Viagens pedagógicas de um professor da roça: um estudo ...



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Alinde Gadelha Kühner – Balcão- CNPq - UFRJ

A produção deste artigo vincula-se com a pesquisa Hagiografia e História: um estudo comparativo da santidade, coordenado pela professora Andréia C. L. Frazão da Silva junto ao Programa de Estudos Medievais, laboratório do IFCS – UFRJ. Este projeto conta com seis eixos temáticos: 1) o caráter didático e propagandista das hagiografias; 2) a divulgação de metas e projetos da Igreja Romana; 3) as construções sociais de gênero; 4) os centros de formação intelectual; 5) as práticas e as crenças da religiosidade e 6) o crescimento da espiritualidade leiga. O corte espaço-temporal da pesquisa compreende as Penínsulas Ibérica e Itálica dos séculos XI ao XIII.

O projeto está sendo desenvolvido desde 2000, mas a nossa entrada como bolsista de Iniciação Científica deu-se em 2004. Primeiramente, aprendemos o que é hagiografia e como o termo foi concebido. Este foi elaborado no século XVII - período em que foi fundada a sociedade dos bolandistas, “dedicada ao estudo crítico das vidas dos santos” (URIBE, 1999, p. 58),a partir de raízes gregas (hagios = santo; grafia = escrita). As hagiografias, portanto, referem-se aos feitos ou a elementos relacionados aos cultos dos indivíduos considerados santos. Esses indivíduos podem ser mártires, virgens, monges, pecadores arrependidos, eremitas, pregadores, reis, bispos... Os santos, enfim, são indivíduos que, no seio da sociedade onde vivem, destacam-se por ações que,acredita-se, os aproximam do Divino.

A tarefa que nos foi delegada para a foi desenvolver uma tipologia das hagiografias, pois se há consenso sobre o que é uma hagiografia, o mesmo não ocorre face aos diferentes tipos de textos hagiográficos. Não há um estudo sistematizado que defina o que é vida, o que é martírio, e assim por diante. Para cumprirmos tal demanda, estamos lendo textos hagiográficos dos mais variados tipos.

Um desses textos foi a Nauigatio Sancti Brendani Abbatis (Navegação do Abade São Brandão), escrito no século XIII e provavelmente elaborado no Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, em Portugal. Essa é uma das mais de 120 versões medievais para a história do santo. Não há documentação que comprove a existência do abade e ao mesmo tempo nada que possa refutar a sua historicidade. Ele teria vivido entre os séculos V e VI e teria sido um dos fundadores do monaquismo irlandês. Segundo a lenda, foi um abade que em determinado momento da sua vida decidiu tentar conhecer o Paraíso Terrestre. Construiu um barco com seus companheiros (o número deles varia de acordo com o manuscrito) e ficam sete anos navegando na sua busca. Ao longo desse tempo, aconteceram muitos contatos com o Além, benéficos ou não. Chegaram então ao Paraíso e não lhes foi permitido ficarem muito tempo, o que os fez regressar para a Irlanda. Na sua terra natal, o abade morreu não muito tempo depois da sua viagem. Brandão é um santo muito conhecido na Irlanda, ao menos durante a Idade Média. Foi considerado um dos vinte e dois fundadores (17 varões e 5 mulheres) de mosteiros irlandeses, que constam de uma pequena ladainha do Missal de Stowe, muito provavelmente elaborado em torno do ano 800.

A primeira hagiografia que tem como tema o santo irlandês é do século VIII ou da virada do VIII para o IX e é uma vita. Ela detalha de forma mais ampla as passagens da vida do santo alheias à sua viagem. Apesar disso, o modelo de hagiografia que mais divulgou a lenda do abade foi a nauigatio – sendo o primeiro exemplar conhecido escrito na Lotaríngia do século IX. Enquanto essas versões eram escritas e propagadas no continente, não eram escritas versões insulares da lenda. No século XII, uma das duas esposas do rei Henrique I da Inglaterra pediu a um dos clérigos da corte que escrevesse a história do abade. Ela encomendou duas versões: uma em latim e uma em anglo-normando. Não se sabe se a versão latina chegou a ser escrita – se o foi, não resistiu ao tempo. Sabe-se que a versão em anglo-normando relaciona-se a 6 manuscritos medievais que remetem a ela. Uma delas é a versão a ser aqui analisada: uma tradução do anglo-normando para o latim que ou foi realizada no Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça ou chegou ao cenóbio já traduzida. A publicação por nós utilizada é uma edição crítica realizada por Aires Nascimento, filólogo português que apresenta a obra em latim e a tradução para o português moderno[1]. Aires Nascimento supõe que o texto tenha sido transmitido para Alcobaça através de Claraval, abadia-mãe do mosteiro português[2], mas não existe documentação que confirme essa transmissão.

Sabe-se que aos monges de Cister era permitido fazer festas em homenagem a São Brandão, mas a eles era vetada a realização de sermões em homenagem ao santo. Fica então a pergunta: por que o texto foi copiado ou traduzido em Alcobaça se o culto ao santo era restrito em Cister? Responder a essa pergunta é o objetivo deste artigo. Para tanto, primeiro escreveremos sobre Alcobaça e em seguida sobre como o monge São Brandão foi retratado na hagiografia.

O Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça foi fundado em 1153, localizado na região da Estremadura, em Portugal. Sabe-se que Alcobaça era uma abadia cisterciense e que foi fundada na dependência direta de Claraval: os monges fundadores eram franceses. Acreditou-se por muito tempo que Afonso Henriques (primeiro rei português, quem deu a carta de couto[3] a Alcobaça) era primo de Bernardo de Claraval e que teria trocado cartas com o cisterciense.Este teria pedido ao rei português que fosse fundada uma abadia cisterciense em seu reino. Pesquisas mostraram que as cartas trocadas entre os supostos primos são apócrifas. Atualmente, acredita-se que Bernardo realmente esteve envolvido com a fundação de Alcobaça. José Ignácio Rodríguez afirma que o monarca e o abade travaram um primeiro contato por ocasião da II Cruzada, quando o monge buscou ajuda entre os reis europeus para que se concretizasse a cruzada. Alguns cruzados, retornando da Terra Santa, ajudaram o rei português na Reconquista. O autor supõe que Afonso Henriques deveria estar agradecido aos cruzados e a Bernardo, o que talvez tenha facilitado a concessão do couto a Alcobaça[4].

Já no início da história de Alcobaça indicava-se a importância que o mosteiro teria para Portugal e para a Ordem Cisterciense. A carta de couto deu posse a um vasto território de terras férteis e fronteiriças com os muçulmanos. Interessava ao rei português fazer daquele território um local de povoamento cristão, o que a presença do cenóbio muito contribuiu. Os sucessores de Afonso Henriques mantiveram-se interessados em Alcobaça, como mostram as sucessivas doações financeiras que foram realizadas por eles. O monastério, além das freqüentes doações, tinha outra fonte de renda, e a mais importante: o trabalho dos conversos. Eram eles que cultivavam as terras doadas.

Alcobaça não obteve apenas expansão econômica. Contrariando a ordem estipulada pelo Capítulo Geral de 1152, seis mosteiros de homens e cinco de mulheres tornaram-se dependentes de Alcobaça entre 1172 e 1300. A norma acima citada tentou conter a expansão cisterciense, para que os mosteiros criados mantivessem os costumes estabelecidos no início da Ordem.

A riqueza do cenóbio cisterciense permitiu a construção de uma vasta biblioteca. Se atualmente não se sabe a sua localização, sabe-se que foi vasta pela amplitude do número dos códices alcobacenses nas bibliotecas portuguesas. No livro Encadernação Portuguesa Medieval: Alcobaça[5], Aires Nascimento afirma que os códices alcobacenses medievais que chegaram a nós muito provavelmente foram elaborados em Alcobaça mesmo. O mosteiro tinha condições financeiras de realizar tal produção. Além disso, os elementos técnicos das encadernações apontam que todas foram realizadas no mesmo local. Como nada indica que esses códices tenham sido encomendados, parece que foram elaborados no scriptorium de Alcobaça.

O scriptorium alcobacense obedecia a algumas regras, estipuladas nos Capítulos Gerais e nos Instituta Generalis Capituli. A primeira a destacar é a regra que diz que é o abade que decide quais monges serão copistas e quais serão os conservadores das obras – o que indica uma regularização por parte do abade acerca da produção dos livros do mosteiro. Outra norma importante para o nosso estudo é a que estipula a comunicação prévia ao Capítulo Geral a realização de cada obra: o Capítulo teria que aprovar a elaboração de cada livro.

José Mattoso afirma que a maioria dos monges brancos protagonistas eram estrangeiros, que tinham o propósito de imitar fielmente os modelos importados, prevalecendo sobre o esforço de adaptação às condições locais[6]. Com o tempo, porém, foram assimilados. Para o autor português, os cistercienses só se adaptaram à vida local durante o século XIII e só aí começam a realizar uma obra cultural notável, com repercussões mais vastas e duradouras.[7]

Passemos então à análise da hagiografia. Como foi dito anteriormente, a Nauigatio Brendani Abbatis (daqui em diante, NBA) foi escrita no século XIII, não se sabendo ao certo nenhum marco temporal além desse. Aires Nascimento, nas notas da edição crítica, aponta várias diferenças entre a versão do Benedeit em anglo-normando e essa versão alcobacense. Algumas, segundo o estudioso, são erros de transmissão e outras são propositais. Iremos nos ater a algumas mudanças propositais e aos trechos em que se enfatiza a atuação de Brandão como abade.

A introdução da hagiografia é alterada de forma significativa. É comum, nesse tipo de narrativa, incluir um pequeno prólogo em homenagem àquele que encomendou a obra. Neste caso, uma das esposas de Henrique I. A versão em anglo-normando apresenta essa homenagem, o que foi suprimido no texto aqui analisado. Essa supressão nos leva a crer que a adaptação pode ter sido realizada devido à mudança de público-alvo. Se o original era cortesão, o segundo foi escrito para um conjunto monástico.

A versão alcobacense inicia-se discorrendo brevemente sobre a juventude do abade antes de optar por uma vida monástica. O abade teria mostrado desde cedo que era um religioso exemplar, o que não é incomum entre as narrativas sobre santos. Entrou para a vida monástica e, pouco tempo depois, tornou-se abade apesar da recusa. Dentre as suas constantes orações, rezava pelos vivos, pelos mortos, e para que pudesse conhecer o Paraíso ainda em vida. Aconselhou-se então com um homem de religião chamado Barut, e aí decidiu-se a viajar em busca do Éden. Como último conselho, buscou saber a opinião de catorze monges sobre a empreitada. Esses seriam os seus companheiros na viagem, caso ela viesse a ser realizada. Aires Nascimento, em nota explicativa, afirma que este comportamento do abade, de pedir conselho aos monges, é já uma alteração do Benedeit em relação às versões anteriores da lenda. Segundo o autor, dá-se a mudança do modelo de abade irlandês para o do abade beneditino, que, seguindo a Regra de São Bento, consulta a comunidade em momentos de decisões importantes[8].

Os companheiros de viagem partiram em direção ao litoral e construíram a embarcação necessária para a viagem. Três monges acrescentaram-se o grupo. Brandão advertiu-os, dizendo que nem todos voltariam da jornada. Mesmo assim, eles ficaram e o santo rezou pelas almas deles.

Como poderia esperar-se de uma navegação rumo ao Paraíso, a rota era complicada e duradoura: eles ficam sete anos velejando antes de chegarem ao seu objetivo. Alguns obstáculos ao prosseguimento são apresentados na narrativa como benéficos, como a estadia em um mosteiro insular. Outros, porém, ofereciam perigo: como exemplo, uma serpente marinha monstruosa prepara o bote ao barco. Os monges ficaram desesperados. Brandão, como bom abade, diz que se acalmem porque com fé tudo se resolveria. E se põe a rezar a Deus para que a situação se resolva de maneira favorável. Como resultado da oração, surgiu então outro monstro, que atacou a serpente ameaçadora e os livrou do perigo.

Se Benedeit, como já se disse, aproximou Brandão dos costumes beneditinos, o tradutor aproximou-o ainda mais das práticas monásticas no episódio em que os monges, exceto o santo - que permaneceu no barco, comemoravam a Páscoa num cetáceo/ilha que tinha sido indicado por um mensageiro divino, há algumas variações. Na versão vernácula, é o mensageiro que ordena aos demais que se sentem para comer a refeição da Páscoa. Na versão latina, é o abade que comanda a refeição. Aires Nascimento conclui que essa alteração dá-se justamente pela mudança de ambientação[9].

Ao fim de sete anos, os viajantes finalmente chegaram perto do Paraíso. Mas, antes, tiveram que passar por ilhas infernais. Estavam nessa região demoníaca quando se depararam com um rochedo saliente no meio do mar. O abade conduzia o barco para esse local para ver do que se tratava aquilo. Sobre a rocha estava um homem extremamente dilacerado: como vieram a saber, Judas. O ex-apóstolo relatou todos os suplícios que passava por ter sido o pecador que a narrativa bíblica relata. Diz-se então que estar naquele rochedo, sendo atingido pelas ondas,tendo como proteção apenas um manto sobre o rosto, é um descanso de seus sofrimentos, repouso esse concedido graças a uma boa ação praticada pelo pecador. Brandão, ao ouvir as desgraças que acometiam Judas, chorou de piedade e o ajudou: mil diabos se aproximaram para tirar o agonizante de seu descanso e o santo interferiu, fazendo com que o descanso dure mais uma noite. Os demônios, não podendo fazer nada perante o poder do santo, abandonam contrariados o local. Aires Nascimento formula a hipótese de que a restrição de culto ao santo em Cister, já mencionada, tenha ocorrido por conta desse trecho: o que se teria desejado era “travar opiniões menos ortodoxas de que Brandão poderia intervir no inferno para minorar as penas dos condenados”.[10] O filólogo estranha o fato de Alcobaça ter copiado/traduzido o texto mesmo com a restrição de culto em Cister estar em vigor desde 1206.

Não nos surpreendemos com tal cópia/tradução por alguns motivos. O primeiro deles é a relativa autonomia de Alcobaça em relação à Ordem. A abadia tinha uma produção econômica tal que se torna provável a hipótese de que os textos alcobacenses teriam sido elaborados no local, o que diminui a possibilidade de ingerência sobre a produção literária.

Como os fundadores do abadiado eram de Claraval, pode-se formular a hipótese de que alguns desses monges poderiam ser irlandeses, entre os quais o culto de São Brandão era muito difundido. Admitindo a conjectura de que alguns fundadores eram irlandeses, o culto em Alcobaça pode ter sido implantado por eles.

Não se sabe se as alterações no texto da hagiografia foram feitas no mosteiro de Estremadura ou não, mas parte delas claramente foi realizada de modo a adaptar a obra ao novo ambiente a que estava sendo introduzida: o monástico. A primeira modificação na história a ser agora levantada não foi feita pelos monges, mas pelo próprio Benedeit. Como foi anteriormente citado, o modelo de abade que vigorava nas versões mais antigas de São Brandão era o irlandês. Segundo Aires Nascimento, o clérigo anglo-normando faz com que o modelo em vigor na hagiografia fosse o beneditino.

Apontamos aqui duas transformações no corpo do texto pela mudança de ambientação do público. A primeira está no início da obra: a homenagem à rainha que encomendou a realização do trabalho está suprimida na versão alcobacense. A segunda se dá na Páscoa: ao invés do mensageiro divino comandar a cerimônia, é o abade que a faz.

Por fim, se é um trecho que causa problemas (o da interferência no inferno), não seria surpresa se a passagem fosse diminuída ou mesmo abolida na cópia. Alguns excertos sofreram essa modificação. Se fosse um fragmento incômodo aos alcobacenses, provavelmente essas alterações teriam sido realizadas.

Por todas essas razões elencadas, pode-se concluir que existiam mais razões para a realização da obra do que para que ela fosse ignorada. São Brandão, tal como foi retratado, adequou-se aos padrões cistercienses de várias formas, inclusive enquanto modelo de abade. Além disso, Alcobaça tinha autonomia o suficiente para realizar uma cópia/uma tradução de uma obra sobre um santo cultuado com ressalvas em Cister.

BIBLIOGRAFIA

NASCIMENTO, Aires Augusto (Ed.) Navegação de S.Brandão nas fontes portuguesas medievais. Lisboa: Edições Colibri, 1998. DIAS, Geraldo J. A.Coelho [et al].Cister no Vale Douro. Porto: Afrontamento,1999.

DIOGO, Antonio Dias & NASCIMENTO, Aires Augusto. Encadernação Portuguesa Medieval:Alcobaça. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. 1984. MARQUES, Maria Alegre. Estudos sobre a Ordem de Cister em Portugal. Lisboa: Edições Colibri, 1998 MATTOSO, José. Portugal Medieval:novas interpretações.Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. 1984

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[1] NASCIMENTO, Aires Augusto (Ed.) Navegação de S.Brandão nas fontes portuguesas medievais. Lisboa: Edições Colibri, 1998.

[2] Idem, p. 39

[3] Carta de doação de terras, que dava imunidade de impostos àquele que a recebesse.

[4] DIAS, Geraldo J. A.Coelho [et al].Cister no Vale Douro. Porto: Afrontamento,1999.p. 97

[5] DIOGO, Antonio Dias & NASCIMENTO, Aires Augusto. Encadernação Portuguesa Medieval:Alcobaça. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. 1984. p. 90

[6] MATTOSO, José. Portugal Medieval:novas interpretações.Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. 1984 p.275

[7] NASCIMENTO, Aires Augusto (Ed.) Navegação... p. 276

[8]. Idem, p. 199.

[9] Idem, p. 202.

[10] Idem, p. 39

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