Indivíduos que apresentam deficiência visual, tanto os ...
VIVÊNCIAS DO COTIDIANO: MEIOS DE AQUISIÇÃO DE CONHECIMENTOS PARA INDIVÍDUOS QUE APRESENTAM BAIXA VISÃO OU CEGUEIRA
Sônia Maria Chadi de Paula Arruda[1]
Lígia Milito Polettini[2]
Daniela Aparecida Rissi [3]
Sílvia Helena Rodrigues de Carvalho[4]
RESUMO
Este estudo tem como objetivo analisar a aprendizagem de atividades da vida diária (AVD) em situações contextualizadas visando, além de conhecimentos e habilidades específicas, práticas de leitura e escrita em indivíduos que apresentam baixa visão ou cegueira. Diferentes situações como ler uma receita, um manual de instrução, decodificar embalagens de alimentos ou de objetos de uso diário requerem não apenas habilidades específicas para o manuseio dos mesmos, como também, uma leitura de seus conteúdos. O uso de auxílio óptico e não-óptico, de equipamentos de informática, a adaptação do ambiente, a ampliação do tamanho da letra ou o braile facilitam a prática das AVD, ampliam o conhecimento nos aspectos do desenvolvimento, favorecendo a inserção social e, desta maneira, contribui para uma percepção mais ampla de mundo.
INTRODUÇÃO:
As atividades da vida diária (AVD) são todas as ações relacionadas a higiene, vestuário, alimentação, cuidados com a casa, jardinagem, entre outras atividades que são feitas no cotidiano. Estas atividades são realizadas de acordo com os interesses, necessidades e possibilidades de cada indivíduo e são imprescindíveis para uma vida independente.
A deficiência visual, tanto nos casos de cegueira como de baixa visão, interfere na maneira de desempenhar estas ações, pois as AVD são atividades onde a função visual é muito utilizada. A perda visual, total ou parcial, faz com que os indivíduos com tal deficiência busquem modos alternativos de realizar as atividades do cotidiano.
Do ponto de vista educacional a cegueira é considerada desde a perda da projeção de luz até a ausência total dessa percepção. O processo de aprendizagem se dá pela integração dos sentidos: tátil, auditivo, olfativo, cinestésico (BRUNO, 1997).
A baixa visão ou visão subnormal é uma visão intermediária entre a visão normal e a cegueira (HADDAD, et al, 2001). “Uma pessoa com baixa visão ou visão subnormal é aquela que possui um comprometimento do seu funcionamento visual, mesmo após tratamento clínico e/ou correção óptica e apresenta uma acuidade visual no melhor olho, entre 6/18 a percepção luminosa, ou um campo visual inferior a 10 graus do seu ponto de fixação, e que usa ou é potencialmente capaz de utilizar a visão para planejar e/ou executar uma tarefa” (WHO, 1995; VEIZTMAN, 2000).
Admite-se que 85% do contato do homem com o mundo se faz por meio da visão, de forma que problemas oculares podem representar graves prejuízos para indivíduos com cegueira e baixa visão (ALVES, M; KARA-JOSÉ, N, 1996; GASPARETTO, 2001). A aprendizagem e prática de AVD podem ficar prejudicadas em função da perda visual. Outras atividades como a leitura e escrita também podem ficar limitadas com a deficiência visual.
De acordo com ROMERO (apud ARJONA ARIZA, GONZÁLES MADORRÁN, ROMERO CABRILLANA, 2003) a leitura e escrita são processos seqüenciais no qual, consecutiva e interativamente, faz-se necessária a análise visual e auditiva da estimulação, o reconhecimento de letras, sílabas e palavras, a compreensão lexical e as expressões motoras oral e escrita.
O processo de aprendizagem de leitura e escrita por indivíduos com baixa visão ou cegueira é um percurso transcorrido de modo diferente, mas favorável às aquisições possíveis. A habilidade de ler e escrever, em função do problema visual fará com que a aquisição de leitura se dê por meio do braile, recursos ópticos, recursos não ópticos (ampliações, contraste entre a cor do papel e a cor do lápis ou caneta, iluminação), como também pranchas, para diminuir a distância entre o olho e o material a ser lido, modificações do espaço físico e recursos de informática. Isso é possível devido à existência de programas especiais, criados especificamente para o uso de deficientes visuais.
Existem os programas falados, que permitem que uma pessoa mesmo sem visão, ou com visão reduzida, opere e execute as tarefas comuns dessa máquina: digitação de texto, impressão (comum ou em braile), acesso à Internet (receber mensagens, explorar home pages, etc.), enfim, usufrua de uma forma quase plena, dos recursos do computador. Existem três tipos de programas que pessoas com deficiência visual podem usar: leitores de tela, ampliadores de tela e ambientes diferenciados.
Nas atividades de vida diária são muitas as situações em que a leitura e escrita são utilizadas como ler receitas, manuais de instrução, embalagens de alimentos ou objetos de uso diário, que poderiam estar relacionadas às concepções de letramento. SIGNORINI (2001) aponta autores que consideram o letramento como o conjunto de ações e atividades orientadas para a interação social e que envolvem o uso da leitura e escrita e que integram a dinâmica da vida cotidiana.
Na prática de AVD, além de habilidades específicas para manusear objetos, organizar e preparar os ingredientes, a todo o momento a leitura e escrita estão presentes. Indivíduos que apresentam deficiência visual aprendem a fazer de maneira organizada, simplificada e sistematizada as atividades do cotidiano, favorecendo-lhes, desta maneira a independência e autonomia (ARRUDA, 2001).
O objetivo desse estudo é discutir a leitura e escrita na prática de atividades do cotidiano como um meio de aquisição de conhecimentos para indivíduos que apresentam baixa visão ou cegueira.
II. Material e método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, na qual são descritos procedimentos observados em situações de atividades de vida diária, com sujeitos que apresentam cegueira ou baixa visão do CEPRE (Centro de Estudos e Pesquisa em Reabilitação Prof. Dr. Gabriel Porto) – Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, um serviço universitário de assistência, docência e pesquisa voltado à deficiência visual e surdez.
Sujeitos
Foi selecionado para este estudo quatro sujeitos, que faziam parte do Programa de Adolescentes e Adultos, da área de assistência ao deficiente visual. Dois tinham baixa visão e dois cegueira, com idade entre 24 e 56 anos e eram participantes do Programa de Reabilitação da área de assistência do CEPRE. As atividades foram desenvolvidas no setor de AVD, com a freqüência semanal de uma hora de atendimento.
Descrição dos casos:
1º caso: R. sexo masculino, 24 anos, apresenta cegueira adquirida aos 6 anos de idade, por retinoblastoma. Atualmente, está freqüentando o curso supletivo do ensino fundamental; usa o braile como sistema de leitura e escrita e informática adaptada.
2º caso: C. sexo feminino, 32 anos, apresenta cegueira congênita, decorrente de retinoblastoma. Concluiu o segundo grau e usa o braile para leitura e escrita e a informática adaptada.
3º caso: E. sexo feminino, 42 anos, com baixa visão adquirida por glaucoma e catarata congênita. Atualmente está aprendendo a usar seu resíduo visual em atividades de leitura e escrita, com recurso óptico (óculos especiais) e recursos não-ópticos (contraste, iluminação, material colorido). Está iniciando aprendizagem de informática.
4º caso: M.L. sexo feminino, 56 anos, apresenta baixa visão adquirida causada por retinopatia diabética. Está sendo alfabetizada já discriminando letras e números.
Procedimentos
O estudo teve como proposta dar aos sujeitos a oportunidade de escolha do assunto a ser trabalhado em AVD, partindo de seus interesses e necessidades. A atividade escolhida pelos sujeitos foi relacionada ao preparo de alimentos. Para isso, foi necessária a organização de receitas culinárias para que pudessem ser lidas e preparadas, seguindo alguns procedimentos básicos:
partiu-se do interesse dos sujeitos para eleger as atividades que seriam trabalhadas;
as atividades escolhidas incluíram a organização de um caderno de receita;
os dois sujeitos com cegueira digitaram as receitas, por meio do uso de software sonoro, e imprimiram o texto no sistema braile para a leitura;
os dois sujeitos com baixa visão apresentavam perda visual recente e estavam aprendendo a usar o resíduo visual para atividades de leitura e escrita. Estes leram a receita escrita para eles com letra cursiva ampliada conforme a necessidade de cada sujeito, de modo que pudessem ler e usar as receitas para preparar os alimentos também na própria casa.
preparo de receita culinária (torta de queijo e presunto) e pizza;
as embalagens dos alimentos foram marcadas por eles para facilitar a identificação dos mesmos.
os sujeitos organizaram códigos específicos para identificação dos objetos usados no preparo dos alimentos. Por exemplo, os que tinham baixa visão, por apresentarem dificuldades na leitura, preferiram colocar nas embalagens a inicial em letra impressa do tipo de alimento.
aprenderam a manusear os objetos, a medir os alimentos.
após a leitura das receitas e a compreensão do texto aprenderam a prepará-los.
os atendimentos foram observados, gravados e descritos para posterior análise da coleta de dados.
Exemplo de receita culinária utilizada nas atividades.
Receita de Pizza:
3 xícaras de trigo
3 colheres de óleo
1 colher de margarina
1 colher de fermento em pó
1 colher (café) de sal
1 xícara de água
Modo de fazer:
- Coloque todos os ingredientes em uma tigela, seguindo a ordem apresentada.
Mexer e sovar bem a massa.
Deixar descansar.
Preparar o recheio (salada de tomate, sardinha, palmito, tomate, frango ou queijo).
Esticar a massa numa forma com os dedos.
Colocar para assar no forno, por 25 minutos em forno médio.
III. Resultados e discussões:
Indivíduos com baixa visão e cegueira apresentam motivação para aprender a fazer as atividades do cotidiano. Em geral, demonstram interesses e necessidades de aprendizagem de acordo com as dificuldades encontradas no dia-a-dia e a expectativa de adquirirem independência e autonomia.
Uma das dificuldades apresentadas por eles refere-se às atividades de preparo de alimentos. Esta não é uma tarefa simples, como aparenta, pois para cozinhar, é preciso organizar, decidir, prever. É preciso memorizar, adaptar, modificar, inventar e combinar (GIARD, 1996). É importante também a leitura e a compreensão do texto das receitas. De uma mesma receita se obtém resultados diferentes, dependendo daquele que lê e que faz.
Os sujeitos mostraram interesse pelas atividades de preparo de alimentos e, destacando-se a leitura de receitas. Nos dois primeiros casos, utilizando recursos da informática aprenderam a digitar receitas de comidas e a organizar índices para facilitar localização de receitas ou itens desejados, usando o microcomputador e a impressora em braile. Tornou-se possível transcrever as receitas de texto comum para texto em braile. Foi necessária a aprendizagem da digitação e utilização dos recursos adaptados da informática. Utilizando-se inicialmente do software DOS-VOX, com síntese de voz para acompanhamento, o sujeito aprendeu a digitar textos e, já tendo acesso ao braile, pode com facilidade ler os procedimentos das receitas culinárias. Observa-se que as receitas foram reescritas de forma simplificada para facilitar a leitura e escrita.
O terceiro e quarto casos descritos, fizeram uso do resíduo visual, juntamente com auxílios ópticos e não-ópticos. Noções básicas de matemática, por exemplo, ½, ¼ de xícara de leite, farinha, são questões onde além da leitura da receita é preciso compreender o contexto e ter conhecimentos matemáticos. Entretanto, a dificuldade de leitura limitou a princípio o acesso às receitas culinárias e a identificação de ingredientes como, a farinha, o açúcar e o sal. Descascar legumes, medir quantidades de líquidos como o óleo, o leite, temperatura e grau de cozimento dos alimentos, são ações realizadas por eles por meio do tato e dos demais órgãos do sentido, com uso de algumas técnicas específicas pela segurança e eficiência na ação.
Foram utilizadas letras ampliadas, conforme o diagnóstico de cada usuário, canetas de ponta porosa de cor preta, contrastes para facilitar a leitura e identificação dos objetos. Foi também necessário adaptar as medidas de acordo com o nível de compreensão de cada usuário, assim como a leitura e escrita das receitas. Mesmo os casos de baixa visão, que estavam aprendendo a ler escrever usando o resíduo visual restante, os textos foram trabalhados, favorecendo o reconhecimento dos itens e a compreensão do texto, muitas vezes sem haver uma leitura total do mesmo. Notou-se que estes dois casos memorizaram a receita e, a partir daí, escreveram a receita que podiam entender usando códigos e desenhos específicos para ter acesso à receita quando necessário, com independência.
Após a leitura e a compreensão do texto, os usuários adquiriram conhecimentos que permitiram a realização de comidas com independência e autonomia no exercício de habilidades para realizar as atividades do cotidiano, o que amplia suas possibilidades de inclusão em seus grupos, enfatizando aspectos do letramento, recursos ópticos e não ópticos e acessibilidade. Aprenderam a identificar os tipos de alimentos, não somente pela marcação na embalagem, mas também pelo olfato, paladar e o tato. Noções de higiene e ordem do ambiente fizeram parte do processo de aprendizagem.
Nessa perspectiva, indivíduos com deficiência visual, ao praticarem as atividades da vida diária, utilizando-se de recursos e adaptações específicas atrelados à leitura e escrita, participam da prática de letramento, na qual se considera a condição sóciocultural dos mesmos. Isso faz com que adquiram um maior conhecimento do meio em que estão inseridos, ampliando suas perspectivas de vida e promovendo a interação social.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, M. ; KARA-JOSÉ, N. A criança deficiente visual. In: ALVES; KARA-JOSÉ, N. O olho e a visão. O que fazer pela saúde ocular das nossas crianças. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 98-103.
ARJONA ARIZA, C.; GONZÁLES MADORRÁN, A,; ROMERO CABRILLANA, F. A leitura e escrita no deficiente visual grave. In: BUENO MARTÍN, M.; TORO BUENO, S. (Coord.) et al. Deficiencia visual: aspectos psicoevolutivos e educativos. São Paulo: Santos. 2003. p. 205-247
ARRUDA, S.M.C.P. Atividades da vida diária: intervenção no processo de formação na pessoa com deficiência visual. In: QUEVEDO, A. A. F; OLIVEIRA, J. R; MANTOAN, M. T. E. Mobilidade e comunicação: desafios à tecnologia e inclusão social. Campinas: Edição do Autor, 1999. p.133-140.
BRUNO, M. M. A deficiência visual: conceitos e definições. In: BRUNO, M. M. Deficiência visual: reflexão sobre a prática pedagógica. São Paulo: Laramara, 1997. p 7-13
GASPARETTO, M. E. R. F. Visão subnormal em escolas públicas: conhecimentos, opinião e conduta de professores e diretores do ensino fundamental. Campinas, 2001. 197 f. Tese (Doutorado em Ciências Médicas. Área Ciências Biomédicas). Faculdade de Ciências Médicas. Universidade Estadual de Campinas.
GASPARETTO, 2001
GIARD, L. Seqüências de gestos. In: CERTEAU, M; GIARD, L.; MAYOL, P. A invenção do cotidiano. 2: morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 1996. p 268-286.
HADDAD, M.; SAMPAIO, M.; KARA-JOSÉ, N. A adaptação de auxílios para o paciente com baixa visão. In: HADDAD, M.; SAMPAIO, M.; KARA-JOSÉ, N. Auxílios para a baixa visão. São Paulo: Laramara 2001. p. 9-13.
SIGNORINI, I. Construindo com a escrita “outras cenas de fala”. In: SIGNORINI, I. (Org) et al. Investigando a relação oral / escrito e as categorías do letramento. Campinas: Mercado das letras. 2001. p. 97-134.
SOARES, M. B. Língua escrita, sociedade e cultura: relações, dimensões e perspectivas. Revista de Brasileira de Educação, no. 0, p. 5-16, set./dez. 1995.
VEIZTMAN, S. Fundamentos da baixa visão. In: VEIZTMAN, S. Visão Subnormal. Rio de Janeiro: Cultura Médica, 2000. p. 1-8. (Manuais básicos / CBO; 17).
WORLD HEALTH ORGANIZATION. GLOBAL DATA ON BLINDNESS. GENEVA, WHO, 1995, 73, 1: P. 115-121. (BULLETIN OF WORLD HEATH ORGANIZATION, VOL. 73).
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[1] Mestre em Educação e doutoranda pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. Docente e pesquisadora do CEPRE- Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação “Prof. Dr. Gabriel de O. da S. Porto”.
[2] Graduanda da Faculdade de Pedagogia da UNICAMP. Estagiária do CEPRE.
[3] Psicóloga. Estagiária do CEPRE.
[4] Profa.especializada em Deficiência Visual. Docente e pesquisadora do CEPRE- Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação “Prof. Dr. Gabriel de O. da S. Porto”.
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