COMPROMISSO POLÍTICO E COMPETÊNCIA TÉCNICA: 20 ANOS …

Paolo Nosella

COMPROMISSO POL?TICO E COMPET?NCIA T?CNICA: 20 ANOS DEPOIS

PAOLO NOSELLA*

RESUMO: Este artigo faz uma releitura do debate ocorrido na d?cada de 1980 a respeito da rela??o entre o compromisso pol?tico e a compet?ncia t?cnica do educador. Pontua que as id?ias mais emancipadas (como as propaladas pelos textos de Ant?nio Gramsci) fizeram com que o pensamento pedag?gico assumisse no Brasil sua dimens?o de engajamento pol?tico, contribuindo, inclusive, para as vit?rias eleitorais do Partido dos Trabalhadores. Entretanto, se naquela ?poca certo "modismo gramsciniano" foi refer?ncia e sin?nimo de id?ias mais emancipadas e arejadas, hoje, diante da realidade pol?tica, complexa e multifacetada, torna-se necess?rio aprofundar a leitura dos textos desse autor. Uma difusa ideologia de "esquerda" n?o ? mais refer?ncia suficiente para o engajamento pol?tico. Por isso, o artigo busca compreender a nova forma de compromisso pol?tico que o educador e o intelectual em geral precisam praticar, dizendo, por exemplo, que ? preciso resgatar o valor da d?vida como m?todo; compreender o processo de amadurecimento da cultura democr?tica; voltar a refletir sobre o pr?prio conceito de pol?tica "desinteressada" e reafirmar que todo ato pedag?gico em si j? possui uma impl?cita dimens?o ?tico-pol?tica, questionando, assim, a vincula??o burocr?tica com os partidos.

Palavras-chave: Mem?ria e educa??o. Pol?tica e educa??o. Compet?ncia t?cnica e compromisso pol?tico. Conjuntura atual.

POLITICAL ENGAGEMENT AND TECHNICAL COMPETENCE:

TWENTY YEARS LATER

ABSTRACT: This article re-reads the debate occurred in the 80's regarding the relation among the educator's political engagement and his technical competence. It points out that the most emancipated

* Professor titular de filosofia da educa??o do Departamento de Educa??o, da Universidade Federal de S?o Carlos (UFSCAR). E-mail: nosellap@.br

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ideas (as those divulged in Antonio Gramsci's texts) took the Brazilian pedagogical ideas into its dimension of political engagement, contributing inclusive, to electoral victory of the Laborer's Part. However, if at that time a certain "gramscian trendy" movement was reference and synonym to the most emancipated and free ideas; today considering the complex and multifaceted political reality it is necessary to deepen the reading of this author's ideas. A diffuse ideology of the "left wing" is no more a sufficient reference to the political engagement. For this reason this article tries to understand the new form of political engagement that the educator and the intellectual in general need to practice, saying for example that it is necessary to redeem the value of the doubt as a method; to understand the process of maturation of the democratic culture; to think again on the real process of "uninterested" politic and reaffirm that all pedagogical act in itself has already an implicit ethic political dimension, questioning thus, the bureaucratic linking with the parties.

Key words: Memory and education. Politic and education. Technical competence and political engagement. Present conjuncture.

Relembrando os anos oitenta

e a hist?ria ? um garimpo, a mem?ria ? a bateia que revolve o cascalho do passado e busca dados preciosos para continuar nossa luta.

Vinte anos atr?s, em 1983, fervia entre os educadores o debate sobre o compromisso pol?tico e a compet?ncia t?cnica. Polemizava-se contra a dicotomia entre o educador-pol?tico e o educador-t?cnico. A conjuntura pol?tica foi a oportunidade para a explos?o daquele debate: os governos militares, que estavam sendo for?ados a passar o poder aos civis, haviam enfatizado a dimens?o tecnol?gica, as compet?ncias espec?ficas e a pr?tica do ensino como treinamento; ao contr?rio, a emergente democracia destacava o sentido e a necessidade do engajamento pol?tico da pr?tica cient?fico-pedag?gica.

Em outras palavras: na d?cada de 1980, de um lado estavam os defensores da neutralidade t?cnica do fazer pedag?gico, do lado oposto entrincheiravam-se os defensores de um compromisso pol?tico inerente a quaisquer atividades pedag?gicas. O debate acentuou-se

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por ocasi?o da publica??o do livro da professora (e minha colega) Guiomar Namo de Mello (Magist?rio de 1? grau ? da compet?ncia t?cnica ao compromisso pol?tico, S?o Paulo: Cortez/Autores Associados, 1982). "Vejo [escrevera Guiomar] na capacita??o profissional o ponto cr?tico a partir do qual imprimir um car?ter pol?tico ? pr?tica docente" (idem, ibid., p. 146).

No m?s de maio do ano seguinte (1983), a revista Educa??o & Sociedade, n. 14, publicava um pequeno artigo de minha autoria: "Compromisso pol?tico como horizonte da compet?ncia t?cnica", no qual tecia algumas cr?ticas ? tese de Guiomar que operava, dizia eu, uma justaposi??o entre o ato t?cnico da pr?tica pedag?gica e seu engajamento pol?tico, considerando-os dois momentos seq?enciais e, portanto, separados: "A compet?ncia t?cnica n?o ? uma categoria em si, universal, acima dos interesses de classe, mas, pelo contr?rio, compet?ncia e/ou incompet?ncia s?o qualifica??es atribu?das no interior de uma vis?o de cultura historicamente determinada, pois existe o competente e o incompetente para certa concep??o de cultura, como existe o competente e o incompetente para uma nova concep??o de cultura" (Nosella, ibid, p. 92).

Distinguia eu, portanto, duas concep??es fundamentais de cultura: a enciclop?dica (burguesa) e a hist?rica (prolet?ria), frisando que, tanto no ?mbito da primeira quanto no ?mbito da segunda, registramse ilustres compet?ncias pedag?gicas. Por isso, n?o poderia existir, por exemplo, uma t?cnica de alfabetiza??o, universal, neutra e pr?via ? op??o pol?tica do alfabetizador.

Esse debate, como disse, alastrou-se entre os educadores dos anos de 1980 praticamente no Brasil inteiro. Hoje, reconhe?o que o nefasto taticismo pol?tico-partid?rio insuflava a pol?mica que acabou gerando "uma imagem equivocada nos leitores [escreveu ent?o o professor Dermeval Saviani] pois criou a id?ia de que o autor da cr?tica (Nosella) desautorizava o autor criticado (Guiomar), colocando-se em campos opostos e definindo-se advers?rios renitentes" (Saviani, 1983, p. 112).

Com efeito, jamais desautorizei a colega e ex?mia educadora Guiomar Namo de Mello. Saviani percebera, com inigual?vel perspic?cia, que ? base da pol?mica existia o equ?voco do "v?nculo entre neutralidade e objetividade" (idem, ibid., p. 137). O que fazer? Todo mundo sabe que os anos de 1980 foram marcados por muito roman-

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tismo pol?tico e por uma not?vel indulg?ncia ao taticismo. Mas a hist?ria n?o flui em linha reta, feliz ou infelizmente.

Saldo daquele debate

Aquele romantismo pol?tico trouxe, felizmente, um ineg?vel saldo positivo para o pa?s e, especificamente, para o campo da educa??o.

Teoricamente, o debate dos educadores encontrou nos escritos de Antonio Gramsci um grande alento. Presenciamos a uma verdadeira "gramscimania", isto ?, a uma excepcional difus?o dos escritos desse intelectual marxista italiano. Calcula-se que mais de 40% das disserta??es e teses de p?s-gradua??o em educa??o, produzidas na d?cada, citavam Gramsci como principal refer?ncia te?rica. Suas frases eram citadas, em ep?grafe, nos projetos ou nas propostas de pol?tica educacional de v?rias secretarias de Educa??o, estaduais e municipais. O nome de Gramsci era citado com grande freq??ncia nos congressos e nas reuni?es das v?rias associa??es cient?ficas e sindicais dos educadores. A literatura sobre ele e dele era sempre bem-vinda e at? mesmo bem vendida.

O primeiro saldo positivo decorrente dessa onda de estudos marxistas, sobretudo da vis?o gramsciana, foi o abandono por parte dos educadores do velho marxismo ortodoxo stalinista e a ado??o sistem?tica da cr?tica ao tradicional didatismo t?cnico. Privilegiou-se a vis?o te?rica que explica o fen?meno escolar pela sua rela??o com a sociedade, com a economia e com a pol?tica. O discurso repleto de cita??es gramscianas era, para os educadores de duas d?cadas passadas, elemento de distin??o cultural que os prestigiava com rela??o aos tradicionais pedagogos didatistas. Gramsci e tamb?m Paulo Freire tornaram-se bandeiras de orgulho e est?mulo para a organiza??o pol?tico-sindical dos pedagogos.

Observe-se, tamb?m, que durante esses anos de transi??o do autoritarismo militar para a democracia ganhou relev?ncia o termo "educador", sobrepondo-se ao de "professor", justamente porque "educador" semanticamente explicitava a necessidade do engajamento ?tico-pol?tico dos professores. Com efeito, o conceito de educador transcende o de professor. Este se refere ?s compet?ncias espec?ficas adquiridas por uma pessoa, que as transmite a outras, ensinando-as e treinando-as. Aquele se refere ? responsabilidade na forma??o integral do cidad?o, ? cumplicidade radical entre educando e educador. O pro-

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fessor que n?o assume plenamente a fun??o de educador e se exime de sua responsabilidade de ensinar a leitura do mundo, para restringir-se ? leitura das palavras ? utilizando express?es freireanas ?, era considerado um t?cnico ass?ptico, reducionista, que reeditava na pr?tica pedag?gica a velha tese da neutralidade cient?fica.

Enfim: durante os anos de 1980, o pensamento pedag?gico modernizou-se, arejou-se ao assumir sua dimens?o de engajamento pol?tico. Novos conceitos e novas perspectivas te?rico-pr?ticas enriqueceram os debates no campo da educa??o, em que com muita freq??ncia se utilizavam termos e conceitos at? ent?o desconhecidos, como: sociedade civil e pol?tica ? hegemonia ? ideologia e contra-ideologia ? intelectuais org?nicos e tradicionais ? a educa??o como ato pol?tico-partid?rio ? educa??o e cidadania etc. Mais ainda: politicamente, a maioria dos educadores dos anos de 1980, sabedora de que a escola n?o se explica por ela pr?pria e sim pela rela??o pol?tica que ela mant?m com a sociedade, lutou para colocar na administra??o educacional partidos e homens compromissados com os objetivos da escola popular e libertadora. At? mesmo redutos tradicionalmente mais fechados, como os dos especialistas da educa??o (orientadores educacionais, administradores ou gestores, supervisores, diretores etc.), foram influenciados pela id?ia de o ato pedag?gico ser ao mesmo tempo um ato de compromisso pol?tico. Nos congressos da ?rea (nacionais, estaduais, regionais e municipais), os especialistas da educa??o afirmavam que a rela??o pedag?gicocient?fica era fundamentalmente uma rela??o de hegemonia pol?tica. Assim, instigavam professores a buscarem uma forma de rela??o profissional que fosse ao mesmo tempo uma nova rela??o hegem?nico-pol?tica, isto ?, a hegemonia da classe trabalhadora.

Como vimos, esse movimento pol?tico dos educadores, ao longo destes ?ltimos 20 anos, engrossou o movimento pol?tico nacional que desaguou nas vit?rias eleitorais do Partido dos Trabalhadores, nos estados, nos munic?pios e, hoje, na federa??o.

E hoje, qual compromisso pol?tico?

Se na d?cada de 1980 os educadores afirmaram que toda compet?ncia t?cnico-pedag?gica era ao mesmo tempo um ato pol?tico (Damasceno et al., 1988), duas d?cadas depois, isto ?, no complexo quadro po-

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