Nome da Autora: Beatriz da Costa Pan Chacon



CINCO OLHARES SOBRE O AMOR

Beatriz da Costa Pan Chacon

(Mestranda, Universidade de São Paulo, FFLCH/Aluna da Pós-Graduação/História/História Social)

E-mail: biachacon@

A música popular brasileira como expressão de arte e dentro de um sentido mais contemporâneo, de caráter e abrangência territorial nacional, tem, provavelmente, algo entre 150 e 200 anos. As principais formas midiáticas de circulação dessa produção musical estão ligadas às atividades de grupos circenses nacionais e internacionais, às companhias de óperas que começaram a freqüentar os primeiros teatros especialmente construídos para tais apresentações, por meio de grupos mambembes locais ou regionais, nas festividades de caráter sacro ou profano e, a partir da segunda metade do século XX, com a chegada e rápida expansão do rádio no país.

O rádio surge no Brasil no início da década de 20, mais exatamente, em 1922, à época da abertura da Exposição Mundial, quando “No dia 7 de setembro, 80 rádios-galena foram distribuídos, para captar o discurso do então presidente Epitácio Pessoa na abertura da Exposição, no Rio de Janeiro” (PEREIRA, 2002, p. 09).

Desde 1830 (PEREIRA, 2002, p. 02) existe a prática de uma impressão musical em nosso país, marcando o nascimento do termo (e do ritmo) lundu-canção (PEREIRA, 2002, p. 02). 1917 foi o ano de lançamento do 1º. Samba, Pelo telefone, de Donga. Essa data, para os fins a que se propõe este trabalho, marca o início da canção popular como arte, produto de massa (em sua plataforma midiática específica, o disco e complementar, isto é, sua publicação como registro documental formal e de autoria). Sendo assim descrita e definida, a música popular brasileira contemporânea tem 93 anos.

Neste ensaio buscaremos uma análise sobre cinco obras musicais de cinco diferentes compositores que tem, em comum, o fato de seus nascimentos terem ocorrido no mesmo ano, 1910, e, portanto, o ano de 2010 marcar o centenário de cada um deles. Como foco comum, o tema escolhido foi o Amor e como este foi diferentemente retratado por eles. Claro que, também há de comum, entre eles, a época e os valores predominantes que os formaram. Como cidadãos e como artistas.

Há ainda, a se destacar, outro e importante fator comum: o rádio. E como esta plataforma midiática intercambiou com estes artistas em particular e com suas obras, em geral.

O Rio de Janeiro, que até a fundação de Brasília, em 1960, era o Distrito Federal e que anteriormente havia sido a capital do Império, acumulara valores e práticas que favoreceram um ambiente diferenciado em relação ao resto do país. No caso do rádio, por exemplo, lá se concentraram as primeiras e mais potentes estações transmissoras.

Assim, o que era cultuado como bom no Rio de Janeiro passou a ser, com o tempo, cultuado nas demais cidades. E o que se produzia ou se destacava no ambiente musical carioca, também o era fora de lá. Especialmente, podemos dizer, na região nordeste do Brasil.

Então, especialmente entre 1930 e 1950, os artistas nascidos no Rio de Janeiro ou lá radicados, comandaram a cena musical brasileira.

Essa proximidade e intimidade entre rádio e artistas, somada a uma vida noturna mais intensa e provavelmente, mais retratada, documentada e, certamente mais exaltada, inclusive pela produção musical dessa época, criou condições únicas que, num certo sentido, tornaram-se parâmetros para o resto do país.

Assim, os artistas que tocavam amadoristicamente em rodas de amigos, pequenas festas ou nos cabarés, começam a migrar para as rádios, formando um cast fixo que atuaria ao longo da programação de cada estação, em atrações humorísticas, radionovelas ou ainda, para os cantores e cantoras que mais caíam nas graças populares, tendo meia hora ou uma hora, em geral, de programas com seus nomes ou fazendo referência a um sucesso musical específico.

Neles, abriam-se espaços para outros cantores e compositores mostrarem seus trabalhos, além de se organizarem duetos com aquele que conduzia o programa. Essa estrutura repetiu-se mais tarde, quando do surgimento da televisão, que arregimentou talentos do rádio, do teatro, de modo especial, mas também, do cinema.

Com o rádio, inicia-se, gradualmente, uma nova fase para os artistas e, para o caso específico que tratamos aqui, os músicos, que é o início de uma profissionalização, o que gerará transformações diversas nas relações entre artistas, empregadores, a crescente indústria fonográfica, anunciantes e público.

Krausche (1985, p. 30), em seu trabalho, nos informa que:

“.... a partir dos anos 30: a música chamada ‘folclórica’, tida como exótica, e ao mesmo tempo inferior, passava a ser definida como popular e a ocupar um espaço cada vez maior nas ondas do rádio. No ano de 1932, com a legislação da publicidade radiofônica, entrava-se na fase de profissionalização e popularização do rádio”.

Adoniran, por exemplo,

“... em 1933, premiava modestamente sua insistência: assinava o seu primeiro contrato como cantor de sambas e depois como locutor, recebendo cachês. Em 1934, em parceria com J. Aimberê, compunha a marchinha carnavalesca Dona Boa:...” (KRAUSCHE, 1985, p. 21).

Em 1935, assina um contrato com a Rádio São Paulo, depois tem uma breve passagem pela Difusora, pela Rádio Cruzeiro do Sul, onde permaneceu até 1941, quando ingressou na Rádio Record, onde trabalhou como rádioator, sendo aposentado em 1972. (KRAUSCHE, 1985, pp. 21-22 e p. 78).

Almirante (1963, p.127) conta que em 1934, o novo diretor artístico da Rádio Clube do Brasil o contratara, permanecendo lá pelos dois anos subsequentes. “(...) E coube a Noel seu primeiro mister, recolhendo anedotas de revistas semanais e almanaques, as quais armava, ligando-as de acordo com os assuntos, dando-lhes forma de ‘sketchs’, sob o título de “Conversa de Esquina”.”

Desse modo, vemos que Adoniran e Noel, iniciaram suas vidas radiofônicas ligadas ao humor e à música. Ambos traziam, em seus afazeres, figuras e falares típicos de suas cidades. Também atuaram criando músicas para filmes, sendo que Adoniran, assim como Custódio Mesquita, também atuou como ator em produções cinematográficas.

Do ponto de vista social, podemos dizer que, enquanto Haroldo Lobo e Custódio Mesquita pertenciam à classe média, Noel Rosa e Adoniran (João Rubinato, seu nome de batismo) Barbosa, tinham uma origem mais modesta. Nássara, filho de imigrantes, como Adoniran, provavelmente, estava entre essas duas condições. E como Custódio e Adoniran, Nássara era dotado de múltiplos talentos.

Nássara era caricaturista, desenhista, além de compositor. Custódio, por sua vez, era compositor, pianista, regente e ator. E Adoniran era compositor, cantor, humorista e ator. Noel Rosa e Haroldo Lobo foram, essencialmente, compositores.

Antes de entrarmos na análise propriamente dita das canções, é preciso destacar que elas foram compostas em anos diferentes e sob contextos histórico-sociais também diferentes. E, logicamente, em momentos específicos das vidas de seus compositores.

Assim sendo, Formosa foi composta em 1932, quando Nássara tinha vinte e dois anos e seu parceiro, J. Rui tinha 23 anos. Noel Rosa compõe Último Desejo em 1937, aos 27 anos de idade, mas sequer chega a ouvir a gravação, tendo falecido em 04 de maio daquele ano. Emília foi composta em 1942, mesmo ano da música Amélia de Ataulfo Alves e Mário Lago. Haroldo Lobo tinha 32 anos e seu parceiro, Wilson Batista, 29 anos. Em 1946, após mais de um ano da morte de Custódio Mesquita, é gravada a canção Saia do Caminho. Por fim, mas apenas pelo aspecto cronológico, Adoniran Barbosa, aos cinqüenta anos de idade, apresenta sua delicada e sensível Prova de Carinho.

Em 1932, pelo menos cinco emissoras disputavam as atenções do público e dos anunciantes, no Rio de Janeiro e Getúlio Vargas governava o Brasil desde 1930. Em São Paulo, por exemplo, além da Revolução Constitucionalista, a cidade dava passos largos em seu crescimento urbano, industrial e populacional.

Dez anos depois, o mundo vivia a II Guerra Mundial e suas conseqüências e Getúlio Vargas, ainda estava no poder. Em 1946, o conflito mundial que acabara no ano anterior, ainda mostrava feridas abertas por todos os lados.

O ano de 1960 encerrou uma década que, especialmente a partir de 1958, mostrara ao Brasil e ao mundo, um país com novas dimensões. Uma nova dimensão esportiva, com a conquista da Copa do Mundo e figuras como a de Maria Esther Bueno e Éder Jofre; uma nova dimensão musical, com a Bossa Nova; uma nova dimensão cinematográfica com o Cinema Novo e, inevitável dizer, uma nova capital, Brasília.

Em contextos tão distintos entre si, quer do ponto de vista pessoal, profissional, político ou histórico, é que esses compositores fizeram sua arte surgir por meio das músicas aqui reunidas. O que as une, portanto, é seu tema comum. E como este tema foi olhado por eles nessas canções em particular. Para entendermos seus olhares sobre o amor, precisávamos (e precisamos ainda) entender o momento em que esses olhares foram lançados.

As análises das letras seguirão a ordem cronológica de composição e/ou gravação, para que possamos melhor avaliar como os olhares individuais reproduziram um momento pessoal e o fundo histórico do qual fizeram parte, compositores, público e meios de comunicação. Em especial, rádio e imprensa.

Das músicas aqui consideradas, Saia do Caminho, de Custódio Mesquita e Último Desejo, de Noel Rosa, foram gravadas após a morte de seus compositores.

FORMOSA

(Nássara e J. Rui)

A saudade de um amor, ôô, ôô

No meu peito quis entrar, aa, aa

O amor já foi-se embora

E a saudade quis ficar

Foi Deus quem te fez formosa

Formosa, formosa

Porém, este mundo te tornou

Presunçosa, presunçosa

Ó mulher, o teu amor, ôô, ôô

Não é coisa de durar, aa, aa

Hoje é meu, mas amanhã

Eu não sei de quem será

Foi Deus quem te fez formosa

Formosa, formosa

Porém, este mundo te tornou

Presunçosa, presunçosa

Segundo Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello (1997, p. 125) a música consta de um compacto com duas faixas gravadas, por Francisco Alves e Mário Reis, sendo Fita Amarela, a outra canção, como gravações representativas daquele ano de 1933.

A letra descreve um amor, uma mulher, que partiu, deixando a saudade em seu lugar. O amor que se perdeu, isto é, aquela mulher amada, feita formosa por Deus, é a mesma que se transforma fácil e instantaneamente em presunçosa. É ainda, esta mulher, a amada que deixa seu amado, dona de um amor frágil, altamente volúvel e do qual o amado, o homem, acha-se eterno possuidor. (Hoje é meu, mas amanhã/ Eu não sei de quem será). E, novamente, pelo refrão, o autor reafirma a amada como formosa, mas também, presunçosa.

O amado, diz o compositor, afirma que o mundo transformou sua amada de formosa, pela obra divina, em presunçosa, mas não reconhece ser ele próprio, um presunçoso, ao afirmar que o amor dela é seu sugerindo com isso que a própria mulher lhe pertencesse ou ainda, que o novo amor dessa mulher, mais dia menos dia, também seria abandonado por ela. Que ela faria o mesmo que fizera a ele, o que a colocaria como alguém de pouco, ou nenhum, caráter.

Por outro lado, ao considerar a possibilidade dessa mulher encontrar um novo amor, o compositor permite, por sua letra, um espaço em que o novo amor também seja por ele julgado em tom depreciativo. (Eu não sei de quem será). Novamente, a idéia de controle surge e a depreciação manifesta-se porque o ‘eu’ (o amado abandonado) não se mostra propenso a aprovar qualquer escolha que a mulher tenha feito. Em outras palavras, vale dizer, sugere que ela será de um qualquer.

Há, contudo, ao mesmo tempo, em torno do amor que não mais existe, uma idealização desse amor, mas, que como vimos, não idealiza a mulher que partiu. E há, também, por outro lado, uma afirmação nem melancólica nem depressiva, isto é, há uma constatação de que a saudade quis ficar.

E tal constatação, parece não afetar de modo especial, ao homem que perdeu a mulher. E é aí, que ocorre outro tipo e sentido da separação entre o Amor e a(s) mulher(res). Porque quase fica implícito que ele poderá achar, até com certa facilidade, uma nova mulher-amante e que o Amor, o sentimento, não será uma prioridade para ele. Quase como se o autor dissesse: “Está tudo bem”. “Estou bem”.

Para a época, e ainda para os dias atuais, em diferentes proporções, esse é um cenário e um enfoque bastante presente, no qual o homem, via de regra, conserva como sua principal referência, a realização das suas próprias vontades e do seu modo de pensar, como o único válido.

E nesse aspecto, é um homem para o qual a palavra Amor tem uma datação de validade que se esgota quando a mulher não age como ele espera. E na música, este momento é quando ela deixa o relacionamento: O amor já foi-se embora. Conseqüentemente sugere-se na letra, que esse (antigo) Amor possa ser substituído por um (novo) Amor, porque pouco ou nada tem a ver com o Amor-emoção, que não causa sofrimento porque inexiste uma idealização dele.

Essa impressão é reforçada com o total desinteresse desse homem, abandonado, pelo destino que a amada tomou ou sua motivação para a separação. O foco deve ficar sobre ele e a indiferença deve ser destinada à mulher.

Uma das mais recentes regravações dessa canção, e talvez entre as mais conhecidas, sobretudo para o público na faixa dos cinqüenta anos, está presente no filme (e na trilha sonora deste) Quando o carnaval chegar, de Cacá Diegues, de 1972. A gravação de Nara Leão era delicada, leve e jovial, contrastando e simultaneamente, reforçando o conteúdo de sua letra, que, afinal, tratava do tema da separação de um casal. (Faixa 6, Lado B, LP).

ÚLTIMO DESEJO

(Noel Rosa)

Nosso amor que eu não esqueço

E que teve o seu começo

Numa festa de São João

Morre hoje, sem foguete

Sem retrato e sem bilhete

Sem luar, sem violão

Perto de você me calo

Tudo penso e nada falo

Tenho medo de chorar

Nunca mais quero o teu beijo

Mas meu último desejo

Você não pode negar

Se alguma pessoa amiga

Pedir que você lhe diga

Se você me quer ou não

Diga que você me adora

Que você lamenta e chora

A nossa separação

E as pessoas que eu detesto

Diga sempre que eu não presto

Que o meu lar é um botequim

Que eu arruinei sua vida

Que eu não mereço a comida

Que você pagou pra mim

Nesta canção, Noel Rosa descreve o início e o fim de um relacionamento. Quem conta a história, é o homem que agora está só. Ele revela, como numa conversa derradeira à sua amada, como ela deve agir para contar sobre a separação deles. Aos amigos, pede que ela Diga que lamenta e chora. Aos desafetos, que ela Diga sempre que eu não presto.

Este homem, retratado por Noel, difere daquele apresentado por Custódio, embora ambos tenham sofrido a perda do Amor. O homem aqui, aceita que a mulher faça dele o principal, ou o único responsável pelo ocorrido, mas apenas para os que não lhe queriam bem. Aos seus amigos, pede, sem obrigar, e ainda que a mulher possa discordar, que preserve sua imagem, junto a eles. E pede isso, como sendo seu Último desejo, mas deixando claro a ela, que dela nada quer. Nem mesmo um beijo.

A separação mostra também algo que torna esse homem diferente. No momento em que está ocorrendo a separação, ele admite, para si mesmo, seu sofrimento, sua dor e o amor que ainda sente, quando diz: Perto de você me calo/ Tudo penso e nada falo/ Tenho medo de chorar. Nesse momento, mostra sua fragilidade.

Em seu livro, Almirante revela que, em mais um dos momentos em que a saúde de Noel tornara-se bastante frágil, precisou mudar-se, temporariamente, para Friburgo. Ao retornar, visitou Ceci, seu grande amor, “e, tristemente, lhe deu os versos de um de seus recentes sambas, inteiramente dedicado a ela, chamado “Último Desejo”. (1963, p.195).

Isso confirma as condições específicas em que a canção foi composta e a quem, exatamente, ela foi dirigida. Por outro lado, ele, como boêmio que era, tendo envolvimento com várias mulheres, mesmo casado, sentia-se incomodado e cheio de suspeitas quanto a Ceci, uma dançarina que conhecera em 1934, de que esta o traía.

É verdade, como relata Almirante (1963, p.190), em capítulo exclusivamente dedicado aos amores de Noel, que ele fizera várias músicas para essas mulheres e entre outras que fez para sua amada Ceci, além da que aqui apresentamos, fez também Pra que mentir?, onde finalmente expôs seus ciúmes em relação a ela, mas extensiva às mulheres, quando diz na canção: Pra que mentir?/Se tu ainda não tens/A malícia de toda mulher.

EMÍLIA

(Haroldo Lobo/Wilson Batista)

Eu quero uma mulher, que saiba lavar e cozinhar |

Que de manhã cedo, me acorde na hora de trabalhar |

REFRÃO

Só existe uma e sem ela eu não vivo em paz |

Emília, Emília, Emília eu não posso mais |

Ninguém sabe igual a ela

Preparar o meu café

Não desfazendo das outras

Emília é mulher

Papai do céu é quem sabe

A falta que ela me faz

Emília, Emília, Emília eu não posso mais

Em que pese uma agradável melodia como a desta canção, sua letra torna-se transparente quanto aos valores pelos quais o compositor, e a sociedade de sua época, julgavam uma mulher para ser uma boa companheira (ou esposa) para um homem. Ou, as mulheres.

O homem, nesse caso, quer explicitamente, não um Amor ou mesmo uma amante, ele quer uma mulher que o sirva e que apenas cumpra os deveres domésticos, isto é, que saiba lavar e cozinhar.

Uma mulher que só atenda às necessidades desse homem, sem direito a falar ou a querer. Qualquer querer, sonho ou desejo está vedado a ela.

A letra revela ainda o homem como o provedor da casa, quando diz: Que de manhã cedo, me acorde na hora de trabalhar. A mulher desejada, descrita nesta canção, deve ser solícita e subserviente. Por que deve saber fazer os serviços que lhe cabem fazer (cuidar do homem e da casa) e não reclamar.

E vai além, ao determinar que Ninguém sabe igual a ela/Preparar o meu café, isto é, que ela deve fazer tudo na exata medida do gosto (e da vontade) dele. Ao mesmo tempo, esse trecho sugere uma comparação com outras mulheres e que a dele, Emília, era a única que fazia tudo do jeito certo. Do gosto dele.

Mas o autor, tranquilamente afirma Não desfazendo das outras/Emília é mulher. Desse modo, fica claro que, usando de ironia, está afirmando que a mulher que não cumprir tais procedimentos, que não tiver este tipo de comportamento, não é mulher. Clarificando ainda mais, não será considerada uma mulher para os moldes e padrões desse homem ou de qualquer outro homem desse período.

Não pode ser visto como mera coincidência, o fato de que, nesse mesmo ano, outra música, abordando o mesmo tipo de tema e com tratamento semelhante, expusesse o mesmo tipo de perfil desejado para a mulher. Ou seja, a Amélia, de Ataulfo Alves e Mário Lago.

Após muitos anos, à medida que a sociedade foi se transformando e a mulher foi ocupando novos espaços, essa canção, ainda que melódica e musicalmente bela, tornou-se um símbolo negativo e pernicioso para as mulheres que buscavam romper os limites da cama e da cozinha. Décadas passaram e, sobretudo, por ser um dos compositores, ainda vivo, Mário Lago era questionado sobre a canção e tentava defender que a letra havia sido mal-interpretada. Que ele não era um anti-feminista. Nem a canção.

Seu primeiro registro fonográfico aconteceu com Vassourinha, em 1942 e o mais recente, realizado pelo conjunto Fundo de Quintal, data de 1990.

SAIA DO MEU CAMINHO

(Custódio Mesquita)

Junte tudo que é seu

Seu amor, seus trapinhos

Junte tudo que é seu

E saia do meu caminho

Nada tenho de meu

Mas prefiro viver sozinha

Nosso amor já morreu

E a saudade se existe é minha

Fiz até um projeto

No futuro, um dia

Naquele mesmo teto

Mais uma vida abrigaria

Fracassei novamente

E sonhei, e sonhei em vão

E você francamente, decididamente

Não tem coração

Esta é, em nossa seleção, a terceira música a abordar, coincidentemente (?), o tema da separação de um casal. Mas ela tem um ponto de vista único e totalmente diferente das anteriores. Quem está falando, é a mulher. E mais, esta mulher está expulsando este homem (Junte tudo que é seu/Seu amor, seus trapinhos) e, de modo afirmativo, manda que ele Saia do meu caminho.

Noel conjugara, no presente, a morte do amor, dele por Ceci, Morre hoje/Sem foguete/Sem retrato e sem bilhete, mas Custódio, nesta canção, coloca a morte do Amor no passado (Nosso amor já morreu), como a dizer que as coisas já caminhassem mal entre aquele casal que agora se separava.

Enquanto que para Nássara e seu parceiro, J. Rui, a saudade entra no peito pelo amor que se foi, para Custódio ela é algo que se existe, é minha. Ou seja, da mulher, mas de uma forma não como se esta se sentisse vitimizada. Muito ao contrário, já que ela questiona a existência da saudade daquele relacionamento existir de fato. Ou seja, ela lida muito bem com sua decisão – foi dela a decisão – de terminar o relacionamento.

O final dele não significa o final dela como indivíduo, mesmo não tendo recursos. (Nada tenho de meu/Mas prefiro viver sozinha). Também, ao contrário das outras canções, ficamos sabendo o motivo central (e decisivo) para a separação. Ela sonhava ter uma criança (talvez mais), sonhou, fez planos, mas, o homem, sem coração, contraria esse desejo e ela, entristecida e decepcionada diz: E sonhei, e sonhei em vão, o que a deixa com a sensação de fracasso. (Fracassei novamente).

O fracasso aqui, parece estar ligado à uma má escolha de seu companheiro e de acreditar nas juras feitas por ele, mais do que a sensação de ser um fracasso como pessoa, mulher ou, mãe. Ao dizer Fracassei, não parece fazer com caráter definitivo. Parece apenas constatar o engano de julgamento quanto ao parceiro.

PROVA DE CARINHO

(Adoniran Barbosa)

Com a corda mi

Do meu cavaquinho

Fiz uma aliança pra ela

Prova de carinho

Quantas serenatas eu tenho que perder

Pois meu cavaquinho já não pode mais gemer

Quanto sacrifício eu tive que fazer

Para dar a prova pra ela do meu bem querer

Aos cinqüenta anos de idade, casado há onze anos com Mathilde de Luttis, com quem viveu até morrer, Adoniran Barbosa já era consagrado compositor e ator de rádio, cinema e, mais tarde, televisão. Seu primeiro casamento ocorrera em 1941.

Esta canção, feita para ela, como outras, retrata os sentimentos profundos e ternos que o compositor nutria por sua amada. E ela tem um importante diferencial de todas as músicas anteriores, e, em especial, daquelas que tem como relator (narrador) da história, o homem.

Em Prova de Carinho, o homem além de declarar seu Amor, ao invés de definir o comportamento da amada (ou das mulheres, em geral) como em Emília, por exemplo, ou cobrar seu caráter, como em Formosa, vai além. Ele, músico (meu cavaquinho), relata ter sacrificado a corda mi, prova concreta de seu Amor e comprometimento com a amada porque fiz uma aliança pra ela.

Mas ele quer saber quanto mais terá de fazer para Dar a prova pra ela/Do meu bem querer. Portanto, ele se coloca à disposição das vontades da amada. É ela que manda. (Quantas serenatas eu tenho de perder). Não há uma queixa em estar ausente das serenatas, há, sim, o desejo de satisfazer a mulher amada. Este sim, o ponto-chave desta canção, que a diferencia das demais.

No caso dos dois, Adoniran e Mathilde, pelo que se sabe, eram de fato, duas pessoas que se amavam total e completamente. Reciprocamente.

O poder de síntese melódica e lírica, já que letra e música foram feitas por Adoniran, é simplesmente fabuloso. A música nos encanta e nos encaminha, de volta ao tempo das serenatas.

O dicionário eletrônico Cravo Albin da Música Popular Brasileira, informa a quem o consulta que Adoniran Barbosa ‘foi apelidado de Noel Rosa paulista’. Bem, isto é algo que só consta para aquele site, não havendo referências de origem não-carioca que consubstanciem o dito apelido. Vale sim dizer e considerar, que cada um deles soube traduzir o pulso e o coração de sua cidade e que seus trabalhos, independentes entre si, não faz deles, um superior ao outro. São diferentes e igualmente importantes para suas cidades e para a música popular brasileira.

Vale também mencionar que um dos mais freqüentes parceiros de Noel, foi Osvaldo Gogliano, mais conhecido como Vadico, um músico paulistano que aos vinte anos transferira-se para o Rio de Janeiro, lá permanecendo até 1939, quando viaja para os Estados Unidos, juntando-se a Carmen Miranda e ao Bando da Lua. A partir de 1943, construiu uma carreira própria naquele país, retornando, onze anos depois, ao Brasil.

Vadico compôs, junto com Noel, alguns de seus maiores sucessos. Entre eles: Feitio de oração, Feitiço da Vila, Conversa de botequim, Tarzan, o filho do alfaiate’ etc. Em 1962, passou mal e faleceu.

Um dado a mais liga Vadico aos compositores que, neste ano, completam 100 anos de seu nascimento. Vadico também nasceu em 1910. Mais exatamente, em 24 de Junho.

Bibliografia:

ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa. Coleção Contrastes e Confrontos, v. 9, Ed. Paulo de Azevedo, São Paulo, 1963.

PEREIRA, Simone Luci. Fragmentos da história musical brasileira. Comunicação apresentada em 2002, em Santa Cruz de La Sierra, ALAIC (?)

SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras, v. 1, Ed. 34, São Paulo, 1997.

SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. Idem, v. 2, 1998.

KRAUSCHE, Valter. Adoniran Barbosa. Coleção Encanto Radical, Brasiliense, São Paulo, 1985.











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