“Banditismo à solta”: jornais cariocas, policiamento na ...

"Banditismo ? solta": jornais cariocas, policiamento na cidade do Rio de Janeiro, pol?cia, criminosos e pol?ticos (1900-1920)

ANA VASCONCELOS OTTONI *

" Tiros: o banditismo ? solta". " Para?so dos ladr?es: assaltos sobre assaltos. Nas barbas da pol?cia." " A cidade saqueada: o Rio de Janeiro continua a n?o ter pol?cia" (Gazeta de Not?cias, 3/11/1909, p.3; Jornal do Brasil, 6/07/1911, p.6 ; Correio da Manh?, 25/02/1913, p.2). T?tulos e subt?tulos de not?cias de crimes como esses eram estampados com freq??ncia nas p?ginas da Gazeta de Not?cias, Jornal do Brasil e Correio da Manh? no in?cio do s?culo XX. Nestas not?cias, os rep?rteres policiais frequentemente assinalavam que o Rio de Janeiro, Capital da Rep?blica, estava sendo infestado por ladr?es, salteadores e criminosos que efetivavam seus crimes de forma livre e impune, a qualquer hora do dia, devido ? falta de policiamento. Segundo os peri?dicos e seus rep?rteres , a aus?ncia de vigil?ncia policial no que tange ? criminalidade se devia ao suposto relacionamento da pol?cia com os criminosos e os pol?ticos da ?poca (Correio da Manh?, 9/11/1901, p.2 Jornal do Brasil, 8/11/1915,p.7 Gazeta de Not?cias, 25/10/1909, p. 2). Os cronistas alegavam que a pol?cia, por conveni?ncias pol?ticas ou por medo de perder seus empregos, protegia, ? mando dos chefes pol?ticos, os bandidos e gatunos, tidos como cabos eleitorais de tais chefes, deixando-os livres e impunes para praticar diversos crimes pela cidade. Al?m disso, veiculava-se a ideia de que a pol?cia negociava a liberdade dos ladr?es, pois ao deix?los soltos, recebia dos mesmos dinheiro e com eles dividiam os roubos ou recebia informa??es dos lar?pios sobre onde estaria o roubo.

Vale notar que os rep?rteres n?o apenas registravam tais not?cias sobre o suposto relacionamento da pol?cia com os bandidos e pol?ticos, como tamb?m procuravam intervir politicamente na sociedade, j? que faziam muitas vezes cr?ticas ? pol?cia e a pol?tica, bem como cobran?as ?s for?as policiais para que controlassem e combatessem a criminalidade. Afinal, os cronistas buscavam- como ressaltou Elias Palti (2007) ao se

* Doutoranda do Programa de P?s-Gradua??o em Hist?ria da Universidade Federal Fluminense (PPGH/UFF). Bolsista da CAPES. Mestre pelo Programa de P?s-Gradua??o em Hist?ria Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS/ UFRJ). Bacharel em Hist?ria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Anais do XXVI Simp?sio Nacional de Hist?ria ? ANPUH ? S?o Paulo, julho 2011

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referir ao jornalismo na Am?rica Latina no s?culo XIX- n?o apenas "representar" a opini?o p?blica, como tamb?m constitu?-la como tal. Assim, a pesquisa constata que os jornalistas policiais faziam de suas not?cias instrumentos de a??o p?blica e pol?tica. 1

Este trabalho procura analisar como os jornais cariocas e seus rep?rteres policiais retratavam a quest?o do policiamento no que tange ? criminalidade na cidade do Rio de Janeiro, durante 1900-1920, em conson?ncia com o suposto relacionamento da pol?cia com os criminosos e pol?ticos da ?poca. Investiga tamb?m como a imprensa articulava a discuss?o sobre tal relacionamento e o policiamento, atrav?s das posi??es dos diferentes jornais em rela??o ?s candidaturas presidenciais de marechal Hermes da Fonseca e Rui Barbosa na campanha eleitoral de 1909 e 1910.

Selecionou-se como corpus documental do estudo os jornais "populares" Correio da Manh? , Jornal do Brasil e Gazeta de Not?cias por serem uns dos principais peri?dicos da cidade que divulgavam com vigor as not?cias policiais e de crimes, chegando por vezes a ocupar a primeira p?gina do jornal, com t?tulos muitas vezes redigidos em letras grandes e em negrito para chamar aten??o de seus leitores. Estas not?cias come?aram a ocupar um amplo espa?o nas p?ginas dos jornais na passagem do s?culo XIX para o XX , ou seja, em uma ?poca na qual a imprensa no Brasil transformava-se em empresa capitalista (GUIMAR?ES, 2009: 229). As tem?ticas criminais e policiais ganhavam n?o apenas mais espa?os nas folhas , mas um espa?o especializado, organizado racionalmente com o intuito de criar e atender a uma demanda do mercado em forma??o (COUTINHO, 2006: 43).

A partir dos anos de 1900 as publica??es de crimes se expandiram ainda mais na imprensa . Isso porque foi a partir deste per?odo, como bem exp?s M?nica Velloso (2004: 22), que os rep?rteres passaram a se deslocar do pr?dio da reda??o para as ruas em busca dos acontecimentos e dos personagens criminais.

Mas quem eram os rep?rteres policiais que escreviam essas not?cias? Tal quest?o ? dif?cil de ser respondida na medida em que estes jornalistas n?o assinavam suas reportagens. Contudo, atrav?s da obra de Eduardo Coutinho (2006) sobre as cr?nicas

1 Ressalta-se que nossa hip?tese se inspira em um dos cap?tulos da tese de doutorado de Carolina Dantas (2007) sobre intelectuais na Primeira Rep?blica, no qual a autora argumenta que tais setores da sociedade utilizaram seus textos publicados nos jornais do Rio de Janeiro no in?cio do s?culo XX como instrumentos de a??o pol?tica e p?blica, j? que defenderam, por exemplo, a??es objetivas negligenciadas pelo Estado e demandas n?o cumpridas pelos sucessivos governos republicanos vigentes at? ent?o, como a implementa??o da educa??o prim?ria em massa.

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carnavalescas da Primeira Rep?blica, o autor nos oferece pistas sobre quem seriam os rep?rteres de crimes. Ao utilizar os jornais "populares" do Rio de Janeiro -entre os quais o Jornal do Brasil, Correio da Manh? e a Gazeta de Not?cias- Coutinho exp?s que os jornalistas dedicados a assuntos populares-"cronistas carnavalescos, policiais e esportivos- compunham o que se poderia chamar de baixo clero do jornal, um segundo escal?o de rep?rteres sem t?tulos, status e diplomas" (COUTINHO, 2006: 134). Segundo o autor, eram jornalistas que n?o pertenciam ? elite intelectual e econ?mica da ?poca. Pelo estudo de Coutinho (2006), identificamos que alguns rep?rteres policiais eram cronistas carnavalescos e possu?am em geral uma origem humilde, a exemplo do rep?rter Francisco Guimar?es (1877-1947) - conhecido pelo pseud?nimo Vagalume -, jornalista do Jornal do Brasil, mulato e filho de pais pobres.

Apesar de n?o terem tido forma??o acad?mica de n?vel superior, os jornalistas policiais pareciam conhecer os problemas relativos ? seguran?a p?blica na cidade assim como as queixas e reclama??es do povo com rela??o a esta quest?o2 . Possivelmente adquiriram tal conhecimento a partir de suas pr?prias viv?ncias cotidianas como cidad?os e de seus contatos di?rios com os populares nas ruas, atrav?s das entrevistas que faziam com diferentes tipos de personagens envolvidos nos crimes (v?timas, criminosos, testemunhas etc) e dos m?ltiplos relatos que ouviam ao transitarem pelos diversos espa?os da cidade. As informa??es obtidas eram guardadas na mem?ria ou registradas em apontamentos ligeiros (DIDIER, 2005: 71).

A principal fonte de informa??o do cronista policial era a pol?cia, vide pela pr?pria denomina??o do termo "rep?rter policial" (RIFIOTIS et al., 1997). O seu acesso ?s informa??es confidenciais e aos suspeitos dependiam de suas boas rela??es com a pol?cia e de favores rec?procos ( KALIFA, 1995: 102). Mas o relacionamento entre o rep?rter e a pol?cia parecia ser marcado muitas vezes por conflitos de interesse. Isso porque os cronistas alegavam que muitas vezes a pol?cia n?o fornecia aos jornais as not?cias de crimes ocorridos nas ruas do Rio de Janeiro, a exemplo da seguinte mat?ria da Gazeta de Not?cias: " a pol?cia (...) deixa que os ladr?es ajam ? vontade, e quando se d?o os roubos procura encobri-los da reportagem, para que os jornais n?o os noticiem !"( Gazeta de Not?cias, 22/03/1917,p.5). Not?cias como essa indicam que os jornalistas

2 Sobre tais reclama??es e queixas na coluna "Queixas do povo" do Jornal do Brasil, ver Eduardo Silva (1988).

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ficavam indignados com o fato da pol?cia n?o dar informa??es de crimes para eles, o que certamente prejudicaria as vendas dos jornais. Por seu turno, a pol?cia alegava que tinha que manter muitas vezes o sigilo de informa??es para dar andamento ?s suas investiga??es e n?o alarmar ? popula??o. Neste sentido, os interesses dos rep?rteres e da pol?cia pareciam ser muitas vezes conflitantes, o que pode explicar o motivo pelo qual os primeiros frequentemente responsabilizavam as for?as policiais pelo crescimento da criminalidade no Rio de Janeiro.

Em todo caso, a imprensa e seus rep?rteres procuravam destacar que um dos motivos da falta de policiamento na cidade devia-se, como j? assinalamos, ao suposto relacionamento da pol?cia com os ladr?es e criminosos. Havia nos jornais cronistas que acreditavam que a pol?cia deixava a vida e propriedade da popula??o entregue ?s amea?as freq?entes dos bandidos, pois temia aproximar-se dos criminosos, como mostra a seguinte not?cia sobre as ocorr?ncias de ladroagem num morro do Rio de Janeiro:

Quem tem a infelicidade de morar ali pelas proximidades do morro do Senado, dorme em sobressalto, quando dorme, porque tem constantemente amea?adas a vida e a propriedade. H? dias chamamos a aten??o da pol?cia para esses lugares perigosos(...). Entretanto, os gatunos continuam imp?vidos e desassombrados a atacar as casas vizinhas, ? noite, (...) onde se escondem nesse morro, e da qual a pol?cia tem medo de acercar-se. O p?blico j? vai trocando o nome de morro do Senado pelo de morro dos ladr?es (Correio da Manh?, 9/11/1901, p.2).

Segundo os rep?rteres, o temor que a pol?cia tinha dos bandidos se devia ao alto grau de periculosidade dos criminosos e/ou porque estes ?ltimos eram protegidos de pol?ticos influentes. Alegava-se que tais pol?ticos os protegiam, pois, ao buscarem conquistar votos a todo custo por meio das fraudes eleitorais, contratavam os bandidos da cidade para provocar "desordens" em ?pocas de elei??o. (OTTONI, 2010: 11). Segundo um jornalista do Correio da Manh?:

O (bandido) " Camisa Preta" (...) foi um desordeiro terr?vel, um fac?nora, um cabo eleitoral que a pol?cia temia. (...) "Camisa Preta" era um cabo eleitoral de primeir?ssima ordem e tinha tamb?m o seu chefe, que nas elei??es lhe enchia o bolso de dinheiro para o servi?o no sufr?gio popular (Correio da Manh?, 13/07/1912,p.5).

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Em meio a uma ?poca na qual os cargos na pol?cia eram preenchidos por elementos de confian?a do governo, os cronistas e articulistas dos jornais assinalavam que o temor dos policiais em prender os ladr?es e bandidos da cidade, tidos como "protegidos de chefes pol?ticos" influentes, se devia ao medo de perderem os seus empregos que "lhes davam subsist?ncia". O redator-chefe do Correio da Manh? , o advogado Gil Vidal era um dos jornalistas da ?poca que defendiam tal ideia.

Chegamos ? degrada??o da situa??o de que o agente de pol?cia e o guarda civil s?o os que temem o malfeitor, e n?o este aqueles. Para o agente ou guarda civil, h? indiv?duos de maus instintos, empedernidos no v?cio, criminosos habituais, que s?o intang?veis. N?o ousam tocar-lhes porque conhecem a prote??o de que eles gozam e de que, com raz?o, se jactam arrogantemente. (...) Ter?amos por n?s o testemunho desses pr?prios agentes e guardas, se coitados, lhes fosse permitido, sem risco de perder o emprego que lhes d? os meios de subsist?ncia, dizer o que sentem, o que presenciam; o que s?o obrigados a fazer, em obedi?ncia a sugest?es e ordens, que lhes n?o ? l?cito, sequer, discutir quanto mais contrariar ( Correio da Manh?, 7/11/1909,p.3 ).

Mas havia jornalistas que repeliam a ideia de que a pol?cia temia os criminosos, j? que, para eles, um dos fatores da falta de policiamento na cidade se devia as "confabula??es" que a pol?cia fazia com os ladr?es. Sobre tal assertiva, um rep?rter do Jornal do Brasil assinalava:

Decididamente o Rio de Janeiro ? o verdadeiro Para?so dos ladr?es. ? o ?nico lugar onde eles agem mais audaciosamente livre e impunemente. (...) A pol?cia sabe de tudo, conhece perfeitamente os malfeitores, mas ningu?m sabe se cruza os bra?os por conveni?ncia ou medo. A ?ltima hip?tese deve ser repelida. N?o ? cr?vel que a pol?cia tenha medo dos ladr?es, se com eles tem entrado em confabula??es vergonhosas e que n?o podem continuar para a moralidade de uma administra??o e a bem dos interesses da justi?a (Jornal do Brasil, 8/11/1915, p. 7).

Como j? mencionado, na perspectiva dos cronistas, a pol?cia deixava os gatunos livres e impunes, pois em troca da liberdade dos mesmos, recebia dos ladr?es dinheiro e com eles dividiam os roubos ( Correio da Manh?, 26/11/1915,p.3). Essas supostas rela??es existentes entre gatunos e agentes policiais seriam marcadas pelo o que os rep?rteres chamavam de "negocia??o da liberdade alheia".

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