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Conceitos b?sicos: a linguagem como fen?meno social e cultural.

2.1.

L?ngua, Sociedade e Cultura

Um estudo sobre a dimens?o intercultural da aprendizagem de L?nguas Estrangeiras fundamenta-se for?osamente numa concep??o da linguagem como fen?meno situado social e culturalmente. Esta concep??o n?o constitui dado inquestion?vel, na medida em que se op?e a outra, ainda bastante corrente, que aborda a linguagem enquanto fen?meno abstrato, cujas regras internas cabe ao ling?ista analisar. Esta concep??o est? expressa muito claramente na seguinte afirma??o do ling?ista americano Noam Chomsky:

A teoria ling??stica ocupa-se em primeiro lugar de um falante-ouvinte ideal, em uma comunidade de fala completamente homog?nea, que conhece sua l?ngua perfeitamente e n?o ? afetado por condi??es gramaticamente irrelevantes tais como limita??es de mem?ria, distra??es, mudan?as de aten??o e interesse e erros (aleat?rios e caracter?sticos) na aplica??o de seus conhecimentos ling??sticos em inst?ncias atuais de desempenho (Chomsky, 1965 apud. Hymes, 1974).

Esta vis?o da l?ngua como entidade homog?nea, propriedade de um a determinada comunidade de fala, informa, segundo Pennycook (1994), o movimento de expans?o mundial do ingl?s. Na verdade, diz o autor, o "mito da l?ngua" como entidade ?ntegra, uniforme, ? apenas isso - um mito ? proposto e defendido por grupos sociais a quem ele beneficia. ? esse mito que se encontra subjacente ? vis?o do ingl?s como l?ngua internacional, neutro e ben?fico para seus usu?rios. "A l?ngua", afirma Pennycook, "est? localizada na a??o social e qualquer coisa que desejemos chamar de uma l?ngua n?o ? um sistema pr?existente, mas um desejo de comunidade" (op.cit.: 29). Parece-nos, portanto, essencial para nosso trabalho considerar algumas das principais abordagens do fen?meno ling??stico em seu enraizamento nas intera??es sociais, atravessado pelas assimetrias de poder que as caracterizam.

Seria imposs?vel, no entanto, dentro dos limites de nosso estudo, realizar uma discuss?o exaustiva do tema. Por esta raz?o, selecionamos alguns autores

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com quem nos identificamos e que, acreditamos, abordam o fen?meno da linguagem a partir de perspectivas relevantes ? nossa pesquisa. Assim, vamos nos debru?ar, primeiramente sobre dois autores cuja reflex?o focalizou a dimens?o social da linguagem, Mikhail Bakhtin, e Dell Hymes. Mais recentemente, Norman Fairclough e Claire Kramsch desenvolveram abordagens que consideram quest?es de cultura e poder.

2.1.2.

As ra?zes sociais da linguagem: o pensamento de Mikhail Bakhtin e a socioling??stica de Dell Hymes.

Apesar de bastante consolidada no pensamento social e ling??stico contempor?neo, a vis?o da linguagem como fen?meno social tem uma hist?ria relativamente recente. Um dos primeiros te?ricos a buscar descrever as origens sociais da linguagem foi o ling?ista russo Mikhail Bakhtin que, ainda na d?cada de 20, publicou Marxismo e Filosofia da Linguagem (2004; publicado originalmente em 1929). Nesta obra, Bakhtin se prop?e a estabelecer os fundamentos de uma filosofia marxista da linguagem em oposi??o ao pensamento ling??stico europeu de sua ?poca que ele caracteriza como marcado por dois tipos de abordagem: a primeira, focalizando a linguagem enquanto produto do psiquismo de um sujeito individual; a segunda, considerando a l?ngua enquanto sistema simb?lico, abstra?do de seu uso por falantes reais.

Para Bakhtin, a linguagem, como todos os sistemas simb?licos, tem suas ra?zes na intera??o entre os membros de uma comunidade organizada. Todos os signos, inclusive os signos ling??sticos, derivam seus significados de consensos estabelecidos entre os membros de um determinado grupo social. A pr?pria consci?ncia individual resulta de uma introje??o do social. Isto porque, para Bakhtin, o social n?o se op?e ao individual, mas sim ao natural. O organismo individual, seus processo fisiol?gicos, estados emocionais, seu psiquismo primitivo s?o parte do mundo natural; a consci?ncia humana, como n?s a entendemos, capaz de reflex?o e express?o, desenvolve-se a partir da intera??o do indiv?duo com outros membros de seu grupo social. Os significados desenvolvidos nessas intera??es passam a integrar o psiquismo individual,

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articulando-o e possibilitando sua express?o atrav?s da palavra ou de quaisquer outros conjuntos simb?licos (a arte, a religi?o, a ci?ncia, as leis, etc.).

Assim, Bakhtin busca superar a dicotomia subjetivismo/ objetivismo na discuss?o da linguagem, ancorando o signo ling??stico tanto no mundo social como no psiquismo individual, numa rela??o dial?tica. A enuncia??o, express?o exterior do psiquismo individual, adquire significado em um contexto social geral e numa intera??o espec?fica. Por isso as enuncia??es s?o sempre dial?gicas, pressup?em sempre um ou v?rios interlocutores, presentes no contexto social imediato ou n?o.

A import?ncia de Bakhtin est?, em primeiro lugar, em seu pioneirismo em tentar desenvolver uma abordagem sociol?gica do fen?meno da linguagem. Muitas de suas id?ias permanecem correntes e ainda influenciam pensadores na ?rea do estudo da linguagem. Para fins de nosso trabalho, destacamos sobretudo a id?ia da linguagem como um fen?meno enraizado em um meio social espec?fico e no psiquismo dos indiv?duos que a ele pertencem, cujos significados s?o elaborados e negociados em situa??es dial?gicas. Um fen?meno social sempre em muta??o e adapta??o, evoluindo com a sociedade e refletindo as lutas travadas dentro dela.

J? na segunda metade do ?ltimo s?culo, o ling?ista americano Dell Hymes prop?e uma aproxima??o do fen?meno da linguagem que ele caracteriza como uma etnografia da fala (Hymes, 1974:89), empregando elementos metodol?gicos derivados tanto da sociologia como da antropologia. O c?digo ling??stico ? apenas um componente dos eventos comunicativos: um estudo da comunica??o verbal deve levar em considera??o o contexto social em que ela ocorre, as institui??es, valores, cren?as e costumes da comunidade.

Uma comunidade de fala deve ser definida de uma perspectiva social, e n?o ling??stica: "Parte-se de um grupo social e considera-se a organiza??o total de meios ling??sticos dentro dele, ao inv?s de come?ar com uma organiza??o parcial de meios ling??sticos chamada l?ngua" (op.cit.:47). Assim, a defini??o do que constitui "uma l?ngua", "uma variedade de uma l?ngua" ou "um dialeto" pode

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diferir de uma comunidade para outra, bem como o lugar e a import?ncia atribu?das ? comunica??o verbal dentro de cada uma delas.

A socioling??stica busca descrever a l?ngua em uso. ? esta vis?o que leva Hymes a caracterizar o que chamou de compet?ncia comunicativa, um conceito que eventualmente se tornou essencial para o desenvolvimento de metodologias para o ensino de l?nguas estrangeiras. Segundo Hymes

Dentro da matriz social na qual adquire um sistema gramatical, uma crian?a adquire tamb?m um sistema de seu uso com rela??o a pessoas, lugares, objetivos, outros modos de comunica??o, etc. ? todos os componentes de eventos comunicativos, juntamente com atitudes e cren?as em rela??o a eles (op.cit.: 75).

Este sistema de uso constitui sua compet?ncia comunicativa, tornando a crian?a capaz de participar de seu grupo social n?o apenas como "membro falante, mas comunicativo" (op.cit.:75).

Como vimos acima, a perspectiva socioling??stica foi incorporada ?s teorias de ensino e aprendizagem de l?nguas estrangeiras desde a d?cada de 70 do s?culo passado (Byram, 1997; Corbett, 2003). Segundo Byram, van Ek na Europa e Canale e Swain na Am?rica do Norte desenvolveram, com base em Hymes, modelos de compet?ncia comunicativa a serem aplicados ao ensino de l?nguas estrangeiras (op.cit.: 8 ? 10). No entanto, argumenta Byram, esses modelos n?o focalizam suficientemente a dimens?o cultural, essencial em eventos comunicativos interculturais, a seu ver "ignorando as identidades sociais e as compet?ncias culturais do aprendiz" (op.cit.: 8). Por este motivo, Byram vir? a propor uma compet?ncia comunicativa intercultural que veremos mais adiante quando considerarmos as diferentes vis?es de um ensino de l?ngua estrangeira de uma perspectiva intercultural. Antes por?m, focalizaremos as reflex?es de dois ling?istas que, mais recentemente, debru?aram-se sobre quest?es relativas a cultura e poder.

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2.1. 3.

L?ngua, cultura e poder: Fairclough e Kramsch

O ling?ista brit?nico Norman Fairclough retoma muitas das quest?es discutidas por uma abordagem sociolingu?stica, com um foco especial na conex?o entre l?ngua e poder. Para Fairclough, a atividade ling??stica ? um discurso, uma forma de pr?tica social entre outras, as quais os seres humanos se dedicam no decorrer de suas vidas como membros de uma sociedade. Como ocorre com as demais pr?ticas, a atividade ling??stica se torna poss?vel no contexto de conven??es sociais que lhe conferem significado, nesse caso o c?digo ling??stico de uma comunidade, bem como todo um sistema de refer?ncias culturais subjacente a ele. Nesse sentido, a atividade ling??stica ? socialmente determinada; mas, ao fazer uso do c?digo socialmente estabelecido, o indiv?duo o recria em contextos espec?ficos, expandindo e modificando seus significados e produzindo, por sua vez, efeitos no ambiente social.

Por esta raz?o, o c?digo ling??stico de uma comunidade n?o ? um produto acabado, cristalizado, mas em cont?nua muta??o e evolu??o. Assim, como vimos acima na discuss?o do pensamento de Hymes (1974) e Pennycook (1994), o conceito de uma l?ngua como um sistema fechado, de "propriedade" de um grupo social particular ? um mito criado com finalidades espec?ficas. Fairclough procura explicitar como este mito serve a fins interessados e a lutas de poder dentro de uma sociedade espec?fica.

Tomando como ponto de partida uma vis?o comprometidamente socialista ? at? porque, afirma ele, uma vis?o neutra, descomprometida ? uma impossibilidade ? Fairclough situa o fen?meno ling??stico no contexto de grupos humanos onde o acesso a bens, tanto materiais como intang?veis, ? objeto de disputa entre seus diferentes segmentos. Como tal, a atividade ling??stica ? simultaneamente local e objeto dessas disputas. Local na medida em que conven??es ling??sticas bem como os usos feitos destas por diferentes sujeitos incorporam, refletem e refor?am as diferen?as entre eles. Como exemplos, o autor menciona os usos da linguagem que refletem uma posi??o de subordina??o das mulheres assim como aqueles que servem para refor?ar a subordina??o de grupos ?tnicos ou de classe social, tais

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