A Segunda Guerra nos Games - UFRGS



A Segunda Guerra Mundial nos Games

Prof. Ms. Marsal Alves Branco

Feevale - RS

No artigo Tipologia dos Games, defendemos que a proposição de uma metodologia de análise dos games passa, em primeiro lugar, pela definição dos critérios tipológicos dessa mídia. Entre os caminhos propostos por diferentes vertentes dos estudos dos games e pelos pesquisadores das teorias dos jogos, pensamos que as características da narrativa sejam esses critérios. Conhecemos, no entanto, o caráter abrangente da palavra, cuja quantidade de significações e conceitualizações varia conforme a área ou mesmo conforme a metodologia adotada. Em decorrência disso e considerando o caráter único dos games enquanto mídia e enquanto singularidade narrativa, pensamos que esta é formada por três dimensões que são indissociáveis: o gênero narrativo propriamente dito; seus aspectos de interface e seu caráter tecnológico.

Esse artigo pretende, através da análise de alguns jogos ambientados na Segunda Guerra Mundial, demonstrar como a narrativa de um sub-gênero tão específico vai sendo construída e refinada e como vai acontecer na interação entre gênero, interface e tecnologia, estabelecendo-se até assumir o importante espaço que ocupa hoje no cenário da indústria de vídeo-games.

Jogos de guerra

A escolha por jogos ambientados na Segunda Guerra Mundial decorre de uma série de motivos. O primeiro pela grande quantidade de jogos ambientados nesse período histórico, sejam de estratégia ou FPS[1]. Mesmo no Brasil seu número é tão expressivo que é comum que ocupe lugares reservados só pra si nas prateleiras das lojas. Franquias como Medal of Honor, Call of Duty, Battlefield e Brothers in the Arms lançam novas expansões praticamente todo o ano: seja para os grandes consoles, para portáteis, celulares ou para pcs. Nas LAN Houses, o gênero é quase obrigatório e muitas vezes materializa-se em diversas opções de jogo. É comum encontrarmos grupos de freqüentadores que se reúnem exclusivamente para jogar Call ou Medal e que raramente jogam outros jogos. Esse movimento se confirma na quantidade de clãs e campeonatos que oferecem esse tipo de modalidade em seus quadros de competição. Pode-se pensar que, dentro da realidade dessas casas de jogo e de seu mercado, a ausência de pelo menos uma grande franquia ambientada na Segunda Guerra seja impensável.

Além disso, em um momento em que a comunicação começa se debruçar sobre os video-games como objeto de estudo, é interessante perceber como esse gênero de jogo tem condições de ilustrar as profundas mudanças sofridas pelas narrativas dos games desde o lançamento de Tank, em 1974, e os inúmeros outros representantes do gênero que se seguiram nas próximas décadas e que ajudaram a estabelecer os jogos de Segunda Guerra como um importante referencial de gênero dentro dos games.

A amostragem escolhida responde, em primeiro lugar, a um aspecto cronológico. Os três jogos escolhidos pertencem a diferentes gerações de games: Tank, 1974; Panzer General II, 1994; Medal of Honor, 1999. Cada um dos três jogos apresenta diferenças de interface que ajudam a esclarecer as negociações que ocorrem entre as diferentes dimensões de sua narrativa. Em segundo, está o fato de serem jogos que marcaram sua época e que introduziram inovações dentro da narrativa dos games. Inovações que foram - com o passar do tempo -, se estabelecendo como padrões narrativos para os jogos de guerra.

Tank

Lançado pela Kee Games e Atari, o jogo foi o grande hit de 1974. Consistia em um labirinto através do qual os jogadores poderiam manobrar seus veículos. Era possível jogar sozinho ou em dupla (sem dúvida um atrativo interessante para a época). Cada um dos veículos disparava projéteis (pontos vermelhos ou azuis, conforme a cor do tanque) para tentar acertar o adversário. Cada vez que um dos jogadores acertava o outro contabilizava um ponto, em uma disputa que podia ser de três ou cinco partidas.

Tank, bem como muitos dos jogos das primeiras gerações tecnológicas, apresentava muito poucos elementos que fornecessem ao gamer qualquer tipo de ambientação que ajudasse a introduzir uma narrativa nos moldes de outros produtos midiáticos. Embora a representação gráfica dos veículos (sua movimentação, sua capacidade de disparar projéteis), o material promocional do jogo e também seu nome tornasse evidente que se tratavam de tanques (e de uma guerra, possivelmente), nenhum elemento do jogo contextualizava a batalha. Os cenários, em duas cores, não fazem qualquer referência a um espaço conhecido, sendo representado graficamente por padrões geométricos nos quais não se reconhece nenhuma tentativa de representar o mundo real. A limitação tecnológica (ligado neste caso específico à falta de capacidade de processamento) obrigava o uso de quatro cores e apresentava uma resolução muito ruim, o que tornava o video-game uma mídia cujo referencial estético se construia sobre uma lógica muito diferente da tv (a quem está ligado por laços indissociáveis). Aliás pode-se dizer mesmo que o referencial estético do vídeo-game, diferente de outras mídias que importaram de outras suas estratégias, nasce e se desenvolve, pelo menos durante a primeira geração tecnológica, dentro do vídeo-game[2].

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1. Tank. Simples e irresistível.

Foi o jogo mais vendido de 74.

Frente a esse duríssimo limitador tecnológico, os jogos eram pensados mais em termos de estrutura do que em termos da significação de seus elementos. Ao final de um jogo, se perguntado sobre ele, o gamer podia dizer venci ou perdi, mas dificilmente descreveria o que se passou lá dentro em termos e na forma de uma batalha. À parte a diversão, não haviam motivos para que se disparassem os tiros e o gamer apenas aceitava esse fato.

O comentário de Steve Bristow, um dos engenheiros que criou Tank, ajuda a compreender o grau de abstração em que se trabalhavam os games nos anos 70.

“We started a football game called Xs and Os, but then we thought a game with tanks would be better, and made Tank instead.”

Essa total subordinação da narrativa frente a uma estrutura organizadora - que algumas décadas depois se tornará um dos elementos-chave para os ludólogos[3] -, era então menos uma opção metodológica do que uma conseqüência direta da atuação do fator tecnológico que constitui uma das dimensões de base dos acontecimentos do vídeo-game.

Panzer General II

Panzer General II é um game de estratégia ambientado na Segunda Guerra Mundial. Foi lançado em 1994, pela SSI, conquistando uma legião de fãs à volta o mundo.

Em PGII o jogador tem a sua disposição os recursos de vários exércitos, que deve gerir e comandar de forma a obter vitórias nos campos de batalha. Obter essas vitórias depende de seu conhecimento das rígidas regras que regem os turnos de jogo, das capacidades de cada unidade disponível e do significado de seus atributos quando aplicados na batalha.

A tela principal do jogo mostra um grande mapa do cenário de batalha. Logo no início, o jogador é informado de seus objetivos, que variam conforme a batalha. As vezes trata-se de conquistar uma cidade, defender uma estrada, proteger um vale ou um depósito. Para alcançar estes objetivos, o jogador é normalmente obrigado a articular estratégias e táticas que atingem altos graus de complexidade.

General Panzer II não é um jogo casual. Ao iniciante é exigido um grande esforço inicial para que consiga apreender os principais conceitos. Basta uma rápida olhada no manual básico do jogo para desencorajar aqueles jogadores que querem entretenimento sem compromisso: são 125 páginas repletas de informações, com intermináveis tabelas de tipos de unidades, suas especialidades e características.

Gênero narrativo

Diferentemente de Tank, GPII faz uso de uma série de características genéricas específicas. Se no primeiro não havia qualquer contextualização ou referência externa ao jogo, em GPII o jogador não é apenas imediatamente atirado dentro da Segunda Guerra Mundial, mas também é dele exigido um domínio sobre a cultura militar das forças aliadas e do eixo, do conhecimento das capacidades de cada unidade e também de como usá-las em determinado contexto. Acima de tudo, deve estar apto a orquestrar ofensivas que articulem as habilidades de cada uma. Pode-se pensar, justificadamente, que estas questões dizem mais respeito à interface que ao gênero narrativo, mas de fato, quando o jogamos, somos levados a raciocinar em termos da Segunda Guerra, e o que seria da ordem da interface acaba operando como instrumento de sedução da narrativa. A começar pelos mapas oferecidos: Salerno, St. Lo, Caen, Tobruk, etc, que buscam reproduzir as condições históricas das forças envolvidas.

“While it´s probably not possible to provide “truth” about any historical event, PANZER GENERAL II does give the player much the same kind of choices as those facing his or her historical counterpart.” (Manual of Panzer General, 1995)

No manual se encontram as principais estratégias que generais russos, alemães, britânicos e americanos usaram em batalhas famosas, incitando o jogador a testá-las e, quem sabe, melhorá-las. O jogo acena com a possibilidade de brincar com a história. E às vezes o faz de maneiras inesperadas, como a possibilidade das forças do eixo invadirem a América.

O jogo é permeado por cut scenes que introduzem as batalhas com que o jogador vai se deparar. Esses filmes são constituídos de filmagens históricas e fotos da Segunda Guerra, que esclarecem o contexto da guerra naquele momento e o papel - dentro do teatro maior -, que aquela batalha específica ocupa. Conforme o exército que o jogador ocupa, o narrador assume as maneiras e o sotaque daquela nacionalidade, ao mesmo tempo que a música de background também reforça a identidade do país. Essas características formais tornaram-se padrão em muitos dos jogos de guerra que se seguiram.

Interface

As principais características da interface de PGII são: seu sistema de turnos e seu sistema de unidades[4]. Embora tal estrutura de interface não representasse, à altura de seu lançamento, uma novidade, é interessante notar como essa opção de interface afeta outros aspectos da narrativa. No que ela possibilita, por exemplo, em termos de envolvimento com a história militar do século passado. Se nos RPGs os gamers estudam sobre o modo de organização da sociedade dos elfos negros, sobre o sistema tributário de uma economia feudal mágica, dos modos de se fazer uma catapulta e da importância da batata na culinária dos ogres, em PGII o aprendizado da história, estratégias e táticas dos principais exércitos, divisões e companhias – bem como a filosofia militar dos principais generais -, é operacionalizado através do modo de funcionar do sistema de unidades. Cada unidade de jogo representa um tipo de formação militar cujas características o jogador precisa dominar para ter um bom desempenho no jogo: saber a diferença entre Aircraft Carrier, Capital Ship, Destroyer, Naval Transport; saber quais as habilidades e equipamentos especiais de um recon class; quais as principais características de uma unidade quanto à mobilidade, transportes disponíveis, níveis exigidos de combustível para cada operação, a capacidade de defesa no chão, anti-aérea, naval, a quantidade de engenheiros e suas especialidades, a rapidez de entrincheiramento, tipo de armas, etc. Aliás, apenas em relação aos tipos de armas, o kit default do jogo apresenta, só referentes ao exército francês, 39 tipos diferentes de armas. Cada uma dessas armas apresenta 21 características que afetam sua performance em batalha e que devem ser levadas em consideração em sua escolha pelo gamer. Se consideramos que cada país envolvido na guerra tem sua própria lista de armas, a participação dentro do jogo de cinco ou seis países pressupõe a manipulação de centenas de armas diferentes. Isso se ficamos só com o que está disponível no kit default e sem levar em conta a quantidade de service packs oferecidos pela SSI que oferecem outras tantas possibilidades.

Vê-se como a estrutura de interface reforça e condiciona um nível de envolvimento muito grande entre o jogador e a narrativa. No caso de PGII, é a articulação entre essas duas dimensões que transforma uma atividade exaustiva de aprendizado em uma tarefa desafiadora e prazeirosa. Esse relacionamento entre interface e gênero narrativo parece ter sido um dos principais fatores no sucesso de Panzer General II. Uma olhada nos numerosos fóruns pode ajudar a evidenciar isso: milhares de pessoas à volta do mundo discutindo os conceitos de blitzkrieg, articulação de estratégias navais, aéreas e terrestres, táticas de infantaria, de artilharia, custos de manutenção e soluções de logística, a história das compainhas e as batalhas pelas quais ficaram famosas, característica das armas, etc.

Estatuto tecnológico

Além do nível mais evidente da ação tecnológica como possibilitador da realidade do jogo (até final dos anos 90, era impossível colocar na tela um número muito grande de animações e unidades de jogo interagindo em tempo real), PGII apresenta uma série de dispositivos tecnológicos que afetam de maneira fundamental a maneira pela qual os jogadores se envolvem com o game. Uma das principais é o sua jogatina on-line. Os jogadores podem combater outras pessoas, e essas pessoas podem estar em qualquer lugar do mundo. Saber que o inimigo não é orquestrado por inteligência artificial estabelece exigências especiais no desempenho do jogo. Na prática, é muito mais difícil prever os movimentos do adversário, que está sujeito tanto a lances geniais como a tomar decisões estúpidas. PGII proporciona ao gamer a possibilidade de jogatina por mail, para os que não possuem conexão rápida. Um dispositivo que lembra muito as partidas de xadrez a distância.

Outra característica muito importante é a possibilidade oferecida pelo jogo de se fazer as próprias campanhas, bem como acrescentar unidades, armas e outros elementos de características customizáveis. Os jogadores criam cenários de batalha e distribuem pela rede para outros jogarem. Algumas dessas fases são tão boas que a própria SSI as disponibiliza para download no site. Nos fóruns de PGII, os jogadores criam e trocam novas unidades de combate e novos equipamentos, totalizando milhares e milhares de opções no desenvolvimento de exércitos e de táticas militares, refinando o nível de envolvimento do jogador de formas dificilmente imagináveis para aqueles que não sabem como o game opera.

Medal of Honor

Medal of Honor é uma das franquias de guerra de maior sucesso na história dos games[5]. Foi lançado pela Electronic Arts em 1999 e concebido por Steven Spielberg durante as filmagens de O Resgate do Soldado Rian. Entre expansões e novos releases, conta com mais de nove jogos, todos ambientados em diferentes teatros de guerra na Europa, Ásia e África.

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3. Aliados desembarcando em Omaha Beach

Gênero narrativo

Do ponto de vista do gênero narrativo, MOH introduz uma série de elementos que estabelecem novos padrões para os jogos de guerra. O primeiro deles diz respeito à apropriação da linguagem cinematográfica.

Embora as cut scenes de abertura e as apresentações de fases que introduzem o jogador a novos teatros de guerra possam ser hoje considerados grosseiros, a música, a edição, os enquadramentos cinematográficos e o minucioso trabalho histórico impressionam os gamers, que se vêem imersos em meio a uma espécie de grande filme de guerra. As cut scenes[6] colocam o jogador no clima apropriado para o início do jogo, por um lado contextualizando a situação dentro do esforço de guerra e por outro colocando-o, antes do início do jogo, dentro do clima opressivo das batalhas. Muitas dessas cut scenes, a parte sua baixa qualidade de polígonos e de texturização, podem ser inseridas dentro de filmes como O Resgate do Soldado Rian, Agonia e Glória ou Círculo de Fogo sem que haja uma quebra de linguagem. Referências diretas ao filme ou a história são usadas: os soldados passam mal dentro do veículo de desembarque, no dia D; o paraquedista morto pendurado em uma árvore em Saint-Mére Eglise, etc.

As fases normalmente se alternam em batalhas históricas (o desembarque em Omaha Beach; a tomada de Carentam; a invasão da chancelaria; a batalha do Bulge, etc) e variadas missões “secretas” que, a despeito de não respeitarem acontecimentos históricos específicos, são claramente inspirados por eles: resgatar um piloto abatido e levá-lo até a resistência; explodir pontes ou colocar canhões fora de ação; conseguir os planos de uma nova metralhadora alemã; seqüestrar o novo tanque alemão, o Tiger. Muitos desses acontecimentos fazem parte da literatura de guerra e dos arquivos da história oral da Segunda Guerra[7].

A fidelidade aos detalhes atravessa o jogo e reforça o padrão já iniciado por alguns games dos anos 80, especialmente aqueles produzidos pela SSI, como Panzer Still, General Panzer, Kampfgruppe etc. A quantidade de referências concede ao game uma certa aura histórica que se torna o padrão dos jogos de guerra atuais (independente da ambientação se passar na Segunda Guerra). Os uniformes disponíveis (no modo on-line, estão disponíveis dezenas de uniformes aliados e alemães correspondentes à diferentes divisões, brigadas, teatros); a quantidade de armas e a reprodução, in-game, de suas características: mira, repetição, dano e os sons que fazem, etc.

Essa alusão à história é tão forte que diversas vezes vira motivo de enganos. Jogadores procurando mapas de Berlim ou Stalingrado para comparar com os mapas de fase. Recordo de alguns amigos que ficaram com medo de jogar com um terceiro porque este teria conhecido, na Normandia, os lugares onde se passam as fases, o que o daria óbvia vantagem tática. Nesse caso, o grupo assumiu que o jogo é tão fiel que a topologia da fase seria idêntica á do local original, o que, evidentemente, não ocorre.

O engano é desculpável. Algumas fases ambientadas na Normandia, como Omaha Beach (MOH Allied Assault) apresentam alto grau de fidelidade topográfica. Em lugares maiores, no entanto, como Berlim (cujo mapa fiel teria de ser enorme), os realizadores apresentam, diante da impossibilidade técnica de uma Berlim totalmente digital, elementos importantes de seu planejamento urbano e de sua arquitetura: a Chancelaria, a estação de trens, etc. Esses ícones espalhados pelas fases reforçam o laço histórico do jogo de uma maneira diversa de jogos como General Panzer. Não se trata mais de esquematizações de terreno, mas de simulações. E, espalhadas durante o jogo, as referências se multiplicam. Um cenário que sai de uma foto famosa, detalhes de cartazes em um muro, etc.

No que diz respeito ao papel do jogador também existem novidades. O gamer assume o papel de Jimmy Patterson, um soldado aliado que precisa cumprir diversas missões no teatro europeu. Durante o jogo, há vários elementos que reforçam a identidade desse soldado. As telas de loading mostram documentos assinados por superiores e endereçados nominalmente a ele; aparecem fotos e objetos pessoais, bem como os objetivos da fase são escritos na forma de um diário de campanha pessoal; durante o jogo, npcs interagem com ele e fazem comentários engraçados ou encorajadores e dão dicas do que fazer a seguir. Esse tipo de estratégia estimula a valorização de uma personalidade com quem o jogador pode se identificar. É uma tendência reforçada, desenvolvida e diversificada pelos jogos de guerra posteriores.

Interface

A característica evidente de Medal of Honor em relação à interface é o ponto de vista em primeira pessoa. É verdade que os first person shooter estiveram presentes em toda a década de 90, desde o aparecimento de Castle Wolfstein (1992) e principalmente Doom (1993), que é o jogo que vai começar a estabelecer os first person como padrão de interface. Mas até 1999, quando MoH foi lançado, não houve nenhum jogo de guerra expressivo que assumisse esse ponto de vista. Durante os 90, muitos jogos em primeira foram lançados, cultuados e trocados por outros[8], mas foi só com Medal que o gênero de guerra assumiu de vez o conceito.

Assumir o ponto de vista do personagem implicou mudanças radicais nos jogos de guerra. Em primeiro lugar, não se fala mais de um jogador externo ao jogo, controlando de fora as tropas e as escaramuças. Diferente de General Panzer, onde o jogador controla as tropas como um general, em Medal o gamer imerge em um cenário de padrão realístico dentro de uma batalha cuja estratégia lhe escapa completamente. Seus objetivos são táticos: esconder-se, matar os inimigos, roubar os planos, sabotar os navios, etc. Diferente do general todo-poderoso de General Panzer, Jimmy Patterson tem preocupações mais imediatas: manter-se vivo.

Conseqüência direta disso, Medal assume um caráter menos reflexivo (necessário ao se lidar com as complexas batalhas de GP) e mais ativo. O jogo assume-se como um jogo de ação. O tiroteio é constante e o gamer tem que desenvolver suas habilidades espaciais e seus reflexos. Como todos os fps, a destreza no joystick ou no teclado, bem como raciocínio rápido, assumem fundamental importância na performance do jogador. A performance, aliás, passa a ser o padrão para o bom jogador. Atirado dentro de um pequeno mundo frenético - onde o inimigo é mais numeroso e está melhor posicionado -, o bom jogador movimenta-se como um bailarino, e estes movimentos serão sua ‘marca’, assumindo um valor estético. Se em Tank, a descrição do jogo se dava em termos de venci ou perdi, em Medal com muita freqüência o jogador esquece se tratar de um jogo e o descreve em termos de batalha. “Fui silenciosamente e peguei ele por trás”, “matei o cara no pulo”, “duas granadas liquidaram o problema”. É um relacionamento particular entre a simulação que foi performatizada com o ato propriamente dito. É o que Steuer chama realidade virtual.

“Video game players describe the experience of moving an animated car on the screen as “driving”” (Steuer, 1993).

É o que está por trás da idéia de performance nos atos dos jogos eletrônicos. Não se quer dizer que antes dos fps este elemento não estivesse presente, mas é possível que a conjugação entre a interface de primeira pessoa e a possibilidade técnica (o fator tecnológico) de se jogar em rede, tenha ajudado a fortalecer um movimento que em suas expressões mais radicais, através dos clãs e das Lan Houses, desembocou no aparecimento dos cyberatletas.

O estatuto tecnológico

Um bocado de coisas se poderia dizer da influência tecnológica dentro da narrativa de Medal of Honor. A primeira delas é relativa às características dos cenários.

Em primeiro lugar, são grandes. Muitas ruas, edificações possíveis de entrar, becos onde se esconder; gigantescas (para os padrões de então) paisagens. Em segundo, são variadas, cidades, florestas, campos, portos, complexos militares, etc. Todo esse tamanho, possibilitado pelo aumento da capacidade de processamento e de armazenamento, leva os game-designers a criarem formas de tutoriar e cercear constantemente o avanço do jogador, para evitar que ele se perca e fique sem saber o que fazer ou que ele simplesmente avance para áreas que pertenceriam a fases mais avançadas do jogo. Qualquer olhar um pouco mais atento percebe que a aparente liberdade de movimentos do jogador logo desaparece em uma rua disfarçadamente bloqueada, em um rochedo que impede que se flanqueie o inimigo, etc. Ainda assim, a impressão de liberdade persiste, seja pela forma sutil como os limites de cenários são colocados, seja pela maneira como a ação é sabiamente conduzida - de forma que o jogador não tenha oportunidade de percebê-los -, seja, em última instância, pelo tamanho dos cenários. As expansões posteriores de MoH refinam essas estratégias. A idéia de um cenário totalmente aberto, realização técnica formidável e àquele tempo proibitiva, encontra anos depois seu paradigma em GTA III[9] e inaugura um tipo de game completamente diferente do que conhecia até então.

Outro fator essencial em MoH em relação a outros jogos de guerra é o abandono dos vetores 2d (Panzer General) pela adoção de vetores 3d, que se torna, nesses anos, o paradigma de produção de ambientes e imagens nos games. A criação de engines 3D sobre as quais eram desenvolvidos os jogos possibilitam uma otimização dos esforços das desenvolvedoras que contam com as facilidades desses sistemas montadores de jogos. Movimentos de câmera, iluminação, texturização e efeitos especiais não precisam mais serem feitos do zero, uma vez que as engines fornecem esses elementos, o que otimiza enormemente o processo de produção.

Em outro sentido, mas relacionado a isso, o aumento da qualidade de resolução das imagens geradas pelos jogos em tempo real parece não ter sido ainda discutida em profundidade. É normal que se pense a imagem (seja dos games, seja de outras mídias) inserida apenas na problemática do gênero narrativo, enquanto estratégia narrativa. Nos games, no entanto, talvez essa única dimensão não dê conta do papel que a imagem assume. A imagem dos games, juntamente à dimensão de gênero narrativo, está indissociavelmente ligada à dimensão tecnológica. A busca de uma representação mimética do mundo (o mundo como se apresenta aos nossos olhos) como paradigma estético é sempre uma luta tecnológica: conseguir calcular em tempo real o maior número de vetores possíveis (incidência de luz, sistemas de partículas como pó ou água, suavização de sombras, etc). Seja, primeiro, porque se buscam imagens tão reais que poderiam ser confundidas com filmagens. Seja, em segundo, porque são geradas a partir de algoritmos específicos (renderers) que vão conformá-la a partir da perícia técnica com que foram desenvolvidos pelos engenheiros e matemáticos envolvidos em sua criação. Finalmente, a execução em tempo real desses algorítmos depende sempre, em última instância, da capacidade de processamento dos circuitos eletrônicos. Quando comparamos as imagens geradas por MoH com MoH Allied Assault (uma expansão que saiu dois anos depois do primeiro) muitos dirão: “trata-se do mesmo jogo, apenas os gráficos estão melhores”. O “apenas” tende a mascarar ou subsumir o fato de que alterações nos gráficos, via de regra, vão influenciar a narrativa do jogo e a maneira como vamos encará-lo. É importante, nesse sentido, lembrar o verdadeiro fascínio que as imagens realistas exercem sobre os gamers[10].

O realismo da modelagem e movimentação dos personagens em MoH causou sensação em sua época e atingiu patamares de uma escada que Doom tinha inaugurado alguns anos antes e que todos os futuros jogos teriam que, no mínimo, igualar.

Considerações finais

Os jogos de guerra nascem com os games. Space Invaders, Tank, Lunan Lander, Moon Patrol, Atlantis, River Raid, Megamania e uma infinidade de outros marcaram as primeiras gerações de jogos para vídeo-games. Através do desenvolvimento dessa mídia, é possível ver como algumas das características que hoje determinam o gênero de guerra foram construídas no decorrer do tempo. Por outro lado, é interessante notar como isso se passa graças à confluência de três aspectos inseparáveis na narrativa dos games: gênero narrativo, interface e a tecnologia utilizada.

Vemos nas primeiras gerações a importância do aspecto de interface atuando na jogabilidade. Dada a precariedade dos recursos técnicos disponíveis, a representação das figuras e dos ambientes não tinha muita importância. Os esforços eram concentrados quase exclusivamente no sistema ludológico: não importa se o protagonista (representado por um pontinho) é um tanque ou uma lesma cósmica. Importa quão atraente o sistema se oferece na proposição de regras e dos limites de jogo.

Nas gerações seguintes, entretanto, a dimensão genérica foi crescendo em importância, uma vez que já era possível colocar mais informações disponíveis nas mídias de armazenamento (cartuchos, disquetes, cd-roms, etc). O que antes era um pontinho agora parece realmente um tanque. E mais: não um tanque qualquer, mas um Sherman. O que antes era uma mesa verde se transforma em uma vista isométrica de um teatro de guerra cheio de detalhes topológicos que influem no desenvolvimento do jogo. Cada objeto manipulável ganha diversas características a partir das quais desenvolve habilidades únicas. Decorre disso uma busca (que permanece até hoje uma das principais características do gênero) pela veracidade das referências: generais, compainhas e divisões históricas; batalhas resgatadas dos arquivos de departamentos militares; personagens fictícios que atuam em acontecimentos famosos e interagem com personagens históricos, muitas vezes atuando nas “brechas” não contadas pela História, ou mesmo (como é o caso de Panzer General II) oferecendo situações do tipo “que aconteceria se...”: “se os nazistas atacassem a América”, “se a RAF perdesse Batalha da Inglaterra”, “se Rommel não tivesse vencido na África”, etc.

Com o lançamento das grandes franquias da Segunda Guerra a partir de 1999, vemos o constante reforço no tocante ao papel das referências históricas. No entanto, essas referências vão se materializar de outras formas dentro dos jogos: o acréscimo de realismo permite a visualização dos cenários, equipamentos e uniformes como nunca permitido antes pela tecnologia. Reconhecem-se lugares específicos dentro dos cenários de guerra (a chancelaria, os ninhos de 64mm falsos em Point du Hoc, Pegasus Bridge, etc). Os sons dos armamentos são gravados a partir de disparos e explosões reais, a ponto de se poder identificar qual a arma ou calibre um companheiro ou inimigo está disparando. Por outro lado, ofertados a partir de um ponto de vista em primeira pessoa, alguns jogos oferecem uma visão totalmente caótica das batalhas, com soldados entrando em pânico, uma profusão de amigos e inimigos correndo para abrigos e balas voando para todos os lados. Antes de descobrir para que lado tem que ir, o gamer deve tentar se proteger. Qualquer segundo de hesitação pode (e é, na maioria das vezes) ser fatal. A caracterização dos cenários são tão realistas que fazem com que jogadores prefiram uma fase ou outra por causa da arquitetura, da beleza da flora ou de outros aspectos puramente estéticos que compõem o cenário. Toda essa beleza, mais a fidelidade da modelagem, a movimentação dos soldados e a simulação de física que jogos como MoH ou Call of Duty apresentam, permitem cut-scenes ou entradas de fase com longas animações mostrando conversas sobre namoradas, filhos e aventuras diversas entre paraquedistas que aguardam a ordem de salto. Nas últimas edições das duas franquias, você já reconhece seus companheiros de compainha, que tem nomes e vozes próprias, bem como hábitos peculiares nas batalhas. Essas estratégias parecem responder a uma busca crescente nos últimos anos, de dispositivos (narrativos, de interface e tecnológicos) que parecem ter um único objetivo: imergir o gamer dentro do universo proposto.

A dinâmica desses fsp resgatam, de certa forma, a necessidade de perceber que papel ocupa a performance e como ela se configura neles a partir de diferentes interfaces. Em jogos como Panzer General II o jogo é mais cerebral, estando a vitória do lado do jogador mais criterioso. Nos jogos da primeira geração, a performance assume um caráter mais físico: é a habilidade motora e a rapidez de raciocínio que permite levar à vitória. Característica que parece ser resgatada nos jogos atuais, onde de novo é a habilidade motora e a rapidez do raciocínio do jogador que lhe garante a vitória. Diferente dos jogos da primeira geração, no entanto, nestes últimos o jogador não pode ignorar a narrativa onde está inserido, que vai fornecer vários dos dispositivos que o farão avançar no plot. Imagino se a categorização de jogos proposta por Caillois em 1958 não daria condições para se perceberem as diferenças estratégicas nos tipos de performance que cada jogo exige.

Uma última consideração é a evidente aproximação entre games e cinema. Essa aproximação se dá não só pela narrativa – na configuração de diversas estratégias – mas mesmo entre os profissionais que produzem, dirigem e executam esses produtos, que transitam entre os estúdios e as software-houses. A cut-scene de abertura de MoH Pacific Assault tem quase dez minutos e sua edição, enquadramentos, movimentos de câmeras, vozes e principalmente roteiro parecem ter escapulido de algum estúdio cinematográfico. Em outro sentido, nas Lan-Houses, é comum encontrar jogadores assistindo juntos filmes como O Resgate do Soldado Rian, A Queda, Agonia e Glória, Band of Brothers entre outros. Paralelamente, é comum a adoção de nicknames referentes à personagens desses filmes.

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[1] Dado retirado do site em 03/12/2005.

[2] À esse respeito, é interessante notar movimentos que se apropriam da estética dos primeiros games, transformando-a em uma referência cult.

[3] Para maiores esclarecimentos sobre a corrente ludológica, ver o trabalho de Koster ou Jesper Jull.

[4] A estrutura turnos/unidades de características únicas já era padrão para a interface de RPGs (Role-playing games). Historicamente, no entanto, os RPGs sempre estiveram associados ao gênero fantasia.

[5] As vendas da franquia alcançaram 27 milhões de unidades, fazendo desse jogo o maior best-seller dos jogos de guerra jamais feitos. Dados retirados do site oficial da EA Enterteinment (), em abril de 2006.

[6] Em relação às cut scenes, quando MoH foi lançado, já existia uma tradição no uso destas no sentido de imergir o jogador no universo do jogo. A Blizzard,, com a franquia de Warcraft (1994), já tinha estabelecido um padrão de linguagem cuja principal referência era cinematográfica.

[7] Muitas das referências são facilmente encontradas em alguns dos mais famosos autores da Segunda Guerra, como Cornelius Ryan e Stephen Ambrose.

[8] Alguns deles foram Heretic, Duke Nukem, Hexxen, Quake, Half-Life (cuja engine se tornou a base de muitos fps), etc.

[9] Grand Theft Auto III, lançado em 2001, pela Rockstar North.

[10] Apresento uma pequena ilustração desse fato. Participo de um grupo de jogadores que costumava se reunir para jogar MoH pelo menos uma vez por semana. Há dois anos, no entanto, adotamos Call of Duty como jogo preferido. Há pouco tempo atrás, combinamos jogar em uma Lan House que habitualmente não freqüentamos. Chegando lá, descobrimos que apenas o MoH estava disponível. Não tendo opções, jogamos. Medal of Honor, jogo que antes era nossa referência de diversão em Lan House, provou-se intragável, uma vez que já havíamos experimentado o poder da engine de Call of Duty, e que se traduzia, entre outras coisas uma qualidade gráfica muito superior.

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2. Tela de jogo de Panzer General II

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