Ser negro no Brasil hoje - University of São Paulo

Folha de S?o Paulo, 07 de maio de 2000.

Ser negro no Brasil hoje

?tica enviesada da sociedade branca desvia enfrentamento do problema negro

Por Milton Santos

H? uma frequente indaga??o sobre como ? ser negro em outros lugares, forma de perguntar, tamb?m, se isso ? diferente de ser negro no Brasil. As perip?cias da vida levaram-nos a viver em quatro continentes, Europa, Am?ricas, ?frica e ?sia, seja como quase transeunte, isto ?, conferencista, seja como orador, na qualidade de professor e pesquisador. Desse modo, tivemos a experi?ncia de ser negro em diversos pa?ses e de constatar algumas das manifesta??es dos choques culturais correspondentes. Cada uma dessas viv?ncias foi diferente de qualquer outra, e todas elas diversas da pr?pria experi?ncia brasileira. As realidades n?o s?o as mesmas. Aqui, o fato de que o trabalho do negro tenha sido, desde os in?cios da hist?ria econ?mica, essencial ? manuten??o do bem-estar das classes dominantes deu-lhe um papel central na gesta??o e perpetua??o de uma ?tica conservadora e desigualit?ria. Os interesses cristalizados produziram convic??es escravocratas arraigadas e mant?m estere?tipos que ultrapassam os limites do simb?lico e t?m incid?ncia sobre os demais aspectos das rela??es sociais. Por isso, talvez ironicamente, a ascens?o, por menor que seja, dos negros na escala social sempre deu lugar a express?es veladas ou ostensivas de ressentimentos (paradoxalmente contra as v?timas). Ao mesmo tempo, a opini?o p?blica foi, por cinco s?culos, treinada para desdenhar e, mesmo, n?o tolerar manifesta??es de inconformidade, vistas como um injustific?vel complexo de inferioridade, j? que o Brasil, segundo a doutrina oficial, jamais acolhera nenhuma forma de discrimina??o ou preconceito.

500 anos de culpa

Agora, chega o ano 2000 e a necessidade de celebrar conjuntamente a constru??o unit?ria da na??o. Ent?o ? ao menos preciso renovar o discurso nacional racialista. Moral da hist?ria: 500 anos de culpa, 1 ano de desculpa. Mas as desculpas v?m apenas de um ator hist?rico do jogo do poder, a Igreja Cat?lica! O pr?prio presidente da Rep?blica considera-se quitado porque nomeou um bravo general negro para a sua Casa Militar e uma not?vel mulher

negra para a sua Casa Cultural. Ele se esqueceu de que falta nomear todos os negros para a grande Casa Brasileira. Por enquanto, para o ministro da Educa??o, basta que continuem a frequentar as piores escolas e, para o ministro da Justi?a, ? suficiente manter reservas negras como se criam reservas ind?genas. A quest?o n?o ? tratada eticamente. Faltam muitas coisas para ultrapassar o palavr?rio ret?rico e os gestos cerimoniais e alcan?ar uma a??o pol?tica consequente. Ou os negros dever?o esperar mais outro s?culo para obter o direito a uma participa??o plena na vida nacional? Que outras reflex?es podem ser feitas, quando se aproxima o anivers?rio da Aboli??o da Escravatura, uma dessas datas nas quais os negros brasileiros s?o autorizados a fazer, de forma p?blica, mas quase solit?ria, sua catarse anual?

Hipocrisia permanente

No caso do Brasil, a marca predominante ? a ambival?ncia com que a sociedade branca dominante reage, quando o tema ? a exist?ncia, no pa?s, de um problema negro. Essa equivoca??o ?, tamb?m, duplicidade e pode ser resumida no pensamento de autores como Florestan Fernandes e Octavio Ianni, para quem, entre n?s, feio n?o ? ter preconceito de cor, mas manifest?-lo. Desse modo, toda discuss?o ou enfrentamento do problema torna-se uma situa??o escorregadia, sobretudo quando o problema social e moral ? substitu?do por refer?ncias ao dicion?rio. Veja-se o tempo politicamente jogado fora nas discuss?es sem?nticas sobre o que ? preconceito, discrimina??o, racismo e quejandos, com os inevit?veis apelos ? compara??o com os norte-americanos e europeus. ?s vezes, at? parece que o essencial ? fugir ? quest?o verdadeira: ser negro no Brasil o que ?? Talvez seja esse um dos tra?os marcantes dessa problem?tica: a hipocrisia permanente, resultado de uma ordem racial cuja defini??o ?, desde a base, viciada. Ser negro no Brasil ? frequentemente ser objeto de um olhar vesgo e amb?guo. Essa ambiguidade marca a conviv?ncia cotidiana, influi sobre o debate acad?mico e o discurso individualmente repetido ?, tamb?m, utilizado por governos, partidos e institui??es. Tais refr?es cansativos tornam-se irritantes, sobretudo para os que nele se encontram como parte ativa, n?o apenas como testemunha. H?, sempre, o risco de cair na armadilha da emo??o desbragada e n?o tratar do assunto de maneira adequada e sist?mica.

Marcas vis?veis

Que fazer? Cremos que a discuss?o desse problema poderia partir de tr?s dados de base: a corporeidade, a individualidade e a cidadania. A corporeidade implica dados objetivos, ainda que sua interpreta??o possa ser subjetiva; a

individualidade inclui dados subjetivos, ainda que possa ser discutida objetivamente. Com a verdadeira cidadania, cada qual ? o igual de todos os outros e a for?a do indiv?duo, seja ele quem for, iguala-se ? for?a do Estado ou de outra qualquer forma de poder: a cidadania define-se teoricamente por franquias pol?ticas, de que se pode efetivamente dispor, acima e al?m da corporeidade e da individualidade, mas, na pr?tica brasileira, ela se exerce em fun??o da posi??o relativa de cada um na esfera social.

Costuma-se dizer que uma diferen?a entre os Estados Unidos e o Brasil ? que l? existe uma linha de cor e aqui n?o. Em si mesma, essa distin??o ? pouco mais do que aleg?rica, pois n?o podemos aqui inventar essa famosa linha de cor. Mas a verdade ? que, no caso brasileiro, o corpo da pessoa tamb?m se imp?e como uma marca vis?vel e ? frequente privilegiar a apar?ncia como condi??o primeira de objetiva??o e de julgamento, criando uma linha demarcat?ria, que identifica e separa, a despeito das pretens?es de individualidade e de cidadania do outro. Ent?o, a pr?pria subjetividade e a dos demais esbarram no dado ostensivo da corporeidade cuja avalia??o, no entanto, ? preconceituosa.

A individualidade ? uma conquista demorada e sofrida, formada de heran?as e aquisi??es culturais, de atitudes aprendidas e inventadas e de formas de agir e de reagir, uma constru??o que, ao mesmo tempo, ? social, emocional e intelectual, mas constitui um patrim?nio privado, cujo valor intr?nseco n?o muda a avalia??o extr?nseca, nem a valora??o objetiva da pessoa, diante de outro olhar. No Brasil, onde a cidadania ?, geralmente, mutilada, o caso dos negros ? emblem?tico. Os interesses cristalizados, que produziram convic??es escravocratas arraigadas, mant?m os estere?tipos, que n?o ficam no limite do simb?lico, incidindo sobre os demais aspectos das rela??es sociais. Na esfera p?blica, o corpo acaba por ter um peso maior do que o esp?rito na forma??o da socialidade e da sociabilidade.

Pe?o desculpas pela deriva autobiogr?fica. Mas quantas vezes tive, sobretudo neste ano de comemora??es, de vigorosamente recusar a participa??o em atos p?blicos e programas de m?dia ao sentir que o objetivo do produtor de eventos era a utiliza??o do meu corpo como negro -imagem f?cil- e n?o as minhas aquisi??es intelectuais, ap?s uma vida longa e produtiva. Sem d?vida, o homem ? o seu corpo, a sua consci?ncia, a sua socialidade, o que inclui sua cidadania. Mas a conquista, por cada um, da consci?ncia n?o suprime a realidade social de seu corpo nem lhe amplia a efetividade da cidadania.

Talvez seja essa uma das raz?es pelas quais, no Brasil, o debate sobre os negros ? prisioneiro de uma ?tica enviesada. E esta seria mais uma manifesta??o da ambiguidade a que j? nos referimos, cuja primeira consequ?ncia ? esvaziar o debate de sua gravidade e de seu conte?do nacional.

Olhar enviesado

Enfrentar a quest?o seria, ent?o, em primeiro lugar, criar a possibilidade de reequacion?-la diante da opini?o, e aqui entra o papel da escola e, tamb?m, certamente, muito mais, o papel frequentemente negativo da m?dia, conduzida a tudo transformar em "faits-divers", em lugar de aprofundar as an?lises. A coisa fica pior com a prefer?ncia atual pelos chamados temas de comportamento, o que limita, ainda mais, o enfrentamento do tema no seu ?mago. E h?, tamb?m, a displic?ncia deliberada dos governos e partidos, no geral desinteressados do problema, tratado muito mais em termos eleitorais que propriamente em termos pol?ticos. Desse modo, o assunto ? empurrado para um amanh? que nunca chega.

Ser negro no Brasil ?, pois, com frequ?ncia, ser objeto de um olhar enviesado. A chamada boa sociedade parece considerar que h? um lugar predeterminado, l? em baixo, para os negros e assim tranquilamente se comporta. Logo, tanto ? inc?modo haver permanecido na base da pir?mide social quanto haver "subido na vida".

Pode-se dizer, como fazem os que se deliciam com jogos de palavras, que aqui n?o h? racismo (? moda sul-africana ou americana) ou preconceito ou discrimina??o, mas n?o se pode esconder que h? diferen?as sociais e econ?micas estruturais e seculares, para as quais n?o se buscam rem?dios. A naturalidade com que os respons?veis encaram tais situa??es ? indecente, mas raramente ? adjetivada dessa maneira. Trata-se, na realidade, de uma forma do apartheid ? brasileira, contra a qual ? urgente reagir se realmente desejamos integrar a sociedade brasileira de modo que, num futuro pr?ximo, ser negro no Brasil seja, tamb?m, ser plenamente brasileiro no Brasil.

Milton Santos ? ge?grafo, professor em?rito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ci?ncias Humanas da USP e autor de, entre outros, "Espa?o do Cidad?o" (Ed. Nobel), "Pensando o Espa?o do Homem" (Ed. Hucitec). Ele escreve regularmente na se??o "Brasil 501 d.C.", do Mais!.

Nota: Milton Santos nasceu em 1926 e morreu em 2001. Quando escreveu este artigo, ele estava com 74 anos de idade.

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