INTERTEXTUALIDADE E CINEMA: da Lingüística Textual ao ...



O CINEMA E A SALA DE AULA: da tela para a vida

Eunice Lopes de Souza TOLEDO[1]

Denise BATISTA;[2]

Douglas Magrini GARRÃO;2

José Francisco ROSELLI;2

Nicole Mioni SERNI2

Resumo: O projeto O CINEMA E A SALA DE AULA: da tela para a vida foi planejado para ser desenvolvido junto a alunos do terceiro ano do ensino médio, embora possa ser aplicado a diferentes níveis de escolaridade, desde que os filmes exibidos sejam devidamente adequados à faixa etária de cada classe. Por entendermos que o texto fílmico representa uma ferramenta indispensável no interior dos processos de ensino/aprendizagem em sala de aula, propusemo-nos a trabalhar com, pelo menos uma obra cinematográfica por bimestre, cujos diálogos intertextuais podem ser utilizados como estímulo para a projeção de variadas atividades e pesquisas a serem realizadas em grupos ou individualmente, com vistas ao crescimento cognitivo e social do público escolar, em um processo que leva, gradativamente, das ações vividas na escola e fora dela aos objetivos propostos pela concepção educacional de Letramento Social.

Palavras-chave: intertextualidade; texto fílmico; escola; letramento escolar e social.

Introdução

Embora os conceitos de interação e de intertextualidade representem diferentes tipos de ação e pareçam estar dissociados no dia-a-dia do convívio social, propomo-nos a discutir, no desenvolvimento deste artigo, como a linguagem do cinema pode promover a complementaridade entre ambos, e qual a dimensão deste fato para a educação escolar.

Em termos gerais, a interação social caracteriza-se como o objetivo primordial a ser alcançado durante os processos de comunicação interpessoal. Prova disso está, por exemplo, na vasta bibliografia gerada pelas inúmeras pesquisas acadêmicas acerca da importância da interação entre professores e alunos e entre estes e seus pares. Vale lembrar, que a escola se estabelece frente à sociedade como um dos mais propícios ambientes para que o conceito de interação se transforme em ação real.

Por outro lado, a noção de intertextualidade – estudada pela ótica da Lingüística Textual, e por nós entendida como um conceito sinônimo dos conceitos backtinianos de dialogismo e polifonia - diz respeito às relações que um determinado texto mantém, implícita ou explicitamente, com outros textos, igualmente constituídos pelos indivíduos sociais. Tais relações se expressam, de acordo com Bakhtin, por meio de interações verbais, ou não, entre enunciadores e enunciatários no interior dos textos.

É possível afirmar, portanto, que a criação textual pode configurar uma via de duplo sentido: de um lado tende a interagir com outros textos anteriormente veiculados por diferentes meios, bem como com seus produtores, e, de outro, busca estabelecer novos diálogos entre o produtor e seus interlocutores, instigando a geração de novos textos orais, escritos, imagéticos, audiovisuais etc.

Ao tomar como base o texto fílmico, geralmente nos deparamos com uma mensagem construída com um alto grau de criatividade, que se estabelece como campo extremamente fértil, tanto em termos interacionais quanto intertextuais, graças à riqueza de elementos que compõem a linguagem cinematográfica, já que esta é o resultado da harmonização de outras tantas linguagens (a movimentação da câmera, o ritmo, a iluminação, o som, o foco etc.).

Felizmente, o sistema de ensino no Brasil tem reconhecido o cinema como uma importante ferramenta na construção do conhecimento e no fortalecimento das relações interpessoais dentro dos processos de ensino-aprendizagem em sala de aula e para além dela. Desta feita, coloca-se em harmonia com os objetivos das abordagens pedagógico-educacionais que incluem em seu projeto a capacitação social do indivíduo frente à complexidade de práticas de leitura, oralidade e escrita, às quais se vê inserido no seu dia-a-dia escolar.

Porém, não podemos nos furtar de refletir, mesmo que brevemente, sobre a difícil realidade em que se encontra o sistema de educação em nosso país.

Se, em um determinado momento de sua vida, qualquer cidadão desejar informar-se acerca do nível de analfabetismo do povo brasileiro, poderá fazê-lo consultando os resultados das pesquisas realizadas em todo o território nacional pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) ou por alguma ONG preocupada com as diferenças sociais e as reais condições de vida da população. Ao consultar tais dados, certamente sentirá um misto de euforia e desesperança, uma vez que, se por um lado, as pesquisas indicam um constante crescimento do número de crianças, jovens e adultos que se empenharam em conhecer a modalidade escrita de sua língua mãe e, portanto, adentraram o espaço dos alfabetizados, por outro o país continua a ocupar uma posição bastante crítica em relação à maioria dos países do mundo, quando o assunto é justamente o grau de alfabetização de seu povo.

Quando esse desejo de informação parte de alguém que pertence ao sistema de ensino nacional, a reação torna-se ainda mais desanimadora, pois todo aquele que no seu cotidiano participa dos processos de educação transforma-se em “testemunha ocular” da incapacidade dos considerados alfabetizados, salvo exceções, de refletir, reagir e recriar no interior das atividades diárias de oralidade, leitura e produção textual em sala de aula, tanto no ensino público quanto particular.

Pensamos que neste exato momento nossos leitores devem estar se perguntando sobre qual será nosso objetivo em apresentar no presente artigo reflexões tão desestimulantes acerca do sistema do qual também fazemos parte, ou seja, o Sistema Educacional brasileiro.

Começaremos, pois, nossa argumentação afirmando que são justamente essas práticas cotidianas observadas e vividas durante o ensino fundamental e médio e estendidas ao ensino superior que nos permitem desejar que as preocupações que nos inquietam sejam lançadas para além do nível de alfabetização demonstrado por alunos do ensino fundamental e médio em nossas escolas, mas para o grau de letramento que o aluno universitário, em sua grande maioria, demonstra não possuir.

No geral, o jovem chega à universidade pouco preparado para a prática da reflexão e da oralidade produtiva, crítica, seletiva e mediadora entre os conhecimentos presentes nos clássicos das mais variadas áreas do saber humano e a realidade globalizada e audiovisual em que está inserido, ou mesmo entre os conteúdos das diferentes disciplinas que fazem parte de seu histórico escolar, entendendo-os como coisas estanques, quando não, totalmente desnecessárias para sua futura profissão.

Estamos certos de que as constatações até aqui apresentadas, embora duras, têm servido de leitmotiven (fios condutores) para o desenvolvimento de pesquisas no âmbito da recente área educacional denominada Letramento Social, cujos postulados vêm ao encontro de nossas reflexões pessoais no campo do ensino formalizado, tão necessário ao povo deste país.

Por meio deste artigo pretendemos, portanto, conforme afirmado anteriormente, discutir sobre a importância da recorrência à arte cinematográfica como instrumento facilitador e fomentador do aumento das capacidades estudantis acima questionadas, ou seja, a oralidade, a leitura e a escrita, no âmago dos processos de ensino-aprendizagem em sala de aula.

Desse modo, propomo-nos a apresentar breves argumentações sobre filmes, cujos diálogos intertextuais podem ser utilizados como estímulo para a projeção de trabalhos e pesquisas a serem desenvolvidos com ou por alunos de diferentes níveis de escolaridade, com vistas ao seu crescimento cognitivo e social, em um processo que leve da fundamentação teórico-metodológica da Lingüística Textual aos objetivos propostos pela concepção educacional de Letramento Social.

1 – Cinema, Educação e Letramento

Com base em vasta leitura acerca da força e da importância do cinema para a maioria das culturas mundiais, percebemos que a arte cinematográfica congrega ou resgata, com maior ou menor intensidade, todas as demais formas de arte a cada texto fílmico produzido, não importando sua classificação em termos de gênero e nem o nível qualitativo dessa produção. O espectador, além do dever de respeitar a condição de arte de todo texto fílmico, deve, igualmente, entendê-lo, em maior ou menor grau, como um importante veículo de interação social e “como um produto cultural que reflete e veicula valores e crenças das sociedades em que está imerso”. (Duarte, 2002, p. 106)

Devemos frisar que, no nosso entender, esses são, igualmente, os principais compromissos da Instituição Escola na formação de sua clientela: a promoção da interação social dentro e fora do espaço escolar e o despertar da reflexão sobre valores e crenças culturais da sociedade em que professores, funcionários, alunos e suas famílias se inserem.

Nada mais natural, portanto, do que a união entre as duas instâncias – cinema e escola – em busca de resultados mais efetivos e agradáveis no que diz respeito aos processos de ensino-aprendizagem em sala de aula.

Embora o conceito de letramento seja extremamente complexo, pois possui diferentes sentidos, por nortear um variado número de estudos, com diferentes objetivos, estamos adotando no presente artigo, a concepção do modelo ideológico, apresentada por Street, em obra que reflete sobre aspectos teóricos e práticos de letramento, e que foi rediscutida por Kleiman (2002), conforme indicado no extrato abaixo:

...modelo ideológico, que afirma que as práticas de letramento, no plural, são social e culturalmente determinadas, e, como tal, os significados específicos que a escrita assume para um grupo social dependem dos contextos e instituições em que ela foi adquirida. Não pressupõe, esse modelo, uma relação causal entre letramento e progresso ou civilização, ou modernidade, pois, ao invés de conceber um grande divisor entre grupos orais e letrados, ele pressupõe a existência, e investiga as características, de grandes áreas de interface entre práticas orais e práticas letradas. (p.21)

Reiteramos, portanto, que a arte cinematográfica, devido ao caráter heterogêneo, multifacetado e complexo que a caracteriza, além do fascínio que exerce sobre o espectador, abre portas para um rol bastante extenso de correlações, intertextualidades explícitas e implícitas que só as práticas da oralidade, da leitura audiovisual e da pesquisa reflexiva conseguem lapidar, em busca de um aprofundamento mais coerente e possível dos sentidos propostos pelo texto fílmico e de sua retomada no interior dos processos de interação que dão vida ao cotidiano social.

Em um primeiro momento, daremos algumas sugestões de filmes, cujos conteúdos podem ser pensados, discutidos e repensados no interior de ações de letramento desenvolvidas no ambiente escolar.

Posteriormente, resgataremos outros textos fílmicos que foram trabalhados durante a aplicação do projeto por nós desenvolvido no âmbito do programa Núcleo de Ensino 2009, fomentado pela PROGRAD, da UNESP, com o seguinte tema/título: “O CINEMA E A SALA DE AULA: da tela para a vida”, envolvendo alunos de uma sala de terceira série do ensino médio da escola pública E.E. Profª. Lourdes Pereira, na cidade de Assis, no interior do Estado de São Paulo.

2 – O jogo polifônico entre a tela e a vida e vice-versa

Consideremos, por exemplo, um evento histórico que envolveu o povo português e seu rei Dom Sebastião, no ano de 1578, durante a Batalha de Alcácer-Quibir, cuja influência fomentou movimentos históricos e culturais no Brasil, três séculos depois do ocorrido em Portugal, com sérias conseqüências, principalmente para o habitante do nordeste brasileiro: podemos reviver esse evento colocando em cotejo textos fílmicos elaborados nos dois países, bem como obras literárias que os discutiram com riqueza de detalhes em um processo contínuo de intertextualidades explícitas e implícitas, o que certamente proporcionará um enriquecimento substancioso no repertório dos alunos das salas de aula em que forem apresentados.

Nesse sentido, é possível trabalhar em classes do ensino médio com duas obras audivisuais: a mini-série dirigida por Luiz Fernando Carvalho, que inspirado na obra literária de Ariano Suassuna, apresenta o lado mítico do rei português em um discurso com sentido divergente ao apresentado pelo diretor português Manoel de Oliveira sobre o mesmo assunto, no interior do texto fílmico Non: ou a vã glória de mandar. Desse modo, o professor deverá estimular debates acerca de temas trabalhados no interior dos textos fílmicos e antecipar algumas informações, com vistas a despertar a curiosidade dos alunos em conhecer melhor os assuntos e seu interesse em pesquisá-los com mais profundidade. Vejamos alguns dados que poderão ser antecipados, por meio da utilização de transparências ou de cópias distribuídas em sala de aula:

Impulsionado pelo desejo de compreender e universalizar a história cultural do povo nordestino, Ariano Suassuna promove o desencantamento do Rei Dom Sebastião, de Portugal, na figura de Quaderna, um palhaço multifacetado que revive a saga do rei português em pleno sertão brasileiro, nas linhas e entrelinhas do romance d’ A Pedra do Reino: e o príncipe do sangue do vai-e-volta. Diante da magnitude da obra literária, o diretor cinematográfico Luiz Fernando Carvalho se propõe a estender os horizontes intertextuais das palavras para as imagens, por meio da formatação de uma mini-série homônima, para ser veiculada especialmente pela televisão. Em terras de Além-Mar, o consagrado diretor cinematográfico Manoel de Oliveira resgata, de forma altamente crítica, a figura de D. Sebastião, o Desejado, revestindo-o de uma dura visão histórica, por meio do texto fílmico NON: ou a vã glória de mandar, em um processo inverso à aceitabilidade mítica na qual o rei português continua envolto em terras brasileiras, celebrado anualmente por um dos maiores teatros a céu aberto do mundo, que acontece em Belmonte, cidade localizada no interior do estado de Pernambuco, no nordeste do Brasil.

Os elementos em negrito indicam itens a serem pesquisados pelos alunos, individualmente ou em grupos.

Não podemos nos esquecer que o episódio da Pedra do Reino ou Pedra Bonita representa um entre outros tantos eventos histórico-culturais ocorridos no Brasil no início do século XIX, que tiveram como mote a volta messiânica de Dom Sebastião, e que, mesmo extintos, deixaram raízes que foram revividas em outros episódios de grande importância para a história e para a cultura do povo brasileiro, tais como: a Guerra de Canudos, de Antônio Conselheiro, no final do século XIX e a Era do Cangaço, de Virgulino Lampião, no século XX.

Desse modo, na esteira dos trabalhos desenvolvidos até então com os alunos dentro e fora da sala de aula, o professor poderá estender a pesquisa para um acontecimento de maior envergadura para o povo nordestino como a Guerra de Canudos, apresentando-lhes a obra cinematográfica homônima de Sérgio Rezende, buscando no texto fílmico as variadas ocorrências de intertextualidade, polifonia ou dialogismo, com vistas a captar, o máximo possível, a visão expressa pelo diretor acerca do fato histórico protagonizado por Antônio Conselheiro e seus seguidores, em Bello Monte, no coração da Bahia, entre os anos 1893 e 1897. O mesmo procedimento poderá ser tomado em relação à era do cangaço, durante a qual Lampião, considerado cabeça do movimento, tanto encantou como assustou o cotidiano do povo sofrido do nordeste brasileiro.

Em relação ao fato histórico-cultural do cangaço, propusemos, durante o desenvolvimento do projeto “O CINEMA E A SALA DE AULA: da tela para a vida”, acima mencionado, que os alunos assistissem diferentes gêneros cinematográficos que versam sobre o assunto, como, por exemplo: o filme documentário O último dia de Lampião, 1975, de Maurice Capovila; o filme de aventura que busca descrever a narrativa histórica sobre o evento, Lampião, o Rei do Cangaço, 1964, de Carlos Coimbra; e, finalmente, uma versão satirizada que se enquadra melhor ao gênero comédia, intitulada O Lamparina, 1964, de Mirko Laurelli, sendo este último o texto fílmico escolhido para ser assistido em sala de aula.

Como nossa intenção não foi trabalhar com os eventos sócio-históricos e culturais que tiveram como mote a volta messiânica de D. Sebastião no Brasil no âmbito do projeto apresentado ao Núcleo de Ensino, faremos aqui um parêntese para expor melhor nossos objetivos e as razões da presença do filme de Mirko Laurelli dentre os textos fílmicos escolhidos para dar vida ao projeto.

Durante o desenvolvimento dos trabalhos com os alunos da terceira série do ensino médio da E.E. Profª. Lourdes Pereira, determinamos projetar um texto fílmico por bimestre, que apresentassem o mesmo tema central (ética) e outros temas secundários. As exibições foram precedidas de variados tipos de textos para que fossem introduzidos e debatidos os outros temas que se faziam presentes em cada texto fílmico, e igualmente nos textos de apoio, sem que os alunos soubessem a que filmes assistiriam.

Iniciamos o trabalho por Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore, 1988, seguido dos demais: Jesus de Montreal, de Denys Arcand, 1985; Seven: os sete crimes capitais, de David Fincher, 1995 e O Lamparina, de Glauco Mirko Laurelli, 1964.

Após as projeções, os debates eram retomados, mediante novos textos, com vistas a medir até que ponto os alunos identificariam os temas presentes tanto nas variadas modalidades textuais apresentadas antes e depois da “sessão cinematográfica”, quanto pelo filme assistido, e de que maneira conseguiam definir as relações dialógicas existentes entre eles, bem como entre eles e a própria vida.

Outro propósito era permitir que continuassem a exercitar a reflexão e a oralidade, práticas fundamentais nos processos de ensino-aprendizagem em sala de aula. O compromisso final era levá-los a produzir um texto escrito que recuperasse o que de mais marcante havia sido trabalhado durante o bimestre.

Em relação ao texto fílmico de Giuseppe Tornatore, intitulado Cinema Paradiso (1988), iniciamos nossas reflexões acerca do tema ética, voltado para o sub-tema censura, além de alguns possíveis diálogos com o texto fílmico de Woody Allen, A Rosa Púrpura do Cairo, já que ambas as obras utilizam-se da metalinguagem cinematográfica para narrar suas estórias. Do mesmo modo, seus protagonistas fazem do espaço físico do cinema o lugar ideal para refugiarem-se dos problemas enfrentados no ambiente familiar.

Mediante debates e pesquisas, os alunos conseguiram também vislumbrar algum diálogo entre os conteúdos de Cinema Paradiso e as figuras mitológicas de Helena de Tróia e Penélope.

O segundo filme programado foi Jesus de Montreal (1989), de Denys Arcand, cujo conteúdo dialoga implícita e explicitamente com os ensinamentos presentes no Novo Testamento, em que Cristo busca “implantar”, na consciência do ser humano, as reais e profundas acepções do termo ética.

Adaptado para os tempos atuais, o texto fílmico conseguiu levar os alunos a perceberem temas periféricos, como, por exemplo, doação de órgãos, tentação por suborno, falta de valores morais, dentre outros. Este último item promoveu um diálogo direto com a obra literária A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, que deu origem ao filme de mesmo nome e sobre os quais os estudantes foram estimulados a elaborar uma pesquisa na Internet para, desse modo, expandir seus conhecimentos, ao mesmo tempo que percebiam que ao “dar asas” à curiosidade, conseguiam descobrir relações antes não imaginadas.

No terceiro bimestre, os alunos tiveram a oportunidade de trabalhar com um tema bastante complexo: o contraponto entre ética e fanatismo religioso. O texto fílmico Seven: os sete crimes capitais (1995), de David Fincher permitiu que os alunos desenvolvessem variadas pesquisas por se tratar de um filme altamente polifônico, apresentando diálogos com ampla bibliografia, tanto literária – A Divina Comédia, de Dante Aliguieri (séc. XIV), Paraíso Perdido , de John Milton (séc. XVII), Os Contos de Cantuária, de Geoffrey Chaucer (séc. XIV), dentre outras - quanto temática, voltada para a forma de comportamento psicótico de pessoas consideradas serial killers. No âmbito de tais pesquisas, tiveram a oportunidade de ler acerca da origem do tema “pecados capitais”, explorados pelo teólogo Tomás de Aquino, no século XIII, e que serviram de justificativa para os “crimes capitais”. Uma pesquisa mais pontual, voltada para o cinema, levou-os a descobrir que o texto fílmico estudado dialoga intratextualmente com o filme Zodíaco (2007), do mesmo diretor.

Na esteira do discurso “justiça em nome de Deus” ou “proteção aos fracos e oprimidos”, portanto ainda no interior do paralelo ética/fanatismo, os alunos assistiram ao filme O Lamparina, de Glauco Mirko Laurelli (1964). Elaborado no gênero comédia, o texto fílmico abriu portas para reflexões voltadas a variedades lingüísticas, cultura popular - mais especificamente a Era do Cangaço -, discussões sobre os conceitos de heroi e anti-heroi, além de um breve paralelo entre a fictícia proteção oferecida por Lampião ao povo pobre e sofrido do nordeste e o atual auxílio recebido pelos habitantes das favelas por parte do crime organizado e/ou tráfego de drogas.

Ao final da aplicação do projeto, tínhamos em mãos 4 redações de cada aluno, salvo exceções, em decorrência de faltas em alguma aula, o que nos permitiu montar uma tabela mostrando que a maioria dos alunos (63,9%) apresentou evolução na maneira de escrever, indicando maior segurança em fazê-lo, além de maior bagagem de conhecimento a ser discutido, 13,9% manteve o rendimento e 22,2%, mesmo demonstrando certa evolução em algum momento, apresentou uma baixa entre a primeira e a última redação.

Os alunos também responderam a um questionário em que puderam expressar, sem identificação de nomes, as impressões que tiveram sobre o projeto: 65,4% o avaliaram como Ótimo e 34,6% como Bom, sendo que ninguém optou pelas qualificações Razoável ou Ruim. Todos consideraram que o desenvolvimento do projeto contribuiu para uma melhoria significativa em relação 1) aos processos de escrita, 2) aos conhecimentos sobre cinema, 3) à capacidade de leitura, interpretação e crítica de textos fílmicos, 4) à capacidade de avaliar e corrigir os próprios erros. Questionados sobre sugestões de como melhorar o projeto no futuro, a maioria apontou para a não necessidade de mudança, embora alguns tivessem demonstrado vontade de trabalhar por maior tempo com o cinema nacional e com filmes mais atuais. Sobre a atuação dos bolsistas, pediram menos timidez e mais desinibição, bem como um pouco mais de segurança frente a alguns temas, principalmente os mais polêmicos.

Importante ressaltar que o projeto foi fortemente elogiado pela direção da escola, bem como pela coordenadora da área e pela professora responsável pela classe do terceiro ano do ensino médio, em que foi aplicado.

3 - Conclusão

Embora o cinema brasileiro seja rico em temas que compõem nossa cultura, o professor deve apresentar a seus alunos os mais diversificados e produtivos cinemas do mundo, a cultura de seus povos, suas crenças e hábitos, de forma a levá-los a refletir sobre as diferenças e as aproximações que dificultam ou facilitam as relações humanas extra-muros.

A grande paixão que nutrimos pela arte cinematográfica e a enorme preocupação que ocupa nossos pensamentos sobre a difícil condição em que se encontra o sistema educacional brasileiro levam-nos, sempre que possível, a nos engajar em projetos que possam oferecer uma parcela de contribuição, mesmo que pequena, para a formação mais valorizada, consciente e reflexiva de crianças, jovens e adultos, que passam tantos anos de sua vida ocupando os bancos das escolas brasileiras, muitas vezes sem saber, exatamente, porque e pra que o fazem.

A ferramenta principal que fomenta esses projetos é a busca, por meio de pesquisas e debates, pelas possíveis intertextualidades (explícitas e implícitas) que permitem aos diretores cinematográficos dar vida aos seus próprios textos, e, desse modo, aumentar a bagagem de conhecimento de nossos estudantes, em salas de aula do ensino fundamental, médio e superior, e sua capacidade de relacionar diferentes textos entre si, mesmo que oriundos de variadas fontes e formatos, bem como de reconhecê-los muitas vezes como presentes nos acontecimentos cotidianos da própria vida.

Finalizamos essa exposição, fazendo nossas as palavras de Trevizan (2000, p. 98) acerca da importância do cinema para a formação e amadurecimento do cidadão, no nosso caso, do estudante que se prepara para a vida, auxiliado pelos processos de interação social entre professores e alunos, alunos e colegas, em sala de aula:

O cinema é e sempre será um jogo de arte, humanismo e sedução.

(...) Todo filme repousa, é claro, sobre uma história, com personagens e situações aproximadas do mundo real. No entanto, é preciso entender que o potencial artístico de um bom filme não se sustenta no simples reconhecimento da credibilidade da história contada, mas, ao contrário, reside, sobretudo, na possibilidade de a linguagem criada estabelecer com o espectador um nível profundo de comunicação intelectual, filosófica, psicológica, emocional. A complexa estratégia de sedução da linguagem fílmica aguarda o espectador como um observador capaz de compactuar com o cineasta, na busca de um grau elevado de conhecimento filosófico sobre o próprio EU e sobre o OUTRO (o mundo). Uma obra de arte, através de uma linguagem particular, põe em questão as verdades sociais adquiridas, convidando o espectador a uma nova visão do mundo.

4 - Bibliografia consultada

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5 - Agradecimentos:

A Profª. Arlete Reseque José Pinheiro da Silveira e Profª. Juliana Penachini de Barros Santos, pela aceitabilidade, sem restrições, à aplicação do projeto aos alunos de uma classe de terceira série do ensino médio, na E.E. Profª. Lourdes Pereira, na cidade de Assis(SP), em que atuam como diretora e coordenadora pedagógica, respectivamente;

A Profª. Vera Lúcia Caron, professora de língua portuguesa para os alunos da terceira série do ensino médio, que tão gentilmente não apenas cedeu o espaço da sala de aula para que o projeto fosse implementado, como participou ativamente em todas as aula ministradas pelos bolsistas do Núcleo de Ensino 2009;

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[1] Docente pelo Departamento de Linguística da FCL-UNESP/Assis – Orientadora;

[2] Alunos bolsistas pelo Núcleo de Ensino 2009.

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