Mapas indígenas - ANPUH



A cartografia indígena no Rio da Prata Colonial.

Artur H. F. Barcelos Universidade Federal do Rio Grande – FURG; PPGH- Universidade Federal de Pelotas – UFPEL

Que alguns jesuítas enviados à América produziram uma grande quantidades de mapas já não configura uma informação original. Desde os trabalhos pioneiros de Guillermo Furlong (Furlong,1936) e Ernest Burrus (Burrus, 1964), passando por referências em outros autores, esta temática foi objeto de diversos trabalhos. Ainda que, entretanto, não se haja retomado a questão com aportes mais contemporâneos. Mesmo entre aqueles trabalhos dedicados as conexões entre a Companhia de Jesus e o desenvolvimento das ciências nos séculos XVII, XVIII e XIX (Bermeo, 2005). Em trabalho anterior, tratei de analisar parte da cartografia jesuítica no rol de uma investigação acerca das ações jesuíticas e seus impactos no espaço americano (Barcelos, 2006a). Na ocasião, deparei-me com a possibilidade de que, em determinados contextos de missionalização na América, os indígenas com os quais os jesuítas tiveram contato tivessem não apenas desenvolvido o saber cartográfico, como lançado mão do mesmo quando a situação assim o exigisse. Isto significava reconhecer, em primeiro lugar, que a razão gráfica havia operado não apenas um papel de mediação para a inserção dos jesuítas entre os indígenas, mas que também teria servido de meio para as manifestações dos indígenas no contexto das missões religiosas. A escrita, como ramo do grafismo, desenvolvida pelos indígenas Guarani da antiga Província jesuítica do Paraguai, foi objeto de estudo recente (Neumann,2005), o qual demonstrou as apropriações do saber letrado feitas pelos índios reduzidos pelos jesuítas. O que proponho a seguir é uma breve discussão sobre a possibilidade da ocorrência do saber cartográfico entre os indígenas no período colonial, exemplificando através de uma aproximação com a cartografia produzida por indígenas Guarani, especificamente no século XVIII.

A representação cartográfica do espaço pode não ter sido uma novidade absoluta para os indígenas da América, sobretudo para algumas sociedades do mundo andino ou mesoamericano. Porém, para as sociedades ágrafas do restante do continente, o convívio com o saber cartográfico europeu foi, seguramente, mais um elemento de alteração em suas concepções espaciais. Desafortunadamente, o processo de conquista destruiu quase por completo as evidências de um conhecimento cartográfico indígena. Há indícios de mapas realizados por índios durante os primeiros contatos com os europeus. Contudo, as provas empíricas são por demais fragmentárias. Seguramente, o auxílio prestado a alguns europeus incluía informações geográficas, vitais para a sobrevivência destes (ROMANO, 1989). É possível que estas informações fossem repassadas de forma gráfica, mas, provavelmente, dar-se-iam sobre bases perecíveis, como areia, peles de animais ou madeira (Harley, 1995:92). Apesar da ausência de uma materialidade que registre o saber geográfico indígena, este pode estar oculto nos mapas europeus. As representações de regiões interiores, por exemplo, onde rios e lagos são muito simétricos (retos, circulares, quadrados), indicaria que foram acrescentados com base em informações indígenas e não pela observação direta, como aponta Harley:

“En identifiant ainsi des délimitations qui intègrent les concepts indiens de distance et de topographie, et en établissant leurs sources culturelles et écologiques, on peut reconstruire en partie la contribution des Indiens à l’image cartographique de l’Amérique et vérifier la façon dont les cartographes européens utilisaient ce type de savoir.”(Harley,1995:97)

O que ainda persiste como uma lacuna é o conhecimento das formas indígenas de representação gráfica dos elementos do espaço. Por outro caminho, pode-se pensar no amadurecimento de um conhecimento indígena sobre o saber cartográfico europeu. O intercâmbio de informações é sempre uma via de mão dupla e, se o conhecimento geográfico indígena foi fundamental para a exploração e a representação espacial da América, também pode ter ensejado a apreensão do registro cartográfico europeu pelas sociedades nativas. As explorações geográficas da América, incluídas as jesuíticas, contaram, invariavelmente, com a presença de guias e intérpretes. Seu conhecimento está implícito nas rotas trilhadas, novas ou tradicionais, na toponímia em vozes indígenas, nas descrições da fauna, da flora e do mundo mineral americano. Ainda que muitos mapas da América tenham sido elaborados em centros urbanos coloniais ou na Europa, outros devem ter sido produzidos em campo, na forma de croquis e esboços. Certamente, muitos indígenas participaram ativamente destes processos. Em alguns casos, podem ter sido inclusive incentivados a uma iniciação ao fazer cartográfico.

Em que pese a tradição jesuítica de restrição do saber repassado aos indígenas com os quais tiveram contato, isto não impediu que formas gráficas de comunicação fossem apropriadas, sobretudo em convivências duradouras como foram as reduções. Entre os guaranis, a escrita foi sendo paulatinamente agregada ao cotidiano através das práticas administrativas dos Cabildos, dos registros contábeis, dos textos litúrgicos e, até mesmo, através da imprensa, como no caso das reduções de Nuestra Señora de Loreto, Santa María la Mayor ou San Francisco Xavier. Estudos recentes têm demonstrado a importância da razão gráfica, sobretudo a escrita, e o uso deste saber por parte dos guaranis das reduções jesuíticas. Se, como aponta Neumann, a escrita foi sendo apreendida gradualmente pelos guaranis até converter-se em um instrumento de suas práticas, o mesmo poderia ser pensado para as representações gráficas do espaço, mormente diante da grande produção cartográfica dos jesuítas. Porém, as evidências de que os guaranis, ou qualquer outra etnia indígena reduzida pelos jesuítas tenham produzido mapas são quase nulas.

Uma vez mais, como no caso de muitas referências a mapas indígenas, as informações são muito mais textuais do que gráficas. O padre Peramas indicava que o índio Melchor, autor de uma história da redução de Corpus Christi,

“... habia enriquecido su obra con un mapa trabajado por él, en el que no estaban puestos los grados de longitud y latitud, que él desconocia, pero en el mismo estaban consignados en toda exactitud los montes, los arroyos y los rios, contenidos dentro de los lindes del pueblo.” (Peramas, 1962:595)

Infelizmente, nem o texto nem o mapa de Melchor foram dados a conhecer. Outro mapa comumente atribuído a um indígena foi apresentado durante as investigações sobre a existência de supostas minas de ouro e prata no território das reduções de guaranis. No final do século XVII, um índio chamado Domingo denunciou este fato às autoridades espanholas. O Ouvidor D. Juan Blasquez de Valverde foi nomeado para investigar e visitou o local, na região da redução de Concepción, não encontrando nada que referendasse a denúncia. Domingo confessou a mentira após fugir e ser capturado em Yapeyú. Dobrizhoffer incluiu este episódio em sua História de los Abipones:

En una ocasión, a fin de cumplir no solo los deseos de los Jesuitas sino también su pedido, la Corte de Madrid envió unos hombres que debían investigar diligentemente todas las señas de minería. A estos exploradores fue agregado en cierta ciudad un Guaraní escapado, un hombre de una conciencia liviana y fe venal. Este bribón, captado por regalos y promesas de parte de un enemigo de los Jesuitas, declaró que las minas de oro estaban en el contorno de la localidad de Concepción a orillas del Uruguay; que él conocía muy bien tal lugar, pero que este estaba pertrechado cual una fortaleza con trincheras, cañones y una numerosa guarnición. Hacia allá partió la expedición. La compañía de viajeros se hallaba aún a pocas leguas de las ponderadas minas de oro, cuando a la noche huyó el falsario indio, en su temor ante el castigo que le iba acarrear la mentira, ya próxima a ser descubierta. En la localidad Yapeyú nuestro mismo misionero lo hizo prender, atar y bajo suficiente custodia, entregarlo leal y rápidamente a los Españoles de quienes había escapado. Quedó manifiesto ahora el engaño de las minas de oro inventadas y de las fortificaciones. La fábula y la calumnia quedaron desautorizadas.(Dobrizhoffer, 1967-69:262)

Fig. 1 Mapa de la Laguna Brava y de los Ríos Uruguay, Paraná y Paraguay, con diseño de las fortificaciones y lugar de las minas de oro que según declaración de un indio llamado Domingo, poseían los jesuitas en aquellos lugares.

Fig. 2. Mapa de la Laguna Brava y de los Ríos Uruguay, Paraná y Paraguay, con diseño de las fortificaciones y lugar de las minas de oro que según declaración de un indio llamado Domingo, poseían los jesuitas en aquellos lugares.[1]

Furlong, em seu catálogo, identifica um mapa com o seguinte título: Mapa Compuesto por un indio guarani y en el que se consignan las estancias de algunas reducciones. (Furlong,1936:42) O referido mapa representa uma área entre os rios Paraná e Tebiquari, incluindo alguns afluentes destes. Nele, estão registradas as reduções de Itapuã, Trinidad e Jesús, além das reduções franciscanas de Yuti e Caazapá. Outros elementos indicados são as chácaras antigas dos índios de Itapuã. Os ervais são identificados como “yerbales de los IHS”, mas entre os rios Piraiubi e Pirapo estão os “yerbales de Caa Cay”. Identifica um caminho como sendo o “Camino de los de Yuti a los yerbales”. Embora as condições da cópia oferecida por Furlong sejam precárias, é possível visualizar alguns caminhos entre uma redução e outra, e destas para diferentes pontos do mapa, bem como as capelas ao longo dos caminhos. Não há qualquer indicação de longitudes ou latitudes, apenas um quadriculamento, embora a cópia possa estar incompleta, como indicam as marcas em suas extremidades.

Furlong procurou identificar uma autoria indígena para este mapa através de indícios, no mínimo, duvidosos. Baseava-se no fato de que a caligrafia seria “típica” dos índios das reduções, além de o mapa incluir frases em idioma guarani. Quanto à caligrafia, uma revisão da cartografia jesuítica permitiria identificar vários mapas como sendo de autoria de guaranis. Como saber se, tal como ocorria com a escrita, alguns mapas não foram realizados ou copiados por guaranis, sob orientação dos jesuítas? O fato de haver frases em guarani não pode servir de indício para uma autoria indígena, pois inúmeros outros mapas, seguramente elaborados por jesuítas, também continham expressões em guarani. Ainda segundo este autor, o mapa conteria a indicação dos locais de morte dos padres Joseph Arce e Hipólito Dactilo. Porém, tais informações não constam na cópia publicada no catálogo. Este mapa não foi amplamente divulgado e, conforme Furlong, fazia parte da coleção particular de Alejo B. Gonzalo Garaño, o qual foi diretor do Museu Histórico Nacional da Argentina e autor de um trabalho clássico sobre a iconografia argentina.

Fig. 3. Mapa Compuesto por un indio guarani y en el que se consignan las estancias de algunas reducciones.

Outro mapa indicado por Furlong é o Plano o Mapa del Pueblo de la Real Corona Nombrado Santo Thomé (Furlong,1936:122) Trata-se de um mapa produzido pelo Cabildo de Santo Thomé após o período jesuítico. A legenda que acompanha o título indica que o objetivo do mapa era identificar a jurisdição de Santo Thomé, que passara à administração civil espanhola após 1767. Os cabildantes assinam a informação, a qual leva a data de 1784. Neste caso, pode-se creditar o mapa aos guaranis do Cabildo de Santo Thomé. É possível estabelecer uma relação entre esta peça cartográfica e o contexto do reordenamento espacial e jurisdicional promovidas por Francisco de Paula Buicarelli y Ursúa, Governador da Província do Río da Prata entre 1776 e 1770 e por Juan José de Vértiz y Salacedo, sucessor de Bucarelli e posteriormente Vice-Rei do Rio da Prata entre 1778 e 1784 (Maeder, 1992). As políticas administrativas de ambos visavam reordenar a jurisdição das missões que haviam sido administradas pelos jesuítas até 1767. Isto implicava em um reconhecimento prévio dos limites territoriais de cada redução, o que procedeu Vértiz ao solicitar “...informe y encomendar al coronel Marcos José de Larrazábal el empadronamiento de los indios, un informe completo sobre ese distrito y las medidas conducentes para su mejor gobierno” (Maeder, 1992:27)

Este plano administrativo levou os cabildos indígenas das antigas reduções a preparar prospectos onde davam conta de seus domínios. É aqui que o saber cartográfico desenvolvido junto aos jesuítas pode ter cobrado valor. A documentação produzida pelos cabildos se fez acompanhar de mapas. Contudo, ainda há poucos estudos sobre a administração destes povoados na fase pós-jesuítica e torna-se difícil saber quanto interferiram os representantes espanhóis nomeados para dirigir os povoados. O que não impede uma interpretação dos mapas como parte da documentação gerada no contexto em que os cabildos indígenas ainda estavam ativos.

No mapa em questão, do povoado de Santo Tomé, a representação da hidrografia, com evidentes distorções, é o principal elemento, que inclui também o núcleo dos povoados de San Borja e La Cruz, além de outras localidades menores. Estas podem indicar postos ou capelas, e algumas estão denominadas como San Marcos, San Antonio, San Gabriel, San Pedro, etc. A toponímia dos rios, arroios e outros locais está grafada em guarani e há caminhos que partem dos núcleos urbanos ou das margens dos rios, levando a diferentes direções. A orientação do mapa não está indicada, mas se encontra invertida, no sentido anti-horário, não havendo indicação de latitudes e longitudes.

Fig. 4. Plano o Mapa del Pueblo de la Real Corona Nombrado Santo Thomé, 1784.

Além de responder as exigências de Bucarelli e Vértiz com respeito a seus domínios, os mapas gerados pelos cabildos indígenas serviam também como provas em processos relativos a pleitos territoriais entre os povoados de guaranis. Estes litígios se acirraram no contexto da reorganização administrativa pós-jesuítica. Contudo, alguns pleitos remontavam ao final do século XVII e a primeira metade do século XVIII. Em 12 de julho de 1688, o cabildo de Yapeyú, através do Corregidor e seus Caciques fizeram uma doação para a redução de La Cruz de terras localizadas na margem oriental do Rio Uruguai. A doação foi oficializada pelo Provincial Thomas Donvidas. Nestas terras, La Cruz instalou a estância de Itaqui, com gado oriundo da Vacaria do Mar. Anos mais tarde, o Superior Simón de Leon tornou sem efeito esta doação. Abriu-se, então, um pleito em nome de La Cruz e, em 27 de Janeiro de 1700, a redução recuperou a posse da estância (Porto, 1954:325).

Das terras de La Cruz, também chamada La Asumpción de Nuestra Señora del Mborore, há o registro detalhado com todos marcadores de términos e linderos. Em 1688, estas possessões foram confirmadas por documento oficial, e, através do mesmo, é possível verificar a forma textual utilizada no final do século XVII para descrever os limites territoriais da ampla área de uma redução. Durante o processo de reorganização territorial e administrativa do período pós-jesuítico, o povoado de La Cruz também apresentou seus limites e domínios. Com base nos documentos de posse anteriores, sobretudo através da confirmação de seu território feita em 1688, os cabildantes de La Cruz puderam apresentar uma descrição por escrito, a qual se fez acompanhar de um mapa, cuja data é mesma daquele referido para Santo Tomé, a saber, 1784. Como pode ser visto na transcrição a seguir e no mapa que a acompanha, a delimitação buscava precisar com exatidão uma linha de demarcação que acompanhava acidentes geográficos, como rios, arroios e pântanos[2].

“Al Pe.Thomas Donbidas de la Comp.a de Jesus y su Prov.l en estas Prov.as del Paraguay, Tucuman y Rio de la Plata a peticion y ruego del Correg.or y Cavildo y demas casiques de este Pueblo de la Assunpcion de ñra S.ra del Mborore, y su cura al P.e Domingo Bodileu [Bodiler? Bodiles?] y al Prov.l Thomas Donvidas, y P.e superior Alonso del Castillo, y P.e Juan de Torres que todos con instancias me anpedido [han pedido] les mendedar [mande dar] títulos de las tierras, q.e desde q.e se fundo este dicho pueblo en el sitio em q.e el presente esta, porteen para mas justificacion de su derecho, y de que legitim.te las posen, para que en ningun tiempo nadie les moleste ni inquiete su pacifica posecion digo, y declaro por términos de la estancia de la otra banda del Uruguay donde tienen sus vacas y se llama el Ytaqui comenzando el termino de dicha estancia desde la otra banda del Uruguay corre havia el orientale y llega hasya el A. Ybipira miri, q.e es el ultimo termino de lo largita, y por un Cierrillo costado desde el B. Ytaembe q.e es la cabezada del C. Mbutuî vine [viene] corriendo siempre dicho mbutuî por la otra banda hasta entrar al Uruguay dicho Mbutuî, corriendo al Uruguay arriba hacia de S.to Thomé llega el ultimo termino de lo Largo, D. al Caai mirî de esta vanda, y corriendo dicho Caai mirî arriba hasta, E. el Yaqueri y pasando dicho Aguapey F. el Yaqueri saliendo un vaquito del Cupecandu, se va corriendo hacia el Sur desde, G. el Chaitaqua que es un Caa pau H. y el Yapo catindi, que es un Caa pau desde donde comienza el pântano grande I. del Guabirabi, y corre hasta K. el Ararati q.e es un baxo q.e divide las chacras del Yapeiu de las deste Pueblo, y viene hasta llegar L. al Mbaeati q.e es um arroyo q.e entra al Uruguay y todas las tierras que caen de esta vanda de dicho arroyo hasta el Uruguay son las tierras de este Pueblo menos el xembia ha q.e esto es de los del Yapeyu, y asi el termino fixo es desde la cavezada del Mbaeati corriendo entra al Uruguay y pasando [ilegível] um baxio de pantanillo M. del Pari riti se va corriendo hasta N. el Tembetari vine [viene] corriendo entrar O. el Ybicuiti corriendo arriba el orrientele [orientale] hasta P. el Ibipira guasu, pues y asi ordeno y mando q.e ningun Pueblo, ni para q.e cuide de el Ynquiete el domínio y pareciendo dichas tierras aqui mencionadas dentro de dichos linderos ni pase, ni haga pasar a algun de su Pueblo a obtener posecion o dominio de dichas tierras contenidas em dichos términos pues en Justicia se guarden a cada uno indemnes las tierras q.e poseen, y los derechos con que los porteen, y por que coste [conste] dói esta firmada de mi nombre. En doze de Julio de mil seis cientos y ochenta y ocho años en esta Doctrina de la Assump.on de ñra Señora del Mborore.”

O documento e o mapa foram apresentados a Don Francisco Bruno de Zavala, nomeado Governador de Misiones pelo Governador da Província de Buenos Aires, Don Francisco Bucarelli y Ursua, em 1768. Deste documento, o cabildo de La Cruz redigiu uma cópia em 1784, conforme se depreende das anotações inseridas ao final:

“Pueblo de la Cruz a 20 de Dez.re de 1768

Este papel simple me ha presentado el Cavildo de este Pueblo se sacara copia del.

Zavala

Copia de su Original q.e para en el Archivo de este Pueblo al que nos remitimos y p.a q.e conste lo firmamos en la Cruz a diez de septiembre de mil setecientos ochenta y quatro.”[3]

O mapa que acompanha o documento possui legendas que estão inseridas ao longo da linha de limites do território da redução e que se encontram também no documento. Seguramente, não foi elaborado em 1688, pois no corpo do mapa há duas inscrições em guarani com datas posteriores: “Ybî Jesus ygua rembiporu miri que 1716 roî pîpe”, e “SS.ma Trin.d Asump.on de La Cruz Est.a 1753 D. Lequibe guare 16.192 vacas oromoinque Ypî Pay Comis.o Luis Altamirano licencia pp”. Como dito anteriormente, é possível que o mapa tenha sido realizado para representar cartograficamente o texto do documento de demarcação das terras, transpondo para a forma cartográfica a descrição espacial presente na forma textual. De posse destes recursos, os cabildantes de La Cruz puderam apresentar suas queixas em 1784, como se infere de outros documentos anexos, onde registravam:

“Este papel denota las dos Baquerias q.e hizieron los naturales deste Pueblo en los años de mil setecientos quatro, mil setecientos siete quedando dicho numero de ganado en los campos y rincon de el Caraguatai y Taquarembo a beneficio deste Pueblo lo q.e tubo efecto en el tiempo de los expulsos pero despues como barios pueblos se denominan dueños de los campos le quitaron este derecho q.e verdaderam.te le correspondia al numero tan crecido de ganado q.e introdujeron en los referidos campos. Y para q.e conste ser traslado al q.e se alla en este cavil. lo firmamos en el Pueblo de la Cruz a catorze de Sept.re de mil setecientos ochenta y quatro.”[4]

Fig. 5. Mapa produzido pelo Cabildo de La Cruz, em 1784.

O pequeno conjunto de mapas aqui apresentado é demonstrativo de que, ao menos no caso dos indígenas Guarani reduzidos pelos jesuítas ao longo de aproximadamente 150 anos, o saber cartográfico desenvolveu-se de tal forma que, quando necessário, os indígenas souberam utiliza-lo em defesa de seus interesses. Por outro lado, demonstra também que a representação cartográfica incluiu o uso das toponímias, da delimitação de limites espaciais, além do recurso a ícones gráficos para representar relevos, vegetação, hidrografia e caminhos. Em alguns casos, pequenos elementos iconográficos serviam para indicar os núcleos urbanos dos povoados ou as capelas e postos de estâncias. Uma rápida análise basta para verificar que os conhecimentos cartográficos dos guaranis das antigas reduções estavam coesos com as formas mais simples em uso no final do século XVIII. Considerando especificamente os mapas de Santo Tomé e La Cruz, produzidos em 1784, é possível verificar ainda o uso prático da cartografia e sua combinação com a redação de documentos oficiais. Por fim, estes mapas apontam ainda para uma profunda alteração nas concepções de espaço e territorialidade dos guaranis reduzidos, os quais passaram a reclamar seus direitos sobre o solo com base nos mesmos critérios da sociedade colonial hispânica. O grafismo, e incluindo aí a cartografia, possibilitaram aos guaranis, no período pós-jesuítico, posicionar-se frente às forças políticas e econômicas que se projetavam sobre seus povoados. O processo de redefinição de fronteiras com o Brasil português após a tomada das sete reduções da Banda Oriental do Uruguai, em 1801, e os posteriores movimentos de independências na região platina acabaram contribuindo para a desestruturação completa destes povoados e de seus cabildos indígenas. Contudo, restaram os registros de um período em que, ainda que brevemente, os guaranis chegaram a demonstrar sua capacidade de auto-administração, valendo-se para isto, entre outras coisas, daquele saber cartográfico desenvolvido no contato com os jesuítas.

Bibliografia

BARCELOS, Artur H. F. O Mergulho no Seculum. Exploração, conquista e organização espacial jesuítica na América espanhola colonial. Tese de Doutorado, Porto Alegre, PPGH-PUCRS, 2006a.

BERMEO, José Luís (org.). Los Jesuitas y las ciencias. Los límites de la razón. Artes de México, n.82, México, D.F., 2005.

BURRUS, Ernest J. Kino escribe a la duquesa. Madrid, Colección Chimalistac, vol.18, Ediciones José Porrúa Turanzas, 1964.

DOBRIZHOFFER, Martín. Historia de los abipones. 3 vol. Traducción de Edmundo Wernicke, Resistencia, Chaco, Universidad Nacional del Nordeste, Fac. Humanidades. 1967-1969.

LANZAS, Pedro Torres. Archivo General de Indias. Catálogo Mapas y Planos. Buenos Aires. Tomo I. Madrid: Ministerio de Cultura,1988.

NEUMANN, Eduardo S. Práticas letradas guaranis: produção e usos da escrita indígena (séculos XVII e XVIII). Tese de Doutorado, UFRJ, 2005.

FURLONG, Guillermo. Cartografia jesuítica del Río de la Plata. Buenos Aires, Facultad de Filosofia y Letras, 1936.

HARLEY, Brian. Le pouvoir des cartes. Brian Herley et la cartographie. Textes édités par Peter Gould et Antoine Bailly, Paris, Anthropos, 1995.

HERNANDEZ, Pablo. Misiones de Paraguay: organización social. Barcelona, Gustavo Gili, 1913.

PERAMAS, J. Manuel. Apud: FURLONG, Guillermo. Misiones y sus pueblos de Guaraníes. Buenos Aires, Imprenta Balmes, 1962

PORTO, Aurélio. História das Missões Orientais do Uruguai. 2 ed. Porto Alegre, Selbach, v.III, 1954.

ROMANO, Ruggiero. Os Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1989.

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[1] AGI. Est. 74, Caj. 6, Leg. 29, Charcas, 120. Publicado em HERNANDEZ, Pablo. Misiones de Paraguay: organización social. Barcelona, Gustavo Gili, 1913, p.228 e LANZAS, Pedro Torres. Archivo General de Indias. Catálogo Mapas y Planos. Buenos Aires. Tomo I. Madrid: Ministerio de Cultura,1988, p.19-20. No catálogo do AGI – Sevilha não consta quais destes dois exemplares seria a cópia realizada pela comissão verificadora sobre o mapa do índio Domingo.

[2] Documento de certificação dos limites do território da redução de La Cruz, conforme definidos em 1688, Buenos Aires, AGN, sala IX, 22-8-2. Cópia gentilmente cedida por Eduardo Santos Neumann e Fabrício Prado.

[3] Buenos Aires, AGN, sala IX, 22-8-2. Cópia gentilmente cedida por Eduardo Santos Neumann e Fabrício Prado. Seguem as assinaturas dos cabildantes guaranis de La Cruz em 1784.

[4] Idem.

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