sobre a cegueira  é uma crítica aos valores sociais, expondo o caos a que se chega quando a maioria da população cega. Revela traços da sociedade portuguesa contemporânea, vislumbrando a maneira como as pessoas vivem através de suas descrições das casas, dos utensílios, das roupas. As personagens não têm nomes, sendo descritas por características próprias – o primeiro cego, o médico, a mulher do primeiro cego, a rapariga de óculos, entre tantos outros que aparecem no desenrolar da narrativa, onde uma epidemia se alastra a partir de um homem que cega esperando o semáforo abrir.

Inexplicável é a imunidade da mulher do médico, parecendo que sua bondade, sua preocupação com o marido, mesmo convivendo entre os cegos sem medo de cegar, a impede de contrair a moléstia. Mas a solidariedade da mulher do médico estende-se, ainda, àqueles de convívio mais estrito, sendo verdadeiro anjo de guarda dos que dividem com ela a enfermaria do hospício abandonado em que são confinados os primeiros a contrair o mal.

De característica onisciente, a narrativa leva-nos a refletir sobre a moral, os costumes, a ética e o preconceito, pois faz com que a mulher do médico se depare com situações inadmissíveis às pessoas em condições normais. Exposta à sujeira, a uma existência miserável em todos os sentidos, ela mata para preservar a si e aos demais, e se depara com a morte de maneira bizarra após a saída do hospício: os cadáveres se espalham pelas ruas, o fogo fátuo aparece debaixo das portas do armazém onde, dias antes, ela buscou víveres.

A igreja com os santos de olhos vendados pode ser caracterizada como um dos momentos poéticos da obra: se os céus não vêem, que ninguém veja, numa alusão velada às idéias do filósofo Friderich Nietzshe, "se deus está morto, então tudo posso".

Saramago ainda brinca com a imaginação do leitor nas últimas linhas, deixando implícita a cegueira daquela que foi a única que viu em meio à treva branca, justamente no momento em que todos recuperam, aos poucos, a visão.

Estilo

 Pode-se afirmar que a obra é difícil de ser lida não apenas pelo seu contexto filosófico, mas pelo estilo de José Saramago: as falas entre vírgulas forçam o leitor a um verdadeiro mergulho em suas idéias, pois é impossível parar em meio às idéias do autor. A desconstrução do tempo linear em suas idas e vindas nas memórias das personagens, as características únicas, a mesquinhez presente evocam a reflexão sobre os valores que cada um de nós tem da vida, da moral, dos costumes e até mesmo do que nos é caro: onde está a mãe do menino estrábico? Cegou, morreu? A rapariga de óculos que, em princípio, parece não ter valores, mostra-se filha amorosa, amiga e uma mulher capaz de amar, não pela beleza física, mas pela ternura que as situações a levam.

Personagens

 Como exposto anteriormente, as personagens não caracterizadas por seus nomes, mas por particularidades. Podemos destacar como personagens principais os ocupantes da camarata onde estavam o médico, o primeiro cego, a mulher do primeiro cego, a rapariga de óculos e o velho com a venda num dos olhos.

 Como personagens secundários ou coadjuvantes, os cegos que promovem o levante para a redistribuição da comida, aqueles que encontram-se na camarata do cego que tem uma arma, o cego que escreve em braile, a mulher que estava com o cego que tem a arma no momento em que este é assassinado pela mulher do médico, o ladrão, os soldados, entre tantos outros.

Memorial do Convento, de José Saramago

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Análise da obra

Publicado em 1982, o Memorial do Convento, de José Saramago, narra o período de construção de um Convento, em Mafra, em cumprimento de promessa feita pelo rei D. João V. Concomitantemente, é narrada a construção de uma passarola, sonho do padre Bartolomeu com os auspícios do rei, mas perigosamente à margem do Santo Ofício. O padre é ajudado pelo casal Baltasar / Blimunda.

Uma das questões corticais neste romance é a fronteira entre a história e a ficção. Saramago não se vê como um escritor histórico mas antes como um autor de uma história na História. O seu argumento traduz-se numa estratégia narrativa que entrecruza três planos relevando o da ficção da História e o do Fantástico em detrimento do plano da História.

Memorial do Convento consegue articular um plano da História (Portugal no século XVIII, durante o reinado de D. João V, com Autos-de-Fé, procissão de penitentes, casamento dos infantes...) com um plano da ficção da História (elementos históricos que são moldados pela ficcionalidade transformando, por exemplo, D. João V e a rainha Ana de Áustria em caricaturas e elevando, na edificação de Mafra, um herói coletivo e anônimo – os milhares de trabalhadores) e o plano do Fantástico (construção da Passarola, sonho de Blimunda, Baltasar, personagens ficcionais e Bartolomeu Lourenço, figura histórica do tempo).

Neste romance, Saramago transforma Mafra num símbolo do país.

A escrita de Saramago integra-se nos novos caminhos do romance em Portugal nos últimos anos tendo sabido recriar os caminhos do Fantástico. Em Memorial do Convento, a vertente fantástica, não sendo instituída como referência isotópica primordial, funciona pela oposição ao mundo retratado, como elemento fundamental. No romance, a realidade histórica encontra-se enleada nas teias da ficção e mais concretamente no fantástico quando fatos conhecidos pelo leitor são cruzados com elementos meta-empíricos, como o ânimo que dá ao homem a possibilidade de voar e o jejum que comunica à filha da feiticeira a capacidade de vislumbrar o interior dos humanos. O fantástico torna-se em Saramago "um modo de exacerbar a atenção sobre a terra portuguesa, sobre as suas demasias e os seus golpes.

Estrutura da obra

O romance está dividido em 25 capítulos não-denominados, sem numeração alguma também, estabelecendo-se como divisão apenas os espaços em branco entre os que compõem a obra.

Espaço / Tempo

No romance existem alguns espaços nomeados:

1. O palácio que abriga a nobreza de D. João V, por onde o clero transita com facilidade;

2. As ruas de Lisboa, sempre cheias da "arraia-miúda", o povo pobre , faminto;

3. A quinta (chácara) para onde vão Blimunda e Baltazar construir a Passarola;

4. A cidade de Mafra e os arredores.

O tempo narrativo é do tipo cronológico e está inserido entre duas datas: "dezessete de novembro deste ano da graça de 1717" e , como indica o último capítulo, a data da morte do escritor e comediógrafo brasileiro Antônio José da Silva, o Judeu, autor das Guerra de Alecrim e Manjerona, em 1739.

Ou seja, a história que vamos analisar tem duração temporal de 22 anos.

O volume percorre um período de aproximadamente 30 anos na História de Portugal à época da Inquisição. O cenário é rico, registrando não só o fato histórico, mas reconstituindo a vivência popular, numa viagem a diferentes povoados ao redor de Lisboa.

Foco narrativo

A obra, de imediato, traz uma novidade para o leitor: o narrador, indubitavelmente onisciente, comporta-se de uma forma inusitada ao apresentar a fala dos personagens. A forma canônica de se materializar o discurso direto é com a utilização dos chamados verbos dicendi e de uma notação constituída por dois pontos (:) e travessão (—) ou aspas (" "). Saramago não se utiliza desse expediente, adotando uma forma nova:

Blimunda levantou a cabeça, olhou o padre, viu o que sempre via, mais iguais as pessoas por dentro do que por fora, só outras quando doentes, tomou a olhar, disse, Não vejo nada. O padre sorriu, Talvez que não tenha vontade, procura melhor, Vejo, vejo uma nuvem fechada sobre a boca do estômago. O padre persignou-se, Graças a Deus, agora voarei. (p. 124)

O foco narrativo do romance é do tipo cambiante, também chamado múltiplo, com predominância em 3ª pessoa.

Enredo

José Saramago volta a apresentar no romance, um contador de histórias, Manuel Milho, trabalhador na construção do Convento de Mafra e amigo de Baltasar Sete-Sóis, um dos protagonistas da narrativa. Em volta de uma fogueira, antes de dormir, sentavam-se os amigos para ouvir a história contada  por Manuel Milho por etapas, deixando o melhor da história sempre para o dia seguinte, acirrando, assim,  a curiosidade dos ouvintes que resistiam contra a postergação do fim da narrativa:  "... O José Pequeno protestou, Nunca se ouviu história assim, em bocadinhos, e Manuel Milho emendou, Cada dia é um bocado de história, ninguém a pode contar toda... (Memorial do Convento - pág. 253). A história de Manuel Milho acaba com uma lição moral que ensina aos ouvintes o exemplo daqueles que perseguiram tenazmente as suas vontades.

D. João V está casado com D. Maria Ana Josefa há mais de dois anos, mas ela ainda não engravidou. A rainha reza novenas e, duas vezes por semana, recebe o rei em seus aposentos.É preciso dizer aqui que o rei, quando ambos se casaram, dormia com ela todos os dias, mas resolveu separar os aposentos por causa de um cobertor de penas de ganso que trouxe ela da Áustria, e, com o passar do tempos, somando-se a ele humores de ambos, passou a ter cheiro insuportável. O rei não fez ainda 22 anos e monta, para se distrair e porque gosta, a réplica da Basílica de S. Pedro.

Mas, O cântaro está à espera da fonte, metáfora para definir que a rainha está à espera do rei como se fora um vaso onde ele depositará seu sucessor. E para os aposentos da rainha o rei se dirige, mas, como se fosse um apresentador, o narrador nos informa que chegou ao castelo D. Nuno da Cunha, bispo inquisidor, e traz consigo um franciscano velho. Afirma o bispo que o frei Antônio de São José assegurou que se o rei se dignasse a construir um convento em Mafra, teria descendência:Enquanto isso, a rainha conversa com a marquesa de Unhão, rezam jaculatórias e proferem nomes de santos. Saído o bispo e o frei, o rei se anuncia D. Maria tem que "guardar o choco", a conselho dos médicos e murmura orações, pedindo ao menos um filho que seja. Sonha com o infante D. Francisco, seu cunhado e dorme em paz. Em paz? Os percevejos, mal cessam as mexidas no colchão real, "começam a sair das fendas, dos refegos, e se deixam cair do alto do dossel, assim tornando mais rápida a viagem." D. João também sonhará esta noite, em seu quarto. Sonhará com seus descendentes, com o filho que poderá advir da promessa da construção do convento de Mafra. Um convento, conforme disse frei Antônio de S. José, só para franciscanos...Frei Miguel da Anunciação morreu de tifo (ou febre tifóide) e seu corpo exalou, durante três dias, nas cerimônias, um suavíssimo cheiro: "(...) se vivo fizera caridades, defunto obrava maravilhas." A notícia correu e, antes que invadissem a igreja à procura de milagres, levaram o corpo às ocultas, e às ocultas o enterraram:

O narrador enfatiza que Lisboa é terra de ladrões que pilham as igrejas e acrescenta que outros lugares também foram roubados: Guimarães, por exemplo. Um outro caso que é narrado sobre milagres é o de ladrões que foram roubar a igreja de S. Francisco e que lá foram recebidos pelo próprio santo, em pessoa. Um dos ladrões, tomado pelo pavor, sofreu um choque tão grande que ficou como morto, estatelado, no chão. Socorrido por fiéis que o colocaram sobre o altar, recuperou-se. O santo transpirou demasiado e para fazer acordar o homem que estava dado como morto, passaram nele uma toalha umedecida com o suor do santo. O ladrão se recuperou e, levantou-se e foi embora, "salvo e arrependido".

Outro caso contado pelo narrador é o do furto de três lâmpadas de prata do convento de S. Francisco de Xabregas no qual entraram gatunos pela clarabóia e, passando junto à capela de Santo Antônio, nada ali roubaram . Entrando na igreja, os frades deram com ela às escuras. Constato que não era o azeite que faltava, mas as lâmpadas que haviam sido levadas; os religiosos ainda puderam ver as correntes de onde pendiam as lâmpadas se balançando e saíram esbaforidos pelas estradas, atrás dos ladrões.

E então, desconfiados de que os ladrões pudessem estar ainda escondidos na igreja, deram volta a ela, palmilharam-na e só então viram que no altar de Santo Antônio, rico em parta, nada havia sido mexido.O frade, inflamado pelo zelo, culpou Santo Antônio por ter deixado ali passar alguém, sem que nada lhe tirasse, e ir roubar ao altar-mor: O frade deixou que o Menino "como fiador", até que o santo se dignasse a devolver as lâmpadas. Dormiram os frades, alguns temerosos que o santo se desforrasse do insulto... Na manhã seguinte, apareceu na portaria do convento um estudante que, querendo falar ao prelado, revelou estarem as lâmpadas no Mosteiro da Cotovia, dos padres da Companhia de Jesus. O narrador faz-nos desconfiar que tal estudante, apesar de querer ser padre, fora o autor do furto e que, arrependido, deixara lá as lâmpadas, posto não ter coragem de restituí-las pessoalmente.

Voltaram as lâmpadas a S. Francisco de Xabregas... Retoma o narrador o caso do frei Antônio de S. José, observe que ele (o narrador) faz-nos de novo desconfiar de que o frei, através do confessor de D. Maria Ana, tinha sabido da gravidez da rainha bem antes de que o rei.

Os homens vão à procissão e as mulheres ficam à janela, "esse é o costume." Os penitentes passam com grilhões enrolados às pernas, os ombros suportando grossas barras de ferro; chicoteiam-se com cordões em cujas pontas prendem-se bolas de cera dura Depois de rezar, D. Maria Ana, acompanhada das damas, começa a adormecer. Sonha com o sudário e quando adormece profundamente aparece-lhe o cunhado Francisco, montado em um cavalo enfeitado, voltando da caça: Sem a mão, que ficara metade em Portugal, metade na Espanha, Baltazar não se dobrara: mandara fazer um gancho e um espigão, perambulara pelo interior de Portugal, soubera que o exército de que fizera parte andava agora roto e disperso, a tropa andava descalça e violentando mulheres.Baltazar dirigia-se agora para Lisboa, credor de uma mão que perdera na guerra. Leva os ferros no alforge porque, em dados momentos, sente que ainda tem a mão e, por isso, se sente mais livre e feliz. É como se escondesse de si mesmo esta infelicidade. Passa por Pegões e ali matará um homem, entre dois que o quiseram roubar, mesmo que os avisasse que nada portava de valor.Baltazar sonha freqüentemente que ainda tem a mão que perdera; anda descalço. De barco, terminou o percurso e chegou a Lisboa, finalmente. O cais imundo, com seus cheiros, aguça os sentidos de Baltazar e torce-lhe o estômago, mas ele tem esperanças de que o indenizem pela mão perdida. De longe, vê o palácio de D. João V e vendo passar as pessoas, dá-lhe uma enorme saudade da guerra. Andou por bairros e praças e, por fim, à tarde, foi beber um caldo à portaria do convento de São Francisco. Conhece João Elvas, soldado como ele, um pouco mais velho. Ambos pobres, perdidos por Lisboa, procuram um lugar para dormir: dormiram entre homens, uns temendo os outros, contando casos de assassinatos e mortes.

D. Maria Ana está de luto pela morte do irmão José, imperador da Áustria, que morreu de varíola. Apesar de grávida, sangraram-na três vezes e deixaram-na tão debilitada a ponto de estar abatida. O palácio também está triste, o rei declarou luto oficial; mas a cidade, esclarece o narrador, está alegre: Hoje vai haver um auto-de-fé, é um domingo e os moradores gostam de assistir aos tormentos impostos aos condenados. O rei jantará na Inquisição junto com os irmãos, os infantes, a rainha, pelo motivo exposto, não participará da festa. Abunda a comida, o rei é sóbrio e não bebe vinho.O povo furioso grita impropérios aos condenados, as mulheres, debruçadas nos peitoris, guincham: "a procissão é uma serpente enorme". Entre as pessoas, está Sebastiana Maria de Jesus, a mãe de Blimunda. Procura aflitamente pela filha, que imaginava estar condenada também a degredo e de quem não ouviu o nome. Vê a filha entre as pessoas que acompanham o auto, mas sabe que ela não poderá falar-lhe, sob pena de condenação. padre e Baltazar estavam com ela em casa:

Baltazar nem sabia por que viera àquela casa; depois do auto-de-fé viera a ela com padre Bartolomeu Lourenço; Blimunda deixara a porta aberta para que Baltazar entrasse. Ele viera atrás, o padre acendera a candeia e Blimunda esquentou a sopa para os três.Havia somente uma colher. O padre comeu primeiro e passou-a a Baltazar e, depois, pegando a colher de que se servira o soldado, dirigiu-se à Blimunda: Casados...O padre deitou a bênção em tudo quanto cercava o casal e saiu.Blimunda jura que nunca olhará por dentro de Baltazar, ele retruca que ela já o fez: "Juras que não o farás, e já o fizeste." Deitaram-se. Blimunda era virgem e entrega-se a ele. Com o sangue que correu dela, persignou-se, fez uma cruz sobre o peito de Baltazar. E quando amanheceu, ele viu Blimunda deitada a seu lado, de olhos fechados, a comer pão. Quando terminou de comer, abriu os olhos e disse: "Nunca te olharei por dentro."

Corre um boato de que os franceses estão para invadir Portugal, mas chega, na verdade, uma frota francesa trazendo bacalhau, o que andava em falta. Baltazar imagina como se sentem os soldados que esperavam pela batalha,o soldado que mora em Baltazar sente saudades da guerra, mas imagina que se para lá fosse teria muitas saudades, demasiadas, de Blimunda, de quem ainda não consegue decifrar direito a certa cor dos olhos.Estavam Baltazar e João Elvas no Terreiro do Paço, conversando, quando viram sair do palácio o padre Bartolomeu de Gusmão; João Elvas o aponta como "o Voador". O padre chama Baltazar a um lado e diz que, após ter falado aos desembargadores sobre a pensão de guerra pretendida pelo soldado, por ter perdido nela a mão, responderam a ele que "iam ponderar o teu caso, se vale a pena fazeres petição, depois me darão uma reposta."

Baltazar pergunta quando poderá obter a resposta e Bartolomeu diz que não sabe, mas promete pessoalmente falar ao rei, "que me distingue com sua estima e proteção." O soldado espanta-se ao saber que o padre privava da amizade do rei e nada fez para salvar a mãe de Blimunda, que também era sua conhecida.Baltazar pergunta a ele por que o apelidaram O Voador. O padre diz porque voara:

Bartolomeu se queixa de que as pessoas não o compreendem e diz temer o Santo Ofício, por isso tem amizades que o defendam e é cheio de precauções. O soldado, então, pergunta a ele, que conhecia a mãe de Blimunda e sabia-lhe as artes, por que a moça sempre come pão antes de abrir os olhos.Bartolomeu convide Baltazar para ir a S. Sebastião da Pedreira ver a máquina que estava construindo; aluga uma mula, mas Baltazar vai a pé; o padre lhe diz que chama por ironia o seu objeto voador de "passarola". Ao chegar ao portão da quinta do duque, onde está a máquina voadora, o padre tira a chave do bolso e abre o portão, depois conduz Baltazar até o celeiro.Bartolomeu indica-lhe leme, velas e mastro e o convida para trabalhar para ele, o que assusta o soldado, que se considera, na realidade, um homem do campo e, ainda por cima, maneta. Sete-Sóis ouvira com atenção a explicação do padre e levantando um pouco os braços, tomado de coragem, disse.

O padre arranjou emprego para Baltazar, enquanto não pode, por falta de dinheiro, continuar a construir a passarola. O Sete-Sóis trabalha num açougue do Terreiro do Paço, transportando peças de carne nas costas. Podem, então, ele e Blimunda, comer melhor, com o que ganha de resto. D. Maria Ana está no fim da gravidez, bojuda "como uma nau da Índia". Holandeses invadem Pernambuco, naus trazem carregamento da China, há lutas no Recife, mas nada disso interessa à rainha que batizara a princesa, no dia de Nossa Senhora do Ó, sete bispos e "ficou a chamar-se Maria Xavier Francisca Leonor Bárbara, logo ali com o título de Dona adiante, apesar de tão pequena ainda, está ao colo, baba-se e já é dona(...)" Do tio e padrinho, D. Francisco, ganhou uma cruz de brilhantes, pouco, perto do que a mãe recebera do cunhado: brincos de diamantes, de alto valor.Baltazar e Blimunda foram ver a festa, ele mais cansado, de tanto carregar tanta carne para o banquete; e dói-lhe a mão esquerda, na qual usa o gancho para tais finalidades; Blimunda segura-lhe a mão direita. Frei Antônio morrera pouco antes, sem ter visto o fruto de sua premonição.

Baltazar acorda sempre cedo, antigo hábito de soldado, e o narrador nos anuncia que o ano mudou já, distante aquele dia em que ambos se conheceram e se amaram pela primeira vez. Todos os dias, antes que nascesse o sol, Blimunda acordava e, antes de abrir os olhos, comia o pão que deixava de propósito no alforje.Baltazar, hoje, escondera-lhe o pão: "Hoje se saberá.", anuncia o narrador pondo-a diante de nós a buscar e tatear o que o soldado havia escondido. Baltazar avisa a mulher que escondera o pão; ela grita, apavorada, brava. Confessa a ele que "enxerga as pessoas por dentro", caso esteja em jejum, por isso come o pão, mastigando-o vagarosamente antes de abrir os olhos.Durante todo o dia, no trabalho, duvidou Baltazar se tivera ou não tal conversa com a mulher que amava, achando que sonhara. À noite, combinaram que , dia seguinte, sairiam cedo, ela na frente, sem comer, ele atrás, sem ser visto por dentro e caminhariam pela cidade. Assim foi. Blimunda indica o lado de dentro das pessoas: uma mulher com uma criança no ventre, mas o bebê tem duas voltas do cordão enrolado no pescoço; vê um um peixe gigante, fossilizado, sob o granito, um frade com suas bichas. E indica-lhe um lugar, onde pede que ele cave com o gancho, à procura da moeda que ali se encontra.

Pede que a leve para casa, não quer mais ver. Da tença que pediu ao padre Bartolomeu, nada de notícias ainda; e sabe que o mandarão embora do açougue logo que possam se livrar dele; restará, no entanto, a portaria dos conventos onde se oferecem caldos: é difícil morrer de fome em Lisboa. O infante D. Pedro é nascido e quatro bispos o batizaram..O rei foi a Mafra escolher onde se construiria o convento prometido.

Blimunda e Sete-Sóis foram trabalhar na quinta do duque de Aveiro, a pedido do padre. Levavam um quase nada como mudança, tão pouco os haveres dos dois; e a moça deixou para sempre o lugar em que nascera, onde viveu Sebastiana Maria de Jesus.Passam a morar ali; Blimunda cata os bichos do cabelo de Baltazar, mas ele pouco pode ajudá-la: falta-lhe a mão com que mate o inseto. Mas nem sempre o trabalho pode ser completo para Sete-Sóis. Uma vez ou outra, levanta-se Blimunda mais cedo, e sem pôr os olhos em Baltazar, vai inspecionar o trabalho da passarola, a ver se descobre bolha de ar entrançada nos escondidos do ferro utilizado. Vai desvendando onde o ferro é frágil e disso gosta o padre. De vez em quando, o padre vem por lá a experimentar para aquelas paredes os sermões que compõem, enquanto Blimunda varre o pátio e Baltazar bate os ferros que compõem a passarola. O padre observa que precisa construir ali uma forja para que possam fundir os ferros.Anuncia-lhes, ainda, que vai para a Holanda, onde pretende aprender a arte de comandar o éter, o que fará subir a nave até onde queira.Baltazar e Bliunda despedem-se de Lisboa e vão a uma tourada; na madrugada seguinte,os dois partem para Mafra. Baltazar foi recebido pelo pai e pela mãe, que demonstraram por ele muitas saudades. Contou-lhes a guerra, a mão perdida e apresentou-lhes Blimunda. Tiveram alguma dúvida sobre ela, mas esta contou-lhes a vida, a de sua mãe, negou ser judia e acabou tocando o coração de Marta Maria, a sogra. A única irmã de Baltazar, Inês Antônia, casara-se com Álvaro Pedreiro e já tinha dois filhos.Baltazar dispõe-se a arrumar trabalho para si e Blimunda, mas Marta diz que prefere que ela fique, para que possa conhecê-la devagar. Blimunda, ao ver os filhos de Inês, sabe que o mais velho vai morrer de bexigas (varíola) e que só o mais novo sobrará.Em Lisboa, a rainha engravida novamente. D. Pedro morrerá e o novo infante será rei .

Baltazar ajuda o pai no campo, onde, por força da mão perdida, tem que reaprender cada coisa. Ainda tenta auxiliar o cunhado na construção da quinta dos viscondes de Vilanova e pela primeira vez lhe ocorre que poderia ter perdido uma perna, em vez do braço, seria bem mais fácil, dessa forma, viver. Todos esperam que se inicie a construção do convento, aí, sim, haverá trabalho para todos.Em Lisboa, o rei anda doente e de vez em quando lhe dão confissão e extrema-unção; vai para Azeitão ver se com mezinhas se curam estas melancolias de que sofre. D. Francisco fica em Lisboa, a tramar a sua vida e a do próprio irmão; pela cabeça dele passam pensamentos esquisitos como casar-se com a cunhada. Por sua vez, D. Maria Ana tem sonhos que considera .Confessam-se ambos o amor que nutrem um pelo outro, mas D. João se salvará e nunca mais D. Maria reviverá tais sonhos ou conversas com o cunhado.

O padre Bartolomeu regressou da Holanda, não sabemos se trouxe ou não os segredos que buscava. Foi à Quinta de S. Sebastião da Pedreira: três anos inteiros haviam se passado e tudo estava abandonado, o material que trabalhara disperso pelo chão, "ninguém adivinharia o que ali se andara perpetrando." O padre vê rastros de Baltazar, mas não os vê de Blimunda e julga que ela morrera. Depois, parte para Coimbra, não sem antes passar por Mafra, onde vai ver os homens que iniciam o trabalho do Convento.Procurou por Baltazar e Blimunda, ao pároco, informa que os casara em Lisboa. Blimunda veio abrir a porta e reconheceu-o pelo vulto, quando desmontava. Beijou-lhe a mão. Marta Maria estranhou que sua nora fosse abrir a porta a quem não batesse ainda. Mais tarde, chegam Baltazar e o pai e aquele, por convivência com Blimunda, ao ver a mula adivinha tratar-se do padre. Marta Maria, que já desconfiava ter uma "nascida" (tumor) no ventre, lamenta nada ter a oferecer ao padre, nem comida — a não ser o galo -, nem abrigo para passar a noite. O padre Bartolomeu dorme na casa do pároco e, pela madrugada, chegam Blimunda e Baltazar. Ela sem comer. Bartolomeu os ama, eles sabem:Baltazar pergunta se o éter é a alma e o padre diz que não, que é da vontade dos vivos que ele se compõe. Blimunda espantou-se e o padre pediu que ela o olhasse por dentro. Ela viu uma nuvem escura, à altura do estômago. Era a vontade, diferente da alma, o que faria voar a passarola. Bartolomeu montou na mula, disse que ia a Coimbra e que, quando retornasse à Lisboa, mandaria avisar os dois para que lá tivessem. Baltazar ofereceu o pão à Blimunda, mas ela pediu, primeiro, pra ver a vontade dos homens que trabalhavam no convento.

O filho mais velho de Inês Antônia e Álvaro Diogo morreu há três meses, de bexigas. Álvaro tem a promessa de conseguir emprego na construção do convento; Marta Maria sofre de dores terríveis no ventre. João Francisco está infeliz porque o filho partirá novamente para Lisboa, e o convento dará trabalho a muitos homens. Blimunda foi a missa em jejum e viu que dentro da hóstia também havia a tal nuvem fechada, vontade dos homens... O padre Bartolomeu de Gusmão escreve de Coimbra e diz ter chegado bem, mas agora viera uma nova carta para que seguissem para Lisboa "tão cedo pudessem". Partiram em dois meses, porque o rei vinha a Mafra inaugurar a obra do convento. Sete-Sóis e Blimunda conseguiram lugar na igreja. No dia seguinte formou-se a procissão, o rei apareceu. A pedra principal foi benzida; foi tanta a pompa que gastaram-se nisso duzentos mil cruzados. Partiram Baltazar e Blimunda para Lisboa. A mãe Marta Maria se despede do filho dizendo que não o tornará a ver. Blimunda e Sete-Sóis dormem na estrada. Por fim, chegaram à quinta onde esperariam o padre voador. Mal chegaram, choveu.

Os arames e os ferros enferrujaram-se e os panos da passarola cobrem-se de mofo; o vime, ressequido, destrança-se: "obra que em meio ficou não precisa envelhecer para ser ruína." Baltazar experimenta os ferros, tudo perdido, melhor começar outra vez. Enquanto o padre não chega, constrói-se a forja, vai-se a um ferreiro e vê como se faz o fole. Quando Bartolomeu de Gusmão chegou e viu o fole pronto, peça por peça desenhada e feita por Sete-Sóis, ficou contente e disse: "Um dia voarão os filhos do homem." Encomendou a Blimunda duas mil vontades dos homens e mulheres que morreriam a fim de que, junto com âmbar e ímãs, pudessem fazer subir a nau que agora construíam. O padre distribui tarefas, indica a Sete-Sóis onde comprar ferro, vime e peles para os foles, pede segredo absoluto de tudo o que estão a fazer. Trabalham na passarola quase um ano inteiro, procissões passam em delírio pelas ruas, povo misturado ao clero, clero misturado aos nobres.

O padre Bartolomeu Lourenço voltou a Coimbra já doutor em cânones, e agora pode ser visto na casa de uma viúva. D. João manda vir da itália o maestro barroco Domênico Scarlatti, a fim de dar lições de música a sua filha, a infanta D. Maria Bárbara. Maestro e padre tornam-se amigos, comungando as mesmas idéias e sonhos. Confiante no amigo, o padre leva-o a S. Sebastião da Pedreira. Padre Bartolomeu apresenta os amigos e a passarola a Scarlatti. Blimunda chega da horta trazendo "brincos de cereja", a fim de brincar com Baltazar. Quando os viu, o músico pensou: Vênus e Vulcano... É bom você se lembrar disso também: o mito que rege o livro é exatamente este: Vênus e Vulcano, a deusa da beleza e o feio e desengonçado, manco Vulcano, filho feito somente por Hera, a quem horrorizou o nascimento de filho tão feio... O padre diz a Scarlatti que ele e Baltazar têm, ambos, 35 anos e que não poderiam ser pai e filho, mas poderiam ser irmãos; portanto, desde o começo da história, o tempo que se passou pode ser contado: nove anos.Mostrada a passarola por dentro, retira-se o músico, mas promete voltar e trazer o cravo, que tocará enquanto Blimunda e Baltazar trabalham. O padre lá permaneceu, onde treinou seu sermão para que os dois ouvissem. Discutem sobre Deus uno, trino. Blimunda adormeceu, com a cabeça apoiada no ombro de Baltazar; um pouco mais tarde ele a levou para dormir. O padre saiu para o pátio, e toda a noite ali permaneceu, tomado por tentações. Muitas vezes voltou o maestro à quinta e pedia que não parassem o trabalho; ali, em meio aos ruídos e grandes barulhos, confusão, tocava seu cravo.Há um surto de varíola em Lisboa, oriundo de uma nau vinda do Brasil. O padre pede à Blimunda que vá à cidade e recolha as vontades das pessoas. É assim que ela, em jejum, um dia inteiro se põe a recolher tais vontades. Um mês depois, são mais de mil vontades presas ao frasco em que Blimunda as recolhia; e quando a epidemia terminou, ela havia aprisionado duas mil vontades.Foi então que Blimunda caiu doente. Nada a curava da extrema magreza; mas um dia, Scarlatti pôs a tocar e ela abriu os olhos e chorou. O maestro veio, então, todos os dias, havendo chuva ou sol; e a saúde de Blimunda voltou depressa.Um dia , Baltazar e Blimunda vão à Lisboa e encontram Bartolomeu doente, magro e pálido. Parecia ter medo de algo.

O duque de Aveiro está por voltar, Blimunda e Sete-Sóis querem saber que destino darão às suas vidas. Morre o Infante D. Miguel por salvar D. Francisco, dizem que o reino está mal governado. Blimunda diz ao padre saber que o Santo Ofício se aproxima dele e Bartolomeu fica com medo de que o acusem de haver se convertido ao judaísmo (isso realmente aconteceu na história real de Bartolomeu Lourenço de Gusmão), que se entrega a feitiçarias. Presos à quinta, os dois vêem passar os meses; um dia, ouvem a mula do padre bater os cascos nas pedras.

Eram duas horas da tarde e havia muito trabalho a fazer, não poderiam mais perder sequer um minuto. retiraram as telhas, colocaram as bolas de âmbar nos cruzamentos dos arames, abriram as velas superiores. Blimunda está calma, como se em toda a sua vida nada mais tivesse feito senão voar. Às quatro horas está tudo pronto; o cravo ficará lá, a fim de despertar a curiosidade dos inquisidores. Subiu a passarola. Baltazar e Blimunda foram lançados ao chão, Bartolomeu controlou-a e chamou os dois:

Já não tinham medo de nada, ela e Baltazar. Quando Sete-Sóis viu que voavam tão belamente, pôs-se a chorar; aquele homem tão forte, que já estivera na guerra e já matara um homem com seu espigão, chorava agora de felicidade. Abraçaram-se os três e ainda tiveram tempo de ver, do alto, os homens que os perseguiam. Nada foi achado na quinta a não ser vestígios, nem o cravo se achou porque Scarlatti, indo visitar a quinta, viu quando os três fugiam às pressas na passarola. Entrando, deu fim ao cravo, jogando-o no poço. Quando, finalmente, passam por sobre Mafra, velejam sobre as obras do convento e as pessoas, tantas, julgam ter visto ali, naquela hora, passar sobre eles o Espírito Santo. A máquina pousara, o padre, falando a pessoas invisíveis, parece ter enlouquecido. Quando ambos dormem, o padre tenta atear fogo à máquina , mas Baltazar e Blimunda, sacudidos do sonho, salvam a passarola. Ao amanhecer, dão pelo desaparecimento de Bartolomeu de Gusmão. Fingindo vir de Lisboa, chegam a Mafra. Ouvem os homens estarrecidos contarem sobre a passagem do Espírito Santo sobre o convento.

Num tempo em que sucedem tantos prodígios, Blimunda e Sete-Sóis não podem comentar que voaram porque estariam perdidos. Estavam todos na casa dos pais de Baltazar, o pai estava triste pela morte da mãe, mas Inês Antônia contou-lhes, maravilhada, os prodígios do Espírito Santo. Na manhã seguinte, Baltazar sai de casa com o cunhado e vai em busca do emprego na obra da construção do convento. A Mafra, chegam notícias de que Lisboa sofreu um terremoto, não muito danoso, apenas caíram beirais: Cuida dela, esconde-a melhor. Dois meses mais tarde, vê Blimunda que, como sempre, vem esperá-lo no caminho. Ao vê-la toda trêmula e nervosa, presume que o pai está doente, mas não. Blimunda lhe conta que Scarlatti está na casa do visconde. No outro dia, desconfiada de que ele viera delatá-los, rondou o palácio. Scarlatti tinha feito um pedido ao rei para que pudesse pôr os olhos sobre a construção do convento e o visconde o hospedara, apesar de não gostar de música. Mas encontram-se, e se falam. No dia seguinte, o música vai embora, mas no caminho esperam-no, para se despedirem, Baltazar e Blimunda. Scarlatti vai triste. O reino português vai cada vez melhor: diamantes, especiarias, impostos, milhões de cruzados se arrecadam. D. João V pensa o que fazer com tanto dinheiro, mas conclui que deve ser a alma a primeira a ser cuidada. Em Mafra, continua a construção do convento.Cada um deles conta, em primeira pessoa, a sua história de família, destino e expectativas, e cada um deles é narrador em foco cambiante.Durante muitos meses, Baltazar havia puxado e empurrado carros de mão, até que um dia, com a promoção e ajuda de João Pequeno, começou a puxar uma junta de bois, fazendo companhia ao amigo corcunda. Se lá podia funcionar como boieiro um aleijado, podiam, então, ir dois. Quando amanhece, logo que o dia nasceu, em meio ao calor de Junho, os homens saem a cumprir três léguas até o lugar onde está a pedra. Pelo tamanho, tal pedra espanta a todos que confessam nunca ter visto coisa igual na vida. Todos se dispuseram a cavar, a achar caminho, maneira ou jeito de levá-la a Mafra sem que quebrasse. O narrador lembra Arquimedes: "Dêem-me um ponto de apoio para vocês levantarem o mundo", parodia. Puxada a braço, lá vinha a pedra, em meio a um grande alarido das pessoas; depois, como que transportado para a guerra, Baltazar viu, num átimo de segundo, um esguiço de sangue: um homem se ferira, mas os esforço continuam.

É extenuante ler o capítulo, pleno de descrições dos esforços para que tal pedra fosse removida: no primeiro dia, não avançaram mais do que quinhentos passos. Os homens dormem quando anoitece, alguns contam histórias sobre reis e rainhas. Continuam as histórias contadas pelos homens, história sem pé nem cabeça, meninas com estrelas na testa, princesa que guardava patos. Francisco Marques, distraído, foi atropelado e morto pelo carro, a roda passou sobre o ventre, que ficou uma pasta de vísceras e ossos. Depois, ao chegarem ao fundo do vale, a plataforma desandou e atingiu dois animais: foi preciso que os matassem.Baltazar tinha ido seis ou sete vezes ao Monte Junto, a fim de ver a passarola, remediar-lhe os estragos que o tempo ia causando nela; como se se enferrujassem as lâminas de ferro, levou para lá uma panela de sebo e untou cuidadosamente as juntas

Pela primeira vez em três anos, Blimunda diz que quer ir junto para aprender o caminho. No caminho, cortou os vimes, colheu lírios d'água para Blimunda que fez deles uma guirlanda para enfeitar o burro. O tempo é de primavera e as flores cobrem o campo, e Blimunda toma nota do caminho para, se precisar, reconhecê-lo depois, quando sozinha. Chegaram ao monte; Baltazar trabalhou, ferindo-se na mão. Tudo está em estado de decomposição; enquanto ela cosia as velas, ele azeitava as engrenagens. Dormiram depois de se procurarem cheios de amor um pelo outro e, ao amanhecer, sem olhar seu homem por dentro, Blimunda foi olhar as esferas e viu dentro delas as vontades presas. Comeu pão, Baltazar acordou e fizeram amor novamente.Pelo meio da manhã, acabaram o trabalho: por serem dois, a máquina estava como que renovada e se foram para Mafra outra vez.Morreu o pai de Baltazar, João Francisco.D. João V continua a montar e desmontar a basílica de S. Pedro, "um lugar de fingimento onde nunca serão rezadas missas verdadeiras, embora Deus esteja em todo o lado." E mandou chamar o arquiteto de Mafra, um tal João Frederico Ludovice, a fim de pedir-lhe que construísse em Portugal uma basílica igual ao do Vaticano. O arquiteto concordou, mas achou-o néscio porque a obra exterior poderia ser a mesma, mas teria ele, o rei, que fazer nascer um pintor como Rafael, um Sangallo, um Peruzzi , para a fazer valer algo.

Inconsolável, melancólico, o rei resolve, então, ampliar o convento de Mafra e se reúne, no dia seguinte, com o provincial dos franciscanos que, ouvindo tão boa notícia.Assim que saíram o provincial e o arquiteto, mandou D. João V vir à sua presença o guarda-livros. E dobra o rei o salário do guarda-livros. A Mafra, manda o rei um vedor, doutor Leandro de Melo, para que encontre João Frederico Ludovice e lhe entregue uma carta. O engenheiro beija o selo real e empalidece: não bastava o que havia combinado com o rei e este já lhe envia outro aumento para o prédio, quer agora um novo corpo da construção, que abrigue trezentos frades e que se arrase logo o monte por detrás da obra e tudo o que ao redor dela está. O rei escreveu a Baltazar e João Pequeno. Então, o rei sabia de tudo... Baltazar pensa em responder, tem vergonha, mas pensa no seu rei. Sabedor de que poderia morrer sem ver o convento inaugurado, D. João V dá uma ordem ao corregedor: buscar e intimar todos os homens de Lisboa, quiçá de Portugal, para que fossem todos trabalhar em Mafra. O trecho se parece com a despedida dos parentes, na Praia do Restelo, por ocasião da saída das naus de Vasco da Gama para as Índias.

De todo Portugal chegam homens e são escolhidos um a um. A Infanta Maria Bárbara casa-se com Fernando da Espanha. Esta é a marca do tempo narrativo de Saramago: os fatos históricos. O noivo tem dois anos a menos que ela, e nunca será rei, pois é o sexto na linha sucessória. Domênico Scarlatti toca seu cravo para uma multidão de ignorantes, por ocasião do casamento da Infanta Dona Maria Bárbara, na fronteira com a Espanha. Neste capítulo, o narrador fala da procissão que levará os santos para serem colocados nos altares do convento de Mafra: S. Francisco, Santa Teresa, Santa Clara, S. Vicente, S. Sebastião e Santa Isabel. Seguem também para Mafra frei Manuel da Cruz e seus noviços, trinta, e ali, quando chegam cansados, são recebidos em triunfo. Baltazar vai para casa, o narrador nos anuncia que ele está velho: Depois da ceia, quando todos dormem, Baltazar leva Blimunda para ver as estátuas; juntos, vêem a lua nascer enorme, vermelha. Ele anuncia que vai ao Monte junto na manhã seguinte, ver como está a passarola. Ela pede cuidados, ele responde que ela fique sossegada, que seu dia ainda não chegou.Olham os santos inertes, o que seria aquilo? Morte, santidade ou condenação? Quando amanheceu, Blimunda se levantou e pegou a comida para o farnel do marido que ia ao Monte Junto, acompanhou-o até fora da vila: "Adeus, Blimunda, Adeus Baltazar." E se separam.Ao chegar ao lugar onde está a passarola, Baltazar come as sardinhas que lhe pusera a mulher no alforje: havia tanto trabalho a fazer.

Baltazar não voltou para casa, o que fez Blimunda não dormir aquela noite. Esperara que ele voltasse ao cair do dia, haveria os festejos da sagração da basílica, mas ele não voltara. Em jejum, olhando as pessoas que passavam para a festa, estava sentada numa vala e ali ficou, vendo o que os seres carregavam por dentro; recebendo xingamentos, dizendo outros. Voltou para casa, ceou com os cunhados e o sobrinho. Também não dormirá. O rei virá a Mafra e Blimunda não o verá; vai esperar Baltazar pelos caminhos, desesperadamente tentando encontrá-lo. Grita inúmeras vezes por ele. Viu os arbustos arrancados, a depressão que o peso da máquina fizera no chão e o alforje de Baltazar. Procurou por todo lado, os pés sangrando nos espinhos. Começou a subir ao cume do monte, a fim de poder ver tudo ao redor. Mas no caminho estacou, à sua frente caminhava um frade dominicano, corpulento, a quem perguntou pelo seu homem, faltava-lhe a mão esquerda, não o tinha visto? Viera cá por ouvir dizer que aqui habitava um enorme pássaro...

O frade aconselha-a a procurar abrigo, vai anoitecer, poderia dormir ali, nas ruínas do mosteiro. Sentada à beira do caminho, o cabelo desgrenhado, vazia do homem que ama, Blimunda chora e pensa em Baltazar, se morto, se vivo. Depois vai se refugiar nas ruínas onde o frade a busca tentando saciar seus instintos. Mas Blimunda o mata com o espigão de Baltazar. E depois, arrancando o espigão que se fincara entre as costelas do frei, pôs novamente a andar.Depois, imaginou ela a caminho de Pedregulho que ele poderia estar em Mafra, que tinham se desencontrado no caminho e pôs-se a correr como uma doida. À tardinha, chegaram Inês Antônio e Álvaro Diogo e a encontraram dormindo. Pela manhã, esquecida de comer o pão, viu-os por dentro, vomitou e Inês achou que ao fim de todo este tempo poderia ela estar grávida. O narrador nos anuncia que D. João V fez quarenta e um anos e que era 22 de outubro de 1730. Durante nove anos, Blimunda perambulou pelos caminhos de pó e lama, de branda areia e pedra aguda, neve. Ainda não queria morrer. Sabia que Baltazar estava vivo e se dispunha a procurá-lo por onde quer que fosse.

Julgavam-na doida, mas ouvindo-lhe as demais sensatas palavras e ações, ficavam indecisos se aquilo que dizia era ou não falta de juízo completo. Passou a ser chamada de A Voadora, e sentava-se, então, às postas, ouvindo das mulheres as queixas. Por onde passava, as mulheres lamentavam, depois, que seus homens não tivessem também sumido, para que elas pudessem, ao menos, devotar-lhes um amor tão grande quanto o de Blimunda a Baltazar. E os homens, quando ela partia, ficavam tristes inexplicavelmente tristes.Pouco faltou para que a tomassem como santa. Milhares de léguas andou Blimunda, quase sempre descalça, "Portugal inteiro esteve debaixo desses passos". Voltava aos lugares por onde passara, sempre indagando. Seis vezes passara por Lisboa, esta, a que vinha agora, era a sétima. Sem comer, o tempo era chegado para ela. No Rossio, finalmente encontrou Baltazar. Havia lá um auto-de-fé. Eram onze os condenados à fogueira; entre eles, estava o brasileiro Antônio José da Silva, o Judeu, comediógrafo autor das Guerras de Alecrim e Manjerona.

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