A PRODUÇÃO EDITORIAL NO SPHAN (1937-1967)



A produção editorial no Sphan (1937-1967)

Cíntia Mayumi de Carli Silva(

Resumo: Rodrigo M. F. de Andrade, junto com a gestão do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan, exerceu com maestria o posto de editor da Revista do Patrimônio e da série Publicações. Em torno dessa produção editorial, Rodrigo teceu redes de sociabilidade, compostas pelos principais intelectuais brasileiros que contribuíram para a constituição do campo do patrimônio no Brasil, tendo como protagonista o próprio Sphan. Desse modo, esta investigação tem por objetivo compreender como as experiências anteriores de Rodrigo, como jornalista e editor, atuaram na conformação dessas redes e como estas se tornaram essenciais na produção simbólica presente nas publicações do Sphan. Assim, essa produção editorial é entendida como uma das chaves para se pensar o processo de luta pelo monopólio da competência científica do campo do patrimônio, no qual atuaram várias áreas disciplinares, além da sempre mencionada arquitetura.

Palavras-chave: patrimônio; produção editorial; intelectuais.

Abstract: Rodrigo M. F. de Andrade, along with the management board of the National Service for Historical and Artistical Heritage – Sphan, exerted with great skill the post of editor of the Heritage Magazine (Revista do Patrimônio) and of the series entitled Publications. With that editorial production, Rodrigo has developed social networks, composed by the most important brazilian intellectuals that contributed to the formation of the heritage field in Brazil, having as protagonist the Sphan itself. Therefore, this research aims to comprehend how previous Rodrigo experiences, as journalist and editor, acted on the conformation of those networks and how those become essential in the symbolic production found in Sphan publications. Hence, that editorial production is thought as a key to think the struggle process for the monopoly of scientific competence in the heritage field, at where acted many disciplinary fields, other than the always mentioned architecture.

Key words: heritage; editorial production; intellectuals.

Rodrigo Melo Franco de Andrade foi diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan[1] desde o período em que este funcionou em caráter experimental, no ano de 1936, até sua aposentadoria, em 1967. Dentre as inúmeras atividades que encabeçou, destaca-se a edição de duas linhas editoriais: um periódico, a Revista do Patrimônio, e uma série intitulada Publicações. Ambas constituem a a produção editorial do Sphan, que tinha como editor o próprio Rodrigo, até o fim da década de 1960.

Tal produção é ora analisada a partir das recentes contribuições da história de intelectuais, sobretudo da vertente historiográfica francesa de Sirinelli e Ory, que se utilizam de ferramentas teórico-metodológicas como “lugares de sociabilidade” e reconstituição dos itinerários dos intelectuais. Como decorrência dessa análise, objetiva-se compreender um dos aspectos da constituição do campo do patrimônio cultural no Brasil.

Periódicos são bastante enfatizados por essa abordagem, que encontra neles um objeto e fonte de pesquisa simultaneamente – como é o caso no presente estudo. Trata-se de um dos lugares de sociabilidade[2] em que os intelectuais organizam-se, formalmente ou não, para construir e divulgar suas propostas. Conforme Sirinelli: “O meio intelectual constitui (...) um ‘pequeno mundo estreito’, onde os laços se atam, por exemplo, em torno da redação de uma revista ou do conselho editorial de uma editora” (Sirinelli, 2003:248). Compõem-se aí “redes”, que permitem observar campos de força e de afeto:

As revistas conferem uma estrutura do campo por meio de forças antagônicas de adesão – pelas amizades que as subtendem, as fidelidades que arrebanham e a influência que exercem – e de exclusão – pelas posições tomadas, os debates suscitados, e as cisões advindas. (...) Em suma, uma revista é antes de tudo um lugar de fermentação intelectual e de relação afetiva, e pode ser, entre outras abordagens, estudada nesta dupla dimensão (Sirinelli, 2003:249).

Assim, as redações e editoras constituem lugares de sociabilidade, onde se atam laços do meio intelectual, se formam redes e se desenvolvem tipos de sensibilidade. Elas compõem locais privilegiados de aprendizado e de trocas intelectuais, sendo fundamentais também para se entender propostas culturais dos grupos aí formados. São, portanto, “lugares de articulação de pessoas e idéias que precisam de suportes materiais e simbólicos para fazer circular projetos, sem o que eles perdem significados” (GOMES, 1999:58).

Cabe aqui discorrer sobre a noção de editor – figura fundamental na constituição das redes de sociabilidade tanto nas redações de jornais e revistas como nas próprias editoras e permeada pela distinção e prestígio. Em seguida, o cenário editorial brasileiro do período estudado será brevemente apresentado para, finalmente, se analisar a produção editorial do Sphan e como as redes nela se encontram para constituir o campo do patrimônio.

Função e prestígio do editor

O editor é a pessoa encarregada de organizar um periódico, isto é, de selecionar, normalizar, revisar e supervisionar os originais para publicação. Ele também é o responsável pelo lançamento, distribuição e venda do produto (ARAÚJO, 1986). Segundo informa esse mesmo autor, “o conteúdo semântico original, do latim editor, editoris, indica precisamente ‘aquele que gera, que produz, o que causa’, o ‘autor’em consonância com o verbo edere, ‘parir, publicar (uma obra), produzir, expor’” (ARAÚJO, 1986:35). O editor é, pois, um produtor cultural que atua no sistema de produção de bens simbólicos e sua lógica, muitas vezes, não se restringe aos ganhos financeiros, mas sim à distinção (PONTES, 2001). O lucro, embora perseguido, fica em um segundo plano, pois o prestígio é um dos mais cobiçados predicados. É por meio dele que os editores se diferenciam dos demais empresários e comerciantes[3]. Muitas vezes, o lucro adquirido pelas editoras e por seus editores era o lucro indireto, “que pode ser traduzido por meio do trânsito e da distinção que adquirem junto ao meio intelectual, artístico, literário e editorial da época” (PONTES, 2001:450).

Essa distinção permite que os negócios editoriais percam sua dimensão “profana” e adquiram uma espécie de “aura” que os demais empreendimentos empresariais dificilmente possuiriam, segundo Pontes. Para ela, o prestígio é um dos meios que os editores dispõem para serem reconhecidos e se reconhecerem como sujeitos destinados a uma missão social relevante. Por esse motivo, eles podem ser considerados “heróis culturais”, uma vez que estavam “empenhados em cumprir um papel social análogo ao dos intelectuais e escritores engajados, ou pelo menos assim se autorepresentam” (PONTES, 2001:420). Eles procuravam suprir as deficiências dos poderes públicos e provavelmente editavam como missão. O trabalho de editar seria assim um dos principais canais de difusão, ampliação e consolidação da cultura brasileira. Essa seria a função cultural do editor, que é caracterizado ainda como “editor predestinado”. Desse modo, o editor, ao realizar sua missão, adquiria prestígio e status.

Embora Pontes não tenha pesquisado a atuação de Rodrigo M. F. de Andrade como editor, pode-se enquadrá-lo dentre os editores do período, por ter buscado a edição como uma de suas missões. Conforme já analisou Gonçalves, Chuva, Santos e outros pesquisadores sobre a ação do Sphan e de Rodrigo à sua frente, sua missão era “civilizar” o Brasil – e as publicações do Sphan podem ser entendidas como um dos veículos para tanto. Rodrigo, apesar de raramente ser mencionado como editor, o é, pois era o responsável pela organização e seleção do conteúdo das publicações do Sphan e por sua distribuição.

O cenário editorial em meados do século XX no Brasil

A historiografia aponta para a relevância dos anos 1930 no que tange ao engajamento político, religioso e social no campo da cultura e da educação – para além de outros aspectos. Em síntese, nessa década foi criado um ministério especialmente dedicado a essas questões – o Ministério da Educação e Saúde Pública – MES. Em seu âmbito, ocorreram reformas educacionais que ampliaram o acesso à formação de base e desenvolveram o ensino universitário, mesmo com todos os seus limites. Professores e pesquisadores estrangeiros vieram ao país contribuir para a institucionalização de disciplinas como a filosofia, as ciências sociais, a história e letras. Lévi-Strauss, Roger Bastide, Braudel, Pierre Monbeig são alguns exemplos dessas contribuições.

Uma das consequências dessas mudanças na década de 30 foi o incremento do espiríto analítico dos estudos sobre o Brasil, expandindo os estudos sobre a “realidade brasileira”, e produzindo o “pensamento social brasileiro” (CÂNDIDO, 1984). O interesse por tal temática aparece com grande destaque no recém-formado mercado editorial brasileiro[4]. As diversas editoras que surgiam no país lançavam obras e coleções dedicadas aos “retratos” do Brasil, refletindo a produção intelectual contemporânea. Dentre elas, destacam-se as coleções Brasiliana, a Documentos Brasileiros e a Biblioteca Histórica Brasileira – respectivamente lançadas pela Companhia Editoria Nacional, pela Livraria José Olympio Editora e pela Livraria Martins Editora[5]. O sociólogo pernambucano Gilberto Freyre foi o diretor da coleção Documentos Brasileiros, cujo título inaugural foi Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Nessa mesma época, eram lançadas outras obras seminais sobre a “realidade brasileira”, como Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre, publicada pela Editora Schmidt.

Observa-se aí parte do trânsito de Freyre: diretor de uma coleção da José Olympio Editora que tem sua obra publicada por outra editora, a Schmidt[6]. Esse trânsito entre diferentes esferas culturais e um intenso contato de intelectuais nas editoras e livrarias é um dado já apontado pelos diversos estudos sobre essas editoras e os intelectuais com elas envolvidos – revelando nelas lugares de sociabilidade.

A livraria Casa Garraux, em São Paulo, era o ponto de encontro da intelectualidade paulistana na década de 20, por exemplo. Já no Rio de Janeiro, na Rua do Ouvidor, a Livraria José Olympio cumpria a mesma função, segundo conta José Mindlin. Muitos deles foram editados por J.O., como era conhecido o proprietário da livraria e editora. Dentre eles estavam Sérgio Buarque de Holanda, Manuel Bandeira, Drummond, Afonso Arinos, Portinari, Vinicius de Moraes, Octávio Tarquínio de Sousa, Gastão Cruls (que também tinha sua editora, a Ariel), Rodrigo Melo Franco de Andrade, José Lins do Rego etc.

Muitos deles faziam parte também do chamado “grupo do patrimônio”, que compôs a Academia Sphan[7] e que se refere ao conjunto de intelectuais que se reuniam em torno de Rodrigo para discutir questões pertinentes ao assunto. Assim, Rodrigo, Drummond, Afonso Arinos, Sérgio Buarque, Bandeira, Portinari, Vinicius faziam parte da roda de intelectuais tanto da Livraria José Olympio como da rede do patrimônio, representando parte desse trânsito entre as esferas culturais que, por sua vez, dizem respeito a lugares de socialibilidade diferentes.

A Tabela 1 sintetiza alguns dos trânsitos e convivências desses intelectuais em alguns periódicos e editoras das décadas de 1920 a 40 e que auxiliam na compreensão de como as redes de sociabilidade foram constituídas antes da criação do Sphan e mesmo durante seus primeiros anos de atuação.

Tabela 1: Convivência dos intelectuais em diferentes lugares de sociabilidade

Lugares de

Sociabili-

dade

Intelectuais |Grupo do Patrimônio |Livraria José Olympio Editora |Ministério da Educação e Saúde[8] |Companhia Editora Nacional |Revista do Brasil[9] |Livraria Garraux |Editora Ariel | |Rodrigo M. F. de Andrade |X |X |X | |X | | | |Mário de Andrade |X | |X |X |X |X | | |Afonso Arinos Melo Franco |X |X | | | | | | |Gilberto Freyre |X |X | |X |X | | | |Sérgio Buarque de Holanda |X |X | | | | | | |Carlos Drummond de Andrade |X |X |X | | | | | |Manuel Bandeira |X |X |X | | | | | |Prudente de Moraes Neto |X | | | |X | | | |Vinícius de Moraes |X |X | | | | | | |Cândido Portinari |X |X | | | | | | |Otávio Tarquínio de Souza | |X | | |X | | | |Gastão Cruls |X |X | | | | |X | |Robert Smith | | | | |X | | | |

Na tabela constam apenas alguns intelectuais membros do “grupo do Patrimônio”, composto por Abgard Renault, Alceu Amoroso Lima, Cecília Meireles, Gustavo Capanema, Heloísa Alberto Torres, Lúcio Costa, Pedro Nava, além de vários dos nomes mencionados na tabela acima[10]. Esses nomes ligavam-se entre si na condição de colaboradores da mesma revista, intermediados pela figura de um mesmo editor, ou na condição de autores editados, ou ainda, por ambos os motivos. Paralelamente, faziam parte de alguns círculos em comum, como os encontros em cafés e livrarias. Não é possível aqui traçar a trajetória de todas essas personalidades para se compreender adequadamente como esses intelectuais transitaram entre uma esfera e outra e se sabe que esse quadro não encerra todo o trânsito existente entre eles[11], mas aponta para a constituição das redes que se encontraram no Sphan. Assim, pode-se partir finalmente para a análise da produção editorial do Sphan.

O editor Rodrigo M. F. de Andrade e a produção editorial do Sphan (1936-1967)

As atividades de Rodrigo M. F. de Andrade no Sphan foram assim muito influenciadas pela ampla e profunda circulação que ele tinha no meio editorial. Rodrigo frequentava os pontos de encontro da intelectualidade mineira, carioca e paulistana em cafés, livrarias e redações que são, por isso, compreendidas como lugares de socialibidade.

É importante frisar alguns dados da trajetória de Rodrigo antes seu ingresso na direção do Sphan. Rodrigo (1898-1969) era membro de nobre e letrada família mineira, que lhe permitiram contatos com intelectuais da vida política e literária brasileiras desde muito jovem. Bacharelou-se em Direito, tendo cursado em São Paulo e Belo Horizonte – trânsito este que lhe deu oportunidade de estabelecer novos contatos. Alguns deles tornaram-se amizades duradouras, como com Drummond, Pedro Nava, Abgar Renault, Oswald de Andrade e outros participantes do chamado movimento modernista.

Além de outras atividades que exerceu antes do Sphan, destacam-se para os fins aqui pretendidos as colaborações de Rodrigo no jornal O Dia, em O Jornal (onde chegou a ser diretor-presidente entre 1928 e 30), Estado de Minas, A Manhã, Diário da Noite, O Estado de São Paulo, O Cruzeiro, Diário Carioca e Módulo. Em 1924, Rodrigo tornou-se redator-chefe da Revista do Brasil. Dois anos depois, tornou-se o diretor da revista, ao lado de Prudente de Moraes Neto.

Seu nome foi indicado por Mário de Andrade e Bandeira a Capanema para dirigir o Sphan em 1936 e desde então todo o seu trabalho foi dedicado à preservação do patrimônio cultural brasileiro. A partir de 1937, Rodrigo encabeçou a produção editorial do órgão recém-criado. Duas linhas editoriais foram criadas: a Revista do Patrimônio e as Publicações. A primeira foi a “menina dos olhos” do diretor e contava com estudos técnicos, artigos, reprodução de documentos então inéditos, ensaios e até monografias de diversos autores. Já as Publicações são obras de um único autor e abarcavam, em geral, estudos monográficos de assuntos pouco tratados à época, mas também catálogos e índices de coleções, além de volumes comemorativos. Durante o período em que esteve à frente delas, foram publicados 15 números da Revista e 22 das Publicações. Dessa série, nove delas são de autoria de intelectuais que também escreveram na Revista. São eles: Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Afonso Arinos, Cônego Raimundo Trindade (que teve duas obras aí publicadas), Mário de Andrade, Afonso Taunay, Carlos Ott e Gilberto Ferrez.

Ambos os empreendimentos editoriais já foram anteriormente estudados por Chuva (1998), que os considera um locus de ação estratégica do Sphan nas primeiras décadas de sua atuação. A Revista e as Publicações são projetos coletivos à frente dos quais estava Rodrigo, que os construía com autores-colaboradores. As duas linhas visavam divulgar o conhecimento acerca do patrimônio histórico e artístico brasileiro – e não explicitamente as atividades do Sphan. Nos dois casos, os estudos publicados muitas vezes resultavam de estudos encomendados pelo Sphan.

A Revista apresenta nesses 15 números um total de 148 artigos, sendo 44 de Arquitetura, 43 de História da Arte, 29 sobre Documentação[12], 18 sobre História, seis sobre Etnografia, cinco sobre Acervos e Coleções (objetos tridimensionais) e três de Arqueologia. Esses dados, a princípio, podem apenas confirmar o que se tem dito freqüentemente a respeito da constituição do campo do patrimônio – discurso esse que vincula tal campo com a arquitetura (e com as belas artes, estudadas pela história da arte). Um estudo mais acurado, porém, aponta para outras interpretações.

Os primeiros números da Revista do Patrimônio contou com a colaboração de 75 intelectuais atuantes em áreas diversas e que não se restringiam em escrever sobre um único assunto, adentrando outras áreas de conhecimento. O que se observa nesses autores do periódico e das Publicações é que um arquiteto eventualmente concentrava suas pesquisas na área de história da arte ou um historiador dedicava- se a pesquisas estéticas, podendo envolver tanto história da arte quanto arquitetura, por exemplo. Assim, os intelectuais (ou, pelo menos, a maioria deles) que escreveram nas linhas editoriais do Sphan eram produtores de bens simbólicos e podiam ser considerados, de modo geral, como “homens de letras”, sem se vincularem de modo estrito a um único campo.

Cabe aqui mencionar que o “campo” de que se trata é o campo de produção simbólica de que fala Bourdieu (1974; 1989), que considera as condições sociais particulares de produção e de funcionamento de um determinado campo científico. Este campo é compreendido como o espaço de lutas competitivas que visam o monopólio da autoridade e da competência científica, isto é, a capacidade de falar e intervir legitimamente. Em outras palavras, o campo, em última instância, pode ser traduzido como uma atuação dos “capacitados” e dos “competentes” em determinada matéria – que são os “especialistas da produção simbólica”. Ora, o patrimônio foi um campo que se estruturou a partir da década de 1920, antes mesmo da criação do Sphan, e que se consolidou com o Serviço, a partir da década seguinte. Pesquisas como as de Chuva, Cavalcanti e Santos mostram a luta simbólica travada entre o grupo do patrimônio, os neocoloniais e o Museu Histórico Nacional, dirigido por Gustavo Barroso, pela legitimação e autoridade de quem estaria autorizado a intervir no campo do patrimônio. Nesse embate, o grupo do patrimônio – que formou o Sphan – tornou-se o protagonista desse campo. Para a constituição desse campo, como mostra a produção editorial do Sphan, não houve vinculação strictu sensu de nenhum campo, nem mesmo da arquitetura. Desde os primeiros anos das atividades de preservação do patrimônio cultural houve interação e interpenetração de outros campos, existindo uma heterogeneidade de contribuições para a composição desse novo saber ou campo.

É preciso observar também a composição temática de cada número do periódico em questão. Os primeiros números, por exemplo, versam sobre uma ampla gama de temas. Todos eles comparecem nos primeiros números, como mostra a Tabela 2. A partir do quarto número já ocorre uma diminuição na variedade de campos abordados – tendência esta que se mantém, concentrando progressivamente os artigos vinculados à arquitetura, história da arte e história – ao lado da divulgação de documentos.

Tabela 2: Presença dos temas ao longo dos 15 números da Revista

|1 |2 |3 |4 |5 |6 |7 |8 |9 |10 |11 |12 |13 |14 |15 | |Acervos e Coleções |X |X | | | | | | | | | | | | | | |Arqueologia |X | |X | | |X | | | | | | | | | | |Arquitetura |X |X |X |X | |X |X |X |X |X |X |X |X |X |X | |Documentação |X |X |X | |X |X |X |X |X |X |X |X |X |X |X | |Etnografia |X |X | | |X | | |X | | | | |X | | | |História | |X |X |X |X |X | |X |X | |X | |X |X | | |História da Arte |X |X |X |X |X |X |X |X |X | | |X |X | |X | |

As Publicações, de certo modo, supriam algumas lacunas, mas os temas publicados também giravam em torno das mesmas temáticas, mas uma análise preliminar aponta para um maior predomínio da história, embora a arquitetura e a história da arte também sejam presenças marcantes. Alguns dos títulos publicados sobre sua rubrica são: Mucambos do Nordeste: algumas notas sobre o tipo de casa popular mais primitivo do nordeste do Brasil (de Gilberto Freyre, 1937); Catálogo do Museu Coronel David Carneiro (1940); Em torno da História de Sabará (de Viana Zoroastro Passos, 1940); Arte indígena da Amazônia (de Heloísa Alberto Torres, 1940); História das missões orientais do Uruguai (de Aurélio Porto, 1943); Alcântara: subsídios para a história da cidade (de Antonio Lopes, 1957) etc.

Pode-se destacar ainda, a título desta análise, uma publicação organizada por Rodrigo, fora do âmbito do Sphan mas que parecia ter como finalidade preencher as lacunas do Sphan, ao deixar em segundo plano alguns campos, como a arqueologia e a etnografia. Trata-se da obra As Artes Plásticas no Brasil, planejada para ter três volumes, sendo o primeiro deles dedicado aos “Antecedentes, Artes Indígenas e Populares e Artes Aplicadas” (o segundo à “Arquitetura e Escultura” e o terceiro à “Pintura”). Essa publicação foi idealizada pelo diretor da Instituição Larragoiti, Leonídio Ribeiro, e coordenada por Rodrigo Melo Franco no ano de 1952, podendo ser considerada uma edição de luxo para os padrões da época[13]. Na “Nota Preliminar” que Rodrigo escreve, ele afirma que a finalidade da publicação é “suprir a falta de um livro de informação geral sobre as artes plásticas no Brasil”. No volume I, que privilegia aspectos não abordados com freqüência na produção editorial do Sphan, os textos são os seguintes: “Arqueologia”, de Frederico Barata; “Arte Indígena”, de Gastão Cruls; “Artes populares”, de Cecília Meireles; “Antecedentes portugueses e exóticos”, de Reynaldo dos Santos; “Mobiliário”, de J. Wasth Rodrigues; “Ourivesaria”, de José e Gizella Valladades; e “Louça e porcelana”, de Francisco Marques dos Santos[14].

Assim, a constituição do campo do patrimônio teve na produção editorial encabeçada por Rodrigo uma importante estratégia de luta, onde concorrem e convivem diversas áreas de conhecimento, e que nas últimas décadas vem se ampliando ainda mais, passando a abarcar outros campos, antes não contemplados, como geografia, sociologia, filosofia e antropologia, por exemplo. O que marca, assim, desde o início da conformação desse campo do patrimônio é sua heterogeneidade.

Referências bibliográficas

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BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.

______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1989.

CÂNDIDO, Antônio. “A Revolução de 1930 e a Cultura”. Novos Estudos, no 4. Abril de 1984.

Cavalcanti, Lauro. As preocupações do belo: monumentos do futuro e do passado na implantação da arquitetura moderna brasileira, 1993. Tese (Doutorado em Antropologia) – Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro.

CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da memória: a construção do patrimônio histórico e artístico nacional no Brasil (anos 30 e 40), 1998. Tese (Doutorado em História) – UFF, Niterói.

GOMES, Ângela de Castro. Essa gente do Rio...: modernismo e nacionalismo. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999.

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LUCA, Tania Regina de. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: UNESP, 1999.

______. Leituras, projetos e (Re)vista(s) do Brasil (1916-1944). Tese de Livre Docência em História. Faculdade de Ciências e Letras da UNESP. Assis, 2009.

ORY, Pascal & SIRINELLI, Jean-François. “L’intellectuel: une définition” In: Les intellectuals en France (de l’affaire Dreyfus à nos jours). Paris: Armand Coline, 1992. 2ª ed.

PONTES, Heloísa. Retratos do Brasil: editors, editoras e “Coleções Brasiliana” nas décadas de 30, 40 e 50. In MICELI, Sérgio (Org.) História das Ciências Sociais no Brasil, vol. 1. São Paulo: Editora Sumaré, 2001, p.419-476.

SANTOS, Mariza Motta Veloso. O Tecido do Tempo: A Idéia de Patrimônio Cultural no Brasil. 1992. Tese (Doutorado) – Universidade de Brasília, Faculdade de Antropologia.

SIRINELLI, Jean François. Le hasard ou la nécessité? Une histoire en chantier: l’histoire des intellectuels. Vingtième Siècle: Revue d’Histoire (9), jan./maio 1986.

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TREBITSCH, Michel. Avant-propos: la chapelle, le clan et le microcosme. Les Cahiers de L’IHTP. Paris (20), 1992, p. 11-21.

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( Mestranda em História, Política e Bens Culturais pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas.

[1] Atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, autarquia vinculada ao Ministério da Cultura.

[2] Sobre a noção de sociabilidade, ver SIRINELLI, 2003 e também TREBITSCH, 1992.

[3] Conforme afirma Pontes (2001), a Editora Melhoramentos seria a melhor prova do que pode significar a falta de prestígio para uma editora. Embora ela fosse a sexta mais bem-sucedida empresa do ramo nas décadas de 1930 e 40, ela só aparece na bibliografia por essa razão. Seus editores, quando são mencionados, não merecem nenhuma consideração, como se não tivessem tido nenhuma repercussão no universo intelectual e cultural mais amplo. Muito diferente é o caso de Monteiro Lobato, José Olympio, José de Barros Martins, Érico Veríssimo e outros editores do período.

[4] Desde a década de 1920, o escritor e editor Monteiro Lobato iniciara um novo modelo de edição, distribuição e venda de livros no Brasil, originando uma espécie de boom do mercado de livros que se consolida na década de 30.

[5] Sobre essas (e outras) coleções e suas respectivas editoras, ver PONTES, 2001.

6 Luca (1999) narra como Freyre tornou-se colaborador da Revista do Brasil durante a direção de Lobato. Freyre escrevia artigos para o Diário de Pernambuco, lidos por Lobato e transcritos na Revista do Brasil sem que seu editor conhecesse o ainda desconhecido Freyre. O contato entre Freyre e Lobato foi estabelecido por intermédio de Oliveira Lima, que estava com o pernambucano na Universidade de Colúmbia e era amigo em comum de Lobato e Gilberto Freyre. A partir dessa descoberta, Freyre passou a ser colaborador do periódico editado no Brasil por Lobato.

7 Santos (1992) denomina de “Academia Sphan” o grupo de intelectuais que se articularam pela preservação do patrimônio e que, com o fim de dar autoridade e legitimidade para suas ações, realizaram e empreenderam pesquisas seguras e estudos sérios, bem documentados, sobre o patrimônio nacional. Assim, o grupo era caracterizado por um “espírito de investigação” – o que explica o permanente clima de discussão, troca de informações, leitura crítica de textos etc., tal como se caracteriza uma “academia”.

8 Convidados por Gustavo Capanema a atuarem na burocracia estatal no âmbito do ministério comandado por ele entre 1934 e 45.

9 Sobre a Revista do Brasil, ver LUCA, 1999 e 2009.

10 Desses nomes, Otávio Tarquínio de Souza, Gastão Cruls e Robert Smith não são considerados membros do grupo do patrimônio, apesar de que os dois últimos foram colaboradores da Revista do Patrimônio.

11 Para tanto, seria necessário também analisar os periódicos com que contribuíram.

12 A categoria “Documentação” refere-se a artigos que divulgam e reproduzem documentos em suporte textual, subsidiando pesquisas. Muitos dos artigos aí classificados disponibilizam documentos inéditos, de difícil acesso – alguns, inclusive, que não se encontravam no Brasil.

13 A obra foi financiada pelas companhias de seguro e capitalização do grupo Sul América e pelo Banco Hipotecário Lar Brasileiro.

14 Desses autores, Cruls, Rodrigues e Santos também foram autores da Revista do Patrimônio.

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