O que se entende por língua e linguagem?

O que se entende por l?ngua e linguagem?

Qualquer ser humano reflete todo dia sobre a pr?pria l?ngua. Mas nem todos se lembram sobre a import?ncia dela. Entenda o significado de l?ngua e linguagem no texto de Ataliba de Castilho.

Ataliba T. de Castilho (USP, CNPq)

?ndice: 1. O que vem a ser l?ngua e linguagem? 2. O que vem a ser uma teoria lingu?stica? Para que serve? 3. Enunciado e enuncia??o: o que ? isso? 4. Quais s?o as teorias lingu?sticas mais importantes?

4.1 Teoria 1: "a l?ngua ? uma atividade mental" 4.2 Teoria 2: "a l?ngua ? uma estrutura"

4.2.1 As antinomias saussureanas 4.2.2 As unidades da l?ngua 4.2.3 Os n?veis hier?rquicos da l?ngua 4.3 Teoria 3: "a l?ngua ? uma atividade social" 5. Fun??es da linguagem 6. L?ngua como comunica??o 7. L?ngua como um conjunto de estruturas em constante processo de altera??o 8. Uma teoria multissist?mica da l?ngua 9. Em resumo 10. Novas Perguntas 11. Leituras para aprofundamento 12. Gloss?rio

1. O que vem a ser l?ngua e linguagem?

Visitando o Museu da L?ngua Portuguesa, voc? decerto est? se perguntando por que se dedicou ? L?ngua Portuguesa todo este espa?o, e ainda por cima se organizou um Portal.

N?o vou te dizer algumas coisas ?bvias do tipo, "? a l?ngua que carateriza o ser humano, distinguindo-o do resto da cria??o", "n?o fosse a l?ngua, e todos n?s ser?amos iguais a macacos", "a l?ngua ? um meio de comunica??o, p?!, "qu? seria de n?s se n?o tiv?ssemos uma l?ngua para falar, j? pensou?"

Embora essas respostas tenham seu valor, elas n?o v?o ao ponto central. E o ponto central ? que sem uma l?ngua, n?o poder?amos formular nosso pensamento. Voc? j? se deu conta de que pensa em portugu?s? Sonha em portugu?s? Organiza-se logo de manh? com respeito ao que ter? de fazer durante o dia, falando consigo mesmo em portugu?s? E mesmo quando quer aprender uma l?ngua estrangeira, sai por a? tentando pensar s? nessa l?ngua, como um bom modo de domin?-la.

J? "linguagem" ? um termo gen?rico, pois pode referir-se a outras manifesta??es, al?m da sequencia??o de sons, como em "linguagem das cores", "linguagem dos perfumes", "linguagem das abelhas", e outras muitas linguagens mais.

N?o existe criatura sobre a face da terra que n?o reflita todo dia sobre a pr?pria l?ngua, embora nem sempre se d? conta disso. ?s vezes at? "colocamos no ar" peda?os dessa reflex?o. Certamente voc? j? se pilhou dizendo ao seu interlocutor: "me deixa dizer isso de outro modo", "esse assunto, digamos assim, ter? outros desdobramentos", "por assim dizer, tudo o que preciso agora ? que voc? me empreste uma grana", "agora estou pensando em calar a boca", etc., etc.

Os linguistas chamam esses lances de atividade epilingu?stica*. Complicado? N?o, se voc? pensar que "epi" ? uma preposi??o-prefixo tomada de empr?stimo ao grego, e que quer dizer "a respeito de, sobre". Um atividade epilingu?stica ? isso a?: ao mesmo tempo que voc? fala, voc? reflete a respeito das formas lingu?sticas que usou, para ver se est?o adequadas ? situa??o de fala em que se encontra. E seu c?rebro d? conta de tudo isso. Por outras palavras, ningu?m ? "burro" se consegue falar.

Outros disp?em esse tipo de atividade no campo da Psicopragm?tica*. Esse ? um rumo de estudos que considera o uso da l?ngua "para-si-mesmo". Voltando ao lance dos sonhos: voc? pensa em portugu?s, sonha em portugu?s, e nessas situa??ees est? usando a l?ngua para si mesmo. N?o para o outro.

Abrindo um par?nteses. O divertido nessa hist?ria ? que, enquanto sonhamos, constitu?mos um interlocutor, que nos diz coisas de que n?o sab?amos. Mas como ?

isso? N?o fomos n?s mesmos que inventamos o sonho e o interlocutor?! Ent?o por que n?o sab?amos o que o "locutor inventado" nos ia dizer? N?o, n?o, n?o pense que isto ? coisa de maluco! Pondo de lado que todo mundo tem dessas "maluquices", essas perguntas nos mostram que a l?ngua ? um fen?meno basicamente mental, criado por nossa mente, e a mente ? um setor do conhecimento hoje em dia sujeito a muita pesquisa.

Outro exemplo: algu?m pergunta sobre determinado assunto a respeito do qual n?o se tem uma no??o clara. ? normal, nesses casos, que a resposta seja mais ou menos assim:

-- Bem... o caso ? que... n?o... o caso ? que tudo isso t? muito enrolado.

O que foi que o locutor negou? Ele nem tinha dado a resposta ainda! O que se negou aqui foi o pensamento, negou-se o que ia ser dito, mediante uma "nega??o psicopragm?tica". Outros fatos epilingu?sticos e psicopragm?ticos s?o estudados pela disciplina An?lise da Conversa??o*.

Enfim, depois de pensar calado, "falando com os nossos bot?es", somente depois disso ? que sentimos a necessidade de nos comunicar com outros. Aqui est? a outra natureza das l?nguas, que n?o existiria sem a primeira: a l?ngua serve para comunicar. Bem, isso voc? j? sabia.

Mesmo assim, pense nisto: quando nos comunicamos, produz-se outro dos "mist?rios lingu?sticos", pois lan?amos ao ar um conjunto de sons que s?o portadores de sentidos. Nosso interlocutor, se sabe nossa l?ngua, apreende esses sons e interpreta grande parte dos sentidos que quisemos transmitir. A? dizemos que ele "captou a mensagem". Ningu?m sabe como explicar direito esse emparelhamento entre som e sentido. Da? ter-se considerado como arbitr?ria a liga??o som-sentido. A rela??o somsentido ? uma conven??o que estabelecemos entre n?s. E por aqui teremos de ficar, at? que os neurologistas e os neurolinguistas entendam melhor o funcionamento do c?rebro, e nos apresentem uma explica??o para esse mist?rio.

2. O que vem a ser uma teoria lingu?stica? Para que serve?

Todas as ci?ncias operam sobre um objeto de estudos. Para o ge?logo, o objeto ? o solo, para o bi?logo, s?o os seres vivos, para o bot?nico, as plantas, e assim por diante. Nestes casos, o objeto ? exterior ao cientista, e j? aparece como um dado no mundo f?sico.

J? no estudo das l?nguas, do psiquismo, das culturas, a coisa ? diferente, pois agora seu objeto ? uma propriedade mental, uma atividade de nosso c?rebro, organizado a partir de dados invis?veis. Ferdinand de Saussure, o fundador da Ling??stica moderna, reconhecia no come?o do s?c. XX que a l?ngua ? um "objeto escondido", n?o suscet?vel de uma observa??o direta. Assim, para desenvolver pesquisas sobre ela precisamos postular uma teoria. Mas o que quer dizer "teoria"?

Teoria ? uma palavra grega que quer dizer "vis?o", "ponto de vista". Lembre-se da f?bula dos deficientes visuais e do elefante. Foi mais ou menos assim. Tr?s deficientes visuais rodearam um elefante. Um pegou em seu rabo e disse que o elefante era um animal cil?ndrico, fininho e duro como uma corda, ocupando no espa?o uma posi??o vari?vel. Outro apalpou uma das pernas e logo discordou do primeiro: o elevante at? pode ser cil?ndrico, mas n?o ? fininho, nem duro, e ocupa no espa?o uma posi??o fixa, vertical. Um terceiro conseguiu agarrar a tromba e considerou que seus dois colegas estavam certos s? at? certo ponto: cil?ndrico, OK, posi??o vari?vel, OK, mas nem fino nem duro.

Qual deles estava certo? Individualmente, nenhum. Coletivamente, todos, ainda que sua vis?o do elefante fosse apenas aproximativa. Eles tiveram opini?es diferentes por que tiveram "pontos de vista" diferentes ? permitam-me usar respeitosamente essa express?o, que ? igualmente usada pelos deficientes visuais, visto que, como se sabe, nossa fala ? recheada de imagens. Isso sem mencionar que os deficientes visuais desenvolvem bastante os outros sentidos. Ent?o, se um quarto deficiente subisse em

seu lombo, e um quinto apalpasse suas trombas, teriam surgido mais duas opini?es, pelo menos. Nossa percep??o sobre o elefante teria melhorado, mas ainda assim faltaria muito para que conhec?ssemos a coisa por inteiro.

Primeira moral da hist?ria: a l?ngua ? o elefante, os usu?rios da l?ngua, os linguistas e os gram?ticos s?o os deficientes visuais. Assim como o elefante ? um objeto parcialmente escondido para quem n?o enxerga bem, assim a l?ngua ? um objeto escondido para todo mundo, mesmo para aqueles que enxergam bem.

Segunda moral da hist?ria: a cada ponto de vista corresponde uma percep??o do que ? a l?ngua. Nenhuma est? errada, a menos que se torne inconsistente em rela??o ao ponto de vista adotado. Imagine a confus?o se um dos deficientes visuais deixasse de lado o tato, que estava sendo utilizado pelos outros, e usasse outro dispositivo dos sentidos, como o olfato, ou a audi??o, por exemplo. Sua opini?o, por mais valiosa, seria inconsistente com a de seus colegas. Seria de pouca utilidade comparar cheiros com formas, por exemplo.

Transposta a situa??o da f?bula para o estudo da l?ngua portuguesa, fica claro que se n?o dispusermos previamente de um ponto de vista sobre a l?ngua, torna-se dif?cil refletir coerentemente e com a maior amplitude poss?vel sobre esse objeto escondido. Saussure acrescenta que na Ling??stica "o ponto de vista cria o objeto" ? e apenas isto j? mostra a import?ncia das teorias para o estudo das l?nguas. Por objeto pode-se entender tanto o objeto te?rico (isto ?, o ponto de vista sobre a l?ngua), quanto o objeto emp?rico (isto ?, os materiais sobre que fundamentaremos nossa an?lise). Saussure sabia o que estava falando!

Est? na hora, portanto, de fazermos uma apresenta??o das principais teorias sobre a l?ngua. Mas aten??o! Teoria e empiria se completam! O ponto de vista e a observa??o dos dados caminham juntos! Assim como n?o poderemos estudar uma dada l?ngua se n?o dispusermos previamente de uma teoria, da mesma forma n?o poderemos estud?la se n?o dispusermos de dados sobre ela. Deficientes visuais sem o elefante impediriam que se escrevesse uma f?bula. Foi por isso mesmo que o Museu da

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download