O dólar como 'solução'



Batista Júnior, Paulo Nogueira. “O dólar como ‘solução’”. São Paulo: Folha de São Paulo, 23 de novembro de 2000.

O dólar como "solução"

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Uma das coisas difíceis de engolir, leitor, é o destaque exagerado que a imprensa brasileira costuma dar ao ex-presidente Carlos Menem e ao ex-ministro Domingo Cavallo. São os responsáveis por grande parte do sofrimento atual da Argentina, mas têm muito espaço na nossa mídia para opinar sobre os mais variados assuntos, inclusive brasileiros.

A revista "Veja" desta semana traz Menem nas suas páginas amarelas. Para ele, a "solução" é o dólar. Solução não só para a Argentina, mas para todo o continente, "à medida que avance o projeto de estabelecer uma zona de livre comércio nas Américas", afirmou.

Ora, como diria o Conselheiro Acácio, o dólar só é solução para os EUA. A moeda nacional é atributo essencial da soberania e elemento central na definição da política econômica de um país. Para Menem, contudo, renunciar à moeda nacional "não causa o mínimo estrago na soberania, como acham alguns tolos que não entendem nada do assunto".

Que um político capaz de dizer frases desse tipo tenha chegado à Presidência da Argentina -e sido reeleito- é um sintoma dos tempos em que vivemos. Entre os tolos que nada entendem do assunto está, diga-se de passagem, a revista britânica "The Economist", que na sua edição desta semana dedica um editorial e duas reportagens ao drama argentino.

Como o que é publicado em inglês tem sempre mais impacto, vamos transcrever. Diz a revista britânica: "Os apuros da Argentina deveriam fazer hesitar aqueles que pregam que os países latino-americanos adotem avidamente o dólar, independentemente das suas circunstâncias e dos seus padrões comerciais". A experiência argentina, comenta "The Economist", mostra que "o sacrifício da independência monetária envolve custos econômicos reais".

Mas Menem está acima de qualquer hesitação, pois resolveu, já há algum tempo, fazer carreira política com base na mais descarada subserviência aos EUA. "Com o dólar como moeda corrente, a Argentina estará livre dessas incertezas (cambiais) e se incorporará à economia dos EUA", declarou.

Bem. O cerne das dificuldades argentinas está justamente na subordinação do peso ao dólar, obra da dupla Menem-Cavallo. A dolarização plena completaria o desastre.

Os custos econômicos da subordinação monetária são variados. Vamos analisar um deles: a inflexibilidade cambial, que é muito problemática para países com comércio geograficamente diversificado, como a Argentina e o Brasil.

O comércio exterior da Argentina não está concentrado com os EUA. O Brasil e a União Européia têm peso até maior nos fluxos de exportação e importação argentinos. Isso significa que o real e o euro são mais importantes do que o dólar na composição da taxa efetiva de câmbio do peso, isto é, na "cesta" de moedas estrangeiras relevantes para a Argentina (pelo menos quando as ponderações da cesta são calculadas com base nos fluxos bilaterais de comércio).

Desde o início dos anos 90, a Argentina acumulou pesada sobrevalorização cambial, que vinha sendo parcialmente compensada pelas tolices da política cambial brasileira de meados de 1994 até janeiro de 1999. Depois que o Brasil recuperou a flexibilidade cambial, a Argentina entrou em pane.

Grande parte da crise atual da Argentina se deve à desvalorização do real, do euro e de outras moedas, desde 1999, em relação ao dólar dos EUA. O peso argentino, rigidamente amarrado ao dólar, foi arrastado para o alto, o que agravou os crônicos problemas de competitividade da economia.

Para os EUA, cuja economia está superaquecida e corre riscos inflacionários, a alta do dólar não é inoportuna (embora provavelmente já tenha ido longe demais, mesmo do ponto de vista norte-americano).

Mas valorização cambial é exatamente o contrário do que a Argentina precisa. Para ter uma idéia da dimensão do problema, basta registrar que, em 1999, ano de recessão severa (queda de 3,1% do PIB) e desemprego altíssimo, a Argentina conseguiu a proeza de incorrer em um déficit de balanço de pagamentos em conta corrente de nada menos que 4,4% do PIB. Em 2000, com a economia estagnada (crescimento do PIB da ordem de 0,5%), o déficit em conta corrente ainda será superior a 3,5% do PIB, segundo projeção do FMI. Isso apesar da forte elevação do preço do petróleo, benéfica para a Argentina, que é exportadora líquida do produto, e da recuperação do mercado brasileiro.

Alguns afirmam que os problemas da Argentina resultam da ausência de disciplina fiscal e da demora em realizar certas reformas estruturais de cunho liberalizante. Opinião muito duvidosa. Poucos países foram tão obedientes na aplicação das reformas inspiradas no "Consenso de Washington". Os déficits fiscais argentinos, a julgar pelos dados disponíveis, têm sido geralmente bastante modestos. De qualquer maneira, parte substancial do desequilíbrio das contas públicas é produto da combinação de recessão e juros altos.

A crise econômica decorre, no essencial, da interação entre choques externos e a extraordinária rigidez do esquema monetário-cambial introduzido pela dupla Menem-Cavallo. Se esse problema não for enfrentado, que futuro tem a Argentina?

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Paulo Nogueira Batista Jr., 45, economista e professor da Fundação Getúlio Vargas-SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como ela é..." (Boitempo Editorial. E-mail: boitempo@).

E-mail - pnbjr@

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