Problematizando o conceito de deficiência a partir das ...

ARTIGO ARTICLE

DOI: 10.1590/1413-812320152110.16642016

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Problematizando o conceito de defici?ncia a partir das no??es de autonomia e normalidade

Questioning the concept of disability based on the notions of autonomy and normality

Paula Gaudenzi 1 Francisco Ortega 2

1 Instituto Nacional de Sa?de da Mulher, da Crian?a e do Adolescente, IFF, Fiocruz. Fiocruz. Av. Rui Barbosa 716, Flamengo. 22250-020 Rio de Janeiro RJ Brasil. paula.gaudenzi@ 2 Instituto de Medicina Social, UERJ. Rio de Janeiro RJ Brasil.

Abstract This is a conceptual theoretical study to reflect upon disability and some basic concepts that are involved in its profiling. The scope of the article is to broaden the outlook upon disability removing it from a description that reduces it to an ailment. For this purpose, we situated the Disability Studies historically presenting the Medical and Social Models of Disability and problematized the concepts of autonomy and normality. These concepts and their correlated aspects ? independence, functionality and the norm ? are used as a tacit touchstone to differentiate some bodily variations that are identified as different lifestyles from others that are often called disabilities. We conclude by stating that disability can be analyzed based on other interpretations that do not construe it as a synonym for ailment if we consider the notions of interdependence, normativity and creation of the self in the world as basic concepts to describe it. Key words Disability, Medical model of disability, Social model of disability, Autonomy, Normality

Resumo Trata-se de um estudo te?rico conceitual para pensar a defici?ncia e alguns conceitos -base que s?o manejados para a caracteriza??o da mesma. O objetivo do artigo ? ampliar o olhar sobre a defici?ncia retirando-a de uma descri??o que a reduza ? doen?a. Para tanto, situamos historicamente os Disabilty Studies apresentando os Modelos M?dico e Social da Defici?ncia e problematizamos os conceitos de autonomia e normalidade. Estes conceitos e seus correlatos ? independ?ncia, funcionalidade e norma ? s?o utilizados como fundamento t?cito para diferenciar algumas varia??es corporais que s?o identificadas como estilos de vida diferentes de outras que s?o, muitas vezes, denominadas de defici?ncias. Conclu?mos afirmando que a defici?ncia pode ser analisada a partir de outras chaves de leitura que n?o a colocam como sin?nimo de doen?a se considerarmos as no??es de interdepend?ncia, normatividade e cria??o de si no mundo como conceitos b?sicos para descrev?-la. Palavras-chave Defici?ncia, Modelo m?dico da defici?ncia, Modelo social da defici?ncia, Autonomia, Normalidade

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Introdu??o

A defici?ncia constitui um campo crescente e heterog?neo de ativismo pol?tico e investiga??o no Brasil e no mundo. No final dos anos sessenta, surgiram em diversos pa?ses ocidentais movimentos sociais que reivindicavam os direitos de grupos espec?ficos, como mulheres e negros e, neste contexto, a politiza??o das pessoas com defici?ncias ganhou for?a. Na ?frica, Am?rica Latina, Am?rica do Norte e Europa, os movimentos sociais que reivindicavam igualdade de oportunidades e de direitos para as pessoas com defici?ncias ficaram conhecidos como Disability Rights Movement. Na Inglaterra nasceu o Union of The Physically Movement Against Segregation (UPIAS)1 e nos Estados Unidos da Am?rica foi organizado o Independent Living Movement (ILM)2. O ?mbito do territ?rio investigativo, por sua vez, ? conhecido no mundo anglo-sax?nico como Disability Studies e ? marcado sobretudo por uma vis?o cr?tica da no??o de defici?ncia utilizada por m?dicos, educadores e outros especialistas e por estudos que lidam com aspectos legais da defici?ncia.

Um exemplo da expressividade dos estudos cr?ticos foi a relev?ncia que ganharam seus questionamentos ? linguagem sobre a defici?ncia utilizada na Classifica??o Internacional de Les?o, Defici?ncia e Handicap (ICIDH) proposta pela Organiza??o Mundial de Sa?de (OMS), em 1980. Os cr?ticos reivindicavam a descri??o da defici?ncia como uma quest?o de direitos humanos e n?o apenas biom?dica. Neste momento a interpela??o de natureza pol?tica tinha como um dos principais alvos a rela??o de causalidade entre impairments, disabilities e handicaps assumida pela ICIDH. De acordo com a mesma, impairments significava perda ou anormalidade de uma estrutura ou fun??o corporal ? psicol?gica, fisiologia ou anat?mica; disability significava a restri??o ou perda da capacidade de performance de atividades de forma considerada normal para os seres humanos e handicap era a desvantagem de uma pessoa individual oriunda do impairment ou da disability que a limita de desempenhar um papel que ? normal em determinado grupo3.

Para os cr?ticos, a afirma??o da rela??o de causalidade entre essas condi??es refletia a soberania da linguagem biom?dica e a ?nfase em propostas curativas. Como resultado da revis?o da ICIDH, em 2001, foi aprovada a Classifica??o Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Sa?de (CIF)4. O documento ? um marco na legitima??o de um modelo interpretativo da defici?ncia com foco nas barreiras e na restri??o de

participa??o social de pessoas com defici?ncias, o qual ficou conhecido como Modelo Social da Defici?ncia5. De uma categoria estritamente biom?dica na ICIDH, a defici?ncia assumiu um car?ter tamb?m sociol?gico e pol?tico na CIF.

Os debates sobre o sentido de "defici?ncia" n?o se esgotaram com a aprova??o da CIF. Ademais, como vemos, o termo defici?ncia desaparece nesta classifica??o e os termos funcionalidade e incapacidade ganham destaque. A proposta da OMS ? que a CIF n?o seja apenas para aqueles com defici?ncias, sendo sobre todas as pessoas. O que est? em causa, portanto, ? a rela??o do indiv?duo com a sociedade e, neste artigo, preocupanos essa quest?o.

Com vistas ? inclus?o social e ? cidadania plena e efetiva dos deficientes, no ano de 2015, o Brasil instituiu a Lei Brasileira de Inclus?o da Pessoa com Defici?ncia, tamb?m conhecida como Estatuto da Pessoa com Defici?ncia6, que entrou em vigor em janeiro de 2016. A Lei garante, entre outras coisas, condi??es de acesso ? educa??o e ? sa?de e estabelece puni??es para atitudes discriminat?rias contra essa parcela da popula??o.

Apesar das conquistas sociais e dos avan?os no que diz respeito aos direitos que est?o sendo assegurados aos deficientes nos parece importante manter e aprimorar as cr?ticas sobre os enfoques m?dico e social da defici?ncia. Segundo o Estatuto da Pessoa com Defici?ncia, a avalia??o da defici?ncia deve ser m?dica e social; enquanto a primeira enfatiza as fun??es e estruturas do corpo para caracterizar a defici?ncia, a segunda pondera sobre os fatores ambientais e pessoais envolvidos. Ambas, diz o Estatuto, devem levar em considera??o a limita??o do desempenho das atividades segundo suas especificidades.

A proposta deste artigo ?, partindo de uma perspectiva cr?tica, problematizar as no??es de (limita??o de) desempenho e de (limita??o da) funcionalidade, por meio dos conceitos de autonomia e normalidade. Neste sentido, o trabalho situa-se no campo reflexivo da sa?de coletiva que, alimentada pelos pressupostos das ci?ncias humanas e sociais, toma a constante problematiza??o dos conceitos de normal e patol?gico como um de seus aspectos fundamentais.

Breve Hist?rico dos Disability Studies: do Modelo da Trag?dia Pessoal ? Cr?tica Social

Portadores de um corpo marcado pela diferen?a foram, por um longo per?odo do pensamento ocidental, compreendidos como inv?li-

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dos, anormais, monstros ou degenerados e seus corpos eram entendidos misticamente como resultado da ira ou do milagre divinos. A anomalia, sobretudo a cong?nita, era vista como corporifica??o da ira dos deuses e o destino do sujeito era a morte imediata7.

Com a entrada da narrativa biom?dica sobre o corpo na modernidade o discurso religioso sobre o exc?ntrico perdeu for?a e o corpo at?pico passou a ser diagnosticado como patol?gico ou deficiente, buscando-se o saber e o controle sobre o mesmo. Doravante, discursos doutos de car?ter cient?fico tomam os corpos que n?o se encaixam nos padr?es est?ticos ou funcionais da m?dia da sociedade como objeto de saber/poder e os rotulam como anormais, isto ?, corpos que n?o s?o apenas diferentes, mas que devem ser "corrigidos"8. Diferentes express?es da atipia se transformam, paulatinamente, em imagens da defici?ncia.

A compreens?o da defici?ncia como um fen?meno no ?mbito da patologia ficou conhecido como o Modelo M?dico da Defici?ncia ou Modelo da Trag?dia Pessoal. Desta perspectiva, a desvantagem vivida pelos deficientes ? efeito de desvantagens naturais inerentes aos contornos do corpo e, portanto, seus impedimentos s?o reconhecidos como infort?nios privados, uma trag?dia pessoal9. Diversos autores, por?m, criticam este ponto de vista e afirmam que a narrativa da trag?dia pessoal envolve a ideia de incapacidade pessoal e corrobora pr?ticas medicalizadas e individualizadas para lidar com a defici?ncia10.

Em confronto com tal perspectiva, em 1960 tem in?cio o Movimento do Direito dos Deficientes, quando se iniciou a reivindica??o da participa??o de pessoas deficientes na pesquisa e nas decis?es pol?ticas referentes a este grupo. O Movimento defendeu o estabelecimento de um novo campo acad?mico que foi denominado no mundo anglo-sax?o de Disability Studies11.

Segundo Gareth Williams12, os Disability Studies s?o marcados pelas correntes te?ricas marxista e feminista p?s-estruturalista e por duas ?nfases principais: a opress?o social da pessoa deficiente e a constru??o cultural e ideol?gica dos corpos at?picos. Grosso modo, pode-se dizer que a opress?o dos deficientes foi trabalhada, sobretudo, pelos te?ricos da primeira gera??o do modelo social, os quais tinham forte inspira??o no materialismo hist?rico e explicavam a opress?o por meio de valores centrais do capitalismo relacionados aos corpos produtivos e funcionais. Os principais te?ricos dessa gera??o eram homens adultos, brancos e portadores de les?o medular5.

Por outro lado, a constru??o cultural e ideol?gica dos corpos at?picos foi trabalhada principalmente pela segunda gera??o do modelo social da defici?ncia marcada pelas abordagens feministas e culturalistas. Nestas, os impedimentos intelectuais e o cuidado estavam no centro das discuss?es e buscou-se desafiar a cultura da normalidade5,13.

Na d?cada de 1970, impulsionada por Paul Hunt, soci?logo deficiente f?sico, foi constitu?da a primeira organiza??o pol?tica sobre a defici?ncia formada e gerenciada por deficientes, denominada Union of the Physically Impaired Against Segregation1. Esta questionava a compreens?o biom?dica tradicional da defici?ncia como um problema individual e afirmava que a experi?ncia da defici?ncia n?o era resultado da les?o individual, mas de uma sociedade hostil ? diversidade humana10,14.

Em 1980, a rejei??o ao modelo m?dico e ? ideia de que a defici?ncia precisa ser "corrigida" ganha for?a, assim como a defesa de que os "ajustamentos" n?o deveriam ser dos indiv?duos deficientes, mas da sociedade, pois ela que era desajustada em rela??o a estes. Entendia-se que a opress?o social e a exclus?o dos deficientes n?o resultavam de suas limita??es f?sico-mentais e que a experi?ncia da desigualdade apenas se manifesta em uma sociedade pouco sens?vel ? diversidade de estilos de vida. Neste contexto, marcado pela "primeira gera??o" dos acad?micos e ativistas da defici?ncia, os estudiosos atentam para a complexidade do conceito de defici?ncia que, longe de ser sin?nimo de um corpo com les?o, tamb?m denuncia a estrutura social que oprime a pessoa que apresenta um corpo at?pico. Em contraposi??o ao modelo m?dico da defici?ncia, cresce o modelo social da defici?ncia.

Para os defensores do Modelo Social o corpo at?pico n?o ? um destino de exclus?o15. Habitar um corpo an?malo ? uma experi?ncia singular que pode ser descrita de diversas formas, dependendo da experi?ncia subjetiva e do aporte ambiental. Se o preju?zo sofrido pelos deficientes for analisado como resultado da sociedade, as pessoas com defici?ncia ser?o vistas como membros de uma minoria cujos direitos foram violados por uma maioria injusta. Assim, o foco da aten??o aos deficientes seria permitir ?s pessoas com defici?ncia liberdade para participar da vida social e das oportunidades13.

Para alguns mais radicais, como Palacios e Roma?ach16, a defici?ncia ? fonte de orgulho e empoderamento, um s?mbolo de identidade pessoal enriquecida. Ela ? vista como diversidade corporal e funcional e como diferen?a subjetiva.

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Para estes, a experi?ncia da "defici?ncia" proporciona um sentido de comunidade que ? aproveitado na inten??o de exaltar os valores fundamentais da vida, os direitos humanos e a celebra??o da diferen?a17. Trata-se de mais uma express?o de um fen?meno cultural que se desenvolveu nas ?ltimas d?cadas que foi a emerg?ncia de movimentos de defesa de plena cidadania daqueles que falam em nome da diferen?a. Indiv?duos com conforma??es corporais e/ou mentais anteriormente classificadas como patol?gicas reivindicam o estatuto de singularidades at?picas n?o patol?gicas.

Desenvolve-se a ideia da "defici?ncia como cultura" e como "categoria diversa" similar ? ra?a e orienta??o sexual. O campo passa a ter afinidades com disciplinas que lidam com no??es de identidade pol?tica, como os estudos de g?nero e de diversidade sexual10. Portanto, a forma de compreender e tratar a defici?ncia passou a ser comparada com outras formas de humilha??o e opress?o pelo corpo como o sexismo e o racismo. Neste sentido, cria-se o neologismo disablism para denunciar a cultura da normalidade que oprime e discrimina os portadores de impedimentos corporais17.

A tomada de consci?ncia desse movimento vem produzindo processos de coming out deficiente, an?logos aos coming outs de gays, l?sbicas e negros, declarando um "orgulho deficiente". A afirma??o "sou deficiente" constitui uma afirma??o de autocategoriza??o, um processo de subjetiva??o e de forma??o de identidade. Para os te?ricos do campo essa afirma??o permite um deslocamento do discurso dominante da depend?ncia e anormalidade para a celebra??o da diferen?a e o orgulho da identidade deficiente18. Trata-se tanto de um compromisso coletivo e pol?tico de protesto contra as barreiras sociais incapacitantes encaradas pelos indiv?duos com algum tipo de les?o, como de uma transforma??o da identidade pessoal vivenciada com orgulho.

Por outro lado, "passar por" (passing) ? o termo usado para descrever aqueles que escondem os seus preju?zos (impairments) ou n?o querem "sair do arm?rio" (come out) enquanto deficientes. Ambival?ncias identit?rias como estas e as diferentes experi?ncias de pessoas que vivem com alguma defici?ncia s?o frequentemente ignoradas por ativistas radicais dentro do movimento da defici?ncia e desclassificadas como opress?o internalizada ou falsa consci?ncia19.

Vemos que, em geral, a dimens?o da les?o, isto ?, da limita??o imposta pelo corpo com algum tipo de redu??o da funcionalidade, ? des-

considerada nas perspectivas dos primeiros te?ricos da defici?ncia. Perceber nas estruturas sociais uma import?ncia maior para incorporar a diversidade corporal do que nas vantagens que a biomedicina poderia oferecer ao corpo deficiente fez com que os te?ricos ignorassem a dimens?o da les?o e da necessidade de cuidados especiais dos deficientes. A entrada das te?ricas feministas na discuss?o ? que marcaram a segunda gera??o dos estudos da defici?ncia ? complexificou a problem?tica ao considerar a les?o no debate e ao negar a suposi??o de que todos os deficientes desejam a independ?ncia ou s?o capazes de alcan??-la. Argumentando que todas as pessoas s?o dependentes em diferentes momentos da vida, algumas feministas introduziram a ideia da igualdade na interdepend?ncia como um princ?pio mais adequado ? reflex?o sobre quest?es de justi?a para deficientes20. A ambi??o por independ?ncia, dizem, ? um projeto moral que se ad?qua ?s aspira??es das pessoas n?o deficientes. Mas, autonomia, independ?ncia e produtividade n?o s?o valores morais inquestion?veis. ? preciso considerar a diversidade da experi?ncia de viver em um corpo lesionado21.

Defici?ncia e Autonomia

A mudan?a na forma de compreender a causalidade da defici?ncia, deslocando a desigualdade do corpo para as estruturas sociais fragilizou a autoridade dos discursos curativos e abriu possibilidades anal?ticas para uma redescri??o do significado de habitar um corpo com defici?ncias17. A passagem simb?lica do tema da defici?ncia do espa?o dom?stico para o p?blico for?ou a quest?o sobre que tipo de sociedade pode garantir os direitos espec?ficos das pessoas com determinados tipos de impedimentos sem que sejam considerados sujeitos de "segunda categoria".

Nosso ponto de vista leva em considera??o o trabalho do fil?sofo sueco Lennart Nordenfelt22,23 e segue a linha argumentativa da segunda gera??o dos estudos da defici?ncia. Uma das grandes controv?rsias entre os estudiosos da defici?ncia ? sobre a necessidade de desacoplar a an?lise da mesma de dentro do quadro conceitual epistemol?gico da sa?de e da doen?a. Os defensores do Modelo Social tiveram o m?rito de recha?ar o modelo biom?dico hegem?nico da an?lise sobre a defici?ncia, mas teorias que aproximam a doen?a da defici?ncia n?o se restringem a este modelo.

Nordenfelt, por exemplo, trabalha os conceitos de sa?de e doen?a de forma hol?stica e dialoga com os estudiosos da defici?ncia. Na concep??o

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do autor, defici?ncia e doen?a n?o s?o condi??o da natureza humana, termos a-hist?ricos ou atemporais; elas s?o categorias constru?das por uma determinada sociedade e est?o sujeitas a julgamentos de valor22. A seu ver, autonomia ? um valor social central na caracteriza??o da sa?de e o conceito de defici?ncia que importa ? medicina ? igualmente valorativo, podendo ser entendido a partir do mesmo quadro conceitual.

A teoria da sa?de de Nordenfelt ? fortemente influenciada pela no??o de dignidade e se baseia na a??o pragm?tica do sujeito no mundo, considerando o terreno da manifesta??o afetiva do ser humano e o bem-estar. O autor faz refer?ncia a um tipo de dignidade que denomina de dignidade de identidade que est? ligada ? integridade e ? autonomia do corpo e da mente do ser humano e, em alguns casos, ? sua autoimagem.

Em sua concep??o, a sa?de de uma pessoa est? amea?ada quando sua integridade corporal est? comprometida, tempor?ria ou permanentemente, a ponto de impossibilit?-la de cumprir seus projetos de vida, os quais denomina de "metas vitais". A especifica??o das metas vitais deve ser deixada ? avalia??o do bem-estar, a qual ? sui generis. A avalia??o sobre os graus m?nimos de bem-estar ? realizada sobre as bases de uma cultura comum, mas os valores ligados ?s metas vitais s?o muito mais egoc?ntricos, isto ?, relacionam-se com a satisfa??o do pr?prio agente e n?o necessariamente com a prescri??o da sociedade24.

Por outro lado, n?o s?o quaisquer projetos individuais que s?o leg?timos, diz. Eles n?o podem destoar muito dos projetos hegem?nicos da cultura em que a pessoa est? inserida. Pessoas da mesma cultura tendem a fazer uma avalia??o parecida sobre o que ? uma vida boa. H? certo consenso sobre os graus m?nimo e desej?vel de bem-estar. Este, entre outras coisas, diz Nordenfelt22, equivale a especificar o que ? considerada a fronteira entre a sa?de e a doen?a.

Portanto, o que, em ?ltima inst?ncia, fundamenta a an?lise se estamos diante de uma condi??o apenas at?pica ou patol?gica ? a avalia??o da autonomia. Segundo Nordenfelt, se a pessoa n?o consegue cumprir suas metas vitais devido a um comprometimento corporal, estamos diante de algu?m que n?o est? em boa sa?de ou ? deficiente, o que real?a o valor pressuposto de sujeito aut?nomo para a defini??o da defici?ncia.

Apesar de Nordenfelt n?o o fazer explicitamente, dissociar o campo da doen?a do campo da defici?ncia ? fundamental. A ruptura com o olhar m?dico marcado pela dicotomia entre normal e patol?gico no terreno da defici?ncia foi um

importante avan?o proporcionado pelos te?ricos do Modelo Social, pois permitiu recusar a descri??o do corpo com impedimentos como patol?gico. Partindo desse pressuposto ? de que o corpo com impedimentos n?o ? necessariamente patol?gico ? parece-nos que o trabalho de Nordenfelt nos traz um outro desafio fundamental para o avan?o na discuss?o sobre a no??o de defici?ncia: a problematiza??o do valor moral dos estilos de vida e da concep??o de autonomia que sustenta os discursos sobre a defici?ncia.

Parece-nos que um dos pontos chave das teorias sobre a defici?ncia para a considera??o de algu?m como deficiente ? se a condi??o corporal at?pica prejudica o exerc?cio da identidade social dominante que ? de um sujeito livre e aut?nomo. Nesta perspectiva, a pessoa ? deficiente quando a mesma n?o pode andar por si, n?o pode cumprir, de forma independente, os projetos que a corrente principal da cultura considera dignos.

Tauber25 nos ajuda neste debate ao estabelecer as bases para a discuss?o da autonomia, explorando como ela pode ser designada como uma caracter?stica do self. O autor apresenta duas maneiras distintas de entender a identidade pessoal: a partir do self atom?stico e a partir do self relacional.

O self atom?stico ? o self altamente individualista para o qual o princ?pio da autonomia assume uma caracter?stica central da identidade pessoal. Baseia-se na ideia de um agente neutro, racional, independente e objetivo fruto da filosofia liberal de John Locke, que considera o sujeito cognoscente como radicalmente separado do mundo. O self atom?stico, diz Tauber, ? adequado ao ethos pol?tico liberal, que entende o autogoverno como um novo e fundamental valor, temperado apenas pela infra??o ? liberdade de outros.

A supervaloriza??o da individualidade em detrimento da sociabilidade, manifestada no alto valor dado ao indiv?duo e no desprezo ao valor das redes de reciprocidade ? uma marca do self individualista. Dado o elevado valor concedido ? independ?ncia de pensamento e ? liberdade de escolha, a vis?o do self como individualista se tornou um princ?pio b?sico da filosofia Iluminista. O self atom?stico demanda que cada um de n?s seja o criador de sua pr?pria identidade, havendo, portanto, uma celebra??o da primazia do self sobre o viver coletivo.

Mas Tauber mostra que o sujeito pode ser compreendido a partir de outro referencial. Trata-se da concep??o do sujeito como produto do encontro com o outro. Nesta matriz, h? outra representa??o do self: o self relacional ou self so-

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