Música e inclusão social

[Pages:19]Cap?tulo 1

M?sica e inclus?o social

Contributos para a compreens?o do fen?meno das orquestras juvenis

Jo?o Teixeira Lopes, Gra?a Mota, Ana Lu?sa Veloso, Rute Teixeira

Clari cando o conceito de inclus?o social Quando falamos de inclus?o social referimo-nos necessariamente, a

um processo multidimensional. Por outras palavras: a inclus?o (tal como a exclus?o, conceito relacional por excel?ncia) implica uma certa dura??o no tempo, uma cumulatividade de situa??es interligadas, uma exposi??o a padr?es de socializa??o mais ou menos sistem?ticos. Assim, podemos dizer que existe inclus?o quando algu?m possui os recursos econ?micos, mas tamb?m culturais, sociais, pol?ticos e, n?o menos importante, simb?licos (Bourdieu, 1989), capazes de garantirem uma condi??o (lado objetivo) e um sentimento (lado subjetivo) de perten?a a um todo, seja ele um grupo, uma classe, uma institui??o, uma organiza??o ou um pa?s. Uma outra forma de abordarmos a quest?o consiste em pensarmos a inclus?o dentro de um sistema de desigualdades, isto ?, numa vis?o sist?mica e relacional que interseta as desigualdades de classe social com outro tipo de desigualdades que s?o substantivamente t?o importantes como as de g?nese ?tnica, de g?nero, de orienta??o sexual. Estas desigualdades interagem entre si (Bihr e Pfe erkorn, 2008), interferindo umas nas outras consoante as con gura??es (conjuntos

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coerentes de rela??es), os momentos hist?ricos e os ciclos de vida dos percursos individuais.

Nas suas origens, o bin?mio inclus?o/exclus?o est? associado a um certo relaxamento nas vis?es mais estruturais das desigualdades sociais e transporta alguma ambiguidade sem?ntica, homogeneizando um continuum diversi cado de situa??es. O termo come?a a ser profusamente utilizado no ?mbito do paradigma da "nova gest?o p?blica", para dar conta das disfun??es nos resultados alcan?ados face aos objetivos pretendidos e perante um determinado disp?ndio de recursos p?blicos. Esta vis?o administrativa esquece impl?cita ou explicitamente as raz?es mais profundas da condi??o de inclu?do/exclu?do, favorecendo a ideia de fragmenta??o e de individualiza??o das rela??es sociais. Como se, de repente, o mundo se dividisse, simplesmente, em inclu?dos e exclu?dos, sem g?nese, processo, contexto ou incorpora??o.

Assim, no ?mbito deste trabalho, encaramos a inclus?o: i) Como processo (din?mico) e n?o como um estado ( xista), como ponto numa trajet?ria e n?o enquanto classi ca??o burocr?tica; ii) Como interse??o de desigualdades diversas e de assimetrias d?spares na produ??o/distribui??o/apropria??o de recursos; iii) Como continuum de situa??es e n?o enquanto designa??o homog?nea; iv) Como condi??o que interliga uma posi??o objetiva nas condi??es de exist?ncia, mas tamb?m enquanto sentimento, perce??o, representa??o de identidade; v) Como atributo reconhec?vel pelos outros (h?tero imagem) mas igualmente como condi??o de produ??o de autonomia e de sentido de legitimidade do lugar no mundo (da? a crucial import?ncia do poder simb?lico); vi) Como conjunto de disposi??es (maneiras de sentir, agir, pensar e fazer) dur?veis e estruturadas, mobilizadas em contextos plurais (a fam?lia, os amigos, a escola, a orquestra...), ativadas no corpo (posturas, linguagens n?o verbais...) e na consci?ncia, ou, mais precisamente, no limbo entre ambas, nesse interst?cio onde brota o agir pr?tico, comum e quotidiano;

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vii) Como conjunto de recursos partilh?vel, transmiss?vel, socializ?vel, mediado por pr?ticas e discursos pedag?gicos, pass?vel de multiplica??o no decurso da intera??o.

Para se gerar inclus?o importa, pois, "jogar em v?rios tabuleiros", criar efeitos de contamina??o e de arrastamento nas diferentes esferas da vida, produzindo lia??o e integra??o social, ser e sentir-se "parte de", "dentro de", em plenitude, quer dizer, sem aprova??o ou concess?o de outrem.

Uma trajet?ria bem-sucedida de inclus?o social poder? favorecer processos de mobilidade social se acarretar a incorpora??o de certas disposi??es e compet?ncias. Os casos de alguns estudantes das classes populares que, apesar das profecias deterministas que apenas encaram as origens sociais, esquecendo as orienta??es para a a??o e a for?a dos projetos, embarcam em percursos "inesperados" ou "at?picos" de sucesso escolar e inser??o pro ssional quali cada e quali cante, atestam essa possibilidade. Assim, s?o importantes, por exemplo, a capacidade de gerir hor?rios, certos est?mulos ? autonomia e ? auto-organiza??o, o interesse pela vida escolar, conversas sobre as experi?ncias de aprendizagem, o cuidado em propiciar um ambiente minimamente sereno, est?mulos informais a que os lhos leiam a correspond?ncia, escrevam bilhetes ou elaborem listas de tarefas, em suma, um reconhecimento no quadro familiar de uma certa legitimidade da escola que contrarie as propens?es para a deprecia??o de si e a auto-elimina??o (Lahire, 2004).

Mas tamb?m as organiza??es jogam aqui um papel crucial. Neste trabalho procura-se compreender se a Orquestra Gera??o (OG)poder? funcionar como um ambiente de aprendizagem plural (social, cultural e etnicamente), num quadro de intera??es favor?vel ? sociabilidade, ? colabora??o, ao enriquecimento de c?digos e repert?rios lingu?sticos e ? cria??o, em suma, de trajetos de mobilidade social.

Perspetivas cr?ticas sobre m?sica e inclus?o social Compreender a rela??o entre a m?sica e a inclus?o social representa

o ponto fulcral deste estudo. Permitir-nos-? estabelecer linhas que

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identi quem aspetos das pr?ticas em uso na OG, evidenciadoras da inclus?o social dos seus participantes, seguidas, ou n?o, da sua participa??o como protagonistas de processos de mobilidade social.

M?sica para a inclus?o ou o poder transformador da m?sica s?o bandeiras h? muito erguidas, mas nem sempre com a implica??o social que atingiu nas ?ltimas d?cadas. De um modo geral, prevaleceram as abordagens no dom?nio da psicologia da m?sica, da psicologia social da m?sica (Hargreaves & North, 1997) e, mais recentemente, da psicologia cultural da educa??o musical (Barrett, 2011).

DeNora (2000) teve um papel fundamental na interpreta??o da forma como a m?sica marca o dia-a-dia dos indiv?duos. Ao referir o contributo de Adorno, em primeiro lugar em termos do seu empenho no estudo de quest?es cr?ticas fundamentais para as ci?ncias humanas e, em segundo, no que se refere ao seu trabalho conceptual quanto ao suposto papel da m?sica na forma??o de uma consci?ncia social, DeNora critica a `grande abordagem' de Adorno, considerando que reivindicar a possibilidade de extrair signi cado social da obra musical continua, em si, a ser muito problem?tico j? que "n?o ? tido em conta de um modo consider?vel como ? que o g?nio do Zeitgeist1 conseguiu originariamente entrar na garrafa da m?sica ou, pelo contr?rio, como ? que as propriedades organizadoras da m?sica foram decantadas para a sociedade"2 (DeNora, 2000: 3):

Nesta mat?ria, o trabalho de Adorno representa o desenvolvimento mais signi cativo no s?c. XX acerca da ideia de que a m?sica ? uma "for?a" na vida social, um material para a constru??o da consci?ncia e da estrutura social. Mas, na medida em que n?o nos equipa com algo que permita visionar estas quest?es tal como realmente acontecem, a obra de Adorno acaba tamb?m por ser frustrante; o seu trabalho n?o oferece nenhum quadro conceptual de refer?ncia a partir do qual se possa ver a m?sica no ato de trabalhar a aus?ncia de

1 A palavra Zeitgeist, "o esp?rito do tempo", ? comummente usada na literatura na l?ngua original. 2 Neste livro, todas as tradu??es de obras n?o referenciadas em l?ngua portuguesa, s?o da responsabilidade dos autores.

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consci?ncia, nenhuma considera??o acerca da forma como a m?sica entra em a??o. Assim, a fraqueza do trabalho de Adorno reside na sua incapacidade de nos dar os meios atrav?s dos quais se possam avaliar as suas a rma??es tentadoras. (idem, 2000: 2)

DeNora insiste que a quest?o do processo3 ? fundamental para que se compreenda o modo como o social se inscreve no musical e vice-versa. S? assim pareceria poss?vel compreender at? que ponto as a nidades estruturais entre a m?sica e as forma??es sociais s?o palp?veis e igualmente suscet?veis de mudan?a. E avan?a para uma segunda possibilidade de an?lise, que n?o considera antagonista de Adorno, mas simplesmente mais manej?vel e observ?vel quanto a essa rela??o entre a m?sica e a estrutura social. Por oposi??o ? `grande abordagem' prop?e o que chama de `pequena tradi??o' baseando-se, por exemplo, nos primeiros estudos de Simon Frith (1978, 1981) acerca do envolvimento ?ntimo dos jovens com a m?sica. Nesta perspetiva,

as propriedades estruturantes da m?sica s?o compreendidas em termos de uma atualiza??o em e atrav?s de pr?ticas musicais em uso e das formas como os pr?prios atores se referem ? m?sica vivida e ?s suas tentativas continuadas de produzir situa??es sociais em que se realizam como pessoas (DeNora, 2000: 5-6).

Esta vis?o ajuda-nos a pensar de modo mais pr?ximo, no contexto desta investiga??o, acerca do que poderia ser uma possibilidade de an?lise da frui??o da m?sica erudita, enquanto repert?rio predominante no conjunto das obras tocadas pela OG, e o modo como pode in uenciar e/ou modi car as prefer?ncias musicais dos jovens m?sicos que a estudam e interpretam.

Um outro aspeto, o da rela??o da m?sica com os afetos e com a emo??o, representa um contributo que passa pela abordagem cr?tica do poder semi?tico da m?sica, aquilo que DeNora (2000: 21) nomeou

3 Em it?lico no texto de DeNora

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como `a intera??o entre o ser humano e a m?sica'. O argumento constitui-se com base na cr?tica ? premissa usada por v?rios autores, segundo a qual

... a for?a semi?tica das obras musicais pode ser descodi cada ou lida e que, atrav?s dessa descodi ca??o, a an?lise semi?tica pode especi car at? que ponto certos exemplos musicais passar?o a `operar' na vida social de forma a, por exemplo, implicar, constranger ou permitir determinados tipos de conduta, ju?zos de valor, cen?rios sociais e certas condi??es emocionais. (idem, 2000: 21)

De acordo com esta premissa, a semi?tica seria o meio de an?lise por excel?ncia para a compreens?o das rela??es entre a m?sica e o social, baseando-se sempre no caminho mais curto entre a descodi ca??o da obra musical e o seu impacto social. Pelo contr?rio, tentando contrariar alguma musicologia tradicional que considera imperativo o n?o abandono da an?lise centrada nas propriedades intr?nsecas da m?sica, em detrimento das quest?es relacionadas com a sua rece??o, DeNora prop?e:

Uma conce??o re exiva da for?a da m?sica como algo que se constitui por rela??o com a sua rece??o, n?o ignora de modo nenhum as propriedades da m?sica; o que considera ? a forma como aspetos particulares da m?sica se tornam signi cativos em rela??o a recipientes particulares, em momentos particulares e em circunst?ncias particulares [...] A an?lise musical, concebida tradicionalmente como um exerc?cio que nos `fala' acerca da `m?sica propriamente dita' ? insu ciente como um meio de compreens?o do afeto musical, para descrever a for?a semi?tica da m?sica na vida social. Para esta tarefa, necessitamos de novas formas de ouvir m?sica, claramente interdisciplinares e que conjuguem as tarefas, at? agora separadas, dos m?sicos acad?micos e dos cientistas sociais. (idem, 2000: 23)

Na verdade, este estudo conjuga essas duas ?reas do saber, numa tentativa de cruzar olhares que con gurem um modo mais elaborado de

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entender uma rela??o a qual, se bem que sentida e empiricamente valorizada, tem carecido de tratamento sistem?tico.

A m?sica em projetos sociais Nas ?ltimas d?cadas, os projetos sociais que se reclamam do poder

transformador da m?sica e de promover a mobilidade social atrav?s de atividades musicais, atingiu propor??es muito signi cativas (Burnard et al, 2008; North e Hargreaves, 2009; Hallam & Macdonald, 2009; Hallam, 2010; Tunstall, 2012). Tais projetos t?m vindo a atrair nanciamento um pouco por todo o mundo, desde governos, organiza??es n?o-governamentais e companhias privadas, tendo por base objetivos diferentes e dirigidos a popula??es com carater?sticas diversi cadas.

Se olharmos para a rela??o entre m?sica e inclus?o social, trata-se, em sentido lato, de explicitar a oportunidade que cada indiv?duo deve ter, e particularmente cada crian?a, de acesso a ambientes em que se processa a educa??o musical, independentemente dos seus meios econ?micos, classe social, etnia, religi?o, heran?a lingu?stica e cultural ou sexo (Burnard et al, 2008). Mais, o conceito de aprendizagem n?o formal e a cria??o de comunidades de pr?tica musical, de que adiante falaremos em maior detalhe, ? cada vez mais abordado em termos de programas musicais que se desenvolvem fora do sistema formal de ensino, como atividade extracurricular e especi camente dirigidos a popula??es consideradas de risco. Apresenta-se em seguida uma breve s?ntese em que se identi ca um conjunto de quest?es presentes no campo acad?mico da rela??o entre m?sica e inclus?o social, no ?mbito do ensino n?o-formal:

i) A m?sica como pr?tica social ? encarada como um ve?culo para a promo??o da cidadania e da inclus?o social, do sentido de perten?a e do desenvolvimento da identidade de grupo, podendo manter portas abertas para alguma dissid?ncia e experimenta??o musicais (Dillon, 2006; Welch et al, 2009; Wright, 2014).

ii) Os projetos musicais que trabalham com popula??es em situa??o de exclus?o relacionada com desvantagens sociais graves, podem

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promover novas perspetivas de vida (O'Neill, 2006, 2012; Odena, 2010; Henley et al, 2014).

iii) Uma das refer?ncias t?picas dos programas musicais que se processam fora do sistema educativo ? a constru??o do conhecimento entendida numa perspetiva revolucion?ria e que tem lugar atrav?s de experi?ncias partilhadas em que se quebram barreiras entre a chamada m?sica erudita e as culturas musicais populares, (Green, 2006, 2008; Pino, 2009; Campbell, 2010).

No entanto, esta leitura mais ou menos linear e de aparente causa e efeito, tornou-se, recentemente, alvo de cr?ticas, especialmente com o aparecimento de trabalho sistem?tico em ?reas como `m?sica e con-

ito' ou `m?sica e justi?a social' (Bergh, 2007; Bergh & Sloboda, 2010; O'Connell & Castelo Branco, 2010; Urbain, 2014; Benedict et al, 2015; Bates, 2016).

Essencialmente, coloca-se em causa a assun??o como dado adquirido de que existe uma liga??o direta entre o envolvimento com a m?sica e a inclus?o social que possibilite, efetivamente, a mobilidade cultural e social. Bergh & Sloboda, por exemplo, consideram que "em geral existe uma vis?o demasiado otimista daquilo que a m?sica e a arte podem conseguir em situa??es de transforma??o de con itos e que essa vis?o acaba por ter uma repercuss?o negativa sobre os resultados" (Bergh & Sloboda, 2010: 8).

Os mesmos autores chamam, de igual modo, a aten??o para o facto de tais programas serem usados quase exclusivamente dentro do dom?nio psicossocial, geralmente acompanhados de pouca sustenta??o te?rica, sintetizando que "a investiga??o acad?mica que se foca na interse??o da m?sica/arte com a transforma??o de con itos ? bastante limitada" (idem: 4).

Outras dimens?es identi cadas pelos autores anteriormente citados foram particularmente importantes no desenvolvimento deste estudo.

Em primeiro lugar, o facto de a voz dos participantes nestas

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