O saber local, aspectos culturais e históricos para a ...

DOI 10.35953/raca.v1i1.24

O saber local, aspectos culturais e hist?ricos para a promo??o da alimenta??o adequada, saud?vel e sustent?vel

Local knowledge, cultural and historical aspects for the promotion of adequate, healthy, and sustainable food

Conocimiento local, aspectos culturales e hist?ricos para la promoci?n de alimentos adecuados, saludables y sostenibles

F?bio Liborio Rocha1, Erica Ell2

1 P?s-doutor em Psicologia Cl?nica, Professor do Centro Universit?rio do Distrito Federal. E-mail: liborio.fabio@

2 Doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento, Pesquisadora na Funda??o Oswaldo Cruz. E-mail: erica.ell@fiocruz.br

RESUMO

Este ensaio objetiva promover uma reflex?o sobre a cultura do consumo alimentar do feij?o no Brasil, enquanto protagonizador de nossa identidade ?tnica afrobrasileira e elemento favorecedor de um poder local, a partir de um enfoque hist?rico-cultural. A tem?tica proposta foi balizada teoricamente por meio da ideia de saber local apresentada por Geertz. O olhar hist?rico-cultural, n?o somente amplia a leitura cient?fica de dados quantitativos de consumo de um alimento, como tamb?m garante um entendimento mais amplo, significativo e din?mico do consumo alimentar. O componente hist?rico e cultural da alimenta??o ?, assim, t?o importante quanto o econ?mico e o nutricional para a promo??o de uma alimenta??o adequada, saud?vel e sustent?vel. Ao evidenciar que o feij?o se encontra alheio ? cultura globalizada, devemos considerar o feij?o como alimento a ser fomentado por ser um patrim?nio hist?rico nacional. Devemos incentivar a organiza??o de circuitos culturais, locais, regionais e nacional, tanto did?ticos, quanto populares, visando a valoriza??o da mem?ria deste prato e de sua representa??o simb?lica. Palavras-chave: Cultura alimentar; Sistemas Alimentares; Patrim?nio Alimentar; Alimenta??o.

ABSTRACT

This essay aims to promote a reflection on the culture of bean food consumption in Brazil, as a protagonist of our Afro-Brazilian ethnic identity and a favoring element of a local power, based on a historical-cultural approach. The proposed theme was theoretically marked by the idea of local knowledge presented by Geertz. The

Rev. de Alim. Cult. Am?ricas - RACA. 1(1):80-91, jan./jun, 2020

ISSN 2596-3082 124

DOI 10.35953/raca.v1i1.24

historical-cultural view not only broadens the scientific reading of quantitative data on food consumption, but also ensures a broader, meaningful and dynamic understanding of food consumption. The historical and cultural component of food is thus as important as the economic and nutritional component in promoting proper, healthy and sustainable food. When evidencing that the bean is alien to the globalized culture, we must consider the bean as food to be fomented for being a national historical patrimony. We should encourage the organization of cultural, local, regional and national circuits, both didactic and popular, aiming at enhancing the memory of this dish and its symbolic representation. Keywords: Food culture. Food systems. Food Patrimony. Food.

RESUMEN

Este ensayo tiene como objetivo promover una reflexi?n sobre la cultura del consumo de alimentos del frijol en Brasil, como protagonista de nuestra identidad ?tnica afrobrasile?a y un elemento favorable de un poder local, desde un enfoque hist?rico-cultural. El tema propuesto estuvo te?ricamente marcado por la idea de conocimiento local presentada por Geertz. La visi?n hist?rico-cultural no solo ampl?a la lectura cient?fica de datos cuantitativos sobre el consumo de alimentos, sino que tambi?n garantiza una comprensi?n m?s amplia, significativa y din?mica del consumo de alimentos. El componente hist?rico y cultural de los alimentos es, por lo tanto, tan importante como el componente econ?mico y nutricional en la promoci?n de alimentos adecuados, saludables y sostenibles. Al evidenciar que el frijol es ajeno a la cultura globalizada, debemos considerar el frijol como alimento que se fomenta por ser un patrimonio hist?rico nacional. Debemos alentar la organizaci?n de circuitos culturales, locales, regionales y nacionales, tanto did?cticos como populares, con el objetivo de mejorar la memoria de este plato y su representaci?n simb?lica.

Palabras clave: Cultura alimentaria; El patrimonio alimentario; La comida.

Introdu??o

A investiga??o sobre os n?veis hist?rico-culturais que envolvem os alimentos e

a alimenta??o ? sine qua non para entender os aspectos que permeiam os h?bitos e

as pr?ticas alimentares. Ao pensar sobre o universo de consumo natural de outrora -

feij?es, mandioca, couve -, por exemplo, percebe-se que hoje n?o ? mais poss?vel

observar o alimento apenas em ?mbito do funcional. Tudo o que ? socializado da

natureza em tempos p?s-modernos apresenta a presen?a da m?o do homem: o ar

polu?do, a ?gua com merc?rio do garimpo, os agrot?xicos. N?o se ingere mais um

Rev. de Alim. Cult. Am?ricas - RACA. 1(1):80-91, jan./jun, 2020

ISSN 2596-3082 125

DOI 10.35953/raca.v1i1.24

feij?o selvagem, naturalmente pensando; ingere-se um feij?o culturalizado pela agricultura e pelo ambiente. Esta humaniza??o, sem d?vida, tamb?m deve ser ponderada no universo da hist?ria da alimenta??o.

Para abordar essa tem?tica, balizamos teoricamente o presente ensaio por meio da ideia de "saber local" conforme Geertz (1), que considera:

"(...) `Local' knowledge and "universal", but between one sort of local knowledge (say, neurology) and another (say, ethnography). As all politics, however consequential, is local, so, however ambitious, is all understanding. No one knows everything, because there is no everything to know. (...) In cultural antropology, or indeed anywhere in the human sciences, that is not laughable or outmoded. Perhaps a proposal from a few years back that cultural traits diffuse ? that is, migrate across the globe (...)".

Desse modo, o fio condutor sobre o "saber local" que nortear? as reflex?es do presente ensaio ser? a capacidade de responder ao empuxo globalizante de h?bitos culturais que est?o em constante muta??o, assim como a pessoa humana. No mundo globalizado, as multinacionais da alimenta??o refor?am economicamente a comercializa??o de produtos b?rbaros, extravagantes e estranhos ? cultura local.

Para compreender a cultura alimentar, ? fundamental nos situarmos no contexto da cultura, como uma fronteira estabelecida entre dois objetos sociais, paralelos, coexistentes, mas que, quanto maior sua sincronicidade maior o afastamento entre os elementos facilitadores desta diferen?a. Neste sentido, a quest?o alimentar est? situada entre lugares de problemas complexos (3), tendo em vista que, um alimento aliado a fatores culturais demarcados em uma culin?ria ?tnica de uma microrregi?o brasileira, por exemplo, garante ali o consumo em dada medida, mas que, no entanto, pode declinar ou se modificar ao longo do tempo, como tamb?m ser diferente em distintos lugares do Brasil, em grupos socioculturais distintos. Essa ? a cr?tica de Geertz (1989, p.8) ? defini??o de cultura:

(...) Uma delas ? imaginar que a cultura ? uma realidade `superorg?nica? autocontida, com for?as e prop?sitos em si mesma, isto ?, reific?-la. Outra ? alegar que ela consiste no padr?o bruto de acontecimentos comportamentais que de fato observamos ocorrer em uma ou outra comunidade identific?vel ? isso significa reduzi-la (...).

Rev. de Alim. Cult. Am?ricas - RACA. 1(1):80-91, jan./jun, 2020

ISSN 2596-3082 126

DOI 10.35953/raca.v1i1.24

Portanto, um olhar hist?rico-cultural, n?o somente amplia a leitura cient?fica de dados quantitativos de consumo de um alimento, como tamb?m garante um entendimento mais amplo, significativo e din?mico do consumo alimentar. O componente hist?rico e cultural da alimenta??o ?, assim, t?o importante quanto o econ?mico e o nutricional para a promo??o de uma alimenta??o adequada, saud?vel e sustent?vel.

A abordagem empreendida neste ensaio objetiva promover uma reflex?o sobre a cultura do consumo alimentar do feij?o no Brasil, enquanto protagonizador de nossa identidade ?tnica afro-brasileira e elemento favorecedor de um poder local.

A hist?ria cultural do Feij?o

O feij?o-preto no Brasil ? um alimento cultural, tradicional, desde sua produ??o at? o seu preparo, seu tempero, suas medidas de ?gua para se obter um caldo grosso. C?mara Cascudo (4) situa a sua origem na ilha africana de Cabo Verde. Ao considerar que o conceito de "cultura" significa diferen?a, o feij?o e seu consumo no Brasil passam necess?ria e igualmente por um usufruto cultural, que ser? ao mesmo tempo ?tnico e regional.

Em nosso pa?s se percebe a exist?ncia de muitos "Brasis" (5) que se alteram ao longo do tempo e, neste contexto, qualquer prato t?pico presente pode ter sido antes nomeado culturalmente em outra l?ngua ou outro dialetoI1, como o faijon dos portugueses medievais, por exemplo (6). E por que n?o conseguimos lidar com estes pratos sem acultur?-lo? Os resinificamos e assim, passam a esconder a sua trajet?ria hist?rico-cultural em uma praxis de ocultamento e deixamos correntemente de perceber seu longo percurso hist?rico. A etnia dos Bantos no Brasil colonial, por exemplo, tinha o h?bito de comer um feij?o peneirado chamado de "Kitande"guizado de feij?o fradinho sem casca (4), semelhante ao Tut? de feij?o, descendente

I Gilles Deleuze (2000:22) sabia muito bem que existem genealogias que s?o camufladas na cultura ocidental, inclusive os dialetos: "[...] Um rizoma n?o cessaria de conectar cadeias semi?ticas, organiza??es de poder, ocorr?ncias que remetem ?s artes, ?s ci?ncias, ?s lutas sociais. Uma cadeia semi?tica ? como um tub?rculo que aglomera atos muito diversos, ling??sticos, mas tamb?m perceptivos, m?micos, gestuais, cogitativos: n?o existe l?ngua em si, nem universalidade da linguagem, mas um concurso de dialetos, de pato?s, de g?rias, de l?nguas especiais [...]".

Rev. de Alim. Cult. Am?ricas - RACA. 1(1):80-91, jan./jun, 2020

ISSN 2596-3082 127

DOI 10.35953/raca.v1i1.24

dessa culin?ria. Este Kitande, ? patrim?nio cultural brasileiro - vivenciando uma exist?ncia braudeliana (7) de "Longa Dura??o", ainda ? consumido, por sorte, dentro do candombl?.

Al?m disso, ao refletir sobre as nossas culturas culin?rias ligadas a religiosidades ou c?nticos, como disse um especialista em hist?ria da alimenta??o, Flandrin (8) se referindo ao seu pr?prio pa?s: "[...] Multiplicam as festas em que as especialidades culin?rias pontuam os rituais desfiles de trajes, leituras em dialeto, c?nticos e dan?as tradicionais [...]", verifica-se com surpresa, que esse cen?rio se harmoniza totalmente ao que acontece em uma festa em terreiro de candombl?.

N?o existem coincid?ncias culin?rias tradicionais; nosso modo de preparar o feij?o apresenta um lastro cultural da cultura Banta, qual formou etnicamente nosso pa?s (4) e por isso mesmo tamb?m ? parte substancial de nossa culin?ria. E se, por outro lado, associarmos o consumo de feij?o as nossas religiosidades plurais e includentes, devemos nos lembrar de que na Umbanda e no Candombl?, o feij?o ? um alimento associado ? divindade afro-brasileira "Oxum", e mesmo o Tut? de feij?o, ? associado ? divindade "Omolu" (4). Como a cultura exige uma longa dura??o da pr?tica para formar o h?bito e se singularizar frente ? outras, percebemos que o feij?o foi e ? consumido no Brasil desde o s?culo XVI, portanto entre brancos, negros, ?ndios e mesti?os (4).

Com o decl?nio do consumo m?dio do feij?o, como mostram as pesquisas, certamente poderemos identificar, aliando-se ao estudo cultural, apontar geograficamente regi?es brasileiras de car?ter eminentemente africano em resist?ncia. Desta forma, devemos atentar para onde esta etnia desenvolveu receitas e preparos que mantem o feij?o presente ? mesa cotidianamente, mesmo depois da acultura??o promovida pela mundializa??o do in?cio do s?culo XX e da globaliza??o dos h?bitos alimentares em finais deste mesmo s?culo, t?o denunciada por Milton Santos (9).

Verifica-se que o termo cultura designa um afastamento significativo entre diversas vari?veis produzidas por etnias diferentes (1) (2) (4) (9) (10). Com efeito, o termo ? empregado para reagrupar um conjunto de afastamentos significativos cujos limites a experi?ncia prova coincidirem aproximadamente. No entanto, para o

Rev. de Alim. Cult. Am?ricas - RACA. 1(1):80-91, jan./jun, 2020

ISSN 2596-3082 128

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download