GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO DE PLE -rio.br



Gêneros textuais e ensino de PLE

Lygia Maria Gonçalves TROUCHE (UFF, Niterói - Brasil)

GÊNEROS TEXTUAIS, POLIFONIA E COMPETÊNCIA COMUNICATIVA NO ENSINO DE PLE

1- ATO DE COMUNICAÇÃO E GÊNEROS TEXTUAIS

Ao tratarmos da importância dos conceitos de gêneros textuais e da polifonia vinculados ao desenvolvimento da competência comunicativa, tomamos por base alguns postulados da análise semiolingüística do discurso de Charaudeau (1992), a conceituação de gêneros textuais de Marcuschi (Dionísio:2003), bem como reflexões sobre a conceituação de cultura. Essas teorias nos permitem uma análise abrangente das questões de produção de sentido, vinculadas à cultura brasileira.

Oliveira (2003) destaca que a proposta de análise de Charaudeau é lingüística, na medida em que o ponto de partida para a interpretação de um texto é o seu material lingüístico – fonemas, morfemas, palavras, frases. E também dá conta do discurso, porque o texto é analisado em seu contexto discursivo do qual fazem parte outros textos pré-existentes a ele, que circulam na sociedade em geral – passagens bíblicas, provérbios, frases feitas, poemas, letras de canções, histórias infantis, lendas, mensagens publicitárias etc.; ou textos pertencentes a um determinado grupo social – memórias de família, de empresas, de colégios, de clubes de futebol etc. Sob esse aspecto, o discurso engloba o conjunto de afirmações que, articuladas através da linguagem, expressam os valores e significados vigentes em dada sociedade em toda sua diversidade, e o texto (verbal ou não-verbal) é a realização de linguagem em qual se manifesta o discurso. Vale lembrar que nos textos sincréticos os elementos verbais e não-verbais (imagem, linhas, cores, volumes, movimento) se correlacionam como estratégia enunciativa para a produção dos sentidos. Em geral, os textos publicitários e os veiculados pela mídia são excelentes exemplos de textos de diversos gêneros em que o plano da expressão se compõe de várias linguagens que, relacionadas, cumprem uma dada função comunicativa. O contexto discursivo também está presente na interação entre os elementos verbais e os não-verbais, caracterizando aspectos culturais imbricados no ato de comunicação.

O ato de comunicação (Charaudeau, 1992:634) é um dispositivo composto de um sujeito falante (locutor na fala ou na escrita) e de um interlocutor que mantêm entre si uma relação para a produção dos sentidos. Os componentes que entram no jogo comunicativo podem assim ser resumidos:

a) situação de comunicação que engloba o aspecto físico e mental em que se encontram os parceiros da troca linguageira , os quais, por sua vez, são determinados por uma identidade psicológica e social. Esses parceiros estão envolvidos num contrato de comunicação que Charaudeau (1983:54) define como:

o contrato de comunicação é um ritual sociodiscursivo constituído pelo conjunto das restrições e liberdades resultantes das condições de produção e interpretação do ato de linguagem, as quais codificam tais práticas, deixando ao eu-comunicante uma margem de manobra, dentro da qual este elabora seu projeto de comunicação.

b) modos de organização do discurso que constituem os princípios de organização da matéria lingüística, princípios que dependem da finalidade comunicativa do sujeito falante: enunciar, descrever, narrar e argumentar;

c) língua que constitui o material verbal (forma e sentido);

d) texto que representa o resultado material do ato de comunicação, afetado pelas imposições da situação.

Comunicar é uma tarefa complexa, já que não se trata apenas de se transmitir uma informação entre interlocutores, como se a linguagem fosse o reflexo do pensamento. A comunicação resulta de um processo de produção de linguagem, tanto do ponto de vista de sua concepção, como de sua compreensão.

Comunicar-se será, sob a perspectiva semiolingüística, proceder como atores de uma peça teatral, já que estamos todo o tempo “representando”, assumindo papéis diferentes como locutores e interlocutores conforme a situação de comunicação, a posição sociocomunicativa dos interlocutores, o assunto etc. O projeto de comunicação ( a mise en scène) diz respeito às estratégias verbais e não-verbais para envolver o interlocutor, atraindo-lhe a cumplicidade e a concordância. Esses papéis sociais que desempenhamos se materializam nos diferentes gêneros textuais de que dispomos, para a expressão de nossos intenções como falantes.

Marcuschi (Dionísio:2003) caracteriza gêneros textuais como

eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos. Surgem emparelhados a necessidades e atividades socioculturias, bem como na relação com inovações tecnológicas, o que é facilmente perceptível ao se considerar a quantidade de gêneros textuais hoje existentes em relação a sociedades anteriores à comunicação escrita.

Para Marcuschi (op.cit.), a expressão tipo textual designa uma composição teórica definida pela natureza lingüística (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas). Classificam-se como tipos textuais as seguintes categorias: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção. Já a expressão gênero textual se refere aos variadíssimos textos materializados que fazem parte da vida diária, com características sociocomunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo , composição específica. São exemplos de gêneros textuais: telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, carta de leitores de uma secção de jornal, romance, bilhete, reportagem jornalística, aula expositiva, reunião de condomínio, ata, notícia jornalística, horóscopo, receita culinária, bula de remédio, lista de compras, cardápio de restaurante, instruções de uso, outdoor, inquérito policial, resenha, edital de concurso, piada, conversação espontânea, conferência, carta eletrônica ( e-mail), bate-papo por computador, aulas virtuais, novela, conto, roteiro de cinema , texto publicitário etc.

Outra categoria, destacada por Marcuschi, que merece destaque é a de domínio discursivo, designado como uma esfera de produção discursiva ou atividade humana.Tais domínios podem ser entendidos como: jurídico, jornalístico, religioso, midiático, político, acadêmico, científico etc. que dão origem a gêneros bastante específicos como práticas ou rotinas comunicativas institucionalizadas. Resumindo:

a) tipo textual: predomínio de seqüências lingüísticas típicas;

b) gênero textual: predomínio de critérios de ação prática, circulação sócio-histórica, funcionalidade, conteúdo temático, estilo;

c) domínios discursivos: referência a esferas institucionalizadas da atividade humana.

Ressalte-se que um texto pode apresentar-se tipologicamente variado, com a predominância de determinado tipo, em função de seu gênero, bem como do domínio discursivo a que pertença.

Já se pode perceber a importância do conceito de gênero textual para o ensino de língua portuguesa quer como língua materna, quer como língua estrangeira. Dominar um gênero textual não se reduz a dominar determinadas formas de língua, mas sim a possibilidade de realizar, pela língua, objetivos específicos de comunicação, em situações sociais particulares. Logo, a adequada utilização dos gêneros textuais por parte dos falantes está firmemente estruturada na cultura, já que se trata de fenômenos sócio-históricos. Segundo Brockart (1999:103) “ a apropriação dos gêneros é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática nas atividades comunicativas humanas”, o que confirma objetivos de aquisição de competências discursivas por aprendizes de uma língua (estrangeira ou não).

2- ASPECTOS DA POLIFONIA

O termo polifonia designa as diversas vozes responsáveis pelas diferentes perspectivas , pontos de vista, posições ideológicas que constituem um enunciado. Em qualquer cena enunciativa (enunciação em espaço instituído, definido pelo gênero) interagem personagens ( figuras do discurso) que podemos assim resumir:[1]

a) locutor : é o que fala, o que é entendido como fonte do dizer. É referido pelo pronome pessoal eu com suas demais marcas de primeira pessoa. É uma personagem discursiva;

b) sujeito falante empírico: é o produtor efetivo do enunciado;

c) enunciador: é o que representa a pessoa que vê ( o centro de perspectiva).

Os pontos de vista expressos pelos enunciadores podem coincidir ou não entre si, bem como podem coincidir ou não com a perspectiva do locutor ; temos , então, casos de adesão ou não à(s) perspectiva(s) polifonicamente enunciada(s). Vejamos os seguintes exemplos:

TEXTO 1: Beleza é documento e a cantora Elza Soares, que visitou o Espaço Ela/O Boticário, se disse orgulhosa por ver as delicadezas do Rio nas passarelas:

- Estou feliz por ter a cara do Rio e ver tudo que temos de lindo sendo admirado. Nós temos que elevar o Rio e divulgar todas essas maravilhas. O Globo, 10/06/06

No texto1, a perspectiva do locutor “beleza é documento” coincide com a do enunciador – a cantora Elza Soares está “feliz por ver tudo que temos de lindo sendo admirado” e diz da necessidade de divulgação de “todas essas maravilhas”.

TEXTO 2: PEQUIM. A foz do Rio Amarelo, na China, nunca esteve tão limpa, divulgou ontem a mídia estatal do país. A informação contraria matérias recentes, que davam o segundo rio chinês como condenado. Jornal do Brasil, 10/06/06

No texto 2, há perspectivas polifônicas diferentes: a da mídia oficial (rio limpo), a do locutor que mostra sua adesão à voz de “matérias recentes” que dão o rio como “condenado”.

TEXTO 3: Em entrevista, ontem, o atacante Ronaldo reagiu com irritação à pergunta do presidente Lula sobre seu peso, durante videoconferência da véspera.

“Todo mundo diz que ele (Lula) bebe pra caramba. Tanto é mentira que eu estou gordo quanto deve ser mentira que ele bebe pra caramba.” Para tentar desfazer o mal-estar, Lula enviou carta a Ronaldo reafirmando o carinho pelo jogador e dizendo que continuará torcendo por ele. “Recebi a carta e fiquei satisfeito. É hora de acabar com polêmicas”, disse Ronaldo.

O Globo, 10/06/06

No texto 3, podem-se notar claramente perspectivas polifônicas distintas: a do locutor em seu relato, usando a expressão avaliativa “ com irritação” ( locução adverbial de modo) sobre o comportamento de Ronaldo e mais adiante, em discurso indireto, com uma fronteira menos marcada porque o locutor incorpora lingüisticamente na sua fala a fala de outro locutor (Lula). Temos, ainda, as perspectivas de Ronaldo e de Lula delimitadas pelo uso das aspas.

3- COMPETÊNCIA COMUNICATIVA

Após esta brevíssima, mas indispensável reflexão sobre o ato de comunicação, os gêneros textuais e polifonia, vamos ao ponto principal que nos preocupa hoje: o desenvolvimento da competência comunicativa no ensino de PLE.

Segundo Widdowson (1991) “não é muito satisfatório tratar objetivos de cursos de língua em termos de habilidades de falar, compreender, escrever e ler palavras e estruturas de uma língua. Melhor seria pensarmos em termos da habilidade de usar o idioma para fins comunicativos.” Assim, torna-se necessário prever algumas situações de comunicação e as estruturas lingüísticas específicas para uso da língua em seus diferentes registros, funções e gêneros textuais. Com isso, destaca-se a importância do desenvolvimento de competências no ensino de língua.

A competência comunicativa engloba, como sabemos, a competência gramatical, a sociolingüística, a discursiva e a estratégica. A competência gramatical relaciona-se ao código lingüístico, às regras da linguagem como a formação de palavras e de frases, à pronúncia, à ortografia, à semântica. Esta competência se centra diretamente na habilidade e no conhecimento necessários para a expressão adequada do sentido literal. A competência sociolingüística diz respeito à adequação das expressões lingüísticas aos diferentes contextos, isto é, à situação dos participantes, propósitos da interação, normas e convenções da interação, adequação entre significado e forma, significado e função comunicativa. A competência discursiva refere-se ao modo como se combinam formas gramaticais e significado para a criação de textos de gêneros diferentes, de acordo com a situação específica de comunicação. A competência estratégica refere-se ao domínio das estratégias de comunicação verbal e não-verbal que se usam para compensar falhas momentâneas da comunicação (por exemplo, através de paráfrases, mímica etc). A competência em uma segunda língua, com fins de interação social, implica a subordinação de regras gramaticais à função comunicativa em situações discursivas, implica, em uma palavra, o desempenho adequado do papel de falante na mise en scène proposta por Charaudeau.

Com base em tais pressupostos, as propostas de atividades com os alunos estrangeiros têm por base diversas modalidades de textos escritos (verbais ou não-verbais) e orais. Para o pleno desenvolvimento desta competência importam sobremaneira aspectos e instrumentos da coesão e da coerência textuais.

Em resumo, destacamos que a competência comunicativa implica:

• conhecimento de mundo partilhado;

• habilidade no uso da língua em registro adequado ao contexto;

• propósitos definidos da interação;

• domínio de normas e convenções lingüístico-discursivas do gênero textual.

Com a explicitação deste arcabouço teórico, cremos estar claro que nossa prática pedagógica apóia-se em atividades comunicativas e nossa abordagem pressupõe alguns aspectos que passamos a enumerar:

1- Associação do ensino da LE ao “mundo real”, isto é, à necessidade que têm os alunos estrangeiros de conhecer o Brasil, já que aqui alguns farão seu curso superior, e outros porque buscam uma vivência em nossa realidade pelos mais diversos motivos.

2- Garantia de que o ensino de Português está sendo orientado para questões de comunicação, de uso real da língua, através de tarefas de compreensão, interlocução e criação textual.

3- Oportunidade para o emprego de recursos não-lingüísticos cuja leitura facilita a aquisição de estruturas lingüísticas enquanto uso. (Por exemplo: mapas, gráficos, reprodução de gravuras etc.).

4- Ênfase no uso real das possibilidades lingüísticas para o uso espontâneo da língua de acordo com as situações de comunicação (quem fala para quem, com que autoridade, com qual objetivo, etc.).

5- Possibilidade de transferência da habilidade que o aluno já tem com sua língua materna para a “nova língua”, valendo-se, portanto, de sua experiência lingüística.

6 Compreensão melhor da cultura brasileira em que os alunos estarão momentaneamente inseridos, especialmente através de atividades com música popular, cartum, vídeos, charges, quadros e, especialmente, o texto publicitário.

4- A IMPORTÂNCIA DO ASPECTO CULTURAL NA PRODUÇÃO DOS SENTIDOS

Pode-se conceituar cultura como um sistema de crença e valores e uma organização sociopolítica que configuram um modo de agir e interagir, de fazer, de dizer e de comportar-se de uma dada sociedade. A palavra cultura possui uma diversidade de significados, já que engloba tanto o saber cotidiano (experiência comum), bem como o saber intelectual (a experiência refletida). Esse saber comum corresponde à idéia de espírito do povo, segundo a concepção de Herder[2] (a quem se credita a paternidade do nacionalismo cultural).

Na história de cada nação, Herder via um espírito coletivo a se exprimir e consumir-se ao se exprimir. O espírito envelheceria, mas permaneceria idêntico. Ao sublinhar o aspecto nacional da literatura, da linguagem, da legislação, ele imaginava estar aplicando, não algum instinto misterioso, mas uma teoria perfeitamente consciente, o ideal de autarquia cultural, cuja fundamentação, embora seja de um homem de letras alemão, também paga tributo a autores franceses e ingleses. (Jobim, 1995:116)

O discurso da cultura nacional se caracteriza por construir identidades desde o passado (mesmo mítico) até o futuro, em processo contínuo. A narrativa de uma cultura nacional pode ser desenvolvida de várias maneiras: nas histórias e nas literaturas nacionais; na ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade; na invenção de uma tradição; no mito fundacional; na idéia de um povo original (Hall, 2000). A idéia de uma cultura nacional congrega inúmeros significados no sistema de representação de uma dada identificação.

O imaginário não se nutre da natureza, mas da cultura. O homem também não se constitui na natureza, mas na cultura. A busca, portanto, da compreensão das formas de produção de sentido, em dada sociedade, baseada na concepção da natureza interdiscursiva da palavra e, por extensão, da linguagem, nos permite entender a constituição da significação como um processo cultural que se dá entre os indivíduos, isto é, no compartilhar de uma ideologia.

A linguagem, instaurando o diálogo permanente entre os indivíduos em sociedade, mobiliza sentidos já dados e os transforma, conforme a prevalência de determinadas injunções sócio-históricas. Para procurarmos uma identidade nacional, devemos observar como tal sociedade atualiza as possibilidades universais da condição humana, sob as injunções históricas de sua experiência

(...) quando eu defini o “brasileiro” como sendo amante do futebol, da música popular, do carnaval, da comida misturada, dos amigos e parentes, das santos e orixás etc, usei uma fórmula que me foi fornecida pelo Brasil. O que faz um ser humano realizar-se concretamente como brasileiro é a sua disponibilidade de ser assim. (DaMatta:1986:18)

Observemos, como exemplo, o seguinte texto publicitário em que alguns aspectos de nosso modo de ser estão presentes:

[pic]

O Globo, 2005

A imagem é um desenho do cartunista Lan (Cena de Bar, 1980. Acervo particular, Revista Nossa História, fev.2004), representando um típico reduto da malandragem carioca, que foi reaproveitado pelo domínio da publicidade[3], criando-se como gênero textual esta publicidade da cerveja Mulata.

Nesse texto, podemos destacar a sensualidade das figuras femininas, apoiada, ainda, em outro fator cultural: a beleza da mulata cuja imagem estereotipada em nossa cultura “mexe” no componente emocional. Misturam-se também elementos fundamentais da cultura brasileira como o samba e a miscigenação étnica. Vemos ainda a valorização afetiva de figuras típicas da “malandragem” carioca , incluindo até o português atrás do balcão. Fica claro o apelo à emoção e o despertar do desejo vinculados ao prazer de se beber e degustar uma cerveja cujo nome, não sem motivação evidente, é MULATA. A persuasão se fez, principalmente, pelo apelo a mecanismos de base emocional. Observem-se, ainda, as cores quentes (fortes), as linhas sinuosas, o movimento e o volume dos corpos, os planos das imagens – tudo relacionado, implicando forte apelo à sensualidade. “ Chegou Mulata. A mistura perfeita.” Mulher e cerveja perfeitas para o consumidor que deve ser convencido sobre a singularidade e a excelência do produto. Nesse texto, o publicitário se utiliza do adjetivo “perfeita” para caracterizar o sabor da cerveja, distinguindo-a de todas as outras marcas. Vale-se também de uma pergunta que remete, pela intertextualidade implícita, ao valor positivo que se dá à questão da mistura racial no Brasil – “Sabe aquela história de misturar cervejas ?” E a resposta, de sentido conotativo, mas facilmente percebido em seu contexto de frase popular: “Deu samba”, isto é, obteve-se um ótimo resultado. Assim, no gênero publicitário há diversas estratégias enunciativas para o convencimento, como por exemplo, a singularização (determinada marca é apresentada como a melhor de todas) em que predomina o uso da adjetivação e a pressuposição (apropriação de imagens e valores considerados socialmente positivos) em que, no exemplo analisado, a miscigenação na sociedade brasileira é sentida como um valor positivo, implícito na opinião pública. A ideologia que sustenta esse valor positivo contribui para disfarçar o preconceito subjacente às relações étnicas no Brasil.

Essa publicidade encaminha o desenvolvimento de discussão de alguns aspectos culturais do Brasil (miscigenação, sensualidade, samba, hábito de se tomar cerveja, alegria , entre outros) bem como sua expressão lingüística, freqüentemente clicherizada.

5- INTERPRETAÇÃO E CONHECIMENTO DE MUNDO: REFLEXO DA CULTURA

Essa abordagem de ensino, implicando a vinculação do estudo da língua portuguesa à cultura brasileira (aspectos sociológicos, antropológicos, históricos, artísticos etc.), privilegia o espaço da sala de aula como o lugar da construção de um conhecimento compartilhado e de aquisição de competência comunicativa. Os alunos sentem-se parte integrante desse processo, na medida em que refletem sobre si mesmos e sobre o “diferente” na prática de uma “nova língua” representativa de outra cultura. Sabemos que o objetivo mais evidente no processo ensino/aprendizagem de línguas é desenvolver, nos alunos, as competências necessárias a uma interação autônoma em situações reais de comunicação, de leitura e de produção textual. Tais competências abrangem a aquisição de um número significativo de habilidades contextuais, sociocomunicativas e pragmáticas de uso lingüístico. Daí decorre a importância da valorização do trabalho com diferentes gêneros textuais.

A aprendizagem de uma língua abrange, portanto, a aquisição da capacidade de compor frases corretas. Esse é um dos aspectos da questão.Mas ela também inclui a aquisição da compreensão de como essas frases, ou partes delas, são apropriadas num contexto específico. (WIDDOWSON:15,1991)

Logo, a discussão das questões do ensino de língua portuguesa quer como língua materna, quer como língua estrangeira, deverá privilegiar uma perspectiva que enfatize a relação entre a língua , a cultura e a situação comunicativa. O contexto cultural do aluno interfere diretamente no processo de interpretação e de produção de texto. Por isso, a especial atenção que se deve dar aos aspectos culturais brasileiros, para que o estudante possa desenvolver-se em língua portuguesa, aprendendo a descobrir outras maneiras de ver, de fazer, de interpretar o mundo.

O contexto cultural constitui um fundamento usual para a compreensão. Os esquemas de uma cultura específica auxiliam a compreensão de textos sobre essa cultura. Esses esquemas fornecem ao ouvinte e ao leitor conhecimento especial, através do qual ele pode extrair inferências que são necessárias para entender o texto. (Dell’Isola: 93, 2001).

Os textos publicitários costumam fazer uso intertextualidade por meio do diálogo com outros textos como frases feitas, provérbios, enfim, textos que circulam idéias conhecidas do público a que se destinam. No entanto, para que a intertextualidade funcione como estratégia discursiva se faz necessário que o leitor a reconheça, para conseguir interpretar os sentidos do texto. Assim, as inferências têm um lugar fundamental na compreensão e interpretação das mensagens, o que vale dizer na passagem do sentido de língua para o de discurso. Esse processo interpretativo depende do conhecimento de mundo e do conhecimento partilhado, resultantes das experiências de cada um. Mais uma vez, enfatiza-se a necessidade de atentar para os aspectos culturais presentes em tais textos e que os alunos estrangeiros, quase sempre, precisam de ajuda para percebê-los em toda sua extensão.

Entendemos que, no ensino /aprendizagem da língua, o ato de fala e o ato interpretativo pressupõem a competência do locutor/ouvinte de acordo com as expectativas sociais do diálogo, levando-se em conta que as formas lingüísticas são delimitadas pelas condições produção e de interpretação dos enunciados nos variados contextos de uso.

As estratégias para o ensino da língua portuguesa devem ser discutidas, portanto, com base na idéia de que uma cultura nacional congrega inúmeros significados no sistema de representação de uma dada identificação e que o homem se constitui na cultura.

6- EXEMPLOS DE GÊNEROS TEXTUAIS PARA O DESENVOLVIMENTO DA COMPETÊNCIA COMUNICATIVA

Observemos como o trabalho de leitura e discussão de alguns gêneros textuais permitem um trabalho proveitoso para a aquisição das competências desejadas no ensino de PLE.

6.1- Gênero “carta de leitor”

A “carta de leitor” publicada diariamente nos principais jornais e revistas se caracteriza como um gênero textual em que se transmite uma mensagem a um interlocutor para dizer-lhe algo (( situação comunicativa em que os parceiros não estão face a face, mas mantêm suas identidades psicológicas e sociais.

EXEMPLO: CARTA DE LEITOR

Finalmente tomando como exemplo o caso do STF, nossos senadores optaram pela cassação do presidente do Senado. Cassação essa totalmente fundamentada em análises e perícias documentais. Espero que, com a votação secreta, os escrúpulos de nossos brilhantes senadores prevaleçam, bem como a neutralidade do sr. Presidente da República e a do seu partido, o PT. Se o presidente diz que coloca à hora que ele quiser 60 milhões de pessoas nas ruas, ele se esquece de que ainda assim ficam sobrando 120 milhões.

Sílvio Jesus Esteves da Silva

(por e-mail, 6/9) Rio. O Globo,7/9/07

Destaquem-se alguns aspectos que são fundamentais para a construção do sentido do texto: o uso do pronome possessivo “nossos” introduz o leitor no texto, criando uma certa cumplicidade com ele; o uso da polifonia ( a voz do Presidente da República, a voz dos jornais e do emissor da carta); o emprego de modalizadores como “finalmente” e a adjetivação “secreta” “brilhantes” etc.

6.2- Gênero publicitário

O texto publicitário, como gênero textual, atende a uma função social específica e se configura como uma estrutura que pode apresentar o predomínio de um dos tipos textuais ou até uma possível heterogeneidade tipológica.[4]

Trabalhar com gênero publicitário dá ensejo a observação de como os tipos textuais podem circular em determinada mensagem; permite a análise da posição dos interlocutores na sociedade; propicia a análise do projeto de comunicação e das manobras lingüísticas que o eu-comunicante deve realizar para a produção do efeito de sentido desejado; apresenta um material lingüístico com base nos registros de língua adequados ao contexto; ressalta aspectos socioculturais indispensáveis, para que o estudante, no diálogo com esses textos, realize as inferências necessárias à interpretação do texto.

Parece que no mundo de hoje, não se vende um produto pelas suas qualidades, mas sim pela carga emocional, pela imagem positiva que o tal produto carrega ou desperta. O consumidor é o centro do “negócio” e deve ser convencido de que, consumindo determinado produto, estará sendo valorizado na sociedade. Assim, o estudante estrangeiro, ao perceber os valores positivos em que a publicidade estrutura sua mensagem verbal e a icônica, conhecerá um pouco melhor a sociedade que acolhe tais valores. Percebe-se na publicidade brasileira (talvez sejam características universais, mas com cor local) uma colagem das imagens de poder, juventude, sensualidade, beleza física e riqueza nos produtos anunciados que parecem atender a necessidades psicológicas profundas do consumidor. Pode-se dizer que há por trás do emissor da publicidade alguém capaz de conferir ao consumidor a “fórmula mágica” para conseguir determinado atributo que ele, consumidor, ainda não tem. O texto publicitário hoje é o espelho do sonho e a porta para a imagem da felicidade. Vale a pena conferir com nossos alunos estrangeiros, se há coincidência de expectativas dos gostos e necessidades dos brasileiros com as de sua própria cultura.

Passemos a leitura de alguns textos publicitários:

TEXTO 1

[pic]

O texto apresenta um locutor ( o emissor da mensagem publicitária) e de um destinatário, identificado pelo pronome “você”. Há a presença de uma intertextualidade profunda[5] , quando se faz referência a um tipo conhecido socialmente – o pessimista e suas características. Exemplificam-se também trechos de tipos de texto diferentes:

a) descritivo: “É aquele que balança a cabeça, solta um risinho quase imperceptível e resmunga: ‘Isso não vai dar certo.’ ” ;

b) narrativo: “Você conhece bem o tipo. (...) Os pessimistas estão em todos os lugares.”;

c) injuntivo: “O único lugar em que você não pode encontrar um deles é na

frente do espelho.Pense Ão. Leia o Estadão.”

Percebe-se nessa heterogeneidade tipológica um projeto de comunicação que tenta a melhor maneira de seduzir e persuadir o leitor a assinar e a ler o jornal o “Estadão”. Um aspecto lingüístico interessante para uma aula de PLE é destacar o valor afetivo dos sufixos –ão e – inho em língua portuguesa. Por que –ão é ser otimista e –inho é reclamão ? Por que o jornal O Estado de São Paulo é afetivamente referido como o “Estadão”? As respostas encontram seus fundamentos em questões da cultura brasileira que se materializam na língua.

Sob o ponto de vista da imagem, notam-se cores fortes, com predominância do azul, verde e amarelo numa referência evidente às cores da bandeira brasileira tão requisitada em época de Copa do Mundo, caso dessa publicidade (Copa de 2006). No caso específico dos jogadores, convém ressaltar uma discussão recorrente sobre um processo de “anomia” – os jogadores são quase todos conhecidos pela forma –inho (Ronaldinho, Robinho, Marcelinho, ), ao contrário dos europeus que se apresentam como Luis Figo, David Beckham, Zidane etc.

TEXTO 2

[pic]

ISTO É, 17/05/2006

Esta mensagem publicitária relaciona com muita propriedade elementos verbais e não-verbais, criando pelo uso das bandeirinhas uma vinculação direta a um dos temas de maior destaque na obra do pintor Volpi. As bandeirinhas coloridas, para os brasileiros, remetem imediatamente a cenas de festas juninas que, na região nordeste possuem um forte apelo popular, caracterizando-se mesmo como uma marca de cultura. Já na região sudeste, as festas juninas são comemoradas nas escolas como valorização de um aspecto folclórico, como uma tradição a ser cultivada, mas não como uma participação espontânea das pessoas no evento. Trata-se de aproveitamento de uma intertextualidade implícita, vinculada ao conhecimento de mundo. As bandeirinhas se encontram num parque, estabelecendo relação direta com a informação sobre o local da exposição: Mam (Museu da Arte Moderna) Parque Ibirapuera. As cores fortes funcionam como uma estratégia de sedução, para criar no leitor, pelo destaque ao apelo visual, a vontade de visitar a exposição.

No texto, o projeto de fala do eu-comunicante (sujeito falante) se constrói com base em dois objetivos comunicativos: “fazer saber” – há uma informação, uma asserção sobre o período de exposição do artista, o horário, o local; mas também nota-se outro objetivo comunicativo da caráter factivo: “fazer fazer”, isto é, há na enunciação o desejo de que o público compareça à exposição. A intenção de sedução está perceptível na adjetivação de caráter valorativo (completa; um dos maiores) e também no uso da sinestesia [cruzamento de sensações; associação de palavras ou expressões em que ocorre combinação de sensações diferentes numa só impressão, Houaiss eletrônico] “a música da cor”, com a ativação dos sentidos da visão e da audição.

Esse tipo de publicidade também permite a divulgação da arte brasileira, podendo-se inclusive sugerir uma pesquisa na Internet sobre o autor.

6- REFLEXÕES FINAIS

Por meio do trabalho de leitura e compreensão dos textos de gêneros variados que congregam o não-verbal e o verbal, com definidos projetos de comunicação, o aluno estrangeiro terá uma boa oportunidade de refletir criticamente sobre a realidade brasileira, descobrindo como os brasileiros se deixam seduzir, quais os valores considerados positivos pela cultura , quais os mecanismos lingüístico-discursivos prevalentes, e, finalmente, podem criticar a si mesmos e aos brasileiros, observando uma nova maneira de estar no mundo.

Haveria muitos outros gêneros textuais propícios a um trabalho de expansão das habilidades de compreensão, de interpretação e de produção escrita e oral em língua portuguesa por alunos estrangeiros. Destacamos, como simples exemplificação, ao lado da publicidade, textos como a charge, a carta o leitor, cartum e notícias veiculadas pela mídia. Trata-se de textos motivadores em que a língua acompanhada pelo desenho, de certo modo, facilitam a compreensão e a interpretação dos discursos que circulam no jogo social da linguagem, propiciando a expansão do conhecimento de mundo dos falantes (aprendizes).

Assim, o professor poderá construir seu material de ensino – exercícios para a fixação de aspectos gramaticais, propostas de atividades com ênfase nos registros de língua vinculados à situação de comunicação, leitura e criação de textos com base em diferentes gêneros – , visando a aquisição das diferentes competências (gramatical, sociolingüística, discursiva e estratégica), que encaminham para a competência comunicativa do aluno.

Realmente, os modos de dizer, de ver, de “fazer fazer”, de “fazer saber”, de seduzir, entre outros, de uma comunidade estão entrelaçados e constituídos pela cultura, de tal modo que podem produzir, pela linguagem, uma realidade singular.

Referências bibliográficas

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JOBIM, José Luís & HENRIQUES, Ana Lúcia de Souza. A literatura e a identidade nacional lingüística:José de Alencar e Walter Scott. in: Cadernos pedagógicos e culturais. Niterói, Centro Educacional de Niterói, v.4,jul./dez.1995;v.5jan./dez.1996.p. 111-133.

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MONNERAT, Rosane. A publicidade pelo avesso. Niterói: EDUFF, 2003.

OLIVEIRA, Ieda. O contrato de comunicação da literatura infantil e juvenil. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.

REBELLO, Ilana da Silva. O produto (marca) como garoto-propaganda: as modalidades do ato delocutivo e a intertextualidade. Dissertação de Mestrado apresentada à Pós-Graduação em Letras do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, 2005.

LYGIA MARIA GONÇALVES TROUCHE – Doutora em Letras pela UFF. Professora Associada 1, de Língua Portuguesa da UFF, onde também é Coordenadora do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu, de Língua Portuguesa. Sua área de interesse abrange Lingüística do Texto e Lingüística Aplicada ao ensino de Língua Portuguesa – materna e como língua estrangeira. Vem trabalhando na área de PLE desde 1992. Em 2005, passou a integrar o Grupo CIAD/RJ. Publicou trabalhos apresentados em congressos e artigos , como: “Leitura e interpretação: inferências socioculturais in: JÚDICE, Norimar (org.) Ensino da língua e da cultura do Brasil para estrangeiros.Niterói, Intertexto, 2005; “Polifonia e Intertextualidade” in: Pauliukonis, Maria Aparecida e SANTOS, Leonor Werneck(org.) Estratégias de leitura. Texto e ensino. Rio de Janeiro:Lucerna, 2006

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[1] Distinção proposta por Ducrot. Sujeito falante “é o autor empírico do enunciado, seu produtor[...] exterior ao sentido do enunciado”; o locutor “um ser que, no próprio sentido do enunciado , é apresentado como seu responsável”; o enunciador “um ser de pura enunciação, que determina o ponto de vista a partir do qual os acontecimentos são apresentados”. Isso lhe permite tratar o problema da polifonia. Apud CHARAUDEAU& MAINGUENEAU (2004:319)

[2] Johann Gottfried von Herder (1744-1803) Escritor alemão, crítico literário e clérigo, nasceu em 1744 em Mohrungen na Prússia oriental e faleceu em Weimar em 1803.

[3] Para aprofundar este assunto, ler REBELLO, Ilana da Silva. O produto (marca) como garoto-propaganda: as modalidades do ato delocutivo e a intertextualidade . Niterói, Pós-graduação, Instituto de Letras UFF, 2005, Dissertação de Mestrado.

[4] Heterogeneidade tipológica= um gênero com a presença de vários tipos (narração, descrição, argumentação, injunção). DIONÍSIO (2003:31)

[5] Trata-se, segundo Verón, de uma intertextualidade “profunda”, por se tratar de textos que, participando do processo de produção de outros textos, não atingem nunca (ou muito raramente ) a consumação social dos discursos. KOCH, 2002: 61.

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Você conhece bem o tipo. É aquele que balança a cabeça, solta um risinho quase imperceptível e resmunga: “Isso não vai dar certo.” Os pessimistas estão em todos os lugares. O único lugar em que você não pode encontrar um deles é na frente do espelho. Pense Ão. Leia o Estadão.

ESTADÃO

O JORNAL DE QUEM PENSA ÃO

Volpi: a música da cor, a mais completa exposição sobre um dos maiores nomes da pintura brasileira. Até 2 de julho no Mam, Parque Ibirapuera, portão 3.

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