Os Lusíadas e outros escritos



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OBRAS

ÍNDICE

Biografia

Os Lusíadas

Redondilhas

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Canções e Elegias

Odes, Oitavas e Sextina

Éclogas

Apêndices às rimas

Autos

Cartas

Sobre esta edição

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Luís de Camões nasceu por 1524 ou 25, provavelmente em Lisboa. Seus pais eram Simão Vaz de Camões e Ana de Sá.

Tudo parece indicar, embora a questão se mantenha controversa, que Camões pertencia à pequena nobreza. Um dos documentos oficiais que se lhe refere, a carta de perdão datada de 1553, dá-o como «cavaleiro fidalgo» da Casa Real. A situação de nobre não constituía qualquer garantia económica. O fidalgo pobre é, aliás, um tipo bem comum na literatura da época. São especialmente certeiras, e baseadas num estudo argutíssimo e bem fundamentado, as palavras de Jorge de Sena, segundo as quais Camões seria e se sentia «nobre» «mas perdido numa massa enorme de aristocratas socialmente sem estado, e para sustentar os quais não havia Índias que chegassem, nem comendas, tenças, capitanias, etc.».

É difícil explicar a vastíssima e profunda cultura do poeta sem partir do princípio de que frequentou estudos de nível superior. O facto de se referir, na lírica, a «longo tempo» passado nas margens do Mondego, ligado à circunstância de , pela época que seria a dos estudos, um parente de Camões, D. Bento, ter ocupado os cargos de prior do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e de cancelário da Universidade, levou à construção da hipótese de ter Camões estudado em Coimbra, frequentando o mosteiro de Santa Cruz.

Mas nenhum documento atesta a veracidade desta hipótese; e é fora de dúvida que não passou pela Universidade.

Antes de 1550 estava a viver em Lisboa, onde permaneceu até 1553. Essa estadia foi interrompida por uma expedição a Ceuta onde foi ferido e perdeu um dos olhos.

Em Lisboa, participou com diversas poesias nos divertimentos poéticos a que se entregavam os cortesãos; relacionou-se através desta actividade literária com damas de elevada situação social, entre as quais D. Francisca de Aragão (a quem dedica um poema antecedido de uma carta requintada e subtil galanteria); e com fidalgos de alta nobreza, com alguns dos quais manteve relações de amizade. Representa-se por esta época um auto seu, El-rei Seleuco, em casa de uma importante figura da corte.

Estes contactos palacianos não devem contudo representar mais do que aspectos episódicos da sua vida, pois a faceta principal desta época parece ser aquela de que dão testemunho as cartas (escritas de Lisboa e da Índia).

Através do calão conceituoso, retorcido e sarcástico, descobre-se-nos um homem que escreve ao sabor de uma irónica despreocupação, vivendo ao deus-dará, boémio e desregrado. Divide-se entre uma incansável actividade amatória (sem pruridos sobre a qualidade das mulheres com quem priva) e a estroinice de bandos de rufiões, ansiosos por rixas de taberna ou brigas de rua onde possam dar largas ao espírito valentão, sem preocupações com a nobreza das causas por que se batem.

Não parece, por esta época, ter modo de vida; e esta leviandade a descambar para a dissolução está de acordo com os documentos através dos quais podemos reconstruir as circunstâncias da sua partida para a Índia.

Na sequência de uma desordem ocorrida no Rossio, em dia do Corpo de Deus, na qual feriu um tal Gonçalvo Borges, foi preso por largos meses na cadeia do Tronco e só saiu - apesar de perdoado pelo ofendido - com a promessa de embarcar para a Índia. Além de provável condição de libertação, é bem possível que Camões tenha visto nesta aventura - a mais comum entre os portugueses de então - uma forma de ganhar a vida ou mesmo de enriquecer. Aliás, uma das poucas compatíveis com a sua condição social de fidalgo, a quem os preconceitos vedavam o exercício de outras profissões.

Foi soldado durante três anos e participou em expedições militares que ficaram recordadas na elegia O poeta Simónides, falando (expedição ao Malabar, em Novembro de 1553, para auxiliar os reis de Porcá) e na canção Junto de um seco, fero, estéril monte (expedição ao estreito de Meca, em 1555).

Esteve também em Macau, ou noutros pontos dos confins do Império. Desempenhando as funções de provedor dos bens dos ausentes e defuntos, como informa Mariz?

Não é ponto assente. Mas o que se sabe é que a nau em que regressava naufragou e o poeta perdeu o que tinha amealhado, salvando a nado Os Lusíadas na foz do rio Mecon, episódio a que alude na estância 128 do Canto X.

Para cúmulo da desgraça foi preso à chegada a Goa pelo governador Francisco Barreto.

Ao fim de catorze anos de vida desafortunada(pelo menos ainda uma outra vez esteve preso por dívidas), intervalada certamente por períodos mais folgados, sobretudo quando foi vice-rei D. Francisco Coutinho, conde de Redondo (a quem dedicou diversos poemas que atestam relações amistosas), empreende o regresso a Portugal. Vem até Moçambique a expensas do capitão Pero Barreto Rolim, mas em breve entra em conflito com ele e fica preso por dívidas. Diogo do Couto relata mais este lamentável episódio, contando que foram ainda os amigos que vinham da Índia que - ao encontrá-lo na miséria - se cotizaram para o desempenharem e lhe pagarem o regresso a Lisboa. Diz-nos ainda que, nessa altura, além dos últimos retoques n’Os Lusíadas, trabalhava numa obra lírica, o Parnaso, que lhe roubaram - o que, em parte, explica que não tenha publicado a lírica em vida.

Chega a Lisboa em 1569 e publica Os Lusíadas em 1572, conseguindo uma censura excepcionalmente benévola.

Apesar do enorme êxito do poema e de lhe ter sido atribuída uma tença anual de 15000 réis, parece ter continuado a viver pobre, talvez pela razão apontada por Pedro Mariz: «como era grande gastador, muito liberal e magnífico, não lhe duravam os bens temporais mais que enquanto ele não via ocasião de os despender a seu bel-prazer.» Verídica ou legendária, esta é a nota marcante dos últimos anos (e aliás o signo sob o qual Mariz escreve toda a biografia).

Morreu em 10 de Junho de 1580. Algum tempo mais tarde, D. Gonçalo Coutinho mandou gravar uma lápide para a sua campa com os dizeres: «Aqui jaz Luís de Camões, Príncipe dos Poetas de seu tempo. Viveu pobre e miseravelmente, e assi morreu.»

As incertezas e lacunas desta biografia, ligadas ao carácter dramático de alguns episódios famosos (reais ou fictícios): amores impossíveis, amadas ilustres, desterros, a miséria, o criado jau mendigando de noite para o seu senhor; e a outros acontecimentos cheios de valor simbólico: Os Lusíadas salvos a nado, no naufrágio; a morte em 1580 - tudo isto proporcionou a criação de um ambiente lendário à roda de Camões que se torna bandeira de um país humilhado.

Mais tarde, o Romantismo divulgou uma imagem que salienta em Camões o poeta-maldito, perseguido pelo infortúnio e incompreendido pelos contemporâneos, desterrado e errante por ditame de um fado inexorável, chorando os desgostos amorosos e morrendo na pátria abandonado e reduzido à miséria.

Não há dúvida de que os poucos dados conhecidos e muito do conteúdo autobiográfico da obra autorizam essa imagem. Mas ela esquece em Camões outras facetas não menos verdadeiras da personalidade riquíssima, complexa, paradoxal que foi a sua: o humanista, o homem do «honesto estudo» e da imensa curiosidade intelectual aberta quer à cultura mais requintada do seu tempo, quer às coisas tais como se lhe davam e que a arguta observação descobria, mesmo que contradissessem os preconceitos culturais vigentes; o pensador que infatigavelmente vai reflectido sobre os acontecimentos - sociais, políticos, culturais, individuais... - movido por uma sôfrega necessidade de compreender, de «achar razões»: graves reflexões sobre o destino da pátria; meditações sobre o amor, o saber, o tempo, a salvação... Ainda o homem da dura experiência (viagens, naufrágios, prisões, desprezos ou perseguições, humilhações e pobreza) que constitui um suporte vital autêntico do desconcerto referido na obra (o que aliás nada acrescenta ao mérito literário dela).

Revela-se vincadamente na sua obra a lúcida e orgulhosa consciência que vai formando da sua genialidade como poeta, da sua superioridade como homem. Apaixonado, violento, impetuoso, sabe-se grande, independente das honras e riquezas que não lhe deram e que também nada alterariam ao valor intrínseco da sua obra e da sua alta missão cívica; por isso, de forma fidalga, generosa, esbanja os seus bens (económicos ou intelectuais) e ganha essa fama de «liberal e magnífico».

A imagem final que nos fica de Camões é feita de fragmentos paradoxais: o cortesão galante; o boémio arruaceiro; o ressentido; o homem que se entrega a um erotismo pagão; o cristão da mais ascética severidade. Fragmentos que se reflectem e refractam na obra, que por sua vez revela e oculta um conteúdo autobiográfico ambíguo, deliberadamente enigmático.

Camões publicou em vida apenas uma parte dos seus poemas, o que deu origem a grandes problemas sobre a fixação do conjunto da obra.

Além d’Os Lusíadas editados em 1572, da lírica apenas foram impressas algumas composições que introduziam livros que o poeta pretendia recomendar ou apresentar: os Colóquios dos Simples e drogas e coisas medicinais da Índia, do Dr.Garcia de Orta, publicado em Goa em 1563 e a História da Província de Santa Cruz de Pero de Magalhães Gândavo de 1576.

Toda a restante obra foi publicada postumamente, o que não é para estranhar demasiado, já que a circulação das obras - sobretudo líricas - se fazia correntemente em manuscritos, recolhidos com frequência em «cancioneiros de mão», muitos dos quais chegaram até nós e constituem as principais fontes para as edições camonianas.

Em 1587 foram editados os autos Enfatriões e Filodemo.

Em 1595 tem lugar a primeira edição das Rimas e logo em 1598 a segunda.

Seguiram-se muitas outras e veio a lume, na de 1645, o auto de El-Rei Seleuco, a obra dramática de Camões que restava publicar.

Quanto às cartas, duas delas apareceram na edição de 1598, e as outras duas são já descobertas no século XX.

Índice Geral

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Últimas alterações efectuadas em 22 de Fevereiro de 1997

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Primeira Edição

Índice

Canto Primeiro

As armas e os barões assinalados...

Canto Segundo

Já neste tempo o lúcido Planeta...

Canto Terceiro

AGORA tu, Calíope, me ensina...

Canto Quarto

DESPOIS de procelosa tempestade...

Canto Quinto

ESTAS sentenças tais o velho honrado...

Canto Sexto

NÃO sabia em que modo festejasse...

Canto Sétimo

JÁ se viam chegados junto à terra...

Canto Oitavo

Na primeira figura se detinha...

Canto Nono

Tiveram longamente na cidade...

Canto Décimo

Mas já o claro amador da Larisseia...

Índice Geral

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Índice

Index

038 ... Amor cuja providência (1595)

032 ... Amor que em meu pensamento (1595)

033 ... Ana quisestes que fosse (1668)

106 ... Aquela cativa (1595)

062 ... Aquele rosto que traz (1595)

014 ... A verdura amena (1598)

081 ... Baixos e honestos andais (1595)

011 ... Campo, que te estendes (1598)

051 ... Campos cheios de prazer (1595)

060 ... Caterina é mais fermosa (1595)

101 ... Cinco galinhas e meia (1616)

112 ... Conde, cujo ilustre peito (1595)

117 ... Corre sem vela e sem leme (1595)

071 ... Costumadas artes sao (1595)

063 ... Cousa que este corpo não tem (1595)

093 ... Cum real de amor (1598)

026 ... Da lindeza vossa (1595)

015 ... Dama d'estranho primor (1595)

105 ... D'Amor e seus danos (1595)

056 ... De maneira me sucede (1668)

031 ... Despois de sempre sofrer 1595)

083 ... Después que Amor me formo (1595)

035 ... Desque una vez miré (1616)

077 ... De ver-vos a não vos ver (1595)

073 ... Dióme Amor tormentos dos (1595)

007 ... Dotou em vos natureza (1595)

004 ... Dous tormentos vejo (1616)

041 ... É muito pera notar (1595)

012 ... Eles verdes são (1595)

010 ... Entre estes penedos (1598)

085 ... E se a pena não me atiça (1598)

022 ... Esses alfinetes vao (1595)

115 ... Este mundo es el camino (1595)

002 ... Este tempo vão (1595)

091 ... Eu, pera levar a palma (1668)

013 ... Eu sou boa testemunha (l595)

048 ... Falsos loores os dán (1595)

065 ... Foi a Esperança julgada (1595)

088 ... Ja'gora certo conheço (1598)

057 ... Juravas-me que outras cabras (1598)

053 ... Leva na cabeça o pote (1668)

089 ... Madre. si me fuere (1595)

040 ... Menina mais que na idade (1595)

068 ... Mi corazón me han robado (1595)

069 ... Mi nueva y dulce querella (1595)

086 ... N'alma ua so ferida (1598)

100 ... Nao posso chegar ao cabo (1616)

043 ... Não sabendo Amor curar (1595)

019 ... Não sei quem assela (1598)

055 ... Não vos guardei, quando vinha (1668)

008 ... Ninguém vos pode tirar (1616)

005 ... Nos seus olhos belos (1616)

064 ... NÜa casada fui pôr (1595)

084 ... Nunca em prazeres passados (1668)

029 ... Nunca o prazer se conhece (1595)

066 ... O coração envejoso (1595)

042 ... Olhai que dura sentença (1595)

116 ... Os bons vi sempre passar (1598)

082 ... Os gostos, que tantas dores (1598)

052 ... Os privilégios que os reis (1595)

049 ... Para evitar dias maus (1860)

020 ... Peço-vos que me digais (1595)

024 ... Pelo meu apartamento (1616)

072 ... Para quem vos soube olhar (1595)

092 ... Perdigão, que o pensamento (1598)

027 ... Pois a tantas perdições (1598)

103 ... Pois onde te hão-de falar? (1616)

045 ... Pois o ver-vos tenho em mais (1595)

017 ... Por cousa tão pouca (1595)

059 ... Posible es a mi cuidado (1595)

054 ... Posto o pensamento nele (1616)

030 ... Pues me distes tal herida (1668)

023 ... Quando me quer enganar (1595)

003 ... Quando vos eu via (1595)

109 ... Que diabo há tão danado (1616)

108 ... Quem no mundo quiser ser (1595)

036 ... Quem põe suas confianças (1616)

099 ... Quem quer que viu, ou que leu (1595)

079 ... Quem tão mal vos empregou (1595)

080 ... Quem viveu sempre num ser (595)

039 ... Querendo Amor esconder-vos (1668)

006 ... Querendo escrever um dia (1595)

107 ... Quererdes profano Amor (1595)

090 ... Reinando Amor em dous peitos (1595)

061 ... Se de dó vestida andais (1595)

018 ... Se derivais de verdade (1595)

021 ... Se de saudade (1595)

076 ... Se desejos fui jà ter (1595)

087 ... Se me for e vos deixar (1598)

097 ... Se na alma e no pensamento (1598)

113 ... Se não quereis padecer (1595)

034 ... Se só no ser puramente (1595)

025 ... Se trocar desejo (1595)

050 ... Se vos quereis embarcar (1668)

098 ... Sem olhos vi o mal claro (1598)

114 ... Sendo os restos envidados (1595)

001 ... Senhora, se eu alcançasse (1595)

095 ... Sepa quién padece (1616)

118 ... Sôbolos rios que vôo (1595)

094 ... Só porque é rapaz ruim (1598)

016 ... Suspeitas que me quereis (1595)

028 ... Tanto maiores tormentos (1595)

046 ... Tem tal jurdição Amor (1595)

070 ... Tenho-me persuadido (1595)

047 ... Tiempo perdido es aquel (1595).

044 ... Todo o trabalhado bem (1595).

075 ... Trataram-me com cautela (1595).

009 ... Tudo tendes singular (1616)

067 ... Üa Dama, de malvada (1595).

078 ... Üa diz que me quer bem (1595).

058 ... Ved que enganos señorea (1595)

104 ... Vêm-se rosas e boninas (1616).

037 ... Vendo amor que, com vos ver.

074 ... Vi-o moço o pequenino (1595)

111 ... Viver eu, sendo mortal (1595)

110 ... Vossa Senhoria creia

096 ... [Vós] sois ua Dama (1668)

102 ... —Vuelve acá, no estês pasmado (1616)

103...Mas já o claro amador da Larisseia...

Índice Geral

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Índice

Index

Soneto 136 ... A fermosura desta fresca serra (1668)

Soneto 114 ... Ah! Fortuna cruel! Ah! duros Fados! (1685-1668)

Soneto 115 ... Ah! Imiga cruel, que apartamento (1685-1668)

Soneto 101 ... Ah! Minha Dinamene! Assi deixaste (1685-1668)

Soneto 013 ... Alegres campos, verdes arvoredos (1595)

Soneto 080 ... Alma minha gentil, que te partiste (1595)

Soneto 083 ... Amor, co a esperança já perdida (1595)

Soneto 005 ... Amor é um fogo que arde sem se ver

Soneto 042 ... Amor, que o gesto humano n'alma escreve (1598)

Soneto 058 ... A morte, que da vida o no desata (1616)

Soneto 068 ... Apartava-se Nise de Montano (1595)

Soneto 051 ... Apolo e as nove Musas, discantando (1595)

Soneto 041 ... Aquela fera humana, que enriquece (1598)

Soneto 098 ... Aquela que, de pura castidade (1598)

Soneto 081 ... Aquela triste e leda madrugada (1595)

Soneto 116 ... Aqueles claros olhos que chorando(1860)

Soneto 038 ... Árvore, cujo pomo, belo e brando (1616)

Soneto 001 ... A ti, Senhor, a quem as sacras Musas.

Soneto 096 ... Bem sei, Amor, que é certo o quereceio (1598)

Soneto 003 ... Busque Amor novas artes, novo engenho (l595).

Soneto 120 ... Cá nesta Babilónia? donde mana (1616)

Soneto 103 ... Cantando estava um dia bem seguro (1616)

Soneto 086 ... Cara minha inimiga, em cuja mão (1595)

Soneto 159 ... Chorai, Ninfas, os fados poderosos (1668)

Soneto 097 ... Com grandes esperanças já cantei (1598)

Soneto 071 ... Como fizeste, Pórcia, tal ferida ? (1595)

Soneto 043 ... Como quando do mar tempestuoso (1598)

Soneto 093 ... Conversação doméstica afeiçoa (1598)

Soneto 104 ... Correm turvas as águas deste rio (1616)

Soneto 052 ... Dai-me üa lei, Senhora, de querer-vos (1595)

Soneto 150 ... Debaixo desta pedra esta metido (1595)

Soneto 094 ... Depois que quis Amor que eu só passasse (1598)

Soneto 152 ... Despois que viu Cibele o corpo humano (1616)

Soneto 153 ... De tão divino acento e voz humana (1595)

Soneto 151 ... De um tão felice engenho produzido (1668)

Soneto 057 ... De vos me aparto, ó vida! Em tal mudança (1595)

Soneto 137 ... Diana prateada, esclarecia (1668)

Soneto 044 ... Ditoso seja aquele que somente (1598)

Soneto 056 ... Diversos does reparte o Céu benino (1616)

Soneto 121 ... Dizei, Senhora, da beleza ideia (1668)

Soneto 122 ... Doce contentamento já passado (1663)

Soneto 123 ... Doce sonho, suave e soberano (1668)

Soneto 006 ... Doces águas e claras do Mondego (1616)

Soneto 082 ... Doces lembranças da passada gloria (1595)

Soneto 154 ... Dos ilustres antigos que deixaram (1598)

Soneto 146 ... El vaso reluciente y cristalino (1668).

Soneto 072 ... Em fermosa Leteia se confia (1595)

Soneto 149 ... Em flor vos arrancou, de entã o crecida(1595)

Soneto 085 ... Em prisoes baixas fui um tempo atado (1598)

Soneto 124 ... Enquanto FeLo os montes acendia (1668)

Soneto 001 ... Enquanto quis Fortuna que tivesse (1595)

Soneto 108 ... Erros meus, ma fortuna, amor ardente (1 616)

Soneto 155 ... Esforço grande, igual ao pensamento (1598)

Soneto 014 ... Esta lascivo e doce passarinho (1595)

Soneto 024 ... Estâ-se a Primavera trasladando (1595)

Soneto 125 ... Este amor que vos tenho, limpo e puro(1668)

Soneto 109 ... Eu cantarei de amor tao docemente (1595)

Soneto 000 ... Eu cantei la, e agora vou chorando (1616)

Soneto 111 ... Eu vivia de lagrimas isento (1668)

Soneto 065 ... Ferido sem ter cura parecia (1598)

Soneto 091 ... Fermosos olhos, que na idade nossa (1595)

Soneto 066 ... Fiou-se o coração, de muito isento (1598)

Soneto 087 ... Foi jà num tempo doce cousa amar (1598)

Soneto 126 ... Fortuna em mim guardando seu direito (1685-1668)

Soneto 025 ... Grão tempo ha já que soube da Ventura (1595)

Soneto 162 ... Ilustre o dino ramo dos Meneses (1598)

Soneto 112 ... Indo o triste pastor todo embebido (1668)

Soneto 078 ... Já a saudosa Aurora destoucava (1598)

Soneto 127 ... Já nao sinto, Senhora, os desenganou (1668)

Soneto 105 ... Julga-me a gente toda por perdido (1616)

Soneto 045 ... Leda serenidade deleitosa (1598)

Soneto 113 ... Lembranças que lembrais o meu bem passado(1685-1668)

Soneto 015 ... Lembranças saudosos, se cuidais (1595)

Soneto 023 ... Lindo e sutil trancado, que ficaste (1595)

Soneto 084 ... Males, que contra mim vos con jurastes (1595)

Soneto 128 ... Memória de meu bem, cortado em flores (1860)

Soneto 092 ... Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades (1595)

Soneto 110 ... Na desesperação já repousava (1616).

Soneto 073 ... Náiades, vos, que os rios habitais (1595)

Soneto 077 ... Na metade do Céu subido ardia (1598)

Soneto 156 ... Não passes, caminhante! Quem me chama (1595)

Soneto 129 ... Na ribeira do Eufrates assentado (1668)

Soneto 157 ... No mundo poucos anos, e cansados(1598)

Soneto 046 ... No mundo quis um tempo que se achasse (1598

Soneto 099 ... No tempo que de Amor viver soía (1598)

Soneto 074 ... Num bosque que dos Ninfas se habitava (1595)

Soneto 022 ... Num jardim adornado de verdura (1595)

Soneto 130 ... Num tão alto lugar, de tanto preço (1668)

Soneto 106 ... O Céu, a terra, o vento sossegado (1616)

Soneto 000 ...O cisne, quando sente ser chegada (1595)

Soneto 025 ... Oh como se me alonga, de ano em ano

Soneto 039 ... O culto divinal se celebrava (1598)

Soneto 131 ... O dia em que eu nasci, moura e pereça (1860)

Soneto 079 ... O filho de Latona esclarecido (1616)

Soneto 007 ... O fogo que na branda cera ardia (1595)

Soneto 132 ... Olhos fermosos, em quem quis Natura (1668)

Soneto 095 ... Ondados fios d'ouro reluzente (1598).

Soneto 047 ... Óh quão caro me custa o entender-te (1598)

Soneto 067 ... O raio cristalino s'estendia (1598)

Soneto 161 ... Os reinos e os impérios poderosos (1595)

Soneto 064 ... Os vestidos Elisa revolvia (1598)

Soneto 133 ... O tempo acaba o ano, o mês e a hora (1668)

Soneto 021 ... Passo por meus trabalhos tão isento(1595)

Soneto 008 ... Pede o desejo, Dama, que vos veja (1595)

Soneto 076 ... Pelos extremos raros que mostrou (1595)

Soneto 031 ... Pensamentos, que agora novamente (1598).

Soneto 089 ... Pois meus olhos não cansam de chorar (1595)

Soneto 037 ... Por cima destas águas, forte e firme (1616)

Soneto 027 ... Porque quereis, Senhora, que ofereça (1595)

Soneto 062 ... Por sua Ninfa, Céfalo deixava (1616)

Soneto 134 ... Posto me tem Fortuna em tal estado (1668)

Soneto 036 ... Presença bela, angélica figura (1616)

Soneto 147 ... Pues lágrimas tratáis, mis ojos tristes (1685-1668)

Soneto 138 ... Quando a suprema dor muito me aperta (1685-1668)

Soneto 117 ... Quando cuido no tempo que, contente (1668)

Soneto 009 ... Quando da bela vista e doce riso (1595)

Soneto 100 ... Quando de minhas mágoas a comprida

Soneto 018 ... Quando o sol encoberto vai mostrando (1595)

Soneto 139 ... Quando, Senhora, quis Amor que amasse (1668)

Soneto 135 ... Quando se vir com água o fogo arder (1 685-1668)

Soneto 028 ... Quando vejo que meu destino ordena (1595).

Soneto 070 ... Quantas vezes do fuso s'esquecia (1595)

Soneto 158 ... — Que levas, cruel Morte?—Um claro dia (1598).

Soneto 107 ... Que me quereis, perpétuas saudades (1598)

Soneto 102 ... Quem fosse acompanhando juntamente

Soneto 000 ... - Quem jaz no grão sepulcro, que des creve (1595)

Soneto 035 ... Que modo tão sutil da natureza (1616).

Soneto 000 ... Quem pode livre ser, gentil Senhora (1595)

Soneto 141 ... Quem presumir, Senhora, de louvar-vos (1685-1668)

Soneto 048 ... Quem quiser ver d’amor üa excelência (1598)

Soneto 017 ... Quem vê, Senhora, claro e manifesto (1595)

Soneto 118 ... Quem vos levou de mim, saudoso estado (1668)

Soneto 140 ... Que pode já fazer minha ventura (1668)

Soneto 088 ... Que poderei do mundo já querer (1598)

Soneto 164 ... Que vençais no Oriente tantos teis (1595)

Soneto 148 ... Se a Fortuna inquieta e mal olhada (1668)

Soneto 029 ... Se algüa hora em vos a piedade (1595).

Soneto 016 ... Se as penas com que Amor tão mal me trata (1595).

Soneto 049 ... Se, despois d'esperança tão perdida (1598).

Soneto 142 ... Se de vosso fermoso e lindo gesto (1668)

Soneto 061 ... Seguia aquele fogo, que o guiava (1616)

Soneto 055 ... Sempre a Razão vencida foi de Amor (1616)

Soneto 143 ... Sempre, cruel Senhora, receei (1668).

Soneto 050 ... Senhor João Lopes, o meu baixo estado (1616).

Soneto 119 ... Senhora já dest'alma, perdoai (1668).

Soneto 040 ... Senhora minha, se a Fortuna imiga (1616)

Soneto 063 ... Sentindo-se tomada a bela esposa (1616)

Soneto 034 ... Se pena por amar-vos se merece (1598).

Soneto 053 ... Se tanta pena tenho merecida (1595).

Soneto 030 ... Sete anos de pastor Jacob servia (1595).

Soneto 033 ... Se tomar minha pena em penitência (1598).

Soneto 059 ... Suspiros inflamados, que cantais (1598).

Soneto 144 ... Sustenta meu viver ua esperança (1668)

Soneto 075 ... Tal mostra dá de si vossa figura (1616)

Soneto 004 ... Tanto de meu estado me acho incerto (1595)

Soneto 019 ... Tempo é já que minha confiança (1595)

Soneto 060 ... Todo o animal da calma repousava (1595)

Soneto 069 ... Tomava Daliana por vingança (1595)

Soneto 011 ... Tomou-me vossa vista soberana (1595)

Soneto 020 ... Transforma-se o amador na cousa amada (1595)

Soneto 090 ... Um mover d'ollos, brando e piadoso (1595)

Soneto 145 ... Vencido está de amor meu pensamento (1685-1668)

Soneto 166 ... Verdade, Amor, Razão, Merecimento (1598).

Soneto 163 ... Vós, Ninfas da gangética espessura (1598)

Soneto 165 ... Vós outros, que buscais repouso certo (1616)

Soneto 032 ... Vos, que d'olhos suaves e serenos (1598)

Soneto 012 ... Vossos olhos, Senhora, que competem (1595)

Índice Geral

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Índice

Index

Canção 1

Fermosa e gentil Dama, quando vejo...

Canção 2

A instabilidade da Fortuna...

Canção 3

Já a roxa manhã clara...

Canção 4

Vão as serenas águas

Canção 5

Se este meu pensamento...

Canção 6

Com força desusada...

Canção 7

Manda-me Amor que cante docemente...

Canção 8

Tomei a triste pena...

Canção 9

Junto de um seco, fero e estéril monte...

Canção 10

Vinde cá, meu tão certo secretário...

Elegia 1

O Poeta Simónides, falando...

Elegia 2

Aquela que de amor descomedido...

Elegia 3

O sulmonense Ovídio, desterrado...

Elegia 4

Aquele mover d'olhos excelente...

Elegia 5

Se quando contemplamos as secretas...

Elegia 6

Que novas tristes são, que novo dano...

Elegia 7

Despois que Magalhães teve tecida...

Índice Geral

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Índice

Index

Ode 1

Detém um pouco, Musa, o largo pranto

Ode 2

Tão suave, tão fresca e tao fermosa

Ode 3

Se de meu pensamento (1595)

Ode 4

Fermosa fera humana (1595)

Ode 5

Nunca manha suave (1595).

Ode 6

Pode um desejo imenso (1598).

Ode 7

A quem darão de Pindo as morado

Ode 8

Aquele único exemplo (1598)

Ode 9

Fogem as neves frias (1598)

Ode 10

Aquele Moço fero (1598)

Ode 11

Naquele tempo brando (1616)

Ode 12

Já calma nos deixou (1616)

Ode 13

Tão crua Ninfa, nem tao fugitiva (1860)

Oitava 1

Quem pode ser no mundo tão quieto (1595)

Oitava 2

Como nos vossos ombros tão constantes (1595)

Oitava 3

Mui alto Rei, a quem os Céus em sorte (1595)

Oitava 4

Esprito valeroso, cuio estado (1616)

Sextina

Foge-me pouco a pouco a curta vida

Índice Geral

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Índice

Index

Écloga 1

Que grande variedade vao fazendo (1595)

Écloga 2

Ao longo do sereno (1595)

Écloga 3

Passado já aIgum tempo que os amores (1595)

Écloga 4

Cantando por um vale docemente (1595)

Écloga 5

A quem darei queixumes namorados (1595)

Écloga 6

A rústica contenda desusada (1595)

Écloga 7

As doces cantilenas que cantavam (1595)

Écloga 8

Arde por Galateia branca e loura (1595)

Índice Geral

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Índice

Index

Elegia

A ti, Senhor, a quem as sacras Musas

Endechas

Vai o bem fugindo

Elegia

Se quando contemplamos as secretas

Índice Geral

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Índice

Index

Auto 1 ... Enfatrioes

Auto 2 ... Filodemo

Auto 3 ... El Rei Seleuco

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Índice

Index

Carta 1

Desejei tanto üa vossa, que cuido que pola muito desejar...

Carta 2

Esta vai com a cadeira na mão morrer nas de v.m...

Índice Geral

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FCCN

Fundação para a Computação

Científica Nacional

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Instituto da Biblioteca Nacional

e do Livro

A FCCN, Fundação para a Computação Científica Nacional, estableleceu, em Junho de 1995, um acordo com a Secretaria de Estado da Ciência e Tecnologia, a Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnologica JNICT e o Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro IBL, no sentido da edição electrónica, na Internet, das obras de Luís de Camões. A FCCN encarregou-se da parte técnica, cabendo ao IBL a responsabilidade pela selecção da edição das obras divulgadas.

Foi com o maior interesse que o Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, IBL aceitou participar na edição electrónica das obras de Camões na Internet. Esta iniciativa extremamente oportuna e meritória da Fundação para a Computação Científica Nacional, FCCN, apoiada pela Secretaria de Estado da Ciência e Tecnologia, permite acompanhar a tendência crescente de divulgação de textos "on-line" de grandes obras da literatura mundial e, simultaneamente, levar ao conhecimento dos utilizadores importantes obras literárias de autores Portugueses. Coube ao IBL, pelas suas características e funções, a escolha desses autores e Camões é, sem dúvida, um começo auspicioso dado o carácter emblemático da sua obra no contexto nacional e internacional.

Nota:

O til [ ~ ] sobre a vogal [ u ] foi substituido,

por razões de limitação técnica, pelo trema [ ü ].

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Título:

Os Lusíadas de Luís Camões

Direcção Literária:

Dr. Álvaro Júlio da Costa Pimpão

Título:

Rimas, Autos e Cartas

Direcção Literária:

Dr. Álvaro Júlio da Costa Pimpão

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Fundação para a Computação Científica Nacional



Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro



Carlos Almeida



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e-mail: mouse@esoterica.pt

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Esta RocketEditon© foi preparada por Teotonio Simões (teotonio@) a partir do site original, público, em - Todo conteúdo original foi preservado, com a única exceção das adaptações necessárias de design para uma publicação em eBook. O leitor é convidado e encorajado a visitar o site original. Todos os direitos de adaptação para esta edição, renunciados.

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Índice Geral

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Índice

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Canto I

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s armas e os Barões assinalados

Que da Ocidental praia Lusitana

Por mares nunca de antes navegados

Passaram ainda além da Taprobana,

Em perigos e guerras esforçados

Mais do que prometia a força humana,

E entre gente remota edificaram

Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas

Daqueles Reis que foram dilatando

A Fé, o Império, e as terras viciosas

De África e de Ásia andaram devastando,

E aqueles que por obras valerosas

Se vão da lei da Morte libertando,

Cantando espalharei por toda parte,

Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano

As navegações grandes que fizeram;

Cale-se de Alexandro e de Trajano

A fama das vitórias que tiveram;

Que eu canto o peito ilustre Lusitano,

A quem Neptuno e Marte obedeceram.

Cesse tudo o que a Musa antiga canta,

Que outro valor mais alto se alevanta.

E vós, Tágides minhas, pois criado

Tendes em mi um novo engenho ardente,

Se sempre em verso humilde celebrado

Foi de mi vosso rio alegremente,

Dai-me agora um som alto e sublimado,

Um estilo grandíloco e corrente,

Por que de vossas águas Febo ordene

Que não tenham enveja às de Hipocrene.

Dai-me üa fúria grande e sonorosa,

E não de agreste avena ou frauta ruda,

Mas de tuba canora e belicosa,

Que o peito acende e a cor ao gesto muda;

Dai-me igual canto aos feitos da famosa

Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;

Que se espalhe e se cante no universo,

Se tão sublime preço cabe em verso.

E, vós, ó bem nascida segurança

Da Lusitana antiga liberdade,

E não menos certíssima esperança

De aumento da pequena Cristandade;

Vós, ó novo temor da Maura lança,

Maravilha fatal da nossa idade,

Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,

Pera do mundo a Deus dar parte grande;

Vós, tenro e novo ramo florecente

De üa árvore, de Cristo mais amada

Que nenhüa nascida no Ocidente,

Cesárea ou Cristianíssima chamada

(Vede-o no vosso escudo, que presente

Vos amostra a vitória já passada,

Na qual vos deu por armas e deixou

As que Ele pera si na Cruz tomou);

Vós, poderoso Rei, cujo alto Império

O Sol, logo em nascendo, vê primeiro,

Vê-o também no meio do Hemisfério,

E quando dece o deixa derradeiro;

Vós, que esperamos jugo e vitupério

Do torpe Ismaelita cavaleiro,

Do Turco Oriental e do Gentio

Que inda bebe o licor do santo Rio:

Inclinei por um pouco a majestade

Que nesse tenro gesto vos contemplo,

Que já se mostra qual na inteira idade,

Quando subindo ireis ao eterno templo;

Os olhos da real benignidade

Ponde no chão: vereis um novo exemplo

De amor dos pátrios feitos valerosos,

Em versos divulgado numerosos.

Vereis amor da pátria, não movido

De prémio vil, mas alto e quási eterno;

Que não é prémio vil ser conhecido

Por um pregão do ninho meu paterno.

Ouvi: vereis o nome engrandecido

Daqueles de quem sois senhor superno,

E julgareis qual é mais excelente,

Se ser do mundo Rei, se de tal gente.

Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,

Fantásticas, fingidas, mentirosas,

Louvar os vossos, como nas estranhas

Musas, de engrandecer-se desejosas:

As verdadeiras vossas são tamanhas

Que excedem as sonhadas, fabulosas,

Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro

E Orlando, inda que fora verdadeiro.

Por estes vos darei um Nuno fero,

Que fez ao Rei e ao Reino tal serviço,

Um Egas e um Dom Fuas, que de Homero

A cítara par'eles só cobiço;

Pois polos Doze Pares dar-vos quero

Os Doze de Inglaterra e o seu Magriço;

Dou-vos também aquele ilustre Gama,

Que para si de Eneias toma a fama.

Pois se a troco de (Carlos, Rei de França,

Ou de César, quereis igual memória,

Vede o primeiro Afonso, cuja lança

Escura faz qualquer estranha glória;

E aquele que a seu Reino a segurança

Deixou, com a grande e próspera vitória;

Outro Joane, invicto cavaleiro;

O quarto e quinto Afonsos e o terceiro.

Nem deixarão meus versos esquecidos

Aqueles que nos Reinos lá da Aurora

Se fizeram por armas tão subidos,

Vossa bandeira sempre vencedora:

Um Pacheco fortíssimo e os temidos

Almeidas, por quem sempre o Tejo chora,

Albuquerque terríbil, Castro forte,

E outros em quem poder não teve a morte.

E, enquanto eu estes canto - e a vós não posso,

Sublime Rei, que não me atrevo a tanto - ,

Tomai as rédeas vós do Reino vosso:

Dareis matéria a nunca ouvido canto.

Comecem a sentir o peso grosso

(Que polo mundo todo faça espanto)

De exércitos e feitos singulares,

De África as terras e do Oriente os mares.

Em vós os olhos tem o Mouro frio,

Em quem vê seu exício afigurado;

Só com vos ver, o bárbaro Gentio

Mostra o pescoço ao jugo já inclinado;

Tétis todo o cerúleo senhorio

Tem pera vós por dote aparelhado,

Que, afeiçoada ao gesto belo e tento,

Deseja de comprar-vos pera genro.

Em vós se vêm, da Olímpica morada,

Dos dous avós as almas cá famosas;

üa, na paz angélica dourada,

Outra, pelas batalhas sanguinosas.

Em vós esperam ver-se renovada

Sua memória e obras valerosas;

E lá vos têm lugar, no fim da idade,

No templo da suprema Eternidade.

Mas, enquanto este tempo passa lento

De regerdes os povos, que o desejam,

Dai vós favor ao novo atrevimento,

Pera que estes meus versos vossos sejam,

E vereis ir cortando o salso argento

Os vossos Argonautas, por que vejam

Que são vistos de vós no mar irado,

E costumai-vos já a ser invocado.

Já no largo Oceano navegavam,

As inquietas ondas apartando;

Os ventos brandamente respiravam,

Das naus as velas côncavas inchando;

Da branca escuma os mares se mostravam

Cobertos, onde as proas vão cortando

As marítimas águas consagradas,

Que do gado de Próteu são cortadas,

Quando os Deuses no Olimpo luminoso,

Onde o governo está da humana gente,

Se ajuntam em consílio glorioso,

Sobre as cousas futuras do Oriente.

Pisando o cristalino Céu fermoso,

Vêm pela Via Láctea juntamente,

Convocados, da parte de Tonante,

Pelo neto gentil do velho Atlante.

Deixam dos sete Céus o regimento,

Que do poder mais alto lhe foi dado,

Alto poder, que só co pensamento

Governa o Céu, a Terra e o Mar irado.

Ali se acharam juntos num momento

Os que habitam o Arcturo congelado

E os que o Austro têm e as partes onde

A Aurora nasce e o claro Sol se esconde.

Estava o Padre ali, sublime e dino,

Que vibra os feros raios de Vulcano,

Num assento de estrelas cristalino,

Com gesto alto, severo e soberano;

Do rosto respirava um ar divino,

Que divino tornara um corpo humano:

Com üa coroa e ceptro rutilante,

De outra pedra mais clara que diamante.

Em luzentes assentos, marchetados

De ouro e de perlas, mais abaixo estavam

Os outros Deuses, todos assentados

Como a Razão e a Ordem concertavam

(Precedem os antigos, mais honrados,

Mais abaixo os menores se assentavam);

Quando Júpiter alto, assi dizendo,

Cum tom de voz começa grave e horrendo:

- «Eternos moradores do luzente,

Estelífero Pólo e claro Assento:

Se do grande valor da forte gente

De Luso não perdeis o pensamento,

Deveis de ter sabido claramente

Como é dos Fados grandes certo intento

Que por ela se esqueçam os humanos

De Assírios, Persas, Gregos e Romanos.

«Já lhe foi (bem o vistes) concedido,

Cum poder tão singelo e ao pequeno,

Tomar ao Mouro forte e guarnecido

Toda a terra que rega o Tejo ameno.

Pois contra o Castelhano ao temido

Sempre alcançou favor do Céu sereno:

Assi que sempre, enfim, com fama e glória.

Teve os troféus pendentes da vitória.

«Deixo, Deuses, atrás a fama antiga,

Que co a gente de Rómulo alcançaram,

Quando com Viriato, na inimiga

Guerra Romana, tanto se afamaram;

Também deixo a memória que os obriga

A grande nome, quando alevantaram

Um por seu capitão, que, peregrino,

Fingiu na cerva espírito divino.

«Agora vedes bem que, cometendo

O duvidoso mar num lenho leve,

Por vias nunca usadas, não temendo

de Áfrico e Noto a força, a mais s'atreve:

Que, havendo tanto já que as partes vendo

Onde o dia é comprido e onde breve,

Inclinam seu propósito e perfia

A ver os berços onde nasce o dia.

«Prometido lhe está do Fado eterno,

Cuja alta lei não pode ser quebrada,

Que tenham longos tempos o governo

Do mar que vê do Sol a roxa entrada.

Nas águas têm passado o duro Inverno;

A gente vem perdida e trabalhada;

Já parece bem feito que lhe seja

Mostrada a nova terra que deseja.

«E porque, como vistes, têm passados

Na viagem tão ásperos perigos,

Tantos climas e céus exprimentados,

Tanto furor de ventos inimigos,

Que sejam, determino, agasalhados

Nesta costa Africana como amigos;

E, tendo guarnecida a lassa frota,

Tornarão a seguir sua longa rota.

Estas palavras Júpiter dizia,

Quando os Deuses, por ordem respondendo,

Na sentença um do outro diferia,

Razões diversas dando e recebendo.

O padre Baco ali não consentia

No que Júpiter disse, conhecendo

Que esquecerão seus feitos no Oriente

Se lá passar a Lusitana gente.

Ouvido tinha aos Fados que viria

üa gente fortíssima de Espanha

Pelo mar alto, a qual sujeitaria

Da Índia tudo quanto Dóris banha,

E com novas vitórias venceria

A fama antiga, ou sua ou fosse estranha.

Altamente lhe dói perder a glória

De que Nisa celebra inda a memória.

Vê que já teve o Indo sojugado

E nunca lhe tirou Fortuna ou caso

Por vencedor da Índia ser cantado

De quantos bebem a água de Parnaso.

Teme agora que seja sepultado

Seu tão célebre nome em negro vaso

D'água do esquecimento, se lá chegam

Os fortes Portugueses que navegam.

Sustentava contra ele Vénus bela,

Afeiçoada à gente Lusitana

Por quantas qualidades via nela

Da antiga, tão amada, sua Romana;

Nos fortes corações, na grande estrela

Que mostraram na terra Tingitana,

E na língua, na qual quando imagina,

Com pouca corrupção crê que é a Latina

Estas causas moviam Citereia

E mais, porque das Parcas claro entende

Que há-de ser celebrada a clara Deia

Onde a gente belígera se estende.

Assi que, um, pela infâmia que arreceia,

E o outro, pelas honras que pretende,

Debatem, e na perfia permanecem;

A qualquer seus amigos favorecem.

Qual Austro fero ou Bóreas na espessura

De silvestre arvoredo abastecida,

Rompendo os ramos vão da mata escura

Com ímpeto e braveza desmedida,

Brama toda montanha, o som murmura,

Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida:

Tal andava o tumulto, levantado

Entre os Deuses, no Olimpo consagrado.

Mas Marte, que da Deusa sustentava

Entre todos as partes em porfia,

Ou porque o amor antigo o obrigava,

Ou porque a gente forte o merecia,

De antre os Deuses em pé se levantava:

Merencório no gesto parecia;

O forte escudo, ao colo pendurado,

Deitando pera trás, medonho e irado;

A viseira do elmo de diamante

Alevantando um pouco, mui seguro,

Por dar seu parecer se pôs diante

De Júpiter, armado, forte e duro;

E dando üa pancada penetrante

Co conto do bastão no sólio puro,

O Céu tremeu, e Apolo, de torvado,

Um pouco a luz perdeu, como enfiado;

E disse assi:- «Ó Padre, a cujo império

Tudo aquilo obedece que criaste:

Se esta gente que busca outro Hemisfério.

Cuja valia e obras tanto amaste,

Não queres que padeçam vitupério,

Como há já tanto tempo que ordenaste,

Não ouças mais, pois és juiz direito,

Razões de quem parece que é suspeito.

«Que, se aqui a razão se não mostrasse

Vencida do temor demasiado,

Bem fora que aqui Baco os sustentasse,

Pois que de Luso vêm, seu tão privado;

Mas esta tenção sua agora passe,

Porque enfim vem de estâmago danado;

Que nunca tirará alheia enveja

O bem que outrem merece e o Céu deseja.

E tu, Padre de grande fortaleza,

Da determinação que tens tomada

Não tornes por detrás, pois é fraqueza

Desistir-se da cousa começada.

Mercúrio, pois excede em ligeireza

Ao vento leve e à seta bem talhada,

Lhe vá mostrar a terra onde se informe

Da Índia, e onde a gente se reforme.»

Como isto disse, o Padre poderoso,

A cabeça inclinando, consentiu

No que disse Mavorte valeroso

E néctar sobre todos esparziu.

Pelo caminho Lácteo glorioso

Logo cada um dos Deuses se partiu,

Fazendo seus reais acatamentos,

Pera os determinados apousentos.

Enquanto isto se passa na fermosa

Casa etérea do Olimpo omnipotente,

Cortava o mar a gente belicosa

Já lá da banda do Austro e do Oriente,

Entre a costa Etiópica e a famosa

Ilha de São Lourenço; e o Sol ardente

Queimava então os Deuses que Tifeu

Co temor grande em pexes converteu.

Tão brandamente os ventos os levavam

Como quem o Céu tinha por amigo;

Sereno o ar e os tempos se mostravam,

Sem nuvens, sem receio de perigo.

O promontório Prasso já passavam

Na costa de Etiópia, nome antigo,

Quando o mar, descobrindo, lhe mostrava

Novas ilhas, que em torno cerca e lava.

Vasco da Gama, o forte Capitão,

Que a tamanhas empresas se oferece,

De soberbo e de altivo coração,

A quem Fortuna sempre favorece,

Pera se aqui deter não vê razão,

Que inabitada a terra lhe parece.

Por diante passar determinava,

Mas não lhe sucedeu como cuidava.

Eis aparecem logo em companhia

Uns pequenos batéis, que vêm daquela

Que mais chegada à terra parecia,

Cortando o longo mar com larga vela.

A gente se alvoroça e, de alegria,

Não sabe mais que olhar a causa dela.

- «Que gente será esta?» (em si diziam)

«Que costumes, que Lei, que Rei teriam?»

As embarcações eram na maneira

Mui veloces, estreitas e compridas;

Ás velas com que vêm eram de esteira,

Düas folhas de palma, bem tecidas;

A gente da cor era verdadeira

Que Fáëton, nas terras acendidas,

Ao mundo deu, de ousado e não prudente

(O Pado o sabe e Lampetusa o sente).

De panos de algodão vinham vestidos,

De várias cores, brancos e listrados;

Uns trazem derredor de si cingidos,

Outros em modo airoso sobraçados;

Das cintas pera cima vêm despidos;

Por armas têm adagas e tarçados;

Com toucas na cabeça; e, navegando,

Anafis sonorosos vão tocando.

Cos panos e cos braços acenavam

Às gentes Lusitanas, que esperassem;

Mas já as proas ligeiras se inclinavam,

Pera que junto às Ilhas amainassem.

A gente e marinheiros trabalhavam

Como se aqui os trabalhos s'acabassem:

Tomam velas, amaina-se a verga alta,

Da âncora o mar ferido em cima salta.

Não eram ancorados, quando a gente

Estranha polas cordas já subia.

No gesto ledos vêm, e humanamente

O Capitão sublime os recebia.

As mesas manda pôr em continente;

Do licor que Lieu prantado havia

Enchem vasos de vidro; e do que deitam

Os de Fáëton queimados nada enjeitam.

Comendo alegremente, perguntavam,

Pela Arábica língua, donde vinham,

Quem eram, de que terra, que buscavam,

Ou que partes do mar corrido tinham?

Os fortes Lusitanos lhe tornavam

As discretas repostas que convinham:

- «Os Portugueses somos do Ocidente,

Imos buscando as terras do Oriente.

«Do mar temos corrido e navegado

Toda a parte do Antártico e Calisto,

Toda a costa Africana rodeado;

Diversos céus e terras temos visto;

Dum Rei potente somos, tão amado,

Tão querido de todos e benquisto,

Que não no largo mar, com leda fronte,

Mas no lago entraremos de Aqueronte.

«E, por mandado seu, buscando andamos

A terra Oriental que o Indo rega;

Por ele o mar remoto navegamos,

Que só dos feios focas se navega.

Mas já razão parece que saibamos

(Se entre vós a verdade não se nega),

Quem sois, que terra é esta que habitais,

Ou se tendes da Índia alguns sinais?»

- «Somos (um dos das Ilhas lhe tornou)

Estrangeiros na terra, Lei e nação;

Que os próprios são aqueles que criou

A Natura, sem Lei e sem Razão.

Nós temos a Lei certa que ensinou

O claro descendente de Abraão,

Que agora tem do mundo o senhorio;

A mãe Hebreia teve e o pai, Gentio.

«Esta Ilha pequena, que habitamos,

É em toda esta terra certa escala

De todos os que as ondas navegamos,

De Quíloa, de Mombaça e de Sofala;

E, por ser necessária, procuramos,

Como próprios da terra, de habitá-la;

E por que tudo enfim vos notifique,

Chama-se a pequena Ilha - Moçambique.

«E já que de tão longe navegais,

Buscando o Indo Idaspe e terra ardente,

Piloto aqui tereis, por quem sejais

Guiados pelas ondas sàbiamente.

Também será bem feito que tenhais

Da terra algum refresco, e que o Regente

Que esta terra governa, que vos veja

E do mais necessário vos proveja.»

Isto dizendo, o Mouro se tornou

A seus batéis com toda a companhia;

Do Capitão e gente se apartou

Com mostras de devida cortesia.

Nisto Febo nas águas encerrou

Co carro de cristal, o claro dia,

Dando cargo à Irmã que alumiasse

O largo mundo, enquanto repousasse.

A noite se passou na lassa frota

Com estranha alegria e não cuidada,

Por acharem da terra tão remota

Nova de tanto tempo desejada.

Qualquer então consigo cuida e nota

Na gente e na maneira desusada,

E como os que na errada Seita creram,

Tanto por todo o mundo se estenderam.

Da Lüa os claros raios rutilavam

Polas argênteas ondas Neptuninas;

As Estrelas os Céus acompanhavam,

Qual campo revestido de boninas;

Os furiosos ventos repousavam

Polas covas escuras peregrinas;

Porém da armada a gente vigiava,

Como por longo tempo costumava.

Mas, assi como a Aurora marchetada

Os fermosos cabelos espalhou

No Céu sereno, abrindo a roxa entrada

Ao claro Hiperiónio, que acordou,

Começa a embandeirar-se toda a armada

E de toldos alegres se adornou,

Por receber com festas e alegria

O Regedor das Ilhas, que partia.

Partia, alegremente navegando,

A ver as naus ligeiras Lusitanas,

Com refresco da terra, em si cuidando

Que são aquelas gentes inumanas

Que, os apousentos Cáspios habitando,

A conquistar as terras Asianas

Vieram e, por ordem do Destino,

O Império tomaram a Costantino.

Recebe o Capitão alegremente

O Mouro e toda sua companhia;

Dá-lhe de ricas peças um presente,

Que só pera este efeito já trazia;

Dá-lhe conserva doce e dá-lhe o ardente,

Não usado licor, que dá alegria.

Tudo o Mouro contente bem recebe,

E muito mais contente come e bebe

Está a gente marítima de Luso

Subida pela enxárcia, de admirada,

Notando o estrangeiro modo e uso

E a linguagem tão bárbara e enleada.

Também o Mouro astuto está confuso,

Olhando a cor, o trajo e a forte armada;

E, perguntando tudo, lhe dizia

Se porventura vinham de Turquia.

E mais lhe diz também que ver deseja

Os livros de sua Lei, preceito ou fé,

Pera ver se conforme à sua seja,

Ou se são dos de Cristo, como crê;

E por que tudo note e tudo veja,

Ao Capitão pedia que lhe dê

Mostra das fortes armas de que usavam

Quando cos inimigos pelejavam.

Responde o valeroso Capitão,

Por um que a língua escura bem sabia:

-«Dar-te-ei, Senhor ilustre, relação

De mi, da Lei, das armas que trazia.

Nem sou da terra, nem da geração

Das gentes enojosas de Turquia,

Mas sou da forte Europa belicosa;

Busco as terras da Índia tão famosa.

«A Lei tenho d'Aquele a cujo império

Obedece o visíbil e invisíbil,

Aquele que criou todo o Hemisfério,

Tudo o que sente e todo o insensíbil;

Que padeceu desonra e vitupério,

Sofrendo morte injusta e insofríbil,

E que do Céu à Terra enfim deceu,

Por subir os mortais da Terra ao Céu.

«Deste Deus-Homem, alto e infinito,

Os livros que tu pedes não trazia,

Que bem posso escusar trazer escrito

Em papel o que na alma andar devia.

Se as armas queres ver, como tens dito,

Cumprido esse desejo te seria;

Como amigo as verás, porque eu me obrigo

Que nunca as queiras ver como inimigos».

Isto dizendo, manda os diligentes

Ministros amostrar as armaduras:

Vêm arneses e peitos reluzentes,

Malhas finas e lâminas seguras,

Escudos de pinturas diferentes,

Pelouros, espingardas de aço puras,

Arcos e sagitíferas aljavas,

Partazanas agudas, chuças bravas.

As bombas vêm de fogo, e juntamente

As panelas sulfúreas, tão danosas;

Porém aos de Vulcano não consente

Que dêm fogo às bombardas temerosas;

Porque o generoso ânimo e valente,

Entre gentes tão poucas e medrosas,

Não mostra quanto pode; e com razão,

Que é fraqueza entre ovelhas ser lião.

Porém disto que o Mouro aqui notou,

E de tudo o que viu com olho atento,

Um ódio certo na alma lhe ficou,

üa vontade má de pensamento;

Nas mostras e no gesto o não mostrou,

Mas, com risonho e ledo fingimento,

Tratá-los brandamente determina,

Até que mostrar possa o que imagina.

Pilotos lhe pedia o Capitão,

Por quem pudesse à Índia ser levado;

Diz-lhe que o largo prémio levarão

Do trabalho que nisso for tomado.

Promete-lhos o Mouro, com tenção

De peito venenoso e tão danado

Que a morte, se pudesse, neste dia,

Em lugar de pilotos lhe daria.

Tamanho o ódio foi e a má vontade

Que aos estrangeiros súpito tomou,

Sabendo ser sequaces da Verdade

Que o filho de David nos ensinou!

Ó segredos daquela Eternidade

A quem juízo algum não alcançou:

Que nunca falte um pérfido inimigo

Àqueles de quem foste tanto amigo!

Partiu-se nisto, enfim, co a companhia,

Das naus o falso Mouro despedido,

Com enganosa e grande cortesia,

Com gesto ledo a todos e fingido.

Cortaram os batéis a curta via

Das águas de Neptuno; e, recebido

Na terra do obseqüente ajuntamento,

Se foi o Mouro ao cógnito apousento.

Do claro Assento etéreo, o grão Tebano,

Que da paternal coxa foi nascido,

Olhando o ajuntamento Lusitano

Ao Mouro ser molesto e avorrecido,

No pensamento cuida um falso engano,

Com que seja de todo destruído;

E, enquanto isto só na alma imaginava,

Consigo estas palavras praticava:

-«Está do Fado já determinado

Que tamanhas vitórias, tão famosas,

Hajam os Portugueses alcançado

Das Indianas gentes belicosas;

E eu só, filho do Padre sublimado,

Com tantas qualidades generosas,

Hei-de sofrer que o Fado favoreça

Outrem, por quem meu nome se escureça?

«Já quiseram os Deuses que tivesse

O filho de Filipo nesta parte

Tanto poder que tudo sometesse

Debaixo do seu jugo o fero Marte;

Mas há-se de sofrer que o Fado desse

A tão poucos tamanho esforço e arte,

Qu'eu, co grão Macedónio e Romano,

Dêmos lugar ao nome Lusitano?

«Não será assi, porque, antes que chegado

Seja este Capitão, astutamente

Lhe será tanto engano fabricado

Que nunca veja as partes do Oriente.

Eu decerei à Terra e o indignado

Peito revolverei da Maura gente;

Porque sempre por via irá direita

Quem do oportuno tempo se aproveita.»

Isto dizendo, irado e quási insano,

Sobre a terra Africana descendeu,

Onde, vestindo a forma e gesto humano,

Pera o Prasso sabido se moveu.

E, por milhor tecer o astuto engano,

No gesto natural se converteu

Dum Mouro, em Moçambique conhecido,

Velho, sábio, e co Xeque mui valido.

E, entrando assi a falar-lhe, a tempo e horas,

A sua falsidade acomodadas,

Lhe diz como eram gentes roubadoras

Estas que ora de novo são chegadas;

Que das nações na costa moradoras,

Correndo a fama veio que roubadas

Foram por estes homens que passavam,

Que com pactos de paz sempre ancoravam.

- «E sabe mais (lhe diz), como entendido

Tenho destes Cristãos sanguinolentos,

Que quási todo o mar têm destruído

Com roubos, com incêndios violentos;

E trazem já de longe engano urdido

Contra nós; e que todos seus intentos

São pera nos matarem e roubarem,

E mulheres e filhos cativarem.

«E também sei que tem determinado

De vir por água a terra, muito cedo,

O Capitão, dos seus acompanhado,

Que da tenção danada nasce o medo

Tu deves de ir também cos teus armado

Esperá-lo em cilada, oculto e quedo;

Porque, saindo a gente descuidada,

Caïrão fàcilmente na cilada.

«E se inda não ficarem deste jeito

Destruídos ou mortos totalmente,

Eu tenho imaginada no conceito

Outra manha e ardil que te contente:

Manda-lhe dar piloto que de jeito

Seja astuto no engano, e tão prudente

Que os leve aonde sejam destruídos,

Desbaratados, mortos ou perdidos.»

Tanto que estas palavras acabou

O Mouro, nos tais casos sábio e velho,

Os braços pelo colo lhe lançou,

Agradecendo muito o tal conselho;

E logo nesse instante concertou

Pera a guerra o belígero aparelho,

Pera que ao Português se lhe tornasse

Em roxo sangue a água que buscasse.

E busca mais, pera o cuidado engano,

Mouro que por piloto à nau lhe mande,

Sagaz, astuto e sábio em todo o dano,

De quem fiar se possa um feito grande.

Diz-lhe que, acompanhando o Lusitano,

Por tais costas e mares co ele ande,

Que, se daqui escapar, que lá diante

Vá cair onde nunca se alevante.

Já o raio Apolíneo visitava

Os Montes Nabateios acendido,

Quando Gama cos seus determinava

De vir por água a terra apercebido.

A gente nos batéis se concertava

Como se fosse o engano já sabido;

Mas pôde suspeitar-se facilmente,

Que o coração pres[s]ago nunca mente.

E mais também mandado tinha a terra,

De antes, pelo piloto necessário,

E foi-lhe respondido em som de guerra,

Caso do que cuidava mui contrário.

Por isto, e porque sabe quanto erra

Quem se crê de seu pérfido adversário,

Apercebido vai como podia

Em três batéis somente que trazia.

Mas os Mouros, que andavam pela praia

Por lhe defender a água desejada,

Um de escudo embraçado e de azagaia,

Outro de arco encurvado e seta ervada,

Esperam que a guerreira gente saia,

Outros muitos já postos em cilada;

E, por que o caso leve se lhe faça,

Põem uns poucos diante por negaça.

Andam pela ribeira alva, arenosa,

Os belicosos Mouros acenando

Com a adarga e co a hástea perigosa,

Os fortes Portugueses incitando

Não sofre muito a gente generosa

Andar-lhe os Cães os dentes amostrando;

Qualquer em terra salta, tão ligeiro,

Que nenhum dizer pode que é primeiro:

Qual no corro sanguino o ledo amante,

Vendo a fermosa dama desejada,

O touro busca e, pondo-se diante,

Salta, corre, sibila, acena e brada,

Mas o animal atroce, nesse instante,

Com a fronte cornígera inclinada,

Bramando, duro corre e os olhos cerra,

Derriba, fere e mata e põe por terra.

Eis nos batéis o fogo se levanta

Na furiosa e dura artelharia;

A plúmbea péla mata, o brado espanta;

Ferido, o ar retumba e assovia.

O coração dos Mouros se quebranta,

O temor grande o sangue lhe resfria.

Já foge o escondido, de medroso,

E morre o descoberto aventuroso.

Não se contenta a gente Portuguesa,

Mas, seguindo a vitória, estrui e mata;

A povoação sem muro e sem defesa

Esbombardeia, acende e desbarata.

Da cavalgada ao Mouro já lhe pesa,

Que bem cuidou comprá-la mais barata;

Já blasfema da guerra, e maldizia,

O velho inerte e a mãe que o filho cria.

Fugindo, a seta o Mouro vai tirando

Sem força, de covarde e de apressado,

Apedra, o pau e o canto arremessando;

Dá-lhe armas o furor desatinado.

Já a Ilha, e todo o mais, desemparando,

À terra firme foge amedrontado;

Passa e corta do mar o estreito braço

Que a Ilha em torno cerca em pouco espaço.

Uns vão nas almadias carregadas,

Um corta o mar a nado, diligente;

Quem se afoga nas ondas encurvadas,

Quem bebe o mar e o deita juntamente.

Arrombam as miúdas bombardadas

Os pangaios sutis da bruta gente.

Destarte o Português, enfim, castiga

A vil malícia, pérfida, inimiga.

Tornam vitoriosos pera a armada,

Co despojo da guerra e rica presa,

E vão a seu prazer fazer aguada,

Sem achar resistência nem defesa.

Ficava a Maura gente magoada,

No ódio antigo mais que nunca acesa;

E, vendo sem vingança tanto dano,

Sòmente estriba no segundo engano.

Pazes cometer manda, arrependido,

O Regedor daquela inica terra,

Sem ser dos Lusitanos entendido

Que em figura de paz lhe manda guerra;

Porque o piloto falso prometido,

Que toda a má tenção no peito encerra,

Pera os guiar à morte lhe mandava,

Como em sinal das pazes que tratava.

O Capitão, que já lhe então convinha

Tornar a seu caminho acostumado,

Que tempo concertado e ventos tinha

Pera ir buscar o Indo desejado,

Recebendo o piloto que lhe vinha,

Foi dele alegremente agasalhado,

E respondendo ao mensageiro, a tento,

As velas manda dar ao largo vento.

Destarte despedida, a forte armada

As ondas de Anfítrite dividia,

Das filhas de Nereu acompanhada,

Fiel, alegre e doce companhia.

O Capitão, que não caía em nada

Do enganoso ardil que o Mouro urdia,

Dele mui largamente se informava

Da Índia toda e costas que passava.

Mas o Mouro, instruído nos enganos

Que o malévolo Baco lhe ensinara,

De morte ou cativeiro novos danos,

Antes que à Índia chegue, lhe prepara.

Dando razão dos portos Indianos,

Também tudo o que pede lhe declara,

Que, havendo por verdade o que dizia,

De nada a forte gente se temia.

E diz-lhe mais, co falso pensamento

Com que Sínon os Frígios enganou,

Que perto está üa Ilha, cujo assento

Povo antigo Cristão sempre habitou.

O Capitão, que a tudo estava atento,

Tanto co estas novas se alegrou

Que com dádivas grandes lhe rogava

Que o leve à terra onde esta gente estava.

O mesmo o falso Mouro determina

Que o seguro Cristão lhe manda e pede;

Que a Ilha é possuída da malina

Gente que segue o torpe Mahamede.

Aqui o engano e morte lhe imagina,

Porque em poder e forças muito excede

À Moçambique esta Ilha, que se chama

Quíloa, mui conhecida pola fama.

Pera lá se inclinava a leda frota;

Mas a Deusa em Citere celebrada,

Vendo como deixava a certa rota

Por ir buscar a morte não cuidada,

Não consente que em terra tão remota

Se perca a gente dela tanto amada,

E com ventos contrairos a desvia

Donde o piloto falso a leva e guia.

Mas o malvado Mouro, não podendo

Tal determinação levar avante,

Outra maldade inica cometendo,

Ainda em seu propósito constante,

Lhe diz que, pois as águas, discorrendo,

Os levaram por força por diante,

Que outra Ilha tem perto, cuja gente

Eram Cristãos com Mouros juntamente.

Também nestas palavras lhe mentia,

Como por regimento, enfim, levava;

Que aqui gente de Cristo não havia,

Mas a que a Mahamede celebrava.

O Capitão, que em tudo o Mouro cria,

Virando as velas, a Ilha demandava;

Mas, não querendo a Deusa guardadora,

Não entra pela barra, e surge fora.

Estava a Ilha à terra tão chegada

Que um estreito pequeno a dividia;

üa cidade nela situada,

Que na fronte do mar aparecia,

De nobres edifícios fabricada,

Como por fora, ao longe, descobria,

Regida por um Rei de antiga idade:

Mombaça é o nome da Ilha e da cidade.

E sendo a ela o Capitão chegado,

Estranhamente ledo, porque espera

De poder ver o povo baptizado,

Como o falso piloto lhe dissera,

Eis vêm batéis da terra com recado

Do Rei, que já sabia a gente que era;

Que Baco muito de antes o avisara,

Na forma doutro Mouro, que tomara.

O recado que trazem é de amigos,

Mas debaxo o veneno vem coberto,

Que os pensamentos eram de inimigos,

Segundo foi o engano descoberto.

Ó grandes e gravíssimos perigos,

Ó caminho de vida nunca certo,

Que aonde a gente põe sua esperança

Tenha a vida tão pouca segurança!

No mar tanta tormenta e tanto dano,

Tantas vezes a morte apercebida!

Na terra tanta guerra, tanto engano,

Tanta necessidade avorrecida!

Onde pode acolher-se um fraco humano,

Onde terá segura a curta vida,

Que não se arme e se indigne o Céu sereno

Contra um bicho da terra tão pequeno?

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Canto II

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á neste tempo o lúcido Planeta

Que as horas vai do dia distinguindo,

Chegava à desejada e lenta meta,

A luz celeste às gentes encobrindo;

E da casa marítima secreta he estava o Deus

Nocturno a porta abrindo,

Quando as infidas gentes se chegaram

Às naus, que pouco havia que ancoraram.

Dantre eles um, que traz encomendado

O mortífero engano, assi dizia:

«Capitão valeroso, que cortado

Tens de Neptuno o reino e salsa via,

O Rei que manda esta Ilha, alvoraçado

Da vinda tua, tem tanta alegria

Que não deseja mais que agasalhar-te,

Ver-te e do necessário reformar-te.

«E porque está em extremo desejoso

De te ver, como cousa nomeada,

Te roga que, de nada receoso,

Entres a barra, tu com toda armada;

E porque do caminho trabalhoso

Trarás a gente débil e cansada,

Diz que na terra podes reformá-la,

Que a natureza obriga a desejá-la.

«E se buscando vás mercadoria

Que produze o aurífero levante,

Canela, cravo, ardente especiaria

Ou droga salutífera e prestante;

Ou se queres luzente pedraria,

O rubi fino, o rígido diamante,

Daqui levarás tudo tão sobejo

Com que faças o fim a teu desejo.»

Ao mensageiro o Capitão responde,

As palavras do Rei agradecendo,

E diz que, porque o Sol no mar se esconde,

Não entra pera dentro, obedecendo;

Porém que, como a luz mostrar por onde

Vá sem perigo a frota, não temendo,

Cumprirá sem receio seu mandado,

Que a mais por tal senhor está obrigado.

Pergunta-lhe despois se estão na terra

Cristãos, como o piloto lhe dizia;

O mensageiro astuto, que não erra,

Lhe diz que a mais da gente em Cristo cria.

Desta sorte do peito lhe desterra

Toda a suspeita e cauta fantasia;

Por onde o Capitão seguramente

Se fia da infiel e falsa gente.

E de alguns que trazia, condenados

Por culpas e por feitos vergonhosos,

Por que pudessem ser aventurados

Em casos desta sorte duvidosos,

Manda dous mais sagazes, ensaiados,

Por que notem dos Mouros enganosos

A cidade e poder, e por que vejam

Os Cristãos, que só tanto ver desejam.

E por estes ao Rei presentes manda,

Por que a boa vontade que mostrava

Tenha firme, segura, limpa e branda,

A qual bem ao contrário em tudo estava.

Já a companhia pérfida e nefanda

Das naus se despedia e o mar cortava:

Foram com gestos ledos e fingidos

Os dous da frota em terra recebidos.

E despois que ao Rei apresentaram

Co recado os presentes que traziam,

A cidade correram, e notaram

Muito menos daquilo que queriam;

Que os Mouros cautelosos se guardaram

De lhe mostrarem tudo o que pediam;

Que onde reina a malícia, está o receio

Que a faz imaginar no peito alheio.

Mas aquele que sempre a mocidade

Tem no rosto perpétua, e foi nascido

De duas mães, que urdia a falsidade

Por ver o navegante destruído,

Estava nüa casa da cidade,

Com rosto humano e hábito fingido,

Mostrando-se Cristão, e fabricava

Um altar sumptuoso que adorava.

Ali tinha em retrato afigurada

Do alto e Santo Espírito a pintura,

A cândida Pombinha, debuxada

Sobre a única Fénix, virgem pura;

A companhia santa está pintada,

Dos doze, tão torvados na figura

Como os que, só das línguas que caíram

De fogo, várias línguas referiram.

Aqui os dous companheiros, conduzidos

Onde com este engano Baco estava,

Põem em terra os giolhos, e os sentidos

Naquele Deus que o Mundo governava.

Os cheiros excelentes, produzidos

Na Pancaia odorífera, queimava

O Tioneu, e assi por derradeiro

O falso Deus adora o verdadeiro.

Aqui foram de noite agasalhados,

Com todo o bom e honesto tratamento

Os dous Cristãos, não vendo que enganados

Os tinha o falso e santo fingimento

Mas, assi como os raios espalhados

Do Sol foram no mundo, e num momento

Apareceu no rúbido Horizonte

Na moça de Titão a roxa fronte,

Tornam da terra os Mouros co recado

Do Rei pera que entrassem, e consigo

Os dous que o Capitão tinha mandado,

A quem se o Rei mostrou sincero amigo;

E sendo o Português certificado

De não haver receio de perigo

E que gente de Cristo em terra havia,

Dentro no salso rio entrar queria.

Dizem-lhe os que mandou que em terra viram

Sacras aras e sacerdote santo;

Que ali se agasalharam e dormiram

Enquanto a luz cobriu o escuro manto;

E que no Rei e gentes não sentiram

Senão contentamento e gosto tanto

Que não podia certo haver suspeita

Nüa mostra tão clara e tão perfeita.

Co isto o nobre Gama recebia

Alegremente os Mouros que subiam

Que levemente um ânimo se fia

De mostras que tão certas pareciam.

A nau da gente pérfida se enchia,

Deixando a bordo os barcos que traziam.

Alegres vinham todos porque crêm

Que a presa desejada certa têm.

Na terra cautamente aparelhavam

Armas e munições, que, como vissem

Que no rio os navios ancoravam,

Neles ousadamente se subissem;

E nesta treïção determinavam

Que os de Luso de todo destruíssem,

E que, incautos, pagassem deste jeito

O mal que em Moçambique tinham feito.

As âncoras tenaces vão levando,

Com a náutica grita costumada;

Da proa as velas sós ao vento dando,

Inclinam pera a barra abalizada.

Mas a linda Ericina, que guardando

Andava sempre a gente assinalada,

Vendo a cilada grande e tão secreta,

Voa do Céu ao mar como üa seta.

Convoca as alvas filhas de Nereu,

Com toda a mais cerúlea companhia,

Que, porque no salgado mar nasceu,

Das águas o poder lhe obedecia;

E, propondo-lhe a causa a que deceu,

Com todos juntamente se partia

Pera estorvar que a armada não chegasse

Aonde pera sempre se acabasse.

Já na água erguendo vão, com grande pressa,

Com as argênteas caudas branca escuma;

Cloto co peito corta e atravessa

Com mais furor o mar do que costuma;

Salta Nise, Nerine se arremessa

Por cima da água crespa em força suma;

Abrem caminho as ondas encurvadas,

De temor das Nereidas apressadas.

Nos ombros de um Tritão, com gesto aceso,

Vai a linda Dione furiosa;

Não sente quem a leva o doce peso,

De soberbo com carga tão fermosa.

Já chegam perto donde o vento teso

Enche as velas da frota belicosa;

Repartem-se e rodeiam nesse instante

As naus ligeiras, que iam por diante.

Põe-se a Deusa com outras em direito

Da proa capitaina, e ali fechando

O caminho da barra, estão de jeito

Que em vão assopra o vento, a vela inchando:

Põem no madeiro duro o brando peito

Pera detrás a forte nau forçando;

Outras em derredor levando-a estavam

E da barra inimiga a desviavam.

Quais pera a cova as próvidas formigas,

Levando o peso grande acomodado

As forças exercitam, de inimigas

Do inimigo Inverno congelado;

Ali são seus trabalhos e fadigas,

Ali mostram vigor nunca esperado:

Tais andavam as Ninfas estorvando

À gente Portuguesa o fim nefando.

Torna pera detrás a nau, forçada,

Apesar dos que leva, que, gritando,

Mareiam velas; ferve a gente irada,

O leme a um bordo e a outro atravessando;

O mestre astuto em vão da popa brada,

Vendo como diante ameaçando

Os estava um marítimo penedo,

Que de quebrar-lhe a nau lhe mete medo.

A celeuma medonha se alevanta

No rudo marinheiro que trabalha;

O grande estrondo a Maura gente espanta,

Como se vissem hórrida batalha;

Não sabem a razão de fúria tanta,

Não sabem nesta pressa quem lhe valha:

Cuidam que seus enganos são sabidos

E que hão-de ser por isso aqui punidos.

Ei-los subitamente se lançavam

A seus batéis veloces que traziam;

Outros em cima o mar alevantavam

Saltando n'água, a nado se acolhiam;

De um bordo e doutro súbito saltavam,

Que o medo os compelia do que viam;

Que antes querem ao mar aventurar-se

Que nas mãos inimigas entregar-se.

Assi como em selvática alagoa

As rãs, no tempo antigo Lícia gente,

Se sentem porventura vir pessoa,

Estando fora da água incautamente,

Daqui e dali saltando (o charco soa),

Por fugir do perigo que se sente,

E, acolhendo-se ao couto que conhecem,

Sós as cabeças na água lhe aparecem:

Assi fogem os Mouros; e o piloto,

Que ao perigo grande as naus guiara,

Crendo que seu engano estava noto,

Também foge, saltando na água amara

Mas, por não darem no penedo imoto,

Onde percam a vida doce e cara,

A âncora solta logo a capitaina,

Qualquer das outras junto dela amaina.

Vendo o Gama, atentado, a estranheza

Dos Mouros, não cuidada, e juntamente

O piloto fugir-lhe com presteza,

Entende o que ordenava a bruta gente,

E vendo, sem contraste e sem braveza

Dos ventos ou das águas sem corrente.

Que a nau passar avante não podia,

Havendo-o por milagre, assi dizia:

«Ó caso grande, estranho e não cuidado!

Ó milagre claríssimo e evidente,

Ó descoberto engano inopinado,

Ó pérfida, inimiga e falsa gente!

Quem poderá do mal aparelhado

Livrar-se sem perigo, sàbiamente,

Se lá de cima a Guarda Soberana

Não acudir à fraca força humana?

«Bem nos mostra a Divina Providência

Destes portos a pouca segurança,

Bem claro temos visto na aparência

Que era enganada a nossa confiança;

Mas pois saber humano nem prudência

Enganos tão fingidos não alcança,

Ó tu, Guarda Divina, tem cuidado

De quem sem ti não pode ser guardado!

«E, se te move tanto a piedade

Desta mísera gente peregrina,

Que, só por tua altíssima bondade,

Da gente a salvas pérfida e malina,

Nalgum porto seguro de verdade

Conduzir-nos já agora determina,

Ou nos amostra a terra que buscamos,

Pois só por teu serviço navegamos.»

Ouviu-lhe estas palavras piadosas

A fermosa Dione e, comovida,

Dantre as Ninfas se vai, que saüdosas

Ficaram desta súbita partida.

Ja penetra as Estrelas luminosas,

Já na terceira Esfera recebida

Avante passa, e lá no sexto Céu,

Pera onde estava o Padre, se moveu.

E, como ia afrontada do caminho,

Tão fermosa no gesto se mostrava

Que as Estrelas e o Céu e o Ar vizinho

E tudo quanto a via, namorava.

Dos olhos, onde faz seu filho o ninho,

Uns espíritos vivos inspirava,

Com que os Pólos gelados acendia,

E tornava do Fogo a Esfera, fria.

E, por mais namorar o soberano

Padre, de quem foi sempre amada e cara,

Se lh'apresenta assi como ao Troiano,

Na selva Ideia, já se apresentara.

Se a vira o caçador que o vulto humano

Perdeu, vendo Diana na água clara,

Nunca os famintos galgos o mataram,

Que primeiro desejos o acabaram.

Os crespos fios d'ouro se esparziam

Pelo colo que a neve escurecia;

Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,

Com quem Amor brincava e não se via;

Da alva petrina flamas lhe saíam,

Onde o Minino as almas acendia.

Polas lisas colunas lhe trepavam

Desejos, que como hera se enrolavam.

Cum delgado cendal as partes cobre

De quem vergonha é natural reparo;

Porém nem tudo esconde nem descobre

O véu, dos roxos lírios pouco avaro;

Mas, pera que o desejo acenda e dobre,

L'he põe diante aquele objecto raro.

Já se sentem no Céu, por toda a parte,

Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.

E mostrando no angélico sembrante

Co riso üa tristeza misturada,

Como dama que foi do incauto amante

Em brincos amorosos mal tratada,

Que se aqueixa e se ri num mesmo instante

E se torna entre alegre, magoada,

Destarte a Deusa a quem nenhüa iguala,

Mais mimosa que triste ao Padre fala:

«Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso,

Que, pera as cousas que eu do peito amasse,

Te achasse brando, afábil e amoroso,

Posto que a algum contrairo lhe pesasse;

Mas, pois que contra mi te vejo iroso,

Sem que to merecesse nem te errasse,

Faça-se como Baco determina;

Assentarei, enfim, que fui mofina.

«Este povo, que é meu, por quem derramo.

As lágrimas que em vão caídas vejo,

Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo,

Sendo tu tanto contra meu desejo;

Por ele a ti rogando, choro e bramo,

E contra minha dita enfim pelejo.

Ora pois, porque o amo é mal tratado;

Quero-lhe querer mal, será guardado.

«Mas moura enfim nas mãos das brutas gentes,

Que pois eu fui.» E nisto, de mimosa,

O rosto banha em lágrimas ardentes,

Como co orvalho fica a fresca rosa.

Calada um pouco, como se entre os dentes

Lhe impedira a fala piedosa,

Torna a segui-la; e indo por diante,

Lhe atalha o poderoso e grão Tonante.

E destas brandas mostras comovido,

Que moveram de um tigre o peito duro,

Co vulto alegre, qual, do Céu subido,

Torna sereno e claro o ar escuro,

As lágrimas lhe alimpa e, acendido,

Na face a beija e abraça o colo puro;

De modo que dali, se só se achara,

Outro novo Cupido se gerara

E, co seu apertando o rosto amado,

Que os saluços e lágrimas aumenta,

Como minino da ama castigado,

Que quem no afaga o choro lhe acrecenta,

Por lhe pôr em sossego o peito irado,

Muitos casos futuros lhe apresenta.

Dos Fados as entranhas revolvendo,

Desta maneira enfim lhe está dizendo:

- «Fermosa filha minha, não temais

Perigo algum nos vossos Lusitanos,

Nem que ninguém comigo possa mais

Que esses chorosos olhos soberanos;

Que eu vos prometo, filha, que vejais

Esquecerem-se Gregos e Romanos,

Pelos ilustres feitos que esta gente

Há-de fazer nas partes do Oriente.

«Que, se o facundo Ulisses escapou

De ser na Ogígia Ilha eterno escravo,

E se Antenor os seios penetrou

Ilíricos e a fonte de Timavo,

E se o piadoso Eneias navegou

De Cila e de Caríbdis o mar bravo,

Os vossos, mores cousas atentando,

Novos mundos ao mundo irão mostrando.

«Fortalezas, cidades e altos muros

Por eles vereis, filha, edificados;

Os Turcos belacíssimos e duros

Deles sempre vereis desbaratados;

Os Reis da Índia, livres e seguros,

Vereis ao Rei potente sojugados,

E por eles, de tudo enfim senhores,

Serão dadas na terra leis milhores.

«Vereis este que agora, pressuroso,

Por tantos medos o Indo vai buscando,

Tremer dele Neptuno de medroso,

Sem vento suas águas encrespando.

Ó caso nunca visto e milagroso,

Que trema e ferva o mar, em calma estando!

Ó gente forte e de altos pensamentos,

Que também dela hão medo os Elementos!

«Vereis a terra que a água lhe tolhia,

Que inda há-de ser um porto mui decente,

Em que vão descansar da longa via

As naus que navegarem do Ocidente

Toda esta costa, enfim, que agora urdia

O mortífero engano, obediente

Lhe pagará tributos, conhecendo

Não poder resistir ao Luso horrendo.

«E vereis o Mar Roxo, tão famoso,

Tornar-se-lhe amarelo, de enfiado;

Vereis de Ormuz o Reino poderoso

Duas vezes tomado e sojugado.

Ali vereis o Mouro furioso

De suas mesmas setas traspassado;

Que quem vai contra os vossos, claro veja

Que, se resiste, contra si peleja.

«Vereis a inexpugnábil Dio forte

Que dous cercos terá, dos vossos sendo;

Ali se mostrará seu preço e sorte,

Feitos de armas grandíssimos fazendo.

Envejoso vereis o grão Mavorte

Do peito Lusitano, fero e horrendo;

Do Mouro ali verão que a voz extrema do falso.

Mahamede ao Céu blasfema.

Goa vereis aos Mouros ser tomada,

O qual virá despois a ser senhora

De todo o Oriente, e sublimada

Cos triunfos da gente vencedora.

Ali, soberba, altiva e exalçada,

Ao Gentio que os Ídolos adora

Duro freio porá, e a toda a terra

Que cuidar de fazer aos vossos guerra.

«Vereis a fortaleza sustentar-se

De Cananor, com pouca força e gente;

E vereis Calecu desbaratar-se,

Cidade populosa e tão potente;

E vereis em Cochim assinalar-se

Tanto um peito soberbo e insolente

Que cítara jamais cantou vitória

Que assi mereça eterno nome e glória.

«Nunca com Marte instruto e furioso

Se viu ferver Leucate, quando Augusto

Nas civis Áctias guerras, animoso,

O Capitão venceu Romano injusto,

Que dos povos de Aurora e do famoso

Nilo e do Bactra Cítico e robusto

A vitória trazia e presa rica,

Preso da Egípcia linda e não pudica,

«Como vereis o mar fervendo aceso

Cos incêndios dos vossos, pelejando,

Levando o Idololatra e o Mouro preso,

De nações diferentes triunfando;

E, sujeita a rica Áurea Quersoneso,

Até o longico China navegando

E as Ilhas mais remotas do Oriente,

Ser-lhe-á todo o Oceano obediente.

«De modo, filha minha, que de jeito

Amostrarão esforço mais que humano,

Que nunca se verá tão forte peito,

Do Gangético mar ao Gaditano,

Nem das Boreais ondas ao Estreito

Que mostrou o agravado Lusitano,

Posto que em todo o mundo, de afrontados,

Re[s]sucitassem todos os passados.»

Como isto disse, manda o consagrado

Filho de Maia à Terra, por que tenha

Um pacífico porto e sossegado,

Pera onde sem receio a frota venha;

E, pera que em Mombaça, aventurado,

O forte Capitão se não detenha,

Lhe manda mais que em sonhos lhe mostrasse

A terra onde quieto repousasse.

Já pelo ar o Cileneu voava;

Com as asas nos pés à Terra dece;

Sua vara fatal na mão levava,

Com que os olhos cansados adormece;

Com esta, as tristes almas revocava

Do Inferno, e o vento lhe obedece;

Na cabeça o galero costumado;

E destarte a Melinde foi chegado.

Consigo a Fama leva, por que diga

Do Lusitano o preço grande e raro,

Que o nome ilustre a um certo amor obriga,

E faz, a quem o tem, amado e caro.

Destarte vai fazendo a gente, amiga,

Co rumor famosíssimo e perclaro.

Já Melinde em desejos arde todo

De ver da gente forte o gesto e modo.

Dali pera Mombaça logo parte,

Aonde as naus estavam temerosas,

Pera que à gente mande que se aparte

Da barra imiga e terras suspeitosas;

Porque mui pouco val esforço e arte

Contra infernais vontades enganosas;

Pouco val coração, astúcia e siso,

Se lá dos Céus não vem celeste aviso.

Meio caminho a noite tinha andado,

E as Estrelas no Céu, co a luz alheia,

Tinham largo Mundo alumiado,

E só co sono a gente se recreia.

O Capitão ilustre, já cansado

De vigiar a noite que arreceia,

Breve repouso antão aos olhos dava,

A outra gente a quartos vigiava;

Quando Mercúrio em sonhos lhe aparece,

Dizendo: - «fuge, fuge, Lusitano,

Da cilada que o Rei malvado tece,

Por te trazer ao fim e extremo dano!

Fuge, que o vento e o Céu te favorece;

Sereno o tempo tens e o Oceano,

E outro Rei mais amigo, noutra parte,

Onde podes seguro agasalhar-te!

«Não tens aqui senão aparelhado

O hospício que o cru Diomedes dava,

Fazendo ser manjar acostumado

De cavalos a gente que hospedava;

As aras de Busíris infamado,

Onde os hóspedes tristes imolava,

Terás certas aqui, se muito esperas:

Fuge das gentes pérfidas e feras!

- «Vai-te ao longo da costa discorrendo

E outra terra acharás de mais verdade

Lá quási junto donde o Sol, ardendo,

Iguala o dia e noite em quantidade;

Ali tua frota alegre recebendo,

Um Rei, com muitas obras de amizade,

Gasalhado seguro te daria

E, pera a Índia, certa e sábia guia.»

Isto Mercúrio disse, e o sono leva

Ao Capitão, que, com mui grande espanto,

Acorda e vê ferida a escura treva

De üa súbita luz e raio santo;

E vendo claro quanto lhe releva

Não se deter na terra inica tanto,

Com novo esprito ao mestre seu mandava

Que as velas desse ao vento que assoprava.

- «Dai velas (disse) dai ao largo vento,

Que o Céu nos favorece e Deus o manda;

Que um mensageiro vi do claro Assento,

Que só em favor de nossos passos anda.»

Alevanta-se nisto o movimento

Dos marinheiros, de üa e de outra banda;

Levam gritando as âncoras acima,

Mostrando a ruda força que se estima.

Neste tempo que as ancoras levavam,

Na sombra escura os Mouros escondidos

Mansamente as amarras lhe cortavam,

Por serem, dando à costa, destruídos;

Mas com vista de linces vigiavam

Os Portugueses, sempre apercebidos;

Eles, como acordados os sentiram,

Voando, e não remando, lhe fugiram.

Mas já as agudas proas apartando

Iam as vias húmidas de argento;

Assopra-lhe galerno o vento e brando,

Com suave e seguro movimento.

Nos perigos passados vão falando,

Que mal se perderão do pensamento

Os casos grandes, donde em tanto aperto

A vida em salvo escapa por acerto.

Tinha üa volta dado o Sol ardente

E noutra começava, quando viram

No longe dous navios, brandamente

Cos ventos navegando, que respiram.

Porque haviam de ser da Maura gente,

Pera eles arribando, as velas viram.

Um, de temor do mal que arreceava,

Por se salvar a gente à costa dava.

Não é o outro que fica tão manhoso,

Mas nas mãos vai cair do Lusitano,

Sem o rigor de Marte furioso.

E sem a fúria horrenda de Vulcano;

Que, como fosse débil e medroso.

Da pouca gente o fraco peito humano,

Não teve resistência; e, se a tivera,

Mais dano, resistindo, recebera.

E como o Gama muito desejasse

Piloto pera a Índia, que buscava,

Cuidou que entre estes Mouros o tomasse,

Mas não lhe sucedeu como cuidava;

Que nenhum deles há que lhe ensinasse

A que parte dos céus a Índia estava;

Porém dizem-lhe todos que tem perto

Melinde, onde acharão piloto certo.

Louvam do Rei os Mouros a bondade,

Condição liberal, sincero peito,

Magnificência grande e humanidade,

Com partes de grandíssimo respeito.

O Capitão o assela por verdade,

Porque já lho dissera deste jeito

O Cileneu em sonhos; e partia

Pera onde o sonho e o Mouro lhe dizia.

Era no tempo alegre, quando entrava

No roubador de Europa a luz Febeia,

Quando um e o outro corno lhe aquentava,

E Flora derramava o de Amalteia;

A memória do dia renovava

O pres[s]uroso Sol, que o Céu rodeia,

Em que Aquele a quem tudo está sujeito

O selo pôs a quanto tinha feito;

Quando chegava a frota àquela parte

Onde o Reino Melinde já se via,

De toldos adornada e leda de arte

Que bem mostra estimar o Santo dia.

Treme a bandeira, voa o estandarte,

A cor purpúrea ao longe aparecia;

Soam os atambores e pandeiros;

E assi entravam ledos e guerreiros.

Enche-se toda a praia Melindana

Da gente que vem ver a leda armada,

Gente mais verdadeira e mais humana

Que toda a doutra terra atrás deixada.

Surge diante a frota Lusitana,

Pega no fundo a âncora pesada;

Mandam fora um dos Mouros que tomaram,

Por quem sua vinda ao Rei manifestaram.

O Rei, que já sabia da nobreza

Que tanto os Portugueses engrandece,

Tomarem o seu porto tanto preza

Quanto a gente fortíssima merece;

E com verdadeiro ânimo e pureza,

Que os peitos generosos ennobrece,

Lhe manda rogar muito que saíssem

Pera que de seus reinos se servissem.

São oferecimentos verdadeiros

E palavras sinceras, não dobradas,

As que o Rei manda aos nobres cavaleiros

Que tanto mar e terras têm passadas.

Manda-lhe mais lanígeros carneiros

E galinhas domésticas cevadas,

Com as frutas que antão na terra havia;

E a vontade à dádiva excedia.

Recebe o Capitão alegremente

O mensageiro ledo e seu recado;

E logo manda ao Rei outro presente,

Que de longe trazia aparelhado:

Escarlata purpúrea, cor ardente,

O ramoso coral, fino e prezado,

Que debaxo das águas mole crece,

E, como é fora delas, se endurece.

Manda mais um, na prática elegante,

Que co Rei nobre as pazes concertasse

E que de não sair, naquele instante,

De suas naus em terra, o desculpasse.

Partido assi o embaixador prestante,

Como na terra ao Rei se apresentasse,

Com estilo que Palas lhe ensinava,

Estas palavras tais falando orava:

- «Sublime Rei, a quem do Olimpo puro

Foi da suma Justiça concedido

Refrear o soberbo povo duro,

Não menos dele amado, que temido:

Como porto mui forte e mui seguro,

De todo o Oriente conhecido,

Te vimos a buscar, pera que achemos

Em ti o remédio certo que queremos.

«Não somos roubadores que, passando

Pelas fracas cidades descuidadas,

A ferro e a fogo as gentes vão matando,

Por roubar-lhe as fazendas cobiçadas;

Mas, da soberba Europa navegando,

Imos buscando as terras apartadas

Da Índia, grande e rica, por mandado

De um Rei que temos, alto e sublimado.

«Que geração tão dura há i de gente,

Que bárbaro costume e usança feia,

Que não vedem os portos tão somente,

Mas inda o hospício da deserta areia?

Que má tenção, que peito em nós se sente,

Que de tão pouca gente se arreceia?

Que, com laços armados, tão fingidos,

Nos ordenassem ver-nos destruídos?

«Mas tu, em quem mui certo confiamos

Achar-se mais verdade, ó Rei benino,

E aquela certa ajuda em ti esperamos

Que teve o perdido Ítaco em Alcino,

A teu porto seguros navegamos,

Conduzidos do intérprete divino;

Que, pois a ti nos manda, está mui

Claro Que és de peito sincero, humano e raro.

«E não cuides, ó Rei, que não saísse

O nosso Capitão esclarecido

A ver-te ou a servir-te, porque visse

Ou suspeitasse em ti peito fingido;

Mas saberás que o fez, por que cumprisse

O regimento, em tudo obedecido,

De seu Rei, que lhe manda que não saia,

Deixando a frota, em nenhum porto ou praia.

«E porque é de vassalos o exercício

Que os membros têm, regidos da cabeça,

Não quererás, pois tens de Rei o ofício,

Que ninguém a seu Rei desobedeça;

Mas as mercês e o grande benefício

Que ora acha em ti, promete que conheça

Em tudo aquilo que ele e os seus puderem,

Enquanto os rios pera o mar correrem.»

Assi dizia; e todos juntamente,

Uns com outros em prática falando,

Louvavam muito o estâmago da gente

Que tantos céus e mares vai passando;

E o Rei ilustre, o peito obediente

Dos Portugueses na alma imaginando,

Tinha por valor grande e mui subido

O do Rei que é tão longe obedecido;

E com risonha vista e ledo aspeito,

Responde ao embaixador, que tanto estima:

- «Toda a suspeita má tirai do peito,

Nenhum frio temor em vós se imprima,

Que vosso preço e obras são de jeito

Pera vos ter o mundo em muita estima;

E quem vos fez molesto tratamento

Não pode ter subido pensamento.

«De não sair em terra toda a gente,

Por observar a usada preminência,

Ainda que me pese estranhamente,

Em muito tenho a muita obediência

Mas, se lho o regimento não consente,

Nem eu consentirei que a excelência

De peitos tão leais em si desfaça,

Só porque a meu desejo satisfaça.

«Porém, como a luz crástina chegada

Ao mundo for, em minhas almadias

Eu irei visitar a forte armada,

Que ver tanto desejo há tantos dias.

E, se vier do mar desbaratada

Do furioso vento e longas vias,

Aqui terá de limpos pensamentos

Piloto, munições e mantimentos.»

Isto disse; e nas águas se escondia

O filho de Latona; e o mensageiro,

Co a embaixada, alegre se partia

Pera a frota no seu batel ligeiro.

Enchem-se os peitos todos de alegria,

Por terem o remédio verdadeiro

Pera acharem a terra que buscavam;

E assi ledos a noite festejavam.

Não faltam ali os raios de artifício,

Os trémulos cometas imitando;

Fazem os bombardeiros seu ofício,

O céu, a terra e as ondas atroando;

Mostra-se dos Ciclopas o exercício,

Nas bombas que de fogo estão queimando;

Outros com vozes com que o céu feriam,

Instrumentos altíssonos tangiam.

Respondem-lhe da terra juntamente,

Co raio volteando com zunido;

Anda em giros no ar a roda ardente,

Estoira o pó sulfúreo escondido;

A grita se alevanta ao céu, da gente;

O mar se via em fogos acendido

E não menos a terra; e assi festeja

Um ao outro, à maneira de peleja.

Mas já o Céu inquieto, revolvendo,

As gentes incitava a seu trabalho;

E já a mãe de Menon, a luz trazendo

Ao sono longo punha certo atalho;

Iam-se as sombras lentas desfazendo,

Sobre as flores da terra em frio orvalho,

Quando o Rei Melindano se embarcava,

A ver a frota que no mar estava.

Viam-se em derredor ferver as praias,

Da gente que a ver só concorre leda;

Luzem da fina púrpura as cabaias,

Lustram os panos da tecida seda.

Em lugar de guerreiras azagaias

E do arco que os cornos arremeda

Da Lüa, trazem ramos de palmeira,

Dos que vencem, coroa verdadeira.

Um batel grande e largo, que toldado

Vinha de sedas de diversas cores,

Traz o Rei de Melinde, acompanhado

De nobres de seu Reino e de senhores.

Vem de ricos vestidos adornado,

Segundo seus costumes e primores;

Na cabeça, üa fota guarnecida

De ouro, e de seda e de algodão tecida;

Cabaia de Damasco rico e dino,

Da Tíria cor, entre eles estimada;

Um colar ao pescoço, de ouro fino,

Onde a matéria da obra é superada,

Cum resplandor reluze adamantino;

Na cinta a rica adaga, bem lavrada;

Nas alparcas dos pés, em fim de tudo,

Cobrem ouro e aljôfar ao veludo.

Com um redondo emparo alto de seda,

Nüa alta e dourada hástea enxerido,

Um ministro à solar quentura veda

Que não ofenda e queime o Rei subido.

Música traz na proa, estranha e leda,

De áspero som, horríssono ao ouvido,

De trombetas arcadas em redondo,

Que, sem concerto, fazem rudo estrondo.

Não menos guarnecido, o Lusitano,

Nos seus batéis, da frota se partia,

A receber no mar o Melindano,

Com lustrosa e honrada companhia.

Vestido o Gama vem ao modo Hispano,

Mas Francesa era a roupa que vestia,

De cetim da Adriática Veneza,

Carmesi, cor que a gente tanto preza;

De botões d'ouro as mangas vêm tomadas

Onde o Sol, reluzindo, a vista cega;

As calças soldadescas, recamadas

Do metal que Fortuna a tantos nega;

E com pontas do mesmo, delicadas,

Os golpes do gibão ajunta e achega;

Ao Itálico modo a áurea espada;

Pruma na gorra, um pouco declinada.

Nos de sua companhia se mostrava

Da tinta que dá o múrice excelente

A vária cor, que os olhos alegrava,

E a maneira do trajo diferente.

Tal o fermoso esmalte se notava

Dos vestidos, olhados juntamente,

Qual aparece o arco rutilante

Da bela Ninfa, filha de Taumante.

Sonorosas trombetas incitavam

Os ânimos alegres, ressoando;

Dos Mouros os batéis o mar coalhavam,

Os toldos pelas águas arrojando;

As bombardas horríssonas bramavam,

Com as nuvens de fumo o Sol tomando;

Amiúdam-se os brados acendidos,

Tapam com as mãos os Mouros os ouvidos.

Já no batel entrou do Capitão

O Rei, que nos seus braços o levava;

Ele, co a cortesia que a razão

(Por ser Rei) requeria, lhe falava.

Cüas mostras de espanto e admiração,

O Mouro o gesto e o modo lhe notava,

Como quem em mui grande estima tinha

Gente que de tão longe à Índia vinha.

E com grandes palavras lhe oferece

Tudo o que de seus reinos lhe cumprisse,

E que, se mantimento lhe falece,

Como se próprio fosse, lho pedisse.

Diz-lhe mais que por fama bem conhece

A gente Lusitana, sem que a visse;

Que já ouviu dizer que noutra terra

Com gente de sua Lei tivesse guerra;

E como por toda Africa se soa,

Lhe diz, os grandes feitos que fizeram

Quando nela ganharam a coroa

Do Reino onde as Hespéridas viveram;

E com muitas palavras apregoa

O menos que os de Luso mereceram

E o mais que pela fama o Rei sabia;

Mas desta sorte o Gama respondia:

- «Ó tu que, só, tiveste piedade,

Rei benigno, da gente Lusitana,

Que com tanta miséria e adversidade

Dos mares exprimenta a fúria insana:

Aquela alta e divina Eternidade

Que o Céu revolve e rege a gente humana,

Pois que de ti tais obras recebemos,

Te pague o que nós outros não podemos.

«Tu só, de todos quantos queima Apolo,

Nos recebes em paz, do mar profundo;

Em ti, dos ventos hórridos de Eolo

Refúgio achamos, bom, fido e jocundo.

Enquanto apacentar o largo Pólo

As Estrelas, e o Sol der lume ao Mundo,

Onde quer que eu viver, com fama e glória

Viverão teus louvores em memória.»

Isto dizendo, os barcos vão remando

Pera a frota, que o Mouro ver deseja;

Vão as naus üa e üa rodeando,

Por que de todas tudo note e veja.

Mas pera o Céu Vulcano fuzilando,

A frota co as bombardas o festeja

E as trombetas canoras lhe tangiam;

Cos anafis os Mouros respondiam.

Mas, despois de ser tudo já notado

Do generoso Mouro, que pasmava

Ouvindo o instrumento inusitado,

Que tamanho terror em si mostrava,

Mandava estar quieto e ancorado

N'água o batel ligeiro que os levava,

Por falar de vagar co forte Gama

Nas cousas de que tem notícia e fama.

Em práticas o Mouro diferentes

Se deleitava, perguntando agora

Pelas guerras famosas e excelentes

Co povo havidas que a Mafoma adora;

Agora lhe pergunta pelas gentes

De toda a Hespéria última, onde mora;

Agora, pelos povos seus vizinhos,

Agora, pelos húmidos caminhos.

- «Mas antes, valeroso Capitão,

Nos conta (lhe dizia), diligente,

Da terra tua o clima e região

Do mundo onde morais, distintamente;

E assi de vossa antiga geração,

E o princípio do Reino tão potente,

Cos sucessos das guerras do começo,

Que, sem sabê-las, sei que são de preço;

«E assi também nos conta dos rodeios

Longos em que te traz o Mar irado,

Vendo os costumes bárbaros, alheios,

Que a nossa Africa ruda tem criado;

Conta, que agora vêm cos áureos freios

Os cavalos que o carro marchetado

Do novo Sol, da fria Aurora trazem;

O vento dorme, o mar e as ondas jazem.

«E não menos co tempo se parece

O desejo de ouvir-te o que contares;

Que quem há que por fama não conhece

As obras Portuguesas singulares?

Não tanto desviado resplandece

De nós o claro Sol, pera julgares

Que os Melindanos têm tão rudo peito

Que não estimem muito um grande feito.

«Cometeram soberbos os Gigantes,

Com guerra vã, o Olimpo claro e puro;

Tentou Perito e Teseu, de ignorantes,

O Reino de Plutão, horrendo e escuro.

Se houve feitos no mundo tão possantes,

Não menos é trabalho ilustre e duro,

Quanto foi cometer Inferno e Céu,

Que outrem cometa a fúria de Nereu.

«Queimou o sagrado templo de Diana,

Do sutil Tesifónio fabricado,

Heróstrato, por ser da gente humana

Conhecido no mundo e nomeado.

Se também com tais obras nos engana

O desejo de um nome aventajado,

Mais razão há que queira eterna glória

Quem faz obras tão dinas de memória.».

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Canto III

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GORA tu, Calíope, me ensina

O que contou ao Rei o ilustre Gama;

Inspira imortal canto e voz divina

Neste peito mortal, que tanto te ama.

Assi o claro inventor da Medicina,

De quem Orfeu pariste, ó linda Dama,

Nunca por Dafne, Clície ou Leucotoe,

Te negue o amor devido, como soe.

Põe tu, Ninfa, em efeito meu desejo,

Como merece a gente Lusitana;

Que veja e saiba o mundo que do Tejo

O licor de Aganipe corre e mana.

Deixa as flores de Pindo, que já vejo

Banhar-me Apolo na água soberana;

Senão direi que tens algum receio

Que se escureça o teu querido Orfeio.

Prontos estavam todos escuitando

O que o sublime Gama contaria,

Quando, despois de um pouco estar cuidando

Alevantando o rosto, assi dizia:

- «Mandas-me, ó Rei, que conte declarando

De minha gente a grão genealogia;

Não me mandas contar estranha história,

Mas mandas-me louvar dos meus a glória.

«Que outrem possa louvar esforço alheio,

Cousa é que se costuma e se deseja;

Mas louvar os meus próprios, arreceio

Que louvor tão suspeito mal me esteja;

E, pera dizer tudo, temo e creio

Que qualquer longo tempo curto seja;

Mas, pois o mandas, tudo se te deve;

Irei contra o que devo, e serei breve.

«Além disso, o que a tudo enfim me obriga

É não poder mentir no que disser,

Porque de feitos tais, por mais que diga,

Mais me há-de ficar inda por dizer.

Mas, porque nisto a ordem leve e siga,

Segundo o que desejas de saber,

Primeiro tratarei da larga terra,

Despois direi da sanguinosa guerra.

«Entre a Zona que o Cancro senhoreia,

Meta Setentrional do Sol luzente,

E aquela que por fria se arreceia

Tanto, como a do meio por ardente,

Jaz a soberba Europa, a quem rodeia,

Pela parte do Arcturo e do Ocidente.

Com suas salsas ondas o Oceano,

E pela Austral, o Mar Mediterrano.

Da parte donde o dia vem nascendo,

Com Asia se avizinha; mas o rio

Que dos Montes Rifeios vai correndo

Na alagoa Meótis, curvo e frio,

As divide, e o mar que, fero e horrendo,

Viu dos Gregos o irado senhorio,

Onde agora de Tróia triunfante

Não vê mais que a memória o navegante.

«Lá onde mais debaxo está do Pólo

Os Montes Hiperbóreos aparecem

E aqueles onde sempre sopra Eolo,

E co nome dos sopros se ennobrecem

Aqui tão pouca força têm de Apolo

Os raios que no mundo resplandecem,

que a nEve está contino pelos montes,

Gelado o mar, geladas sempre as fontes.

«Aqui dos Citas grande quantidade

Vivem, que antigamente grande guerra

Tiveram, sobre a humana antiguidade,

Cos que tinham antão a Egípcia terra;

Mas quem tão fora estava da verdade

(Já que o juízo humano tanto erra),

Pera que do mais certo se informara,

Ao campo Damasceno o perguntara.

«Agora nestas partes se nomeia

A Lápia fria, a inculta Noruega,

Escandinávia Ilha, que se arreia

Das vitórias que Itália não lhe nega.

Aqui, enquanto as águas não refreia

O congelado Inverno, se navega

Um braço do Sarmático Oceano

Pelo Brús[s]io, Suécio e frio Dano.

«Entre este Mar e o Tánais vive estranha

Gente, Rutenos, Moscos e Livónios,

Sármatas outro tempo; e na montanha

Hircínia os Marcomanos são Polónios.

Sujeitos ao Império de Alemanha

São Saxones, Boémios e Panónios

E outras várias nações, que o Reno frio

Lava, e o Danúbio, Amásis e Álbis rio.

«Entre o remoto Istro e o claro Estreito

Aonde Hele deixou, co nome, a vida,

Estão os Traces de robusto peito,

Do fero Marte pátria tão querida,

Onde, co Hemo, o Ródope sujeito

Ao Otomano está, que sometida

Bizâncio tem a seu serviço indino:

- Boa injúria do grande Costantino!

«Logo de Macedónia estão as gentes,

A quem lava do Áxio a água fria;

E vós também, ó terras excelentes

Nos costumes, engenhos e ousadia,

Que criastes os peitos eloquentes

E os juízos de alta fantasia,

Com quem tu, clara Grécia, o Céu penetras,

E não menos por armas, que por letras.

«Logo os Dálmatas vivem; e no seio

Onde Antenor já muros levantou,

A soberba Veneza está no meio

Das águas, - que tão baxa começou.

Da terra um braço vem ao mar, que, cheio

De esforço, nações várias sujeitou;

Braço forte, de gente sublimada

Não menos nos engenhos que na espada.

«Em torno o cerca o Reino Neptunino,

Cos muros naturais por outra parte;

Pelo meio o divide o Apenino,

Que tão ilustre fez o pátrio Marte;

Mas, despois que o Porteiro tem divino,

Perdendo o esforço veio e bélica arte;

Pobre está já de antiga potestade.

Tanto Deus se contenta de humildade!

«Gália ali se verá, que nomeada

Cos Cesáreos triunfos foi no mundo;

Que do Séquana e Ródano é regada

E do Garuna frio e Reno fundo.

Logo os montes da Ninfa sepultada,

Pirene, se alevantam, que, segundo

Antiguidades contam, quando arderam,

Rios de ouro e de prata antão correram.

«Eis aqui se descobre a nobre Espanha,

Como cabeça ali de Europa toda,

Em cujo senhorio e glória estranha

Muitas voltas tem dado a fatal roda;

Mas nunca poderá, com força ou manha,

A Fortuna inquieta por-lhe noda

Que lha não tire o esforço e ousadia

Dos belicosos peitos que em si cria.

«Com Tingitânia entesta; e ali parece

Que quer fechar o Mar Mediterrano

Onde o sabido Estreito se ennobrece

Co extremo trabalho do Tebano.

Com nações diferentes se engrandece,

Cercadas com as ondas do Oceano;

Todas de tal nobreza e tal valor

Que qualquer delas cuida que é milhor.

«Tem o Tarragonês, que se fez claro

Sujeitando Parténope inquieta;

O Navarro, as Astúrias, que reparo

Já foram contra a gente Mahometa;

Tem o Galego cauto e o grande e raro

Castelhano, a quem fez o seu Planeta

Restituidor de Espanha e senhor dela;

Bétis, Lião, Granada, com Castela.

«Eis aqui, quási cume da cabeça

De Europa toda, o Reino Lusitano,

Onde a terra se acaba e o mar começa

E onde Febo repousa no Oceano.

Este quis o Céu justo que floreça

Nas armas contra o torpe Mauritano,

Deitando-o de si fora; e lá na ardente

África estar quieto o não consente.

«Esta é a ditosa pátria minha amada,

À qual se o Céu me dá que eu sem perigo

Torne, com esta empresa já acabada,

Acabe-se esta luz ali comigo.

Esta foi Lusitânia, derivada

De Luso ou Lisa, que de Baco antigo

Filhos foram, parece, ou companheiros,

E nela antão os íncolas primeiros.

«Desta o pastor nasceu que no seu nome

Se vê que de homem forte os feitos teve;

Cuja fama ninguém virá que dome,

Pois a grande de Roma não se atreve.

Esta, o Velho que os filhos próprios come,

Por decreto do Céu, ligeiro e leve,

Veio a fazer no mundo tanta parte,

Criando-a Reino ilustre; e foi destarte:

«Um Rei, por nome Afonso, foi na Espanha,

Que fez aos Sarracenos tanta guerra,

Que, por armas sanguinas, força e manha,

A muitos fez perder a vida e a terra.

Voando deste Rei a fama estranha

Do Herculano Calpe à Cáspia Serra,

Muitos, pera na guerra esclarecer-se,

Vinham a ele e à morte oferecer-se.

«E com um amor intrínseco acendidos

Da Fé, mais que das honras populares,

Eram de várias terras conduzidos,

Deixando a pátria amada e próprios lares.

Despois que em feitos altos e subidos

Se mostraram nas armas singulares,

Quis o famoso Afonso que obras tais

Levassem prémio dino e dões iguais.

«Destes Anrique (dizem que segundo

Filho de um Rei de Hungria exprimentado)

Portugal houve em sorte, que no mundo

Então não era ilustre nem prezado;

E, pera mais sinal de amor profundo,

Quis o Rei Castelhano que casado

Com Teresa, sua filha, o Conde fosse;

E com ela das terras tomou posse.

«Este, despois que contra os descendentes

Da escrava Agar vitórias grandes teve,

Ganhando muitas terras adjacentes,

Fazendo o que a seu forte peito deve,

Em prémio destes feitos excelentes

Deu-lhe o supremo Deus, em tempo breve,

Um filho que ilustrasse o nome ufano

Do belicoso Reino Lusitano.

«Já tinha vindo Anrique da conquista

Da cidade Hierosólima sagrada,

E do Jordão a areia tinha vista,

Que viu de Deus a carne em si lavada

(Que, não tendo Gotfredo a quem resista,

Despois de ter Judeia sojugada,

Muitos que nestas guerras o ajudaram

Pera seus senhorios se tornaram);

«Quando, chegado ao fim de sua idade,

O forte e famoso Húngaro estremado,

Forçado da fatal necessidade,

O esprito deu a Quem lho tinha dado.

Ficava o filho em tenra mocidade,

Em quem o pai deixava seu traslado,

Que do mundo os mais fortes igualava:

Que de tal pai tal filho se esperava.

«Mas o velho rumor - não sei se errado,

Que em tanta antiguidade não há certeza -

Conta que a mãe, tomando todo o estado,

Do segundo himeneu não se despreza.

O filho órfão deixava deserdado,

Dizendo que nas terras a grandeza

Do senhorio todo só sua era,

Porque, pera casar, seu pai lhas dera.

«Mas o Príncipe Afonso (que destarte

Se chamava, do avô tomando o nome),

Vendo-se em suas terras não ter parte,

Que a mãe com seu marido as manda e come,

Fervendo-lhe no peito o duro Marte,

Imagina consigo como as tome:

Revolvidas as causas no conceito,

Ao propósito firme segue o efeito.

«De Guimarães o campo se tingia

Co sangue proprio da intestina guerra,

Onde a mãe, que tão pouco o parecia,

A seu filho negava o amor e a terra.

Co ele posta em campo já se via;

E não vê a soberba o muito que erra

Contra Deus, contra o maternal amor;

Mas nela o sensual era maior.

«Ó Progne crua, ó mágica Medeia!

Se em vossos próprios filhos vos vingais

Da maldade dos pais, da culpa alheia,

Olhai que inda Teresa peca mais!

Incontinência má, cobiça feia,

São as causas deste erro principais:

Cila, por üa mata o velho pai;

Esta, por ambas, contra o filho vai.

«Mas já o Príncipe claro o vencimento

Do padrasto e da inica mãe levava;

Já lhe obedece a terra, num momento,

Que primeiro contra ele pelejava;

Porém, vencido de ira o entendimento,

A mãe em ferros ásperos atava;

Mas de Deus foi vingada em tempo breve.

Tanta veneração aos pais se deve!

«Eis se ajunta o soberbo Castelhano

Pera vingar a injúria de Teresa,

Contra o, tão raro em gente, Lusitano,

A quem nenhum trabalho agrava ou pesa.

Em batalha cruel, o peito humano,

Ajudado da Angélica defesa,

Não só contra tal fúria se sustenta,

Mas o inimigo aspérrimo afugenta.

«Não passa muito tempo, quando o forte

Príncipe em Guimarães está cercado

De infinito poder, que desta sorte

Foi refazer-se o imigo magoado;

Mas, com se oferecer à dura morte

O fiel Egas amo, foi livrado;

Que, de outra arte, pudera ser perdido,

Segundo estava mal apercebido.

«Mas o leal vassalo, conhecendo

Que seu senhor não tinha resistência,

Se vai ao Castelhano, prometendo

Que ele faria dar-lhe obediência.

Levanta o inimigo o cerco horrendo,

Fiado na promessa e consciência

De Egas Moniz; mas não consente o peito

Do moço ilustre a outrem ser sujeito.

«Chegado tinha o prazo prometido,

Em que o Rei Castelhano já aguardava

Que o Príncipe, a seu mando sometido.

Lhe desse a obediência que esperava.

Vendo Egas que ficava fementido,

O que dele Castela não cuidava,

Determina de dar a doce vida

A troco da palavra mal cumprida.

«E com seus filhos e mulher se parte

A alevantar co eles a fiança,

Descalços e despidos, de tal arte

Que mais move a piedade que a vingança.

- «Se pretendes, Rei alto, de vingar-te

De minha temerária confiança

(Dizia) eis aqui venho oferecido

A te pagar co a vida o prometido

«Vés aqui trago as vidas inocentes

Dos filhos sem pecado e da consorte;

Se a peitos generosos e excelentes

Dos fracos satisfaz a fera morte,

Vês aqui as mãos e a língua delinquentes:

Nelas sós exprimenta toda sorte

De tormentos, de mortes, pelo estilo

De Sínis e do touro de Perilo.»

«Qual diante do algoz o condenado,

Que já na vida a morte tem bebido,

Põe no cepo a garganta e já entregado

Espera pelo golpe tão temido:

Tal diante do Príncipe indinado

Egas estava, a tudo oferecido.

Mas o Rei vendo a estranha lealdade,

Mais pôde, enfim, que a ira, a piedade.

«Ó grão fidelidade Portuguesa

De vassalo, que a tanto se obrigava!

Que mais o Persa fez naquela empresa

Onde rosto e narizes se cortava?

Do que ao grande Dario tanto pesa,

Que mil vezes dizendo suspirava

Que mais o seu Zopiro são prezara

Que vinte Babilónias que tomara.

«Mas já o Príncipe Afonso aparelhava

O Lusitano exército ditoso,

Contra o Mouro que as terras habitava

De além do claro Tejo deleitoso;

Já no campo de Ourique se assentava

O arraial soberbo e belicoso,

Defronte do inimigo Sarraceno,

Posto que em força e gente tão pequeno,

«Em nenhüa outra cousa confiado,

senão no sumo Deus que o Céu regia,

Que tão pouco era o povo bautizado,

Que, pera um só, cem Mouros haveria.

Julga qualquer juízo sossegado

Por mais temeridade que ousadia

Cometer um tamanho ajuntamento,

Que pera um cavaleiro houvesse cento.

«Cinco Reis Mouros são os inimigos,

Dos quais o principal Ismar se chama;

Todos exprimentados nos perigos

Da guerra, onde se alcança a ilustre fama.

Seguem guerreiras damas seus amigos,

Imitando a fermosa e forte Dama

De quem tanto os Troianos se ajudaram,

E as que o Termodonte já gostaram.

«A matutina luz, serena e fria,

As Estrelas do Pólo já apartava,

Quando na Cruz o Filho de Maria,

Amostrando-se a Afonso, o animava.

Ele, adorando Quem lhe aparecia,

Na Fé todo inflamado assi gritava:

- «Aos Infiéis, Senhor, aos Infiéis,

E não a mi, que creio o que podeis!»

«Com tal milagre os ânimos da gente

Portuguesa inflamados, levantavam

Por seu Rei natural este excelente

Príncipe, que do peito tanto amavam;

E diante do exército potente

Dos imigos, gritando, o céu tocavam,

Dizendo em alta voz: - «Real, real,

Por Afonso, alto Rei de Portugal!»

«Qual cos gritos e vozes incitado,

Pela montanha, o rábido moloso

Contra o touro remete, que fiado

Na força está do corno temeroso;

Ora pega na orelha, ora no lado,

Latindo mais ligeiro que forçoso,

Até que enfim, rompendo-lhe a garganta,

Do bravo a força horrenda se quebranta:

«Tal do Rei novo o estâmago acendido

Por Deus e polo povo juntamente,

O Bárbaro comete, apercebido

Co animoso exército rompente.

Levantam nisto os Perros o alarido

Dos gritos; tocam a arma, ferve a gente,

As lanças e arcos tomam, tubas soam,

Instrumentos de guerra tudo atroam!

«Bem como quando a flama, que ateada

Foi nos áridos campos (assoprando

O sibilante Bóreas), animada

Co vento, o seco mato vai queimando;

A pastoral companha, que deitada

Co doce sono estava, despertando

Ao estridor do fogo que se ateia,

Recolhe o fato e foge pera a aldeia:

«Destarte o Mouro, atónito e Torvado,

Toma sem tento as armas mui depressa;

Não foge, mas espera confiado,

E o ginete belígero arremessa.

O Português o encontra denodado,

Pelos peitos as lanças lhe atravessa;

Uns caem meios mortos e outros vão

A ajuda convocando do Alcorão.

«Ali se vêm encontros temerosos,

Pera se desfazer üa alta serra,

E os animais correndo furiosos

Que Neptuno amostrou, ferindo a terra;

Golpes se dão medonhos e forçosos;

Por toda a parte andava acesa a guerra;

Mas o de Luso arnês, couraça e malha,

Rompe, corta desfaz abola e talha.

«Cabeças pelo campo vão saltando,

Braços, pernas, sem dono e sem sentido,

E doutros as entranhas palpitando,

Pálida a cor, o gesto amortecido.

Já perde o campo o exército nefando;

Correm rios do sangue desparzido,

Com que também do campo a cor se perde,

Tornado carmesi, de branco e verde.

«Já fica vencedor o Lusitano,

Recolhendo os troféus e presa rica;

Desbaratado e roto o Mauro Hispano

Três dias o grão Rei no campo fica.

Aqui pinta no branco escudo ufano,

Que agora esta vitória certifica,

Cinco escudos azuis esclarecidos,

Em sinal destes cinco Reis vencidos.

«E nestes cinco escudos pinta os trinta

Dinheiros por que Deus fora vendido,

Escrevendo a memória, em vária tinta,

Daquele de Quem foi favorecido.

Em cada um dos cinco, cinco pinta,

Porque assi fica o número cumprido,

Contando duas vezes o do meio,

Dos cinco azuis que em cruz pintando veio.

«Passado já algum tempo que passada

Era esta grão vitória, o Rei subido

A tomar vai Leiria, que tomada

Fora, mui pouco havia, do vencido.

Com esta a forte Arronches sojugada

Foi juntamente; e o sempre ennobrecido

Scabelicastro, cujo campo ameno

Tu, claro Tejo, regas tão sereno.

«A estas nobres vilas sometidas

Ajunta também Mafra, em pouco espaço,

E, nas serras da Lüa conhecidas,

Sojuga a fria Sintra o duro braço;

Sintra, onde as Naiades, escondidas

Nas fontes, vão fugindo ao doce laço

Onde Amor as enreda brandamente,

Nas águas acendendo fogo ardente.

«E tu, nobre Lisboa, que no mundo

Fàcilmente das outras és princesa,

Que edificada foste do facundo

Por cujo engano foi Dardânia acesa;

Tu a quem obedece o Mar profundo

Obedeceste à força Portuguesa,

Ajudada também da forte armada

Que das Boreais partes foi mandada.

«Lá do Germânico Álbis e do Reno

E da fria Bretanha conduzidos,

A destruir o povo Sarraceno

Muitos com tenção santa eram partidos.

Entrando a boca já do Tejo ameno,

Co arraial do grande Afonso unidos,

Cuja alta fama antão subia aos céus,

Foi posto cerco aos muros Ulisseus.

«Cinco vezes a Lüa se escondera

E outras tantas mostrara cheio o rosto,

Quando a cidade, entrada, se rendera

Ao duro cerco que lhe estava posto

Foi a batalha tão sanguina e fera

Quanto obrigava o firme pros[s]uposto

De vencedores ásperos e ousados

E de vencidos já desesperados.

«Destarte, enfim, tomada se rendeu

Aquela que, nos tempos já passados,

À grande força nunca obedeceu

Dos frios povos Cíticos ousados,

Cujo poder a tanto se estendeu

Que o Ibero o viu e o Tejo amedrontados;

E, enfim, co Bétis tanto alguns puderam

Que à terra, de Vandália nome deram.

«Que cidade tão forte porventura

Haverá que resista, se Lisboa

Não pôde resistir à força dura

Da gente cuja fama tanto voa?

Já lhe obedece toda a Estremadura,

Óbidos, Alanquer, por onde soa

O tom das frescas águas entre as pedras,

Que murmurando lava, e Torres Vedras.

«E vós também, ó terras Transtaganas,

Afamadas co dom da flava Ceres,

Obedeceis às forças mais que humanas,

Entregando-lhe os muros e os poderes;

E tu, lavrador Mouro, que te enganas,

Se sustentar a fértil terra queres:

Que Elvas e Moura e Serpa, conhecidas,

E Alcáçare do Sal estão rendidas.

«Eis a nobre cidade, certo assento

Do rebelde Sertório antigamente,

Onde ora as águas nítidas de argento

Vêm sustentar de longo a terra e a gente

Pelos arcos reais, que, cento e cento,

Nos ares se alevantam nobremente,

Obedeceu por meio e ousadia

De Giraldo, que medos não temia.

«Já na cidade Beja vai tomar

Vingança de Trancoso destruída

Afonso, que não sabe sossegar,

Por estender co a fama a curta vida.

Não se lhe pode muito sustentar

A cidade; mas, sendo já rendida,

Em toda a cousa viva a gente irada

Provando os fios vai da dura espada.

«Com estas sojugada foi Palmela

E a piscosa Sesimbra e, juntamente,

Sendo ajudado mais de sua estrela,

Desbarata um exército potente

(Sentiu-o a vila e viu-o a serra dela),

Que a socorrê-la vinha diligente

Pela fralda da serra, descuidado

Do temeroso encontro inopinado.

«O Rei de Badajoz era, alto Mouro,

Com quatro mil cavalos furiosos,

Inúmeros peões, de armas e de ouro

Guarnecidos, guerreiros e lustrosos;

Mas, qual no mês de Maio o bravo touro,

Cos ciúmes da vaca, arreceosos,

Sentindo gente, o bruto e cego amante

Salteia o descuidado caminhante:

«Destarte Afonso, súbito mostrado,

Na gente dá, que passa bem segura;

Fere, mata, derriba, denodado;

Foge o Rei Mouro e só da vida cura;

Dum pânico terror todo assombrado,

Só de segui-lo o exército procura;

Sendo estes que fizeram tanto abalo

Nô mais que só sessenta de cavalo.

«Logo segue a vitória, sem tardança,

O grão Rei incansábil, ajuntando

Gentes de todo o Reino, cuja usança

Era andar sempre terras conquistando.

Cercar vai Badajoz e logo alcança

O fim de seu desejo, pelejando

Com tanto esforço e arte e valentia,

Que a fez fazer às outras companhia.

«Mas o alto Deus, que pera longe guarda

O castigo daquele que o merece,

Ou pera que se emende, às vezes tarda,

Ou por segredos que homem não conhece

Se até qui sempre o forte Rei resguarda

Dos perigos a que ele se oferece,

Agora lhe não deixa ter defesa

Da maldição da mãe que estava presa:

«Que, estando na cidade que cercara,

Cercado nela foi dos Lioneses,

Porque a conquista dela lhe tomara,

De Lião sendo, e não dos Portugueses.

A pertinácia aqui lhe custa cara,

Assi como acontece muitas vezes,

Que em ferros quebra as pernas, indo aceso

À batalha, onde foi vencido e preso.

«Ó famoso Pompeio, não te pene

De teus feitos ilustres a ruína,

Nem ver que a justa Némesis ordene

Ter teu sogro de ti vitória dina,

Posto que o frio Fásis ou Siene,

Que pera nenhum cabo a sombra inclina,

O Bootes gelado e a linha ardente

Temessem o teu nome geralmente.

«Posto que a rica Arábia e que os feroces

Heníocos e Colcos, cuja fama

O Véu dourado estende, e os Capadoces

E Judeia, que um Deus adora e ama,

E que os moles Sofenos e os atroces

Cilícios, com a Arménia, que derrama

As águas dos dous rios cuja fonte

Está noutro mais alto e santo monte,

«E posto, enfim, que desd'o mar de Atlante

Até o Cítico Tauro, monte erguido,

Já vencedor te vissem, não te espante

Se o campo Emátio só te viu vencido;

Porque Afonso verás, soberbo e ovante,

Tudo render e ser despois rendido.

Assi o quis o Conselho alto, celeste,

Que vença o sogro a ti e o genro a este!

«Tornado o Rei sublime, finalmente,

Do divino Juízo castigado;

Despois que em Santarém soberbamente,

Em vão, dos Sarracenos foi cercado,

E despois que do mártire Vicente

O santíssimo corpo venerado

Do Sacro Promontório conhecido

À cidade Ulisseia foi trazido;

«Por que levasse avante seu desejo,

Ao forte filho manda o lasso velho

Que às terras se passasse d'Alentejo,

Com gente e co belígero aparelho.

Sancho, d'esforço e d'ânimo sobejo,

Avante passa e faz correr vermelho

O rio que Sevilha vai regando,

Co sangue Mauro, bárbaro e nefando.

«E, com esta vitória cobiçoso,

Já não descansa o moço, até que veja

Outro estrago como este, temeroso,

No Bárbaro que tem cercado Beja.

Não tarda muito o Príncipe ditoso

Sem ver o fim daquilo que deseja.

Assi estragado, o Mouro na vingança

De tantas perdas põe sua esperança.

«Já se ajuntam do monte a quem Medusa

O corpo fez perder que teve o Céu;

Já vêm do promontório de Ampelusa

E do Tinge, que assento foi de Anteu.

O morador de Abila não se escusa,

Que também com suas armas se moveu,

Ao som da Mauritana e ronca tuba,

Todo o Reino que foi do nobre Juba.

«Entrava, com toda esta companhia,

O Miralmomini em Portugal;

Treze Reis mouros leva de valia,

Entre os quais tem o ceptro Imperial.

E assi, fazendo quanto mal podia,

O que em partes podia fazer mal,

Dom Sancho vai cercar em Santarém;

Porém não lhe sucede muito bem.

«Dá-lhe combates ásperos, fazendo

Ardis de guerra mil, o Mouro iroso;

Não lhe aproveita já trabuco horrendo,

Mina secreta, aríete forçoso;

Porque o filho de Afonso, não perdendo

Nada do esforço e acordo generoso,

Tudo provê com ânimo e prudência,

Que em toda a parte há esforço e resistência.

«Mas o velho, a quem tinham já obrigado

Os trabalhosos anos ao sossego,

Estando na cidade cujo prado

Enverdecem as águas do Mondego,

Sabendo como o filho está cercado,

Em Santarém, do Mauro povo cego,

Se parte diligente da cidade;

Que não perde a presteza co a idade.

«E co a famosa gente, à guerra usada,

Vai socorrer o filho; e assi ajuntados,

A Portuguesa fúria costumada

Em breve os Mouros tem desbaratados.

A campina, que toda está coalhada

De marlotas, capuzes variados,

De cavalos, jaezes, presa rica,

De seus senhores mortos cheia fica.

«Logo todo o restante se partiu

De Lusitânia, postos em fugida;

O Miralmomini só não fugiu,

Porque, antes de fugir, lhe foge a vida.

A Quem lhe esta vitória permitiu

Dão louvores e graças sem medida;

Que, em casos tão estranhos, claramente

Mais peleja o favor de Deus que a gente.

«De tamanhas vitórias triunfava

O velho Afonso, Príncipe subido,

Quando quem tudo enfim vencendo andava,

Da larga e muita idade foi vencido.

A pálida doença lhe tocava,

Com fria mão, o corpo enfraquecido;

E pagaram seus anos, deste jeito,

À triste Libitina seu direito.

«Os altos promontórios o choraram,

E dos rios as águas saüdosas

Os semeados campos alagaram,

Com lágrimas correndo piadosas;

Mas tanto pelo mundo se alargaram,

Com fama suas obras valerosas,

Que sempre no seu reino chamarão

«Afonso! Afonso!» os ecos; mas em vão.

«Sancho, forte mancebo, que ficara

Imitando seu pai na valentia,

E que em sua vida já se exprimentara

Quando o Bétis de sangue se tingia

E o bárbaro poder desbaratara

Do Ismaelita Rei de Andaluzia,

E mais quando os que Beja em vão cercaram

Os golpes de seu braço em si provaram;

«Despois que foi por Rei alevantado,

Havendo poucos anos que reinava,

A cidade de Silves tem cercado,

Cujos campos o Bárbaro lavrava.

Foi das valentes gentes ajudado

Da Germânica armada que passava,

De armas fortes e gente apercebida,

A recobrar Judeia já perdida.

«Passavam a ajudar na santa empresa

O roxo Federico, que moveu

O poderoso exército, em defesa

Da cidade onde Cristo padeceu,

Quando Guido, co a gente em sede acesa,

Ao grande Saladino se rendeu,

No lugar onde aos Mouros sobejavam

As águas que os de Guido desejavam.

«Mas a fermosa armada, que viera

Por contraste de vento àquela parte,

Sancho quis ajudar na guerra fera,

Já que em serviço vai do santo Marte.

Assi como a seu pai acontecera

Quando tomou Lisboa, da mesma arte

Do Germano ajudado, Silves toma

E o bravo morador destrui e doma.

«E se tantos troféus do Mahometa

Alevantando vai, também do forte

Lionês não consente estar quieta

A terra, usada aos casos de Mavorte,

Até que na cerviz seu jugo meta

Da soberba Tuí, que a mesma sorte

Viu ter a muitas vilas suas vizinhas,

Que por armas tu, Sancho, humildes tinhas.

«Mas, entre tantas palmas salteado

Da temerosa morte, fica herdeiro

Um filho seu, de todos estimado,

Que foi segundo Afonso e Rei terceiro.

No tempo deste, aos Mauros foi tomado

Alcáçare do Sal, por derradeiro;

Porque dantes os Mouros o tomaram,

Mas agora estruídos o pagaram.

Morto despois Afonso, lhe sucede

Sancho segundo, manso e descuidado;

Que tanto em seus descuidos se desmede

Que de outrem quem mandava era mandado.

De governar o Reino, que outro pede,

Por causa dos privados foi privado,

Porque, como por eles se regia,

Em todos os seus vícios consentia.

«Não era Sancho, não, tão desonesto

Como Nero, que um moço recebia

Por mulher e, despois, horrendo incesto

Com a mãe Agripina cometia;

Nem tão cruel às gentes e molesto

Que a cidade queimasse onde vivia;

Nem tão mau como foi Heliogabalo,

Nem como o mole Rei Sardanapalo.

«Nem era o povo seu tiranizado,

Como Sicília foi de seus tiranos;

Nem tinha, como Fálaris, achado

Género de tormentos inumanos;

Mas o Reino, de altivo e costumado

A senhores em tudo soberanos,

A Rei não obedece nem consente

Que não for mais que todos excelente.

«Por esta causa, o Reino governou

O Conde Bolonhês, despois alçado

Por Rei, quando da vida se apartou

Seu irmão Sancho, sempre ao ócio dado.

Este, que Afonso o Bravo se chamou,

Despois de ter o Reino segurado,

Em dilatá-lo cuida, que em terreno

Não cabe o altivo peito, tão pequeno.

«Da terra dos Algarves, que lhe fora

Em casamento dada, grande parte

Recupera co braço, e deita fora

O Mouro, mal querido já de Marte.

Este de todo fez livre e senhora

Lusitânia, com força e bélica arte,

E acabou de oprimir a nação forte,

Na terra que aos de Luso coube em sorte.

«Eis despois vem Dinis, que bem parece

Do bravo Afonso estirpe nobre e dina,

Com quem a fama grande se escurece

Da liberalidade Alexandrina.

Co este o Reino próspero florece

(Alcançada já a paz áurea divina)

Em constituições, leis e costumes,

Na terra já tranquila claros lumes.

«Fez primeiro em Coimbra exercitar-se

O valeroso ofício de Minerva;

E de Helicona as Musas fez passar-se

A pisar de Mondego a fértil erva.

Quanto pode de Atenas desejar-se

Tudo o soberbo Apolo aqui reserva.

Aqui as capelas dá tecidas de ouro,

Do bácaro e do sempre verde louro.

«Nobres vilas de novo edificou,

Fortalezas, castelos mui seguros,

E quási o Reino todo reformou

Com edifícios grandes e altos muros;

Mas despois que a dura Átropos cortou

O fio de seus dias já maduros,

Ficou-lhe o filho pouco obediente,

Quarto Afonso, mas forte e excelente.

«Este sempre as soberbas Castelhanas

Co peito desprezou firme e sereno,

Porque não é das forças Lusitanas

Temer poder maior, por mais pequeno;

Mas porém, quando as gentes Mauritanas,

A possuir o Hespérico terreno,

Entraram pelas terras de Castela,

Foi o soberbo Afonso a socorrê-la.

«Nunca com Semirâmis gente tanta

Veio os campos Idáspicos enchendo,

Nem Átila, que Itália toda espanta,

Chamando-se de Deus açoute horrendo,

Gótica gente trouxe tanta, quanta

Do Sarraceno bárbaro, estupendo,

Co poder excessivo de Granada,

Foi nos campos Tartés[s]ios ajuntada.

«E, vendo o Rei sublime Castelhano

A força inexpugnábil, grande e forte,

Temendo mais o fim do povo Hispano,

Já perdido üa vez, que a própria morte,

Pedindo ajuda ao forte Lusitano

Lhe mandava a caríssima consorte,

Mulher de quem a manda e filha amada

Daquele a cujo Reino foi mandada.

«Entrava a fermosíssima Maria

Polos paternais paços sublimados,

Lindo o gesto, mas fora de alegria,

E os seus olhos em lágrimas banhados;

Os cabelos angélicos trazia

Pelos ebúrneos ombros espalhados.

Diante do pai ledo, que a agasalha,

Estas palavras tais, chorando, espalha:

- «Quantos povos a terra produziu

De Africa toda, gente fera e estranha,

O grão Rei de Marrocos conduziu

Pera vir possuir a nobre Espanha:

Poder tamanho junto não se viu

Despois que o salso mar a terra banha

Trazem ferocidade e furor tanto

Que a vivos medo e a mortos faz espanto!

«Aquele que me deste por marido,

Por defender sua terra amedrontada,

Co pequeno poder, oferecido

Ao duro golpe está da Maura espada;

E, se não for contigo socorrido,

Ver-me-ás dele e do Reino ser privada;

Viúva e triste e posta em vida escura,

Sem marido, sem Reino e sem ventura.

«Portanto, ó Rei, de quem com puro medo

O corrente Muluca se congela,

Rompe toda a tardança, acude cedo

À miseranda gente de Castela.

Se esse gesto, que mostras claro e ledo,

De pai o verdadeiro amor assela,

Acude e corre, pai, que, se não corres,

Pode ser que não aches quem socorres.»

«Não de outra sorte a tímida Maria

Falando está que a triste Vénus, quando

A Júpiter, seu pai, favor pedia

Pera Eneias, seu filho, navegando;

Que a tanta piedade o comovia

Que, caído das mãos o raio infando,

Tudo o clemente Padre lhe concede,

Pesando-lhe do pouco que lhe pede.

«Mas já cos esquadrões da gente armada

Os Eborenses campos vão coalhados;

Lustra co Sol o arnês, a lança, a espada;

Vão rinchando os cavalos jaezados;

A canora trombeta embandeirada

Os corações, à paz acostumados,

Vai às fulgentes armas incitando,

Polas concavidades retumbando

«Entre todos no meio se sublima,

Das insígnias Reais acompanhado,

O valeroso Afonso, que por cima

De todos leva o colo alevantado,

E sòmente co gesto esforça e anima

A qualquer coração amedrontado.

Assi entra nas terras de Castela

Com a filha gentil, Rainha dela.

«Juntos os dous Afonsos, finalmente

Nos campos de Tarifa estão defronte

Da grande multidão da cega gente,

Pera quem são pequenas campo e monte.

Não há peito tão alto e tão potente

Que de desconfiança não se afronte,

Enquanto não conheça e claro veja

Que co braço dos seus Cristo peleja.

«Estão de Agar os netos quási rindo

Do poder dos Cristãos, fraco e pequeno,

As terras como suas repartindo,

Antemão, entre o exército Agareno,

Que, com título falso, possuindo

Está o famoso nome Sarraceno.

Assi também, com falsa conta e nua,

À nobre terra alheia chamam sua.

«Qual o membrudo e bárbaro Gigante,

Do Rei Saul, com causa tão temido,

Vendo o Pastor inerme estar diante,

Só de pedras e esforço apercebido,

Com palavras soberbas, o arrogante,

Despreza o fraco moço mal vestido,

Que, rodeando a funda, o desengana

(Quanto mais pode a Fé que a força humana!)

«Destarte o Mouro pérfido despreza

O poder dos Cristãos, e não entende

Que está ajudado da alta Fortaleza

A quem o Inferno horrífico se rende.

Co ela o Castelhano, e com destreza,

De Marrocos o Rei comete e ofende;

O Português, que tudo estima em nada,

Se faz temer ao Reino de Granada.

«Eis as lanças e espadas retiniam

Por cima dos arneses - bravo estrago! -;

Chamam (segundo as Leis que ali seguiam),

Uns Mafamede e os outros Santiago.

Os feridos com grita o céu feriam,

Fazendo de seu sangue bruto lago,

Onde outros, meios mortos, se afogavam,

Quando do ferro as vidas escapavam.

«Com esforço tamanho estrui e mata

O Luso ao Granadil, que em pouco espaço

Totalmente o poder lhe desbarata,

Sem lhe valer defesa ou peito de aço.

De alcançar tal vitória tão barata

Índa não bem contente o forte braço,

Vai ajudar ao bravo Castelhano,

Que pelejando está co Mauritano.

«Já se ia o Sol ardente recolhendo

Pera a casa de Tétis, e inclinado

Pera o Ponente, o véspero trazendo,

Estava o claro dia memorado,

Quando o poder do Mauro, grande e horrendo,

Foi pelos fortes Reis desbaratado,

Com tanta mortindade que a memória

Nunca no mundo viu tão grão vitória.

«Não matou a quarta parte o forte Mário

Dos que morreram neste vencimento,

Quando as águas co sangue do adversário

Fez beber ao exército sedento;

Nem o Peno, asperíssimo contrário

Do Romano poder, de nascimento,

Quando tantos matou da ilustre Roma,

Que alqueires três de anéis dos mortos toma.

«E se tu tantas almas só pudeste

Mandar ao Reino escuro de Cocito,

Quando a santa Cidade desfizeste

Do povo pertinaz no antigo rito,

Permissão e vingança foi celeste,

E não força de braço, ó nobre Tito,

Que assi dos Vates foi profetizado

E despois por JESU certificado.

«Passada esta tão prospera vitória,

Tornado Afonso à Lusitana terra,

A se lograr da paz com tanta glória

Quanta soube ganhar na dura guerra,

O caso triste, e dino da memória

Que do sepulcro os homens desenterra.

Aconteceu da mísera e mesquinha

Que despois de ser morta foi Rainha.

«Tu só, tu, poro Amor, com força crua,

Que os corações humanos tanto obriga,

Deste causa à molesta morte sua,

Como se fora pérfida inimiga.

Se dizem, fero Amor, que a sede tua

Nem com lágrimas tristes se mitiga,

É porque queres, áspero e tirano,

Tuas aras banhar em sangue humano.

«Estavas, linda lnês, posta em sossego,

De teus anos colhendo doce fruto,

Naquele engano da alma, ledo e cego,

Que a Fortuna não deixa durar muito,

Nos saüdosos campos do Mondego,

De teus fermosos olhos nunca enxuto,

Aos montes ensinando e às ervinhas

O nome que no peito escrito tinhas.

«Do teu Príncipe ali te respondiam

As lembranças que na alma lhe moravam,

Que sempre ante seus olhos te traziam,

Quando dos teus fermosos se apartavam;

De noite, em doces sonhos que mentiam,

De dia, em pensamentos que voavam;

E quanto, enfim, cuidava e quanto via

Eram tudo memórias de alegria.

«De outras belas senhoras e Princesas

Os desejados tálamos enjeita,

Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas

Quando um gesto suave te sujeita.

Vendo estas namoradas estranhezas,

O velho pai sesudo, que respeita

O murmurar do povo e a fantasia

Do filho, que casar-se não queria,

«Tirar Inês ao mundo determina,

Por lhe tirar o filho que tem preso,

Crendo co sangue só da morte indina

Matar do firme amor o fogo aceso.

Que furor consentiu que a espada fina

Que pôde sustentar o grande peso

Do furor Mauro, fosse alevantada

Contra üa fraca dama delicada?

«Traziam-a os horríficos algozes

Ante o Rei, já movido a piedade;

Mas o povo, com falsas e ferozes

Razões, à morte crua o persuade.

Ela, com tristes e piedosas vozes,

Saídas só da mágoa e saüdade

Do seu Príncipe e filhos, que deixava,

Que mais que a própria morte a magoava,

«Pera o céu cristalino alevantando,

Com lágrimas, os olhos piedosos

(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando

Um dos duros ministros rigorosos);

E despois nos mininos atentando,

Que tão queridos tinha e tão mimosos,

Cuja orfindade como mãe temia,

Pera o avô cruel assi dizia:

«Se já nas brutas feras, cuja mente

Natura fez cruel de nascimento,

E nas aves agrestes, que somente

Nas rapinas aéreas têm o intento,

Com pequenas crianças viu a gente

Terem tão piadoso sentimento

Como co a mãe de Nino já mostraram,

E cos irmãos que Roma edificaram:

«Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito

(Se de humano é matar üa donzela,

Fraca e sem força, só por ter subjeito

O coração a quem soube vencê-la),

A estas criancinhas tem respeito,

Pois o não tens à morte escura dela;

Mova-te a piedade sua e minha,

Pois te não move a culpa que não tinha.

«E se, vencendo a Maura resistência,

A morte sabes dar com fogo e ferro,

Sabe também dar vida com clemência

A quem pera perdê-la não fez erro.

Mas, se to assi merece esta inocência,

Põe-me em perpétuo e mísero desterro,

Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente,

Onde em lágrimas viva eternamente.

«Põe-me onde se use toda a feridade,

Entre liões e tigres, e verei

Se neles achar posso a piedade

Que entre peitos humanos não achei.

Ali, co amor intrínseco e vontade

Naquele por quem mouro, criarei

Estas relíquias suas, que aqui viste,

Que refrigério sejam da mãe triste.»

Queria perdoar-lhe o Rei benino,

Movido das palavras que o magoam;

Mas o pertinaz povo e seu destino

(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.

Arrancam das espadas de aço fino

Os que por bom tal feito ali apregoam.

Contra üa dama, ó peitos carniceiros,

Feros vos amostrais - e cavaleiros?

«Qual contra a linda moça Policena,

Consolação extrema da mãe velha,

Porque a sombra de Aquiles a condena,

Co ferro o duro Pirro se aparelha;

Mas ela, os olhos com que o ar serena

(Bem como paciente e mansa ovelha)

Na mísera mãe postos, que endoudece,

Ao duro sacrifício se oferece:

«Tais contra Inês os brutos matadores,

No colo de alabastro, que sustinha

As obras com que Amor matou de amores

Aquele que despois a fez Rainha,

As espadas banhando, e as brancas flores,

Que ela dos olhos seus regadas tinha,

Se encarniçavam, férvidos e irosos

No futuro castigo não cuidosos.

«Bem puderas, ó Sol, da vista destes,

Teus raios apartar aquele dia,

Como da seva mesa de Tiestes,

Quando os filhos por mão de Atreu comia!

Vós, ó côncavos vales, que pudestes

A voz extrema ouvir da boca fria,

O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,

Por muito grande espaço repetistes!

«Assi como a bonina, que cortada

Antes do tempo foi, cândida e bela,

Sendo das mãos lacivas maltratada

Da minina que a trouxe na capela,

O cheiro traz perdido e a cor murchada:

Tal está, morta, a pálida donzela,

Secas do rosto as rosas e perdida

A branca e viva cor, co a doce vida.

«As filhas do Mondego a morte escura

Longo tempo chorando memoraram,

E, por memória eterna, em fonte pura

As lágrimas choradas transformaram.

O nome lhe puseram, que inda dura,

Dos amores de Inês, que ali passaram.

Vede que fresca fonte rega as flores,

Que lágrimas são a água e o nome Amores!

«Não correu muito tempo que a vingança

Não visse Pedro das mortais feridas,

Que, em tomando do Reino a governança,

A tomou dos fugidos homicidas;

Do outro Pedro cruíssimo os alcança,

Que ambos, imigos das humanas vidas,

O concerto fizeram, duro e injusto,

Que com Lépido e António fez Augusto.

«Este, castigador foi rigoroso

De latrocínios, mortes e adultérios;

Fazer nos maus cruezas, fero e iroso,

Eram os seus mais certos refrigérios.

As cidades guardando, justiçoso,

De todos os soberbos vitupérios,

Mais ladrões, castigando, à morte deu,

Que o vagabundo Alcides ou Teseu.

«Do justo e duro Pedro nasce o brando

(Vede da natureza o desconcerto!),

Remisso e sem cuidado algum, Fernando,

Que todo o Reino pôs em muito aperto;

Que, vindo o Castelhano devastando

Às terras sem defesa, esteve perto

De destruir-se o Reino totalmente;

Que um fraco Rei faz fraca a forte gente.

«Ou foi castigo claro do pecado

De tirar Lianor a seu marido

E casar-se com ela, de enlevado

Num falso parecer mal entendido,

Ou foi que o coração, sujeito e dado

Ao vício vil, de quem se viu rendido,

Mole se fez e fraco; e bem parece

Que um baxo amor os fortes enfraquece.

«Do pecado tiveram sempre a pena

Muitos, que Deus o quis e permitiu:

Os que foram roubar a bela Helena,

E com Ápio também Tarquino o viu.

Pois por quem David Santo se condena?

Ou quem o Tribo ilustre destruiu

De Benjamim? Bem claro no-lo ensina

Por Sarra Faraó, Siquém por Dina.

«E pois, se os peitos fortes enfraquece

Um inconcesso amor desatinado,

Bem no filho de Almena se parece

Quando em Ônfale andava transformado.

De Marco António a fama se escurece

Com ser tanto a Cleópatra afeiçoado.

Tu também, Peno próspero, o sentiste

Despois que üa moça vil na Apúlia viste.

«Mas quem pode livrar-se, porventura,

Dos laços que Amor arma brandamente

Entre as rosas e a neve humana pura,

O ouro e o alabastro transparente?

Quem, de üa peregrina fermosura,

De um vulto de Medusa propriamente,

Que o coração converte, que tem preso,

Em pedra, não, mas em desejo aceso?

«Quem viu um olhar seguro, um gesto brando,

üa suave e angélica excelência,

Que em si está sempre as almas transformando,

Que tivesse contra ela resistência?

Desculpado por certo está Fernando,

Pera quem tem de amor experiência;

Mas antes, tendo livre a fantasia,

Por muito mais culpado o julgaria.

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Canto IV

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ESPOIS de procelosa tempestade,

Nocturna sombra e sibilante vento,

Traz a manhã serena claridade,

Esperança de porto e salvamento;

Aparta o Sol a negra escuridade,

Removendo o temor ao pensamento:

Assi no Reino forte aconteceu

Despois que o Rei Fernando faleceu.

«Porque, se muito os nossos desejaram

Quem os danos e ofensas vá vingando

Naqueles que tão bem se aproveitaram

Do descuido remisso de Fernando,

Despois de pouco tempo o alcançaram,

Joane, sempre ilustre, alevantando

Por Rei, como de Pedro único herdeiro

(Ainda que bastardo) verdadeiro.

«Ser isto ordenação dos Céus divina

Por sinais muito claros se mostrou~

Quando em Évora a voz de üa minina,

Ante tempo falando, o nomeou.

E, como causa, enfim, que o Céu destina,

No berço o corpo e a voz alevantou:

- «Portugal, Portugal (alçando a mão,

Disse) polo Rei novo, Dom João!»

«Alteradas então do Reino as gentes

Co ódio que ocupado os peitos tinha,

Absolutas cruezas e evidentes

Faz do povo o furor, por onde vinha;

Matando vão amigos e parentes

Do adúltero Conde e da Rainha,

Com quem sua incontinência desonesta

Mais (despois de viúva) manifesta.

«Mas ele, enfim, com causa desonrado,

Diante dela a ferro frio morre,

De outros muitos na morte acompanhado,

Que tudo o fogo erguido queima e corre:

Quem, como Astianás, precipitado,

Sem lhe valerem ordens, de alta torre;

A quem ordens, nem aras, nem respeito;

Quem nu por ruas, e em pedaços feito.

«Podem-se pôr em longo esquecimento

As cruezas mortais que Roma viu,

Feitas do feroz Mário e do cruento

Cila, quando o contrário lhe fugiu.

Por isso Lianor, que o sentimento

Do morto Conde ao mundo descobriu,

Faz contra Lusitânia vir Castela,

Dizendo ser sua filha herdeira dela.

«Beatriz era a filha, que casada

Co Castelhano está que o Reino pede,

Por filha de Fernando reputada,

Se a corrompida fama lho concede.

Com esta voz Castela alevantada,

Dizendo que esta filha ao pai sucede,

Suas forças ajunta, pera as guerras,

De várias regiões e várias terras.

«Vêm de toda a província que de um Brigo

(Se foi) já teve o nome derivado;

Das terras que Fernando e que Rodrigo

Ganharam do tirano e Mauro estado.

Não estimam das armas o perigo

Os que cortando vão co duro arado

Os campos Lioneses, cuja gente

Cos Mouros foi nas armas excelente.

«Os Vândalos, na antiga valentia

Ainda confiados, se ajuntavam

Da cabeça de toda Andaluzia,

Que do Guadalquibir as águas lavam.

A nobre Ilha também se apercebia

Que antigamente os Tírios habitavam,

Trazendo por insígnias verdadeiras

As Hercúleas colunas nas bandeiras.

«Também vêm lá do Reino de Toledo,

Cidade nobre e antiga, a quem cercando

O Tejo em torno vai, suave e ledo,

Que das serras de Conca vem manando.

A vós outros também não tolhe o medo

Ó sórdidos Galegos, duro bando,

Que, pera resistirdes, vos armastes,

Àqueles cujos golpes já provastes.

«Também movem da guerra as negras fúrias

A gente Bizcainha, que carece

De polidas razões, e que as injúrias

Muito mal dos estranhos compadece.

A terra de Guipúscua e das Astúrias,

Que com minas de ferro se ennobrece,

Armou dele os soberbos moradores,

Pera ajudar na guerra a seus senhores.

«Joane, a quem do peito o esforço crece,

Como a Sansão Hebreio da guedelha,

Posto que tudo pouco lhe parece,

Cos poucos do seu Reino se aparelha;

E, não porque conselho lhe falece,

Cos principais senhores se aconselha,

Mas só por ver das gentes as sentenças,

Que sempre houve entre muitos diferenças.

«Não falta com razões quem desconcerte

Da opinião de todos, na vontade;

Em quem o esforço antigo se converte

Em desusada e má deslealdade,

Podendo o temor mais, gelado, inerte,

Que a própria e natural fidelidade.

Negam o Rei e a Pátria e, se convém,

Negarão (como Pedro) o Deus que têm.

«Mas nunca foi que este erro se sentisse

No forte Dom Nuno Álveres; mas antes,

Posto que em seus irmãos tão claro o visse,

Reprovando as vontades inconstantes,

Àquelas duvidosas gentes disse,

Com palavras mais duras que elegantes,

A mão na espada, irado e não facundo,

Ameaçando a terra, o mar e o mundo:

- «Como? Da gente ilustre Portuguesa

Há-de haver quem refuse o pátrio Marte?

Como? Desta província, que princesa

Foi das gentes na guerra em toda parte,

Há-de sair quem negue ter defesa?

Quem negue a Fé, o amor, o esforço e arte

De Português, e por nenhum respeito

O próprio Reino queira ver sujeito?

«Como? Não sois vós inda os descendentes

Daqueles que, debaixo da bandeira

Do grande Henriques, feros e valentes,

Vencestes esta gente tão guerreira,

Quando tantas bandeiras, tantas gentes

Puseram em fugida, de maneira

Que sete ilustres Condes lhe trouxeram

Presos, afora a presa que tiveram?

«Com quem foram contino sopeados

Estes, de quem o estais agora vós,

Por Dinis e seu filho sublimados,

Senão cos vossos fortes pais e avôs?

Pois se, com seus descuidos ou pecados,

Fernando em tal fraqueza assim vos pôs,

Torne-vos vossas forças o Rei novo,

Se é certo que co Rei se muda o povo.

«Rei tendes tal que, se o valor tiverdes

Igual ao Rei que agora alevantastes,

Desbaratareis tudo o que quiserdes,

Quanto mais a quem já desbaratastes.

E se com isto, enfim, vos não moverdes

Do penetrante medo que tomastes,

Atai as mãos a vosso vão receio,

Que eu só resistirei ao jugo alheio.

«Eu só, com meus vassalos e com esta

(E dizendo isto arranca meia espada),

Defenderei da força dura e infesta

A terra nunca de outrem sojugada.

Em virtude do Rei, da pátria mesta,

Da lealdade já por vós negada,

Vencerei não só estes adversários,

Mas quantos a meu Rei forem contrários!»

«Bem como entre os mancebos recolhidos

Em Canúsio, relíquias sós de Canas,

Já pera se entregar quási movidos

À fortuna das forças Africanas,

Cornélio moço os faz que, compelidos

Da sua espada, jurem que as Romanas

Armas não deixarão, enquanto a vida

Os não deixar ou nelas for perdida:

«Destarte a gente força e esforça Nuno,

Que, com lhe ouvir as últimas razões,

Removem o temor frio, importuno,

Que gelados lhe tinha os corações.

Nos animais cavalgam de Neptuno,

Brandindo e volteando arremessões;

Vão correndo e gritando, a boca aberta:

- «Viva o famoso Rei que nos liberta!»

«Das gentes populares, uns aprovam

A guerra com que a pátria se sustinha;

Uns as armas alimpam e renovam,

Que a ferrugem da paz gastadas tinha:

Capacetes estofam, peitos provam,

Arma-se cada um como convinha;

Outros fazem vestidos de mil cores,

Com letras e tenções de seus amores.

«Com toda esta lustrosa companhia

Joane forte sai da fresca Abrantes,

Abrantes, que também da fonte fria

Do Tejo logra as águas abundantes.

Os primeiros armígeros regia

Quem pera reger era os mui possantes

Orientais exércitos sem conto

Com que passava Xerxes o Helesponto;

«Dom Nuno Alveres digo: verdadeiro

Açoute de soberbos Castelhanos,

Como já o fero Huno o foi primeiro

Pera Franceses, pera Italianos.

Outro também, famoso cavaleiro,

Que a ala direita tem dos Lusitanos,

Apto pera mandá-los e regê-los,

Mem Rodrigues se diz de Vasconcelos.

«E da outra ala, que a esta corresponde,

Antão Vasques de Almada é capitão,

Que despois foi de Abranches nobre Conde;

Das gentes vai regendo a sestra mão.

Logo na retaguarda não se esconde

Das Quinas e Castelos o pendão,

Com Joane, Rei forte em toda parte,

Que escurecendo o preço vai de Marte.

«Estavam pelos muros, temerosas

E de um alegre medo quási frias,

:Rezando, as mães, irmãs, damas e esposas,

Prometendo jejuns e romarias.

Já chegam as esquadras belicosas

Defronte das imigas companhias,

Que com grita grandíssima os recebem;

E todas grande dúvida concebem.

«Respondem as trombetas mensageiras,

Pífaros sibilantes e atambores;

Alférezes volteiam as bandeiras,

Que variadas são de muitas cores.

Era no seco tempo que nas eiras

Ceres o fruto deixa aos lavradores;

Entra em Astreia o Sol, no mês de Agosto;

Baco das uvas tira o doce mosto.

«Deu sinal a trombeta Castelhana,

Horrendo, fero, ingente e temeroso;

Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana

Atrás tornou as ondas de medroso.

Ouviu[-o] o Douro e a terra Transtagana;

Correu ao mar o Tejo duvidoso;

E as mães, que o som terríbil escuitaram,

Aos peitos os filhinhos apertaram.

«Quantos rostos ali se vêm sem cor,

Que ao coração acode o sangue amigo!

Que, nos perigos grandes, o temor

É maior muitas vezes que o perigo.

E se o não é, parece-o; que o furor

De ofender ou vencer o duro imigo

Faz não sentir que é perda grande e rara

Dos membros corporais, da vida cara.

«Começa-se a travar a incerta guerra:

De ambas partes se move a primeira ala;

Uns leva a defensão da própria terra,

Outros as esperanças de ganhá-la.

Logo o grande Pereira, em quem se encerra

Todo o valor, primeiro se assinala:

Derriba e encontra e a terra enfim semeia,

Dos que a tanto desejam, sendo alheia.

«Já pelo espesso ar os estridentes

Farpões, setas e vários tiros voam;

Debaxo dos pés duros dos ardentes

Cavalos treme a terra, os vales soam.

Espedaçam-se as lanças, e as frequentes

Quedas co as duras armas tudo atroam.

Recrecem os imigos sobre a pouca

Gente do fero Nuno, que os apouca.

«Eis ali seus irmãos contra ele vão

(Caso feio e cruel!); mas não se espanta,

Que menos é querer matar o irmão,

Quem contra o Rei e a Pátria se alevanta.

Destes arrenegados muitos são

No primeiro esquadrão, que se adianta

Contra irmãos e parentes (caso estranho),

Quais nas guerras civis de Júlio [ e ] Magno

«O tu, Sertório, ó nobre Coriolano,

Catilina, e vós outros dos antigos

Que contra vossas pátrias com profano

Coração vos fizestes inimigos:

E se lá no reino escuro de Sumano

Receberdes gravíssimos castigos,

Dizei-lhe que também dos Portugueses

Alguns tredores houve algüas vezes.

«Rompem-se aqui dos nossos os primeiros,

Tantos dos inimigos a eles vão!

Está ali Nuno, qual pelos outeiros

De Ceita está o fortíssimo lião

Que cercado se vê dos cavaleiros

Que os campos vão correr de Tutuão:

Perseguem-no com as lanças, e ele, iroso,

Torvado um pouco está, mas não medroso;

«Com torva vista os vê, mas a natura

Ferina e a ira não lhe compadecem

Que as costas dê, mas antes na espessura

Das lanças se arremessa, que recrecem.

Tal está o cavaleiro, que a verdura

Tinge co sangue alheio; ali perecem

Alguns dos seus, que o ânimo valente

Perde a virtude contra tanta gente.

«Sentiu Joane a afronta que passava

Nuno, que, como sábio capitão,

Tudo corria e via e a todos dava,

Com presença e palavras, coração.

Qual parida lioa, fera e brava,

Que os filhos, que no ninho sós estão,

Sentiu que, enquanto pasto lhe buscara,

O pastor de Massília lhos furtara,

«Corre raivoso e freme e com bramidos

Os montes Sete Irmãos atroa e abala:

Tal Joane, com outros escolhidos

Dos seus, correndo acode à primeira ala:

- «O fortes companheiros, ó subidos

Cavaleiros, a quem nenhum se iguala,

Defendei vossas terras, que a esperança

Da liberdade está na nossa lança!

«Vedes-me aqui, Rei vosso e companheiro,

Que entre as lanças e setas e os arneses

Dos inimigos corro e vou primeiro;

Pelejai, verdadeiros Portugueses! »

Isto disse o magnânimo guerreiro

E, sopesando a lança quatro vezes,

Com força tira; e deste único tiro

Muitos lançaram o último suspiro.

«Porque eis os seus, acesos novamente

Dua nobre vergonha e honroso fogo,

Sobre qual mais, com ânimo valente,

Perigos vencerá do Márcio jogo,

Porfiam; tinge o ferro o fogo ardente;

Rompem malhas primeiro e peitos logo.

Assi recebem junto e dão feridas,

Como a quem já não dói perder as vidas.

«A muitos mandam ver o Estígio lago,

Em cujo corpo a morte e o ferro entrava.

O Mestre morre ali de Santiago,

Que fortìssimamente pelejava;

Morre também, fazendo grande estrago,

Outro Mestre cruel de Calatrava.

Os Pereiras também, arrenegados,

Morrem, arrenegando o Céu e os Fados.

«Muitos também do vulgo vil, sem nome,

Vão, e também dos nobres, ao Profundo,

Onde o trifauce Cão perpétua fome

Tem das almas que passam deste mundo.

E por que mais aqui se amanse e dome

A soberba do imigo furibundo,

A sublime bandeira Castelhana

Foi derribada òs pés da Lusitana.

«Aqui a fera batalha se encruece

Com mortes, gritos, sangue e cutiladas;

A multidão da gente que perece

Tem as flores da própria cor mudadas.

Já as costas dão e as vidas; já falece

O furor e sobejam as lançadas;

Já de Castela o Rei desbaratado

Se vê e de seu propósito mudado.

«O campo vai deixando ao vencedor,

Contente de lhe não deixar a vida.

Seguem-no os que ficaram, e o temor

Lhe dá, não pés, mas asas à fugida.

Encobrem no profundo peito a dor

Da morte, da fazenda despendida,

Da mágoa, da desonra e triste nojo

De ver outrem triunfar de seu despojo.

«Alguns vão maldizendo e blasfemando

Do primeiro que guerra fez no mundo;

Outros a sede dura vão culpando

Do peito cobiçoso e sitibundo,

Que, por tomar o alheio, o miserando

Povo aventura às penas do Profundo,

Deixando tantas mães, tantas esposas,

Sem filhos, sem maridos, desditosas.

«O vencedor Joane esteve os dias

Costumados no campo, em grande glória;

Com ofertas, despois, e romarias,

As graças deu a Quem lhe deu vitória.

Mas Nuno, que não quer por outras vias

Entre as gentes deixar de si memória

Senão por armas sempre soberanas,

Pera as terras se passa Transtaganas.

«Ajuda-o seu destino de maneira

Que fez igual o efeito ao pensamento,

Porque a terra dos Vândalos, fronteira,

Lhe concede o despojo e o vencimento.

Já de Sevilha a Bética bandeira,

E de vários senhores, num momento

Se lhe derriba aos pés, sem ter defesa,

Obrigados da força Portuguesa.

«Destas e outras vitórias longamente

Eram os Castelhanos oprimidos,

Quando a paz, desejada já da gente,

Deram os vencedores aos vencidos,

Despois que quis o Padre omnipotente

Dar os Reis inimigos por maridos

As duas Ilustríssimas Inglesas,

Gentis, fermosas, ínclitas princesas.

«Não sofre o peito forte, usado à guerra,

Não ter imigo já a quem faça dano;

E assi, não tendo a quem vencer na terra,

Vai cometer as ondas do Oceano

Este é o primeiro Rei que se desterra

Da pátria, por fazer que o Africano

Conheça, pelas armas, quanto excede

A lei de Cristo à lei de Mafamede.

«Eis mil nadantes aves, pelo argento

Da furiosa Tétis inquieta,

Abrindo as pandas asas vão ao vento,

Pera onde Alcides pôs a extrema meta.

O monte Abila e o nobre fundamento

De Ceita toma, e o torpe Mahometa

Deita fora, e segura toda Espanha

Da Juliana, má e desleal manha.

«Não consentiu a morte tantos anos

Que de Herói tão ditoso se lograsse

Portugal, mas os coros soberanos

Do Céu supremo quis que povoasse.

Mas, pera defensão dos Lusitanos,

Deixou Quem o levou, quem governasse

E aumentasse a terra mais que dantes:

Ínclita geração, altos Infantes.

«Não foi do Rei Duarte tão ditoso

O tempo que ficou na suma alteza,

Que assi vai alternando o tempo iroso

O bem co mal, o gosto co a tristeza.

Quem viu sempre um estado deleitoso?

Ou quem viu em Fortuna haver firmeza?

Pois inda neste Reino e neste Rei

Não usou ela tanto desta lei?

«Viu ser cativo o santo irmão Fernando

(Que a tão altas empresas aspirava),

Que, por salvar o povo miserando

Cercado, ao Sarraceno se entregava.

Só por amor da pátria está passando

A vida, de senhora feita escrava,

Por não se dar por ele a forte Ceita.

Mais o público bem que o seu respeita.

«Codro, por que o inimigo não vencesse,

Deixou antes vencer da morte a vida;

Régulo, por que a pátria não perdesse,

Quis mais a liberdade ver perdida.

Este, por que se Espanha não temesse,

A cativeiro eterno se convida!

Codro, nem Cúrcio, ouvido por espanto,

Nem os Décios leais, fizeram tanto.

«Mas Afonso, do Reino único herdeiro,

Nome em armas ditoso em nossa Hespéria.

Que a soberba do Bárbaro fronteiro

Tornou em baxa e humílima miséria,

Fora por certo invicto cavaleiro,

Se não quisera ir ver a terra Ibéria.

Mas Africa dirá ser impossíbil

Poder ninguém vencer o Rei terríbil.

«Este pôde colher as maçãs de ouro

Que somente o Tiríntio colher pôde.

Do jugo que lhe pôs, o bravo Mouro

A cerviz inda agora não sacode.

Na fronte a palma leva e o verde louro

Das vitórias do Bárbaro, que acode

A defender Alcácer, forte vila,

Tângere populoso e a dura Arzila.

«Porém elas, enfim, por força entradas

Os muros abaxaram de diamante

Às Portuguesas forças, costumadas

A derribarem quanto acham diante.

Maravilhas em armas, estremadas

E de escritura dinas elegante,

Fizeram cavaleiros nesta empresa,

Mais afinando a fama Portuguesa.

«Porém despois, tocado de ambição

E glória de mandar, amara e bela,

Vai cometer Fernando de Aragão,

Sobre o potente Reino de Castela.

Ajunta-se a inimiga multidão

Das soberbas e várias gentes dela,

Desde Cáliz ao alto Perineu,

Que tudo ao Rei Fernando obedeceu.

«Não quis ficar nos Reinos occioso

O mancebo Joane, e logo ordena

De ir ajudar o pai ambicioso,

Que então lhe foi ajuda não pequena.

Saiu-se, enfim, do trance perigoso,

Com fronte não torvada, mas serena.

Desbaratado o pai sanguinolento,

Mas ficou duvidoso o vencimento;

«Porque o filho, sublime e soberano,

Gentil, forte, animoso cavaleiro,

Nos contrários fazendo imenso dano,

Todo um dia ficou no campo inteiro.

Destarte foi vencido Octaviano,

E António vencedor, seu companheiro,

Quando daqueles que César mataram

Nos Filípicos campos se vingaram.

«Porém, despois que a escura noite eterna

Afonso apousentou no Céu sereno,

O Príncipe que o Reino então governa

Foi Joane segundo e Rei trezeno.

Este, por haver fama sempiterna,

Mais do que tentar pode homem terreno

Tentou, que foi buscar da roxa Aurora

Os términos, que eu vou buscando agora.

«Manda seus mensageiros, que passaram

Espanha, França, Itália celebrada,

E lá no ilustre porto se embarcaram

Onde já foi Parténope enterrada:

Nápoles, onde os Fados se mostraram,

Fazendo-a a várias gentes subjugada,

Pola ilustrar, no fim de tantos anos,

Co senhorio de ínclitos Hispanos.

«Polo mar alto Sículo navegam;

Vão-se às praias de Rodes arenosas;

E dali às ribeiras altas chegam

Que com morte de Magno são famosas;

Vão a Mênfis, e às terras que se regam

Das enchentes Nilóticas undosas;

Sobem à Etiópia, sobre Egipto,

Que de Cristo lá guarda o santo rito.

«Passam também as ondas Eritreias,

Que o povo de Israel sem nau passou;

Ficam-lhe atrás as serras Nabateias,

Que o filho de Ismael co nome ornou.

As costas odoríferas Sabeias,

Que a mãe do belo Adónis tanto honrou,

Cercam, com toda a Arábia descoberta,

Feliz, deixando a Pétrea e a Deserta.

«Entram no Estreito Pérsico, onde dura

Da confusa Babel inda a memória;

Ali co Tigre o Eufrates se mistura,

Que as fontes onde nascem têm por glória.

Dali vão em demanda da água pura

(Que causa inda será de larga história)

Do Indo, pelas ondas do Oceano,

Onde não se atreveu passar Trajano.

«Viram gentes incógnitas e estranhas

Da Índia, da Carmânia e Gedrosia,

Vendo vários costumes, várias manhas,

Que cada região produze e cria.

Mas de vias tão ásperas, tamanhas,

Tornar-se fàcilmente não podia.

Lá morreram, enfim, e lá ficaram,

Que à desejada pátria não tornaram.

«Parece que guardava o claro Céu

A Manuel e seus merecimentos

Esta empresa tão árdua, que o moveu

A subidos e ilustres movimentos;

Manuel, que a Joane sucedeu

No Reino e nos altivos pensamentos,

Logo como tomou do Reino cargo,

Tomou mais a conquista do mar largo.

«O qual, como do nobre pensamento

Daquela obrigação que lhe ficara

De seus antepassados, cujo intento

Foi sempre acrecentar a terra cara,

Não deixasse de ser um só momento

Conquistado, no tempo que a luz clara

Foge, e as estrelas nítidas que saem

A repouso convidam quando caem,

«Estando já. deitado no áureo leito,

Onde imaginações mais certas são,

Revolvendo contino no conceito

De seu ofício e sangue a obrigação,

Os olhos lhe ocupou o sono aceito,

Sem lhe desocupar o coração;

Porque, tanto que lasso se adormece,

Morfeu em várias formas lhe aparece.

«Aqui se lhe apresenta que subia

Tão alto que tocava à prima Esfera,

Donde diante vários mundos via,

Nações de muita gente, estranha e fera.

E lá bem junto donde nace o dia,

Despois que os olhos longos estendera,

Viu de antigos, longincos e altos montes

Nacerem duas claras e altas fontes.

«Aves agrestes, feras e alimárias

Pelo monte selvático habitavam;

Mil árvores silvestres e ervas várias

O passo e o trato às gentes atalhavam.

Estas duras montanhas, adversárias

De mais conversação, por si mostravam

Que, dês que Adão pecou aos nossos anos,

Não as romperam nunca pés humanos.

«Das águas se lhe antolha que saíam,

Par'ele os largos passos inclinando,

Dous homens, que mui velhos pareciam,

De aspeito, inda que agreste, venerando.

Das pontas dos cabelos lhe saíam

Gotas, que o corpo todo vão banhando;

A cor da pele, baça e denegrida;

A barba hirsuta, intonsa, mas comprida.

«D'ambos de dous a fronte coroada

Ramos não conhecidos e ervas tinha.

Um deles a presença traz cansada,

Como quem de mais longe ali caminha;

E assi a água, com ímpeto alterada,

Parecia que doutra parte vinha,

Bem como Alfeu de Arcádia em Siracusa

Vai buscar os abraços de Aretusa.

«Este, que era o mais grave na pessoa,

Destarte pera o Rei de longe brada:

- «Ó tu, a cujos reinos e coroa

Grande parte do mundo está guardada,

Nós outros, cuja fama tanto voa,

Cuja cerviz bem nunca foi domada,

Te avisamos que é tempo que já mandes

A receber de nós tributos grandes.

«Eu sou o ilustre Ganges, que na terra

Celeste tenho o berço verdadeiro;

Estoutro é o Indo, Rei que, nesta serra

Que vês, seu nascimento tem primeiro.

Custar-t'-emos contudo dura guerra;

Mas, insistindo tu, por derradeiro,

Com não vistas vitórias, sem receio

A quantas gentes vês porás o freio.»

«Não disse mais o Rio ilustre e santo,

Mas ambos desparecem num momento.

Acorda Emanuel cum novo espanto

E grande alteração de pensamento.

Estendeu nisto Febo o claro manto

Pelo escuro Hemispério somnolento;

Veio a manhã no céu pintando as cores

De pudibunda rosa e roxas flores.

«Chama o Rei os senhores a conselho

E propõe-lhe as figuras da visão;

As palavras lhe diz do santo velho,

Que a todos foram grande admiração.

Determinam o náutico aparelho,

Pera que, com sublime coração,

Vá a gente que mandar cortando os mares

A buscar novos climas, novos ares.

«Eu, que bem mal cuidava que em efeito

Se pusesse o que o peito me pedia,

Que sempre grandes coisas deste jeito,

Pres[s]ago, o coração me prometia,

Não sei por que razão, por que respeito,

Ou por que bom sinal que em mi se via,

Me põe o ínclito Rei nas mãos a chave

Deste cometimento grande e grave.

«E com rogo e palavras amorosas,

Que é um mando nos Reis que a mais obriga,

Me disse: - «As cousas árduas e lustrosas

Se alcançam com trabalho e com fadiga;

Faz as pessoas altas e famosas

A vida que se perde e que periga,

Que, quando ao medo infame não se rende,

Então, se menos dura, mais se estende.

«Eu vos tenho entre todos escolhido

Pera üa empresa, qual a vós se deve,

Trabalho ilustre, duro e esclarecido,

O que eu sei que por mi vos será leve.»

«Não sofri mais, mas logo: - «Ó Rei subido,

Aventurar-me a ferro, a fogo, a neve,

É tão pouco por vós que mais me pena

Ser esta vida cousa tão pequena.

«Imaginai tamanhas aventuras

Quais Euristeu a Alcides inventava:

O lião Cleonéu, Harpias duras,

O porco de Erimanto, a Hidra brava,

Decer, enfim, às sombras vãs e escuras

Onde os campos de Dite a Estige lava;

Porque a maior perigo, a mor afronta,

Por vós, ó Rei, o esprito e carne é pronta.»

«Com mercês sumptuosas me agardece

E com razões me louva esta vontade;

Que a virtude louvada vive e crece

E o louvor altos casos persuade.

A acompanhar-me logo se oferece,

Obrigado d'amor e d'amizade,

Não menos cobiçoso de honra e fama,

O caro meu irmão Paulo da Gama.

«Mais se me ajunta Nicolau Coelho,

De trabalhos mui grande sofredor.

Ambos são de valia e de conselho,

D'experiência em armas e furor.

Já de manceba gente me aparelho,

Em que crece o desejo do valor;

Todos de grande esforço; e assi parece

Quem a tamanhas cousas se oferece.

«Foram de Emanuel remunerados,

Por que com mais amor se apercebessem,

E com palavras altas animados

Pera quantos trabalhos sucedessem.

Assi foram os Mínias ajuntados,

Pera que o Véu dourado combatessem,

Na fatídica nau, que ousou primeira

Tentar o mar Euxínio, aventureira.

«E já no porto da ínclita Ulisseia,

Cum alvoroço nobre e cum desejo

(Onde o licor mistura e branca areia

Co salgado Neptuno o doce Tejo)

As naus prestes estão; e não refreia

Temor nenhum o juvenil despejo,

Porque a gente marítima e a de Marte

Estão pera seguir-me a toda a parte.

«Pelas praias vestidos os soldados

De várias cores vêm e várias artes,

E não menos de esforço aparelhados

Pera buscar do mundo novas partes.

Nas fortes naus os ventos sossegados

Ondeiam os aéreos estandartes;

Elas prometem, vendo os mares largos,

De ser no Olimpo estrelas, como a de Argos.

«Despois de aparelhados, desta sorte,

De quanto tal viagem pede e manda,

Aparelhámos a alma pera a morte,

Que sempre aos nautas ante os olhos anda.

Pera o sumo Poder, que a etérea Corte

Sustenta só co a vista veneranda,

Implorámos favor que nos guiasse

E que nossos começos aspirasse.

«Partimo-nos assi do santo templo

Que nas praias do mar está assentado,

Que o nome tem da terra, pera exemplo,

Donde Deus foi em carne ao mundo dado.

Certifico-te, ó Rei, que, se contemplo

Como fui destas praias apartado,

Cheio dentro de dúvida e receio,

Que apenas nos meus olhos ponho o freio.

«A gente da cidade, aquele dia,

(Uns por amigos, outros por parentes,

Outros por ver somente) concorria,

Saüdosos na vista e descontentes

E nós, co a virtuosa companhia

De mil Religiosos diligentes,

Em procissão solene, a Deus orando,

Pera os batéis viemos caminhando.

«Em tão longo caminho e duvidoso

Por perdidos as gentes nos julgavam,

As mulheres cum choro piadoso

Os homens com suspiros que arrancavam.

Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso

Amor mais desconfia, acrecentavam

A desesperação e frio medo

De já nos não tornar a ver tão cedo.

«Qual vai dizendo: - «Ó filho, a quem eu tinha

Só pera refrigério e doce emparo

Desta cansada já velhice minha,

Que em choro acabará, penoso e amaro

Porque me deixas, mísera e mesquinha?

Porque de mi te vás, ó filho caro,

A fazer o funéreo enterramento

Onde sejas de pexes mantimento?»

«Qual em cabelo: - «Ó doce e amado esposo,

Sem quem não quis Amor que viver possa,

Porque is aventurar ao mar airoso

Essa vida que é minha e não é vossa?

Como, por um caminho duvidoso,

Vos esquece a afeição tão doce nossa?

Nosso amor, nosso vão contentamento,

Quereis que com as velas leve o vento?»

«Nestas e outras palavras que diziam,

De amor e de piadosa humanidade,

Os velhos e os mininos os seguiam,

Em quem menos esforço põe a idade.

Os montes de mais perto respondiam,

Quási movidos de alta piedade;

A branca areia as lágrimas banhavam,

Que em multidão com elas se igualavam.

«Nós outros, sem a vista alevantarmos

Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,

Por nos não magoarmos, ou mudarmos

Do propósito firme começado,

Determinei de assi nos embarcarmos,

Sem o despedimento costumado,

Que, posto que é de amor usança boa,

A quem se aparta, ou fica, mais magoa.

«Mas um velho, d'aspeito venerando,

Que ficava nas praias, entre a gente,

Postos em nós os olhos, meneando

Três vezes a cabeça, descontente,

A voz pesada um pouco alevantando,

Que nós no mar ouvimos claramente,

Cum saber só d'experiências feito,

Tais palavras tirou do experto peito:

- «Ó glória de mandar, ó vã cobiça

Desta vaidade a quem chamamos Fama!

Ó fraudulento gosto, que se atiça

Cüa aura popular, que honra se chama!

Que castigo tamanho e que justiça

Fazes no peito vão que muito te ama!

Que mortes, que perigos, que tormentas,

Que crueldades neles experimentas!

«Dura inquietação d'alma e da vida

Fonte de desemparos e adultérios,

Sagaz consumidora conhecida

De fazendas, de reinas e de impérios!

hamam-te ilustre, chamam-te subida,

Sendo dina de infames vitupérios;

Chamam-te Fama e Glória soberana,

Nomes com quem se o povo néscio engana!

«A que novos desastres determinas

De levar estes Reinos e esta gente?

Que perigos, que mortes lhe destinas,

Debaixo dalgum nome preminente?

Que promessas de reinos e de minas

D'ouro, que lhe farás tão facilmente?

Que famas lhe prometerás? Que histórias?

Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?

«Mas, ó tu, geração daquele insano

Cujo pecado e desobediência

Não somente do Reino soberano

Te pôs neste desterro e triste ausência,

Mas inda doutro estado mais que humano,

Da quieta e da simpres inocência,

Idade d'ouro, tanto te privou,

Que na de ferro e d'armas te deitou:

«Já que nesta gostosa vaidade

Tanto enlevas a leve fantasia,

Já que à bruta crueza e feridade

Puseste nome, esforço e valentia,

Já que prezas em tanta quantidade :

O desprezo da vida, que devia

De ser sempre estimada, pois que já

Temeu tanto perdê-la Quem a dá:

«Não tens junto contigo o Ismaelita,

Com quem sempre terás guerras sobejas?

Não segue ele do Arábio a lei maldita,

Se tu pola de Cristo só pelejas?

Não tem cidades mil, terra infinita,

Se terras e riqueza mais desejas?

Não é ele por armas esforçado,

Se queres por vitórias ser louvado?

«Deixas criar às portas o inimigo,

Por ires buscar outro de tão longe,

Por quem se despovoe o Reino antigo,

Se enfraqueça e se vá deitando a longe;

Buscas o incerto e incógnito perigo

Por que a Fama te exalte e te lisonje

Chamando-te senhor, com larga cópia,

Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia.

«Oh, maldito o primeiro que, no mundo,

Nas ondas vela pôs em seco lenho!

Dino da eterna pena do Profundo,

Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!

Nunca juízo algum, alto e profundo,

Nem cítara sonora ou vivo engenho

Te dê por isso fama nem memória,

Mas contigo se acabe o nome e glória!

«Trouxe o filho de Jápeto do Céu

O fogo que ajuntou ao peito humano,

Fogo que o mundo em armas acendeu,

Em mortes, em desonras (grande engano!).

Quanto milhor nos fora, Prometeu,

E quanto pera o mundo menos dano,

Que a tua estátua ilustre não tivera

Fogo de altos desejos, que a movera!

«Não cometera o moço miserando

O carro alto do pai, nem o ar vazio

O grande arquitector co filho, dando

Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.

Nenhum cometimento alto e nefando

Por fogo, ferro, água, calma e frio,

Deixa intentado a humana geração.

Mísera sorte! Estranha condição!»

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Canto V

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STAS sentenças tais o velho honrado

Vociferando estava, quando abrimos

As asas ao sereno e sossegado

Vento, e do porto amado nos partimos.

E, como é já no mar costume usado,

A vela desfraldando, o céu ferimos,

Dizendo:- «Boa viagem!»; logo o vento

Nos troncos fez o usado movimento.

«Entrava neste tempo o eterno lume

No animal Nemeio truculento;

E o Mundo, que co tempo se consume,

Na sexta idade andava, enfermo e lento.

Nela vê, como tinha por costume,

Cursos do Sol catorze vezes cento,

Com mais noventa e sete, em que corria,

Quando no mar a armada se estendia.

«Já a vista, pouco e pouco, se desterra

Daqueles pátrios montes, que ficavam;

Ficava o caro Tejo e a fresca serra

De Sintra, e nela os olhos se alongavam;

Ficava-nos também na amada terra

O coração, que as mágoas lá deixavam;

E, já despois que toda se escondeu,

Não vimos mais, enfim, que mar e céu.

«Assi fomos abrindo aqueles mares,

Que geração algüa não abriu,

As novas Ilhas vendo e os novos ares

Que o generoso Henrique descobriu;

De Mauritânia os montes e lugares,

Terra que Anteu num tempo possuiu,

Deixando à mão esquerda, que à direita

Não há certeza doutra, mas suspeita.

«Passámos a grande Ilha da Madeira,

Que do muito arvoredo assi se chama;

Das que nós povoámos a primeira,

Mais célebre por nome que por fama.

Mas, nem por ser do mundo a derradeira,

Se lhe aventajam quantas Vénus ama;

Antes, sendo esta sua, se esquecera

De Cipro, Gnido, Pafos e Citera.

«Deixámos de Massília a estéril costa,

Onde seu gado os Azenegues pastam,

Gente que as frescas águas nunca gosta,

Nem as ervas do campo bem lhe abastam;

A terra a nenhum fruto, enfim, disposta,

Onde as aves no ventre o ferro gastam,

Padecendo de tudo extrema inópia,

Que aparta a Barbaria de Etiópia.

«Passámos o limite aonde chega

O Sol, que pera o Norte os carros guia;

Onde jazem os povos a quem nega

O filho de Climene a cor do dia.

Aqui gentes estranhas lava e rega

Do negro Sanagá a corrente fria,

Onde o Cabo Arsinário o nome perde,

Chamando-se dos nossos Cabo Verde.

«Passadas tendo já as Canárias ilhas,

Que tiveram por nome Fortunadas,

Entrámos, navegando, polas filhas

Do velho Hespério, Hespéridas chamadas;

Terras por onde novas maravilhas

Andaram vendo já nossas armadas.

Ali tomámos porto com bom vento,

Por tomarmos da terra mantimento.

«Àquela ilha aportámos que tomou

O nome do guerreiro Santiago,

Santo que os Espanhóis tanto ajudou

fazerem nos Mouros bravo estrago.

Daqui, tanto que Bóreas nos ventou,

Tornámos a cortar o imenso lago

Do salgado Oceano, e assi deixámos

A terra onde o refresco doce achámos.

«Por aqui rodeando a larga parte

De África, que ficava ao Oriente

(A província Jalofo, que reparte

Por diversas nações a negra gente;

A mui grande Mandinga, por cuja arte

Logramos o metal rico e luzente,

Que do curvo Gambeia as águas bebe,

As quais o largo Atlântico recebe),

«As Dórcadas passámos, povoadas

Das Irmãs que outro tempo ali viviam,

Que, de vista total sendo privadas,

Todas três dum só olho se serviam.

Tu só, tu, cujas tranças encrespadas

Neptuno lá nas águas acendiam,

Tornada já de todas a mais feia,

De bívoras encheste a ardente areia.

«Sempre, enfim, pera o Austro a aguda proa,

No grandíssimo gôlfão nos metemos,

Deixando a Serra aspérrima Lioa,

Co Cabo a quem das Palmas nome demos.

O grande rio, onde batendo soa

O mar nas praias notas, que ali temos,

Ficou, co a Ilha ilustre, que tomou

O nome dum que o lado a Deus tocou.

«Ali o mui grande reino está de Congo,

Por nós já convertido à fé de Cristo,

Por onde o Zaire passa, Claro e longo,

Rio pelo antigos nunca visto.

Por este largo mar, enfim, me alongo

Do conhecido PóIo de Calisto,

Tendo o término ardente já passado

Onde o meio do Mundo é limitado.

«Já descoberto tínhamos diante,

Lá no novo Hemispério, nova estrela,

Não vista de outra gente, que, ignorante,

Alguns tempos esteve incerta dela.

Vimos a parte menos rutilante

E, por falta de estrelas, menos bela,

Do Pólo fixo, onde inda se não sabe

Que outra terra comece ou mar acabe.

«Assi, passando aquelas regiões

Por onde duas vezes passa Apolo,

Dous Invernos fazendo e dous Verões,

Enquanto corre dum ao outro Pólo,

Por calmas, por tormentas e opressões,

Que sempre faz no mar o irado Eolo,

Vimos as Ursas, a pesar de Juno,

Banharem-se nas águas de Neptuno.

«Contar-te longamente as perigosas

Cousas do mar, que os homens não entendem,

Súbitas trovoadas temerosas,

Relâmpados que o ar em fogo acendem,

Negros chuveiros, noites tenebrosas,

Bramidos de trovões, que o mundo fendem,

Não menos é trabalho que grande erro,

Ainda que tivesse a voz de ferro.

«Os casos vi, que os rudos marinheiros,

Que têm por mestra a longa experiência,

Contam por certos sempre e verdadeiros,

Julgando as cousas só pola aparência,

E que os que têm juízos mais inteiros,

Que só por puro engenho e por ciência

Vêm do mundo os segredos escondidos,

Julgam por falsos ou mal entendidos.

«Vi, claramente visto, o lume vivo

Que a marítima gente tem por santo,

Em tempo de tormenta e vento esquivo,

De tempestade escura e triste pranto.

Não menos foi a todos excessivo

Milagre, e cousa, certo, de alto espanto,

Ver as nuvens, do mar com largo cano,

Sorver as altas águas do Oceano.

«Eu o vi certamente (e não presumo

Que a vista me enganava): levantar-se

No ar um vaporzinho e sutil fumo

E, do vento trazido, rodear-se;

De aqui levado um cano ao Pólo sumo

Se via, tão delgado, que enxergar-se

Dos olhos fàcilmente não podia;

Da matéria das nuvens parecia.

«Ia-se pouco e pouco acrecentando

E mais que um largo masto se engrossava;

Aqui se estreita, aqui se alarga, quando

Os golpes grandes de água em si chupava;

Estava-se co as ondas ondeando;

Em cima dele ua nuvem se espessava,

Fazendo-se maior, mais carregada,

Co cargo grande d'água em si tomada.

«Qual roxa sangues[s]uga se veria

Nos beiços da alimária (que, imprudente,

Bebendo a recolheu na fonte fria)

Fartar co sangue alheio a sede ardente;

Chupando, mais e mais se engrossa e cria,

Ali se enche e se alarga grandemente:

Tal a grande coluna, enchendo, aumenta

A si e a nuvem negra que sustenta.

«Mas, despois que de todo se fartou,

O pé que tem no mar a si recolhe

E pelo céu, chovendo, enfim voou,

Por que co a água a jacente água molhe;

Às ondas torna as ondas que tomou,

Mas o sabor do sal lhe tira e tolhe.

Vejam agora os sábios na escritura

Que segredos são estes de Natura!

«Se os antigos Filósofos, que andaram

Tantas terras, por ver segredos delas,

As maravilhas que eu passei, passaram,

A tão diversos ventos dando as velas,

Que grandes escrituras que deixaram!

Que influïção de sinos e de estrelas!

Que estranhezas, que grandes qualidades!

E tudo, sem mentir, puras verdades.

«Mas já o Planeta que no Céu primeiro

Habita, cinco vezes, apressada,

Agora meio rosto, agora inteiro,

Mostrara, enquanto o mar cortava a armada,

Quando da etérea gávea, um marinheiro,

Pronto co a vista: «Terra! Terra!» brada.

Salta no bordo alvoroçada a gente,

Cos olhos no horizonte do Oriente.

«A maneira de nuvens se começam

A descobrir os montes que enxergamos;

As âncoras pesadas se adereçam;

As velas, já chegados, amainamos.

E, pera que mais certas se conheçam

As partes tão remotas onde estamos,

Pelo novo instrumento do Astrolábio,

Invenção de sutil juízo e sábio,

«Desembarcamos logo na espaçosa

Parte, por onde a gente se espalhou,

De ver cousas estranhas desejosa,

Da terra que outro povo não pisou.

Porém eu, cos pilotos, na arenosa

Praia, por vermos em que parte estou,

Me detenho em tomar do Sol a altura

E compassar a universal pintura.

«Achámos ter de todo já passado

Do Semícapro Pexe a grande meta,

Estando entre ele e o circulo gelado

Austral, parte do mundo mais secreta.

Eis, de meus companheiros rodeado,

Vejo um estranho vir, de pele preta,

Que tomaram per força, enquanto apanha

De mel os doces favos na montanha.

«Torvado vem na vista, como aquele

Que não se vira nunca em tal extremo;

Nem ele entende a nós, nem nós a ele,

Selvagem mais que o bruto Polifemo.

Começo-lhe a mostrar da rica pele

De Colcos o gentil metal supremo,

A prata fina, a quente especiaria:

A nada disto o bruto se movia.

«Mando mostrar-lhe peças mais somenos:

Contas de cristalino transparente,

Alguns soantes cascavéis pequenos,

Um barrete vermelho, cor contente;

Vi logo, por sinais e por acenos,

Que com isto se alegra grandemente.

Mando-o soltar com tudo e assi caminha

Pera a povoação, que perto tinha.

«Mas, logo ao outro dia, seus parceiros,

Todos nus e da cor da escura treva,

Decendo pelos ásperos outeiros,

As peças vêm buscar que estoutro leva.

Domésticos já tanto e companheiros se nos

mostram, que fazem que se atreva

Fernão Veloso a ir ver da terra o trato

E partir-se co eles pelo mato.

«É Veloso no braço confiado

E, de arrogante, crê que vai seguro;

Mas, sendo um grande espaço já passado,

Em que algum bom sinal saber procuro,

Estando, a vista alçada, co cuidado

No aventureiro, eis pelo monte duro

Aparece e, segundo ao mar caminha,

Mais apressado do que fora, vinha.

«O batel de Coelho foi depressa

Polo tomar; mas, antes que chegasse,

Um Etíope ousado se arremessa

A ele, por que não se lhe escapasse;

Outro e outro lhe saem; vê-se em pressa

Veloso, sem que alguém lhe ali ajudasse;

Acudo eu logo, e, enquanto o remo aperto,

Se mostra um bando negro, descoberto.

«Da espessa nuvem setas e pedradas

Chovem sobre nós outros, sem medida;

E não foram ao vento em vão deitadas,

Que esta perna trouxe eu dali ferida.

Mas nós, como pessoas magoadas,

A reposta lhe demos tão tecida

Que em mais que nos barretes se suspeita

Que a cor vermelha levam desta feita.

«E, sendo já Veloso em salvamento,

Logo nos recolhemos pera a armada,

Vendo a malícia feia e rudo intento

Da gente bestial, bruta e malvada,

De quem nenhum milhor conhecimento

Pudemos ter da Índia desejada

Que estarmos inda muito longe dela.

E assi tornei a dar ao vento a vela.

«Disse então a Veloso um companheiro

(Começando-se todos a sorrir):

- «Oulá, Veloso amigo! Aquele outeiro

É milhor de decer que de subir!»

- «Si, é (responde o ousado aventureiro);

Mas, quando eu pera cá vi tantos vir

Daqueles cães, depressa um pouco vim,

Por me lembrar que estáveis cá sem mim.»

«Contou então que, tanto que passaram

Aquele monte os negros de quem falo,

Avante mais passar o não deixaram,

Querendo, se não torna, ali matá-lo;

E tornando-se, logo se emboscaram,

Por que, saindo nós pera tomá-lo,

Nos pudessem mandar ao reino escuro,

Por nos roubarem mais a seu seguro.

«Porém já cinco Sóis eram passados

Que dali nos partíramos, cortando

Os mares nunca d'outrem navegados,

Pròsperamente os ventos assoprando,

Quando üa noute, estando descuidados

Na cortadora proa vigiando,

üa nuvem que os ares escurece,

Sobre nossas cabeças aparece.

«Tão temerosa vinha e carregada,

Que pôs nos corações um grande medo;

Bramindo, o negro mar de longe brada,

Como se desse em vão nalgum rochedo.

- «Ó Potestade (disse) sublimada:

Que ameaço divino ou que segredo

Este clima e este mar nos apresenta,

Que mor cousa parece que tormenta?»

«Não acabava, quando üa figura

Se nos mostra no ar, robusta e válida,

De disforme e grandíssima estatura;

O rosto carregado, a barba esquálida,

Os olhos encovados, e a postura

Medonha e má e a cor terrena e pálida;

Cheios de terra e crespos os cabelos,

A boca negra, os dentes amarelos.

«Tão grande era de membros que bem posso

Certificar-te que este era o segundo

De Rodes estranhíssimo Colosso,

Que um dos sete milagres foi do mundo.

Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,

Que pareceu sair do mar profundo.

Arrepiam-se as carnes e o cabelo,

A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!

«E disse: - «Ó gente ousada, mais que quantas

No mundo cometeram grandes cousas,

Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,

E por trabalhos vãos nunca repousas,

Pois os vedados términos quebrantas

E navegar meus longos mares ousas,

Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,

Nunca arados d'estranho ou próprio lenho;

«Pois vens ver os segredos escondidos

Da natureza e do húmido elemento,

A nenhum grande humano concedidos

De nobre ou de imortal merecimento,

Ouve os danos de mi que apercebidos

Estão a teu sobejo atrevimento,

Por todo o largo mar e pola terra

Que inda hás-de sojugar com dura guerra.

«Sabe que quantas naus esta viagem

Que tu fazes, fizerem, de atrevidas,

Inimiga terão esta paragem,

Com ventos e tormentas desmedidas;

E da primeira armada que passagem

Fizer por estas ondas insofridas,

Eu farei de improviso tal castigo

Que seja mor o dano que o perigo!

«Aqui espero tomar, se não me engano,

De quem me descobriu suma vingança;

E não se acabará só nisto o dano

De vossa pertinace confiança:

Antes, em vossas naus vereis, cada ano,

Se é verdade o que meu juízo alcança,

Naufrágios, perdições de toda sorte,

Que o menor mal de todos seja a morte!

«E do primeiro Ilustre, que a ventura

Com fama alta fizer tocar os Céus,

Serei eterna e nova sepultura,

Por juízos incógnitos de Deus.

Aqui porá da Turca armada dura

Os soberbos e prósperos troféus;

Comigo de seus danos o ameaça

A destruída Quíloa com Mombaça.

«Outro também virá, de honrada fama,

Liberal, cavaleiro, enamorado,

E consigo trará a fermosa dama

Que Amor por grão mercê lhe terá dado.

Triste ventura e negro fado os chama

Neste terreno meu, que, duro e irado,

Os deixará dum cru naufrágio vivos,

Pera verem trabalhos excessivos.

«Verão morrer com fome os filhos caros,

Em tanto amor gerados e nacidos;

Verão os Cafres, ásperos e avaros,

Tirar à linda dama seus vestidos;

Os cristalinos membros e perclaros

À calma, ao frio, ao ar, verão despidos,

Despois de ter pisada, longamente,

Cos delicados pés a areia ardente.

«E verão mais os olhos que escaparem

De tanto mal, de tanta desventura,

Os dous amantes míseros ficarem

Na férvida, implacábil espessura.

Ali, despois que as pedras abrandarem

Com lágrimas de dor, de mágoa pura,

Abraçados, as almas soltarão

Da fermosa e misérrima prisão.»

«Mais ia por diante o monstro horrendo,

Dizendo nossos Fados, quando, alçado,

Lhe disse eu: - «Quem és tu? Que esse estupendo

Corpo, certo me tem maravilhado!»

A boca e os olhos negros retorcendo

E dando um espantoso e grande brado,

Me respondeu, com voz pesada e amara,

Como quem da pergunta lhe pesara:

«Eu sou aquele oculto e grande Cabo

A quem chamais vós outros Tormentório,

Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,

Plinio e quantos passaram fui notório.

Aqui toda a Africana costa acabo

Neste meu nunca visto Promontório,

Que pera o Pólo Antártico se estende,

A quem vossa ousadia tanto ofende.

«Fui dos filhos aspérrimos da Terra,

Qual Encélado, Egeu e o Centimano;

Chamei-me Adamastor, e fui na guerra

Contra o que vibra os raios de Vulcano;

Não que pusesse serra sobre serra,

Mas, conquistando as ondas do Oceano,

Fui capitão do mar, por onde andava

A armada de Neptuno, que eu buscava.

«Amores da alta esposa de Peleu

Me fizeram tomar tamanha empresa;

Todas as Deusas desprezei do Céu,

Só por amar das águas a Princesa.

Um dia a vi, co as filhas de Nereu,

Sair nua na praia e logo presa

A vontade senti de tal maneira

Que inda não sinto cousa que mais queira.

«Como fosse impossíbil alcançá-la,

Pola grandeza feia de meu gesto,

Determinei por armas de tomá-la

E a Dóris este caso manifesto.

De medo a Deusa então por mi lhe fala;

Mas ela, cum fermoso riso honesto,

Respondeu: - «Qual será o amor bastante

De Ninfa, que sustente o dum Gigante?

«Contudo, por livrarmos o Oceano

De tanta guerra, eu buscarei maneira

Com que, com minha honra, escuse o dano.»

Tal resposta me torna a mensageira.

Eu, que cair não pude neste engano

(Que é grande dos amantes a cegueira),

Encheram-me, com grandes abondanças,

O peito de desejos e esperanças.

«Já néscio, já da guerra desistindo,

üa noite, de Dóris prometida,

Me aparece de longe o gesto lindo

Da branca Tétis, única, despida.

Como doudo corri de longe, abrindo

Os braços pera aquela que era vida

Deste corpo, e começo os olhos belos

A lhe beijar, as faces e os cabelos.

«Oh que não sei de nojo como o conte!

Que, crendo ter nos braços quem amava,

Abraçado me achei cum duro monte

De áspero mato e de espessura brava.

Estando cum penedo fronte a fronte,

Qu'eu polo rosto angélico apertava,

Não fiquei homem, não; mas mudo e quedo

E, junto dum penedo, outro penedo!

«Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano,

Já que minha presença não te agrada,

Que te custava ter-me neste engano,

Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?

Daqui me parto, irado e quási insano

Da mágoa e da desonra ali passada,

A buscar outro mundo, onde não visse

Quem de meu pranto e de meu mal se risse.

«Eram já neste tempo meus Irmãos

Vencidos e em miséria extrema postos,

E, por mais segurar-se os Deuses vãos,

Alguns a vários montes sotopostos.

E, como contra o Céu não valem mãos,

Eu, que chorando andava meus desgostos,

Comecei a sentir do Fado imigo,

Por meus atrevimentos, o castigo:

Converte-se-me a carne em terra dura;

Em penedos os ossos se fizeram;

Estes membros que vês, e esta figura,

Por estas longas águas se estenderam.

Enfim, minha grandíssima estatura

Neste remoto Cabo converteram

Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,

Me anda Tétis cercando destas águas.»

«Assi contava; e, cum medonho choro,

Súbito d'ante os olhos se apartou;

Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro

Bramido muito longe o mar soou.

Eu, levantando as mãos ao santo coro

Dos Anjos, que tão longe nos guiou,

A Deus pedi que removesse os duros

Casos, que Adamastor contou futuros.

«Já Flégon e Piróis vinham tirando,

Cos outros dous, o carro radiante,

Quando a terra alta se nos foi mostrando

Em que foi convertido o grão Gigante.

Ao longo desta costa, começando

Já de cortar as ondas do Levante,

Por ela abaixo um pouco navegámos,

Onde segunda vez terra tomámos.

«A gente que esta terra possuía,

Posto que todos Etiopes eram,

Mais humana no trato parecia

Que os outros que tão mal nos receberam.

Com bailos e com festas de alegria

Pela praia arenosa a nós vieram,

As mulheres consigo e o manso gado

Que apacentavam, gordo e bem criado.

«As mulheres, queimadas, vêm em cima

Dos vagarosos bois, ali sentadas,

Animais que eles têm em mais estima

Que todo o outro gado das manadas.

Cantigas pastoris, ou prosa ou rima,

Na sua língua cantam, concertadas

Co doce som das rústicas avenas,

Imitando de Títiro as Camenas.

«Estes, como na vista prazenteiros

Fossem, humanamente nos trataram,

Trazendo-nos galinhas e carneiros

A troco doutras peças que levaram;

Mas como nunca, enfim, meus companheiros

Palavra sua algüa lhe alcançaram

Que desse algum sinal do que buscamos,

As velas dando, as âncoras levamos.

«Já aqui tínhamos dado um grão rodeio

À costa negra de Africa, e tornava

A proa a demandar o ardente meio

Do Céu, e o Pólo Antártico ficava.

Aquele ilhéu deixámos onde veio

Outra armada primeira, que buscava

O Tormentório Cabo e, descoberto,

Naquele ilhéu fez seu limite certo.

«Daqui fomos cortando muitos dias,

Entre tormentas tristes e bonanças,

No largo mar fazendo novas vias,

Só conduzidos de árduas esperanças.

Co mar um tempo andámos em porfias,

Que, como tudo nele são mudanças,

Corrente nele achámos tão possante,

Que passar não deixava por diante:

«Era maior a força em demasia,

Segundo pera trás nos obrigava,

Do mar, que contra nós ali corria,

Que por nós a do vento que assoprava.

Injuriado Noto da porfia

Em que co mar (parece) tanto estava,

Os assopros esforça iradamente,

Com que nos fez vencer a grão corrente.

«Trazia o Sol o dia celebrado

Em que três Reis das partes do Oriente

Foram buscar um Rei, de pouco nado,

No qual Rei outros três há juntamente;

Neste dia outro porto foi tomado

Por nós, da mesma já contada gente,

Num largo rio, ao qual o nome demos

Do dia em que por ele nos metemos.

«Desta gente refresco algum tomámos

E do rio fresca água; mas contudo

Nenhum sinal aqui da Índia achámos

No povo, com nós outros cási mudo.

Ora vê, Rei, quamanha terra andámos.

Sem sair nunca deste povo rudo,

Sem vermos nunca nova nem sinal

Da desejada parte Oriental.

«Ora imagina agora quão coitados

Andaríamos todos, quão perdidos

De fomes, de tormentas quebrantados,

Por climas e por mares não sabidos,

E do esperar comprido tão cansados

Quanto a desesperar já compelidos,

Por céus não naturais, de qualidade

Inimiga de nossa humanidade!

«Corrupto já e danado o mantimento,

Danoso e mau ao fraco corpo humano

E, além disso, nenhum contentamento,

Que sequer da esperança fosse engano.

Crês tu que, se este nosso ajuntamento

De soldados não fora Lusitano,

Que durara ele tanto obediente,

Porventura, a seu Rei e a seu regente?

«Crês tu que já não foram levantados

Contra seu Capitão, se os resistira,

Fazendo-se piratas, obrigados

De desesperação, de fome, de ira?

Grandemente, por certo, estão provados,

Pois que nenhum trabalho grande os tira

Daquela Portuguesa alta excelência

De lealdade firme e obediência.

«Deixando o porto, enfim, do doce rio

E tornando a cortar a água salgada,

Fizemos desta costa algum desvio,

Deitando pera o pego toda a armada;

Porque, ventando Noto, manso e frio,

Não nos apanhasse a água da enseada

Que a costa faz ali, daquela banda

Donde a rica Sofala o ouro manda.

«Esta passada, logo o leve leme

Encomendado ao sacro Nicolau,

Pera onde o mar na costa brada e geme,

A proa inclina düa e doutra nau;

Quando, indo o coração que espera e teme

E que tanto fiou dum fraco pau,

Do que esperava já desesperado,

Foi düa novidade alvoroçado.

«E foi que, estando já da costa perto,

Onde as praias e vales bem se viam,

Num rio, que ali sai ao mar aberto,

Batéis à vela entravam e saíam.

Alegria mui grande foi, por certo,

Acharmos já pessoas que sabiam

Navegar, porque entre elas esperámos

De achar novas algüas, como achámos.

«Etíopes são todos, mas parece

Que com gente milhor comunicavam;

Palavra algüa Arábia se conhece

Entre a linguagem sua que falavam;

E com pano delgado, que se tece

De algodão, as cabeças apertavam;

Com outro, que de tinta azul se tinge,

Cada um as vergonhosas partes cinge.

«Pela Arábica língua que mal falam

E que Fernão Martins mui bem entende,

Dizem que, por naus que em grandeza igualam

As nossas, o seu mar se corta e fende;

Mas que, lá donde sai o Sol, se abalam

Pera onde a costa ao Sul se alarga e estende,

E do Sul pera o Sol, terra onde havia

Gente, assi como nós, da cor do dia.

«Mui grandemente aqui nos alegrámos

Co a gente, e com as novas muito mais.

Pelos sinais que neste rio achámos

O nome lhe ficou dos Bons Sinais.

Um padrão nesta terra alevantámos,

Que, pera assinalar lugares tais,

Trazia alguns; o nome tem do belo

Guiador de Tobias a Gabelo.

«Aqui de limos, cascas e d'ostrinhos,

Nojosa criação das águas fundas,

Alimpámos as naus, que dos caminhos

Longos do mar vêm sórdidas e imundas.

Dos hóspedes que tínhamos vizinhos,

Com mostras aprazíveis e jocundas,

Houvemos sempre o usado mantimento,

Limpos de todo o falso pensamento.

«Mas não foi, da esperança grande e imensa

Que nesta terra houvemos, limpa e pura

A alegria; mas logo a recompensa

A Ramnúsia com nova desventura.

Assi no Céu sereno se dispensa;

Co esta condição, pesada e dura,

Nacemos: o pesar terá firmeza,

Mas o bem logo muda a natureza.

«E foi que, de doença crua e feia,

A mais que eu nunca vi, desempararam

Muitos a vida, e em terra estranha e alheia

Os ossos pera sempre sepultaram.

Quem haverá que, sem o ver, o creia,

Que tão disformemente ali lhe incharam

As gingivas na boca, que crecia

A carne e juntamente apodrecia?

«Apodrecia cum fétido e bruto

Cheiro, que o ar vizinho inficionava.

Não tínhamos ali médico astuto,

Cirurgião sutil menos se achava;

Mas qualquer, neste ofício pouco instruto,

Pela carne já podre assi cortava

Como se fora morta, e bem convinha,

Pois que morto ficava quem a tinha.

«Enfim que nesta incógnita espessura

Deixámos pera sempre os companheiros

Que em tal caminho e em tanta desventura

Foram sempre connosco aventureiros.

Quão fácil é ao corpo a sepultura!

Quaisquer ondas do mar, quaisquer outeiros

Estranhos, assi mesmo como aos nossos,

Receberão de todo o Ilustre os ossos.

«Assi que deste porto nos partimos

Com maior esperança e mor tristeza,

E pela costa abaixo o mar abrimos,

Buscando algum sinal de mais firmeza.

Na dura Moçambique, enfim, surgimos,

De cuja falsidade e má vileza

Já serás sabedor, e dos enganos

Dos povos de Mombaça, pouco humanos.

«Até que aqui, no teu seguro porto,

Cuja brandura e doce tratamento

Dará saúde a um vivo e vida a um morto,

Nos trouxe a piedade do alto Assento.

Aqui repouso, aqui doce conforto,

Nova quietação do pensamento,

Nos deste. E vês aqui, se atento ouviste,

Te contei tudo quanto me pediste.

«Julgas agora, Rei, se houve no mundo

Gentes que tais caminhos cometessem?

Crês tu que tanto Eneias e o facundo

Ulisses pelo mundo se estendessem?

Ousou algum a ver do mar profundo,

Por mais versos que dele se escrevessem,

Do que eu vi, a poder d'esforço e de arte,

E do que inda hei-de ver, a oitava parte?

«Esse que bebeu tanto da água Aónia,

Sobre quem têm contenda peregrina,

Entre si, Rodes, Smirna e Colofónia,

Atenas, Ios, Argo e Salamina;

Essoutro que esclarece toda Ausónia,

A cuja voz, altíssona e divina,

Ouvindo, o pátrio Míncio se adormece

Mas o Tibre co som se ensoberbece:

«Cantem, louvem e escrevam sempre extremos

Desses seus Semideuses e encareçam,

Fingindo magas Circes, Polifemos,

Sirenas que co canto os adormeçam;

Dêm-lhe mais navegar à vela e remos

Os Cícones e a terra onde se esqueçam

Os companheiros, em gostando o loto;

Dêm-lhe perder nas águas o piloto;

«Ventos soltos lhe finjam e imaginem

Dos odres, e Calipsos namoradas;

Harpias que o manjar lhe contaminem;

Decer às sombras nuas já passadas:

Que, por muito e por muito que se afinem

Nestas fábulas vãs, tão bem sonhadas,

A verdade que eu conto, nua e pura,

Vence toda grandíloca escritura!»

Da boca do fecundo Capitão

Pendendo estavam todos, embebidos,

Quando deu fim à longa narração

Dos altos feitos, grandes e subidos.

Louva o Rei o sublime coração

Dos Reis em tantas guerras conhecidos;

Da gente louva a antiga fortaleza,

A lealdade d'ânimo e nobreza.

Vai recontando o povo, que se admira,

O caso cada qual que mais notou;

Nenhum deles da gente os olhos tira

Que tão longos caminhos rodeou.

Mas já o mancebo Délio as rédeas vira

Que o irmão de Lampécia mal guiou,

Por vir a descansar nos Tétios braços;

E el-Rei se vai do mar aos nobres paços.

Quão doce é o louvor e a justa glória

Dos próprios feitos, quando são soados!

Qualquer nobre trabalha que em memória

Vença ou iguale os grandes já passados.

As envejas da ilustre e alheia história

Fazem mil vezes feitos sublimados.

Quem valerosas obras exercita,

Louvor alheio muito o esperta e incita.

Não tinha em tanto os feitos gloriosos

De Aquiles, Alexandro, na peleja,

Quanto de quem o canta os numerosos

Versos: isso só louva, isso deseja.

Os troféus de Milcíades, famosos,

Temístocles despertam só de enveja;

E diz que nada tanto o deleitava.

Como a voz que seus feitos celebrava.

Trabalha por mostrar Vasco da Gama

Que essas navegações que o mundo canta

Não merecem tamanha glória e fama

Como a sua, que o Céu e a Terra espanta.

Si; mas aquele Herói que estima e ama

Com dões, mercês, favores e honra tanta

A lira Mantuana, faz que soe

Eneias, e a Romana glória voe.

Dá a terra Lusitana Cipiões, Césares,

Alexandros, e dá Augustos;

Mas não lhe dá contudo aqueles dões

Cuja falta os faz duros e robustos.

Octávio, entre as maiores opressões,

Compunha versos doutos e venustos

(Não dirá Fúlvia, certo, que é mentira,

Quando a deixava António por Glafira).

Vai César sojugando toda França

E as armas não lhe impedem a ciência;

Mas, nüa mão a pena e noutra a lança,

Igualava de Cícero a eloquência.

O que de Cipião se sabe e alcança

É nas comédias grande experiência.

Lia Alexandro a Homero de maneira

Que sempre se lhe sabe à cabeceira.

Enfim, não houve forte Capitão

Que não fosse também douto e ciente,

Da Lácia, Grega ou Bárbara nação,

Senão da Portuguesa tão somente.

Sem vergonha o não digo: que a razão

De algum não ser por versos excelente

É não se ver prezado o verso e rima,

Porque quem não sabe arte, não na estima.

Por isso, e não por falta de natura,

Não há também Virgílios nem Homeros;

Nem haverá, se este costume dura,

Pios Eneias nem Aquiles feros.

Mas o pior de tudo é que a ventura

Tão ásperos os fez e tão austeros,

Tão rudos e de engenho tão remisso,

Que a muitos lhe dá pouco ou nada disso.

Às Musas agardeça o nosso Gama

O muito amor da pátria, que as obriga

A dar aos seus, na lira, nome e fama

De toda a ilustre e bélica fadiga;

Que ele, nem quem na estirpe seu se chama,

Calíope não tem por tão amiga

Nem as filhas do Tejo, que deixassem

As telas d'ouro fino e que o cantassem.

Porque o amor fraterno e puro gosto

De dar a todo o Lusitano feito

Seu louvor, é somente o pros[s]uposto

Das Tágides gentis, e seu respeito.

Porém não deixe, enfim, de ter disposto

Ninguém a grandes obras sempre o peito:

Que, por esta ou por outra qualquer via,

Não perderá seu preço e sua valia.

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Canto VI

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ÃO sabia em que modo festejasse

O Rei Pagão os fortes navegantes,

Pera que as amizades alcançasse

Do Rei Cristão, das gentes tão possantes.

Pesa-lhe que tão longe o apousentasse

Das Europeias terras abundantes

A ventura, que não no fez vizinho

Donde Hércules ao mar abriu o caminho.

Com jogos, danças e outras alegrias,

A segundo a polícia Melindana,

Com usadas e ledas pescarias,

Com que a Lageia António alegra e engana,

Este famoso Rei, todos os dias

Festeja a companhia Lusitana,

Com banquetes, manjares desusados,

Com frutas, aves, carnes e pescados.

Mas vendo o Capitão que se detinha

Já mais do que devia, e o fresco vento

O convida que parta e tome asinha

Os pilotos da terra e mantimento,

Não se quer mais deter, que ainda tinha

Muito pera cortar do salso argento.

Já do Pagão benigno se despede,

Que a todos amizade longa pede.

Pede-lhe mais que aquele porto seja

Sempre com suas frotas visitado,

Que nenhum outro bem maior deseja

Que dar a tais barões seu reino e estado;

E que, enquanto seu corpo o esprito reja,

Estará de contino aparelhado

A pôr a vida e reino totalmente

Por tão bom Rei, por tão sublime gente.

Outras palavras tais lhe respondia

O Capitão, e logo, as velas dando,

Pera as terras da Aurora se partia,

Que tanto tempo há já que vai buscando.

No piloto que leva não havia

Falsidade, mas antes vai mostrando

A navegação certa; e assi caminha

Já mais seguro do que dantes vinha.

As ondas navegavam do Oriente,

Já nos mares da Índia, e enxergavam

Os tálamos do Sol, que nace ardente;

Já quási seus desejos se acabavam;

Mas o mau de Tioneu, que na alma sente

As venturas que então se aparelhavam

À gente Lusitana, delas dina,

Arde, morre, blasfema e desatina.

Via estar todo o Céu determinado

De fazer de Lisboa nova Roma;

Não no pode estorvar, que destinado

Está doutro Poder que tudo doma.

Do Olimpo dece enfim, desesperado;

Novo remédio em terra busca e toma:

Entra no húmido reino e vai-se à corte

Daquele a quem o mar caiu em sorte.

No mais interno fundo das profundas

Cavernas altas, onde o mar se esconde,

Lá donde as ondas saem furibundas

Quando às iras do vento o mar responde,

Neptuno mora e moram as jocundas

Nereidas e outros Deuses do mar, onde

As águas campo deixam às cidades

Que habitam estas húmidas Deidades.

Descobre o fundo nunca descoberto

As areias ali de prata fina;

Torres altas se vêem, no campo aberto,

Da transparente massa cristalina;

Quanto se chegam mais os olhos perto

Tanto menos a vista determina

Se é cristal o que vê, se diamante,

Que assi se mostra claro e radiante.

As portas d'ouro fino, e marchetadas

Do rico aljôfar que nas conchas nace,

De escultura fermosa estão lavradas,

Na qual do irado Baco a vista pace;

E vê primeiro, em cores variadas,

Do velho Caos a tão confusa face;

Vêm-se os quatro Elementos trasladados,

Em diversos ofícios ocupados.

Ali, sublime, o Fogo estava em cima,

Que em nenhüa matéria se sustinha;

Daqui as cousas vivas sempre anima,

Despois que Prometeu furtado o tinha.

Logo após ele, leve se sublima

O invisíbil Ar, que mais asinha

Tomou lugar e, nem por quente ou frio,

Algum deixa no mundo estar vazio.

Estava a Terra em montes, revestida

De verdes ervas e árvores floridas,

Dando pasto diverso e dando vida

Às alimárias nela produzidas.

A clara forma ali estava esculpida

Das Águas, entre a terra desparzidas,

De pescados criando vários modos,

Com seu humor mantendo os corpos todos.

Noutra parte, esculpida estava a guerra

Que tiveram os Deuses cos Gigantes;

Está Tifeu debaixo da alta serra

De Etna, que as flamas lança crepitantes.

Esculpido se vê, ferindo a Terra,

Neptuno, quando as gentes, ignorantes,

Dele o cavalo houveram, e a primeira

De Minerva pacífica ouliveira.

Pouca tardança faz Lieu irado

Na vista destas cousas, mas entrando

Nos paços de Neptuno, que, avisado

Da vinda sua, o estava já aguardando,

Às portas o recebe, acompanhado

Das Ninfas, que se estão maravilhando

De ver que, cometendo tal caminho,

Entre no reino d'água o Rei do vinho

- «Ó Neptuno (lhe disse) não te espantes

De Baco nos teus reinos receberes,

Porque também cos grandes e possantes

Mostra a Fortuna injusta seus poderes.

Manda chamar os Deuses do mar, antes

Que fale mais, se ouvir-me o mais quiseres;

Verão da desventura grandes modos:

Ouçam todos o mal que toca a todos.»

Julgando já Neptuno que seria

Estranho caso aquele, logo manda

Tritão, que chame os Deuses da água fria

Que o mar habitam düa e doutra banda.

Tritão, que de ser filho se gloria

Do Rei e de Salácia veneranda,

Era mancebo grande, negro e feio,

Trombeta de seu pai e seu correio.

Os cabelos da barba e os que decem

Da cabeça nos ombros, todos eram

Uns limos prenhes d'água, e bem parecem

Que nunca brando pêntem conheceram.

Nas pontas pendurados não falecem

Os negros mexilhões, que ali se geram.

Na cabeça, por gorra, tinha posta

üa mui grande casca de lagosta.

O corpo nu, e os membros genitais,

Por não ter ao nadar impedimento,

Mas porém de pequenos animais

Do mar todos cobertos, cento e cento:

Camarões e cangrejos e outros mais,

Que recebem de Febe crecimento;

Ostras e birbigões, do musco sujos,

Às costas co a casca os caramujos.

Na mão a grande concha retorcida

Que trazia, com força já tocava;

A voz grande, canora, foi ouvida

Por todo o mar, que longe retumbava.

Já toda a companhia, apercebida,

Dos Deuses pera os paços caminhava

Do Deus que fez os muros de Dardânia,

Destruídos despois da Grega insânia.

Vinha o padre Oceano, acompanhado

Dos filhos e das filhas que gerara;

Vem Nereu, que com Dóris foi casado,

Que todo o mar de Ninfas povoara.

O profeta Proteu, deixando o gado

Marítimo pacer pela água amara,

Ali veio também, mas já sabia

O que o padre Lieu no mar queria.

Vinha por outra parte a linda esposa

De Neptuno, de Celo e Vesta filha,

Grave e leda no gesto, e tão fermosa

Que se amansava o mar, de maravilha.

Vestida üa camisa preciosa

Trazia, de delgada beatilha,

Que o corpo cristalino deixa ver-se,

Que tanto bem não é pera esconder-se.

Anfitrite, fermosa como as flores,

Neste caso não quis que falecesse;

O delfim traz consigo que aos amores

Do Rei lhe aconselhou que obedecesse.

Cos olhos, que de tudo são senhores,

Qualquer parecerá que o Sol vencesse

Ambas vêm pela mão, igual partido,

Pois ambas são esposas dum marido.

Aquela que, das fúrias de Atamante

Fugindo, veio a ter divino estado,

Consigo traz o filho belo infante,

No número dos Deuses relatado;

Pela praia brincando vem, diante,

Com as lindas conchinhas, que o salgado

Mar sempre cria; e às vezes pela areia

No colo o toma a bela Panopeia.

E o Deus que foi num tempo corpo humano

E por virtude da erva poderosa,

Foi convertido em pexe, e deste dano

Lhe resultou Deidade gloriosa,

Inda vinha chorando o feio engano

Que Circes tinha usado co a fermosa

Scila, que ele ama, desta sendo amado,

Que a mais obriga amor mal empregado.

Já finalmente todos assentados

Na grande sala, nobre e divinal,

As Deusas em riquíssimos estrados,

Os Deuses em cadeiras de cristal,

Foram todos do Padre agasalhados,

Que co Tebano tinha assento igual;

De fumos enche a casa a rica massa

Que no mar nace e Arábia em cheiro passa.

Estando sossegado já o tumulto

Dos Deuses e de seus recebimentos,

Começa a descobrir do peito oculto

A causa o Tioneu de seus tormentos;

Um pouco carregando-se no vulto,

Dando mostra de grandes sentimentos,

Só por dar aos de Luso triste morte

Co ferro alheio, fala desta sorte:

- «Príncipe, que de juro senhoreias,

Dum Pólo ao outro Pólo, o mar irado,

Tu, que as gentes da Terra toda enfreias,

Que não passem o termo limitado;

E tu, padre Oceano, que rodeias

O Mundo universal e o tens cercado,

E com justo decreto assi permites

Que dentro vivam só de seus limites;

«E vós, Deuses do Mar, que não sofreis

Injúria algüa em vosso reino grande,

Que com castigo igual vos não vingueis

De quem quer que por ele corra e ande:

Que descuido foi este em que viveis?

Quem pode ser que tanto vos abrande

Os peitos, com razão endurecidos

Contra os humanos, fracos e atrevidos?

«Vistes que, com grandíssima ousadia,

Foram já cometer o Céu supremo;

Vistes aquela insana fantasia

De tentarem o mar com vela e remo;

Vistes, e ainda vemos cada dia,

Soberbas e insolências tais, que temo

Que do Mar e do Céu, em poucos anos,

Venham Deuses a ser, e nós, humanos.

«Vedes agora a fraca geração

Que dum vassalo meu o nome toma,

Com soberbo e altivo coração

A vós e a mi e o mundo todo doma.

Vedes, o vosso mar cortando vão,

Mais do que fez a gente alta de Roma;

Vedes, o vosso reino devassando,

Os vossos estatutos vão quebrando.

«Eu vi que contra os Mínias, que primeiro

No vosso reino este caminho abriram

Bóreas, injuriado, e o companheiro

Áquilo e os outros todos resistiram.

Pois se do ajuntamento aventureiro

Os ventos esta injúria assi sentiram,

Vós, a quem mais compete esta vingança,

Que esperais? Porque a pondes em tardança?

«E não consinto, Deuses, que cuideis

Que por amor de vós do Céu deci,

Nem da mágoa da injúria que sofreis,

Mas da que se me faz também a mi;

Que aquelas grandes honras que sabeis

Que no mundo ganhei, quando venci

As terras Indianas do Oriente,

Todas vejo abatidas desta gente.

«Que o grão Senhor e Fados, que destinam,

Como lhe bem parece, o baxo mundo,

Famas, mores que nunca, determinam

De dar a estes barões no mar profundo.

Aqui vereis, ó Deuses, como ensinam

O mal também a Deuses; que, a segundo

Se vê, ninguém já tem menos valia

Que quem com mais razão valer devia.

«E por isso do Olimpo já fugi,

Buscando algum remédio a meus pesares,

Por ver o preço que no Céu perdi, e por

dita acharei nos vossos mares.»

Mais quis dizer, e não passou daqui,

Porque as lágrimas já, correndo a pares,

Lhe saltaram dos olhos, com que logo

Se acendem as Deidades d'água em fogo.

A ira com que súbito alterado

O coração dos Deuses foi num ponto,

Não sofreu mais conselho bem cuidado

Nem dilação nem outro algum desconto:

Ao grande Eolo mandam já recado,

Da parte de Neptuno, que sem conto

Solte as fúrias dos ventos repugnantes,

Que não haja no mar mais navegantes!

Bem quisera primeiro ali Proteu

Dizer, neste negócio, o que sentia;

E, segundo o que a todos pareceu,

Era algüa profunda profecia.

Porém tanto o tumulto se moveu,

Súbito, na divina companhia,

Que Tétis, indinada, lhe bradou:

- «Neptuno sabe bem o que mandou!»

Já lá o soberbo Hipótades soltava

Do cárcere fechado os furiosos

Ventos, que com palavras animava

Contra os varões audaces e animosos.

Súbito, o céu sereno se obumbrava,

Que os ventos, mais que nunca impetuosos,

Começam novas forças a ir tomando,

Torres, montes e casas derribando.

Enquanto este conselho se fazia

No fundo aquoso, a leda, lassa frota

Com vento sossegado prosseguia,

Pelo tranquilo mar, a longa rota.

Era no tempo quando a luz do dia

Do Eóo Hemispério está remota;

Os do quarto da prima se deitavam,

Pera o segundo os outros despertavam.

Vencidos vêm do sono e mal despertos;

Bocijando, a miúdo se encostavam

Pelas antenas, todos mal cobertos ontra os

agudos ares que assopravam;

Os olhos contra seu querer abertos;

Mas estregando, os membros estiravam.

Remédios contra o sono buscar querem,

Histórias contam, casos mil referem.

- «Com que milhor podemos (um dizia)

Este tempo passar, que é tão pesado,

Senão com algum conto de alegria,

Com que nos deixe o sono carregado?»

Responde Leonardo, que trazia

Pensamentos de firme namorado:

- «Que contos poderemos ter milhores,

Pera passar o tempo, que de amores?»

- «Não é (disse Veloso) cousa justa

Tratar branduras em tanta aspereza,

Que o trabalho do mar, que tanto custa,

Não sofre amores nem delicadeza;

Antes de guerra, férvida e robusta

A nossa história seja, pois dureza

Nossa vida há-de ser, segundo entendo,

Que o trabalho por vir mo está dizendo.»

Consentem nisto todos, e encomendam

A Veloso que conte isto que aprova.

- «Contarei (disse) sem que me aprendam

De contar cousa fabulosa ou nova;

E por que os que me ouvirem daqui reprendam ,

A fazer feitos grandes de alta prova,

Dos nacidos direi na nossa terra,

E estes sejam os Doze de Inglaterra.

«No tempo que do Reino a rédea leve,

João, filho de Pedro, moderava,

Despois que sossegado e livre o teve

Do vizinho poder, que o molestava,

Lá na grande Inglaterra, que da neve

Boreal sempre abunda, semeava

A fera Erínis dura e má cizânia,

Que lustre fosse a nossa Lusitânia.

«Entre as damas gentis da corte Inglesa

E nobres cortesãos, acaso um dia

Se levantou discórdia, em ira acesa

(Ou foi opinião, ou foi porfia).

Os cortesãos, a quem tão pouco pesa

Soltar palavras graves de ousadia,

Dizem que provarão que honras e famas

Em tais damas não há pera ser damas;

«E que se houver alguém, com lança e espada,

Que queira sustentar a parte sua,

Que eles, em campo raso ou estacada,

Lhe darão feia infâmia ou morte crua.

A feminil fraqueza, pouco usada,

Ou nunca, a opróbrios tais, vendo-se nua

De forças naturais convenientes,

Socorro pede a amigos e parentes.

«Mas, como fossem grandes e possantes

No reino os inimigos, não se atrevem

Nem parentes, nem férvidos amantes,

A sustentar as damas, como devem.

Com lágrimas fermosas, e bastantes

A fazer que em socorro os Deuses levem

De todo o Céu, por rostos de alabastro,

Se vão todas ao Duque de Alencastro.

«Era este Ingrês potente e militara

Cos Portugueses já contra Castela,

Onde as forças magnânimas provara

Dos companheiros, e benigna estrela.

Não menos nesta terra exprimentara

Namorados afeitos, quando nela

A filha viu, que tanto o peito doma

Do forte Rei que por mulher a toma.

«Este, que socorrer-lhe não queria

Por não causar discórdias intestinas,

Lhe diz: - «Quando o direito pretendia

Do Reino lá das terras Iberinas,

Nos Lusitanos vi tanta ousadia,

Tanto primor e partes tão divinas,

Que eles sós poderiam, se não erro,

Sustentar vossa parte a fogo e ferro;

«E se, agravadas damas, sois servidas,

Por vós lhe mandarei embaixadores,

Que, por cartas discretas e polidas,

De vosso agravo os façam sabedores;

Também, por vossa parte, encarecidas

Com palavras d~ afagos e d, amores

Lhe sejam vossas lágrimas, que eu creio

Que ali tereis socorro e forte esteio. »

«Destarte as aconselha o Duque experto

E logo lhe nomeia doze fortes;

E por que cada dama um tenha certo,

Lhe manda que sobre eles lancem sortes,

Que elas só doze são; e descoberto

Qual a qual tem caído das consortes,

Cad'~ ua escreve ao seu, por vários modos,

E todas a seu Rei, e o Duque a todos.

«Já chega a Portugal o mensageiro,

Toda a corte alvoroça a novidade;

Quisera o Rei sublime ser primeiro,

Mas não lho sofre a régia Majestade.

Qualquer dos cortesãos aventureiro

Deseja ser, com férvida vontade,

E só fica por bem-aventurado

Quem já vem pelo Duque nomeado.

«Lá na leal cidade donde teve

Origem (como é fama) o nome eterno

De Portugal, armar madeiro leve

Manda o que tem o leme do governo.

Apercebem-se os doze, em tempo breve,

D'armas e roupas de uso mais moderno,

De elmos, cimeiras, letras e primores,

Cavalos, e concertos de mil cores.

«Já do seu Rei tomado têm licença,

Pera partir do Douro celebrado,

Aqueles que escolhidos por sentença

Foram do Duque Inglês exprimentado.

Não há na companhia diferença

De cavaleiro, destro ou esforçado;

Mas um só, que Magriço se dizia,

Destarte fala à forte companhia:

- «Fortíssimos consócios, eu desejo

Há muito já de andar terras estranhas,

Por ver mais águas que as do Douro e Tejo,

Várias gentes e leis e várias manhas.

Agora que aparelho certo vejo,

(Pois que do mundo as cousas são tamanhos)

Quero, se me deixais, ir só por terra,

Porque eu serei convosco em Inglaterra.

«E quando caso for que eu, impedido

Por Quem das cousas é última linha,

Não for convosco ao prazo instituído,

Pouca falta vos faz a falta minha:

Todos por mi fareis o que é devido.

Mas, se a verdade o esprito me adivinha,

Rios, montes, Fortuna ou sua enveja

Não farão que eu convosco lá não seja.»

«Assi diz e, abraçados os amigos

E tomada licença, enfim se parte.

Passa Lião, Castela, vendo antigos

Lugares que ganhara o pátrio Marte;

Navarra, cos altíssimos perigos

Do Perineu, que Espanha e Gália parte.

Vistas, enfim, de França as cousas grandes,

No grande empório foi parar de Frandes.

«Ali chegado, ou fosse caso ou manha,

Sem passar se deteve muitos dias.

Mas dos onze a ilustríssima companha

Cortam do Mar do Norte as ondas frias;

Chegados de Inglaterra à costa de estranha,

Pera de Londres já fazem todos vias;

Do Duque são com festas agasalhados

E das damas servidos e amimados.

«Chega-se o prazo e dia assinalado

De entrar em campo já cos doze Ingleses,

Que pelo Rei já tinham segurado;

Armam-se d'elmos, grevas e de arneses.

Já as damas têm por si, fulgente e armado,

O Mavorte feroz dos Portugueses;

Vestem-se elas de cores e de sedas,

De ouro e de jóias mil, ricas e ledas.

«Mas aquela a quem fora em sorte dado

Magriço, que não vinha, com tristeza

Se veste, por não ter quem nomeado

Seja seu cavaleiro nesta empresa;

Bem que os onze apregoam que acabado

Será o negócio assi na corte Inglesa,

Que as damas vencedoras se conheçam,

Posto que dous e três dos seus faleçam.

«Já num sublime e púbrico teatro

Se assenta o Rei Inglês com toda a corte:

Estavam três e três e quatro e quatro,

Bem como a cada qual coubera em sorte;

Não são vistos do Sol, do Tejo ao Batro,

De força, esforço e d'ânimo mais forte,

Outros doze sair, como os Ingleses,

No campo. contra os onze Portugueses.

«Mastigam os cavalos, escumando,

Os áureos freios, com feroz sembrante;

Estava o Sol nas armas rutilando,

Como em cristal ou rígido diamante;

Mas enxerga-se, num e noutro bando,

Partido desigual e dissonante

Dos onze contra os doze; quando a gente

Começa a alvoroçar-se geralmente.

«Viram todos o rosto aonde havia

A causa principal do reboliço:

Eis entra um cavaleiro, que trazia

Armas, cavalo, ao bélico serviço;

Ao Rei e às damas fala e logo se ia

Pera os onze, que este era o grão Magriço;

Abraça os companheiros, como amigos ,

A quem não falta, certo nos perigos.

«A dama, como ouviu que este era aquele

Que vinha a defender seu nome e fama,

Se alegra e veste ali do animal de Hele,

Que a gente bruta mais que virtude ama.

Já dão sinal, e o som da tuba impele

Os belicosos ânimos, que inflama;

Picam d'esporas, largam rédeas logo,

Abaxam lanças, fere a terra fogo;

«Dos cavalos o estrépito parece

Que faz que o chão debaixo todo treme;

O coração no peito que estremece

De quem os olha, se alvoroça e teme.

Qual do cavalo voa, que não dece;

Qual, co cavalo em terra dando, geme;

Qual vermelhas as armas faz de brancas;

Qual cos penachos do elmo açouta as ancas.

«Algum dali tomou perpétuo sono

E fez da vida ao fim breve intervalo;

Correndo, algum cavalo vai sem dono,

E noutra parte o dono sem cavalo.

Cai a soberba Inglesa de seu trono,

Que dous ou três já fora vão do valo.

Os que de espada vêm fazer batalha,

Mais acham já que arnês, escudo e malha.

«Gastar palavras em contar extremos

De golpes feros, cruas estocadas,

É desses gastadores, que sabemos,

Maus do tempo, com fábulas sonhadas.

Basta, por fim do caso, que entendemos

Que com finezas altas e afamadas,

Cos nossos fica a palma da vitória

E as damas vencedoras e com glória.

«Recolhe o Duque os doze vencedores

Nos seus paços, com festas e alegria;

Cozinheiros ocupa e caçadores,

Das damas e fermosa companhia,

Que querem dar aos seus libertadores

Banquetes mil, cada hora e cada dia,

Enquanto se detêm em Inglaterra,

Até tornar à doce e cara terra.

«Mas dizem que, contudo, o grão Magriço,

Desejoso de ver as cousas grandes,

Lá se deixou ficar, onde um serviço

Notável à Condessa fez de Frandes;

E, como quem não era já noviço

Em todo trance onde tu, Marte, mandes,

Um Francês mata em campo, que o destino

Lá teve de Torcato e de Corvino.

«Outro também dos doze em Alemanha

Se lança e teve um fero desafio

Cum Germano enganoso, que, com manha

Não devida, o quis pôr no extremo fio.»

Contando assi Veloso, já a companha

Lhe pede que não faça tal desvio

Do caso de Magriço e vencimento,

Nem deixe o de Alemanha em esquecimento.

Mas neste passo, assi prontos estando,

Eis o mestre, que olhando os ares anda,

O apito toca: acordam, despertando,

Os marinheiros düa e doutra banda.

E, porque o vento vinha refrescando,

Os traquetes das gáveas tomar manda.

- «Alerta (disse) estai, que o vento crece

Daquela nuvem negra que aparece! »

Não eram os traquetes bem tomados,

Quando dá a grande e súbita procela.

- «Amaina (disse o mestre a grandes brados),

Amaina (disse), amaina a grande vela!»

Não esperam os ventos indinados

Que amainassem, mas, juntos dando nela,

Em pedaços a fazem cum ruído

Que o Mundo pareceu ser destruído!

O céu fere com gritos nisto a gente,

Cum súbito temor e desacordo;

Que, no romper da vela, a nau pendente

Toma grão suma d'água pelo bordo.

- «Alija (disse o mestre rijamente),

Alija tudo ao mar, não falte acordo!

Vão outros dar à bomba, não cessando;

À bomba, que nos imos alagando!»

Correm logo os soldados animosos

A dar à bomba; e, tanto que chegaram,

Os balanços que os mares temerosos

Deram à nau, num bordo os derribaram.

Três marinheiros, duros e forçosos,

A menear o leme não bastaram;

Talhas lhe punham, düa e doutra parte,

Sem aproveitar dos homens força e arte.

Os ventos eram tais que não puderam

Mostrar mais força d'ímpeto cruel,

Se pera derribar então vieram fortíssima

Torre de Babel, os altíssimos mares, que creceram,

A pequena grandura dum batel

Mostra a possante nau, que move espanto,

Vendo que se sustém nas ondas tanto.

A nau grande, em que vai Paulo da Gama,

Quebrado leva o masto pelo meio,

Quási toda alagada; a gente chama

Aquele que a salvar o mundo veio.

Não menos gritos vãos ao ar derrama

Toda a nau de Coelho, com receio,

Conquanto teve o mestre tanto tento

Que primeiro amainou que desse o vento.

Agora sobre as nuvens os subiam

As ondas de Neptuno furibundo;

Agora a ver parece que deciam

As íntimas entranhas do Profundo.

Noto, Austro, Bóreas, Áquilo, queriam

Arruinar a máquina do Mundo;

A noite negra e feia se alumia

Cos raios em que o Pólo todo ardia!

As Alciónias aves triste canto

Junto da costa brava levantaram,

Lembrando-se de seu passado pranto,

Que as furiosas águas lhe causaram.

Os delfins namorados, entretanto,

Lá nas covas marítimas entraram,

Fugindo à tempestade e ventos duros,

Que nem no fundo os deixa estar seguros.

Nunca tão vivos raios fabricou

Contra a fera soberba dos Gigantes

O grão ferreiro sórdido que obrou

Do enteado as armas radiantes;

Nem tanto o grão Tonante arremessou

Relâmpados ao mundo, fulminantes,

No grão dilúvio donde sós viveram

Os dous que em gente as pedras converteram.

Quantos montes, então, que derribaram

As ondas que batiam denodadas!

Quantas árvores velhas arrancaram

Do vento bravo as fúrias indinadas!

As forçosas raízes não cuidaram

Que nunca pera o céu fossem viradas

Nem as fundas areias que pudessem

Tanto os mares que em cima as revolvessem.

Vendo Vasco da Gama que tão perto

Do fim de seu desejo se perdia,

Vendo ora o mar até o Inferno aberto,

Ora com nova fúria ao Céu subia,

Confuso de temor, da vida incerto,

Onde nenhum remédio lhe valia,

Chama aquele remédio santo e forte

Que o impossíbil pode, desta sorte:

- «Divina Guarda, angélica, celeste,

Que os céus, o mar e terra senhoreias:

Tu, que a todo Israel refúgio deste

Por metade das águas Eritreias;

Tu, que livraste Paulo e defendeste

Das Sirtes arenosas e ondas feias,

E, guardaste, cos filhos, o segundo

Povoador do alagado e vácuo mundo:

«Se tenho novos medos perigosos

Doutra Cila e Caríbdis já passados,

Outras Sirtes e baxos arenosos,

Outros Acroceráunios infamados;

No fim de tantos casos trabalhosos,

Porque somos de Ti desempatados,

Se este nosso trabalho não te ofende,

Mas antes teu serviço só pretende?

«Oh ditosos aqueles que puderam

Entre as agudas lanças Africanas

Morrer, enquanto fortes sustiveram

A santa Fé nas terras Mauritanas;

De quem feitos ilustres se souberam,

De quem ficam memórias soberanas,

De quem se ganha a vida com perdê-la,

Doce fazendo a morte as honras dela!»

Assi dizendo, os ventos, que lutam

Como touros indómitos, bramando,

Mais e mais a tormenta acrecentavam,

Pela miúda enxárcia assoviando.

Relâmpados medonhos não cessavam,

Feros trovões, que vêm representando

Cair o Céu dos eixos sobre a Terra,

Consigo os Elementos terem guerra.

Mas já a amorosa Estrela cintilava

Diante do Sol claro, no horizonte,

Mensageira do dia, e visitava

A terra e o largo mar, com leda fronte.

A Deusa que nos Céus a governava,

De quem foge o ensífero Orionte,

Tanto que o mar e a cara armada vira,

Tocada junto foi de medo e de ira.

- «Estas obras de Baco são, por certo

(Disse), mas não será que avante leve

Tão danada tenção, que descoberto

Me será sempre o mal a que se atreve.»

Isto dizendo, dece ao mar aberto,

No caminho gastando espaço breve,

Enquanto manda as Ninfas amorosas

Grinaldas nas cabeças pôr de rosas.

Grinaldas manda pôr de várias cores

Sobre cabelos louros a porfia.

Quem não dirá que nacem roxas flores

Sobre ouro natural, que Amor enfia?

Abrandar determina, por amores,

Dos ventos a nojosa companhia,

Mostrando-lhe as amadas Ninfas belas,

Que mais fermosas vinham que as estrelas.

Assi foi; porque, tanto que chegaram

À vista delas, logo lhe falecem

As forças com que dantes pelejaram,

E já como rendidos lhe obedecem;

Os pés e mãos parece que lhe ataram

Os cabelos que os raios escurecem.

A Bóreas, que do peito mais queria,

Assi disse a belíssima Oritia:

- «Não creias, fero Bóreas, que te creio

Que me tiveste nunca amor constante,

Que brandura é de amor mais certo arreio

E não convém furor a firme amante.

Se já não pões a tanta insânia freio,

Não esperes de mi, daqui em diante,

Que possa mais amar-te, mas temer-te;

Que amor, contigo, em medo se converte.»

Assi mesmo a fermosa Galateia

Dizia ao fero Noto, que bem sabe

Que dias há que em vê-la se recreia,

E bem crê que com ele tudo acabe.

Não sabe o bravo tanto bem se o creia,

Que o coração no peito lhe não cabe;

De contente de ver que a dama o manda,

Pouco cuida que faz, se logo abranda.

Desta maneira as outras amansavam

Subitamente os outros amadores;

E logo à linda Vénus se entregavam,

Amansadas as iras e os furores.

Ela lhe prometeu, vendo que amavam,

Sempiterno favor em seus amores,

Nas belas mãos tomando-lhe homenagem

De lhe serem leais esta viagem.

Já a manhã clara dava nos outeiros

Por onde o Ganges murmurando soa,

Quando da celsa gávea os marinheiros

Enxergaram terra alta, pela proa.

Já fora de tormenta e dos primeiros

Mares, o temor vão do peito voa.

Disse alegre o piloto Melindano:

- «Terra é de Calecu, se não me engano.

«Esta é, por certo, a terra que buscais

Da verdadeira Índia, que aparece;

E se do mundo mais não desejais,

Vosso trabalho longo aqui fenece.»

Sofrer aqui não pôde o Gama mais,

De ledo em ver que a terra se conhece;

Os giolhos no chão, as mãos ao Céu,

A mercê grande a Deus agardeceu.

As graças a Deus dava, e razão tinha,

Que não somente a terra lhe mostrava

Que, com tanto temor, buscando vinha,

Por quem tanto trabalho exprimentava,

Mas via-se livrado, tão asinha,

Da morte, que no mar lhe aparelhava

O vento duro, férvido e medonho,

Como quem despertou de horrendo sonho.

Por meio destes hórridos perigos,

Destes trabalhos graves e temores,

Alcançam os que são de fama amigos

As honras imortais e graus maiores;

Não encostados sempre nos antigos

Troncos nobres de seus antecessores;

Não nos leitos dourados, entre os finos

Animais de Moscóvia zibelinos;

Não cos manjares novos e esquisitos,

Não cos passeios moles e ouciosos,

Não cos vários deleites e infinitos,

Que afeminam os peitos generosos;

Não cos nunca vencidos apetitos,

Que a Fortuna tem sempre tão mimosos,

Que não sofre a nenhum que o passo mude

Pera algüa obra heróica de virtude;

Mas com buscar, co seu forçoso braço,

As honras que ele chame próprias suas;

Vigiando e vestindo o forjado aço,

Sofrendo tempestades e ondas cruas,

Vencendo os torpes frios no regaço

Do Sul, e regiões de abrigo nuas,

Engolindo o corrupto mantimento

Temperado com um árduo sofrimento;

E com forçar o rosto, que se enfia,

A parecer seguro, ledo, inteiro,

Pera o pelouro ardente que assovia

E leva a perna ou braço ao companheiro.

Destarte o peito um calo honroso cria,

Desprezador das honras e dinheiro,

Das honras e dinheiro que a ventura

Forjou, e não virtude justa e dura.

Destarte se esclarece o entendimento,

Que experiências fazem repousado,

E fica vendo, como de alto assento,

O baxo trato humano embaraçado.

Este, onde tiver força o regimento

Direito e não de afeitos ocupado,

Subirá (como deve) a ilustre mando,

Contra vontade sua, e não rogando.

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Canto VII

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Á se viam chegados junto à terra

Que desejada já de tantos fora,

Que entre as correntes Indicas se encerra

E o Ganges, que no Céu terreno mora.

Ora sus, gente forte, que na guerra

Quereis levar a palma vencedora:

Já sois chegados, já tendes diante

A terra de riquezas abundante!

A vós, ó geração de Luso, digo,

Que tão pequena parte sois no mundo,

Não digo inda no mundo, mas no amigo

Curral de Quem governa o Céu rotundo;

Vós, a quem não somente algum perigo

Estorva conquistar o povo imundo,

Mas nem cobiça ou pouca obediência

Da Madre que nos Céus está em essência;

Vós, Portugueses, poucos quanto fortes,

Que o fraco poder vosso não pesais;

Vós, que, à custa de vossas várias mortes,

A lei da vida eterna dilatais:

Assi do Céu deitadas são as sortes

Que vós, por muito poucos que sejais,

Muito façais na santa Cristandade.

Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!

Vede'los Alemães, soberbo gado,

Que por tão largos campos se apacenta;

Do sucessor de Pedro rebelado,

Novo pastor e nova seita inventa;

Vede'lo em feias guerras ocupado,

Que inda co cego error se não contenta,

Não contra o superbíssimo Otomano,

Mas por sair do jugo soberano.

Vede'lo duro Inglês, que se nomeia

Rei da velha e santíssima Cidade,

Que o torpe Ismaelita senhoreia

(Quem viu honra tão longe da verdade?),

Entre as Boreais neves se recreia,

Nova maneira faz de Cristandade:

Pera os de Cristo tem a espada nua,

Não por tomar a terra que era sua.

Guarda-lhe, por entanto, um falso Rei

A cidade Hierosólima terreste,

Enquanto ele não guarda a santa Lei

Da cidade Hierosólima celeste.

Pois de ti, Galo indino, que direi?

Que o nome «Cristianíssimo» quiseste,

Não pera defendê-lo nem guardá-lo,

Mas pera ser contra ele e derribá-lo!

Achas que tens direito em senhorios

De Cristãos, sendo o teu tão largo e tanto,

E não contra o Cinífio e Nilo rios,

Inimigos do antigo nome santo?

Ali se hão-de provar da espada os fios

Em quem quer reprovar da Igreja o canto.

De Carlos, de Luís, o nome e a terra

Herdaste, e as causas não da justa guerra?

Pois que direi daqueles que em delícias,

Que o vil ócio no mundo traz consigo,

Gastam as vidas, logram as divícias,

Esquecidos do seu valor antigo?

Nascem da tirania inimicícias,

Que o povo forte tem, de si inimigo.

Contigo, Itália, falo, já sumersa

Em vícios mil, e de ti mesma adversa.

Ó míseros Cristãos, pola ventura

Sois os dentes, de Cadmo desparzidos,

Que uns aos outros se dão à morte dura,

Sendo todos de um ventre produzidos?

Não vedes a divina Sepultura

Possuída de Cães, que, sempre unidos,

Vos vêm tomar a vossa antiga terra,

Fazendo-se famosos pela guerra?

Vedes que têm por uso e por decreto,

Do qual são tão inteiros observantes,

Ajuntarem o exército inquieto

Contra os povos que são de Cristo amantes;

Entre vós nunca deixa a fera Aleto

De samear cizânias repugnantes.

Olhai se estais seguros de perigos,

Que eles, e vós, sois vossos inimigos.

Se cobiça de grandes senhorios

Vos faz ir conquistar terras alheias,

Não vedes que Pactolo e Hermo rios

Ambos volvem auríferas areias?

Em Lídia, Assíria, lavram de ouro os fios;

África esconde em si luzentes veias;

Mova-vos já, sequer, riqueza tanta,

Pois mover-vos não pode a Casa Santa.

Aquelas invenções, feras e novas,

De instrumentos mortais da artelharia

Já devem de fazer as duras provas

Nos muros de Bizâncio e de Turquia.

Fazei que torne lá às silvestres covas

Dos Cáspios montes e da Cítia fria

A Turca geração, que multiplica

Na polícia da vossa Europa rica.

Gregos, Traces, Arménios, Georgianos,

Bradando vos estão que o povo bruto

Lhe obriga os caros filhos aos profanos

Preceptos do Alcorão (duro tributo!).

Em castigar os feitos inumanos

Vos gloriai de peito forte e astuto,

E não queirais louvores arrogantes

De serdes contra os vossos mui possantes.

Mas, entanto que cegos e sedentos

Andais de vosso sangue, ó gente insana,

Não faltarão Cristãos atrevimentos

Nesta pequena casa Lusitana:

De Africa tem marítimos assentos;

É na Ásia mais que todas soberana;

Na quarta parte nova os campos ara;

E, se mais mundo houvera, lá chegara.

E vejamos, entanto, que acontece

Àqueles tão famosos navegantes,

Despois que a branda Vénus enfraquece

O furor vão dos ventos repugnantes;

Despois que a larga terra lhe aparece,

Fim de suas perfias tão constantes,

Onde vem samear de Cristo a lei

E dar novo costume e novo Rei.

Tanto que à nova terra se chegaram,

Leves embarcações de pescadores

Acharam, que o caminho lhe mostraram

De Calecu, onde eram moradores.

Pera lá logo as proas se inclicaram,

Porque esta era a cidade, das milhores

Do Malabar, milhor, onde vivia

O Rei que a terra toda possuía.

Além do Indo jaz e aquém do Gange

Um terreno mui grande e assaz famoso

Que pela parte Austral o mar abrange

E pera o Norte o Emódio cavernoso.

Jugo de Reis diversos o constrange

A várias leis: alguns o vicioso

Mahoma, alguns os Ídolos adoram,

Alguns os animais que entre eles moram.

Lá bem no grande monte que, cortando

Tão larga terra, toda Ásia discorre,

Que nomes tão diversos vai tomando

Segundo as regiões por onde corre,

As fontes saem donde vêm manando

Os rios cuja grão corrente morre

No mar Índico, e cercam todo o peso

Do terreno, fazendo-o quersoneso.

Entre um e o outro rio, em grande espaço

Sai da larga terra üa longa ponta,

Quási piramidal, que, no regaço

Do mar, com Ceilão ínsula confronta;

E junto donde nasce o largo braço

Gangético, o rumor antigo conta

Que os vizinhos, da terra moradores,

Do cheiro se mantêm das finas flores.

Mas agora, de nomes e de usança

Novos e vários são os habitantes:

Os Deliis, os Patanes, que em possança

De terra e gente, são mais abundantes;

Decanis, Oriás, que a esperança

Têm de sua salvação nas ressonantes

Águas do Gange; e a terra de Bengala,

Fértil de sorte que outra não lhe iguala;

O Reino de Cambaia belicoso

(Dizem que foi de Poro, Rei potente);

O Reino de Narsinga, poderoso

Mais de ouro e pedras que de forte gente.

Aqui se enxerga, lá do mar undoso,

Um monte alto, que corre longamente,

Servindo ao Malabar de forte muro,

Com que do Canará vive seguro.

Da terra os naturais Ihe chamam Gate,

Do pé do qual, pequena quantidade,

Se estende üa fralda estreita, que combate

Do mar a natural ferocidade.

Aqui de outras cidades, sem debate,

Calecu tem a ilustre dignidade

De cabeça de Império, rica e bela;

Samorim se intitula o senhor dela.

Chegada a frota ao rico senhorio,

Um Português, mandado, logo parte

A fazer sabedor o Rei gentio

Da vinda sua a tão remota parte.

Entrando o mensageiro pelo rio

Que ali nas ondas entra, a não vista arte,

A cor, o gesto estranho, o trajo novo,

Fez concorrer a vê-lo todo o povo.

Entre a gente que a vê-lo concorria,

Se chega um Mahometa, que nascido

Fora na região da Berberia,

Lá onde fora Anteu obedecido.

(Ou, pela vezinhança, já teria

O Reino Lusitano conhecido,

Ou foi já assinalado de seu ferro;

Fortuna o trouxe a tão longo desterro).

Em vendo o mensageiro, com jocundo

Rosto, como quem sabe a língua Hispana,

Lhe disse: - « Quem te trouxe a estoutro mundo,

Tão longe da tua pátria Lusitana?»

- «Abrindo (lhe responde) o mar profundo

Por onde nunca veio gente humana;

Vimos buscar do Indo a grão corrente,

Por onde a Lei divina se acrecente.»

Espantado ficou da grão viagem

O Mouro, que Monçaide se chamava,

Ouvindo as opressões que na passagem

Do mar o Lusitano lhe contava.

Mas vendo, enfim, que a força da mensagem

Só pera o Rei da terra relevava,

Lhe diz que estava fora da cidade,

Mas de caminho pouca quantidade;

E que, entanto que a nova lhe chegasse

De sua estranha vinda, se queria,

Na sua pobre casa repousasse

E do manjar da terra comeria;

E despois que se um pouco recreasse,

Co ele pera a armada tornaria,

Que alegria não pode ser tamanha

Que achar gente vizinha em terra estranha.

O Português aceita de vontade

O que o ledo Monçaide lhe oferece;

Como se longa fora já a amizade,

Co ele come e bebe e lhe obedece.

Ambos se tornam logo da cidade

Pera a frota, que o Mouro bem conhece.

Sobem à capitaina, e toda a gente

Monçaide recebeu benignamente.

O Capitão o abraça, em cabo ledo,

Ouvindo clara a língua de Castela;

Junto de si o assenta e, pronto e quedo,

Pela terra pergunta e cousas dela.

Qual se ajuntava em Ródope o arvoredo,

Só por ouvir o amante da donzela

Eurídice, tocando a lira de ouro,

Tal a gente se ajunta a ouvir o Mouro.

Ele começa: - «Ó gente, que a Natura

Vizinha fez de meu paterno ninho,

Que destino tão grande ou que ventura

Vos trouxe a cometerdes tal caminho?

Não é sem causa, não, oculta e escura,

Vir do longinco Tejo e ignoto Minho,

Por mares nunca doutro lenho arados,

A Reinos tão remotos e apartados.

«Deus, por certo, vos traz, porque pretende

Algum serviço seu por vós obrado;

Por isso só vos guia e vos defende

Dos imigos, do mar, do vento irado.

Sabei que estais na Índia, onde se estende

Diverso povo, rico e prosperado

De ouro luzente e fina pedraria

Cheiro suave, ardente especiaria.

«Esta província, cujo porto agora

Tomado tendes, Malabar se chama;

Do culto antigo os Ídolos adora,

Que cá por estas partes se derrama;

De diversos Reis é, mas dum só fora

Noutro tempo, segundo a antiga fama:

Saramá Perimal foi derradeiro

Rei que este Reino teve unido e inteiro.

«Porém, como a esta terra então viessem

De lá do seio Arábico outras gentes

Que o culto Mahomético trouxessem,

No qual me instituíram meus parentes,

Sucedeu que, pregando, convertessem

O Perimal; de sábios e eloquentes,

Fazem-lhe a Lei tomar com fervor tanto

Que pros[s]upôs de nela morrer santo.

«Naus arma e nelas mete, curioso,

Mercadoria que ofereça, rica,

Pera ir nelas a ser religioso

Onde o Profeta jaz que a Lei pubrica.

Antes que parta, o Reino poderoso

Cos seus reparte, porque não lhe fica

Herdeiro próprio; faz os mais aceitos

Ricos, de pobres; livres, de sujeitos.

«A um Cochim e a outro Cananor,

A qual Chale, a qual a Ilha da Pimenta,

A qual Coulão, a qual dá Cranganor,

E os mais, a quem o mais serve e contenta.

Um só moço, a quem tinha muito amor,

Despois que tudo deu, se lhe apresenta:

Pera este Calecu sòmente fica,

Cidade já por trato nobre e rica.

«Esta lhe dá, co título excelente

De Emperador, que sobre os outros mande.

Isto feito, se parte diligente

Pera onde em santa vida acabe e ande.

E daqui fica o nome de potente

Çamori, mais que todos dino e grande,

Ao moço e descendentes, donde vem

Este que agora o Império manda e tem.

«A Lei da gente toda, rica e pobre,

De fábulas composta se imagina.

Andam nus e somente um pano cobre

As partes que a cobrir Natura ensina.

Dous modos há de gente, porque a nobre

Naires chamados são, e a menos dina

Poleás tem por nome, a quem obriga

A lei não mesturar a casta antiga;

«Porque os que usaram sempre um mesmo ofício,

De outro não podem receber consorte;

Nem os filhos terão outro exercício

Senão o de seus passados, até morte.

Pera os Naires é, certo, grande vício

Destes serem tocados; de tal sorte

Que, quando algum se toca porventura,

Com cerimónias mil se alimpa e apura.

«Desta sorte o Judaico povo antigo

Não tocava na gente de Samária.

Mais estranhezas inda das que digo

Nesta terra vereis de usança vária.

Os Naires sós são dados ao perigo

Das armas; sós defendem da contrária

Banda o seu Rei, trazendo sempre usada

Na esquerda a adarga e na direita a espada.

«Brâmenes são os seus religiosos,

Nome antigo e de grande preminência;

Observam os preceitos tão famosos

Dum que primeiro pôs nome à ciência;

Não matam cousa viva e, temerosos,

Das carnes têm grandíssima abstinência.

Somente no Venéreo ajuntamento

Têm mais licença e menos regimento.

«Gerais são as mulheres, mas somente

Pera os da geração de seus maridos

(Ditosa condição, ditosa gente,

Que não são de ciúmes ofendidos!)

Estes e outros costumes vàriamente

São pelos Malabares admitidos.

A terra é grossa em trato, em tudo aquilo

Que as ondas podem dar, da China ao Nilo.»

Assi contava o Mouro; mas vagando

Andava a fama já pela cidade

Da vinda desta gente estranha, quando

O Rei saber mandava da verdade.

Já vinham pelas ruas caminhando,

Rodeados de todo sexo e idade,

Os principais que o Rei buscar mandara

O Capitão da armada que chegara.

Mas ele, que do Rei já tem licença

Pera desembarcar, acompanhado

Dos nobres Portugueses, sem detença

Parte, de ricos panos adornado

Das cores a fermosa diferença

A vista alegra ao povo alvoroçado;

O remo compassado fere frio

Agora o mar, despois o fresco rio.

Na prata um regedor do Reino estava

Que, na sua língua, «Catual» se chama,

Rodeado de Naires, que esperava

Com desusada festa o nobre Gama.

Já na terra, nos braços o levava

E num portátil leito üa rica cama

Lhe oferece em que vá (costume usado),

Que nos ombros dos homens é levado.

Destarte o Malabar, destarte o Luso,

Caminham lá pera onde o Rei o espera;

Os outros Portugueses vão ao uso

Que infantaria segue, esquadra fera.

O povo que concorre vai confuso

De ver a gente estranha, e bem quisera

Perguntar; mas, no tempo já passado,

Na Torre de Babel lhe foi vedado.

O Gama e o Catual iam falando

Nas cousas que lhe o tempo oferecia;

Monçaide, entr'eles, vai interpretando

As palavras que de ambos entendia.

Assi pela cidade caminhando,

Onde üa rica fábrica se erguia

De um sumptuoso templo já chegavam,

Pelas portas do qual juntos entravam.

Ali estão das Deidades as figuras,

Esculpidas em pau e em pedra fria,

Vários de gestos, vários de pinturas,

A segundo o Demónio lhe fingia;

Vêm-se as abomináveis esculturas,

Qual a Quimera em membros se varia;

Os cristãos olhos, a ver Deus usados

Em forma humana, estão maravilhados.

Um, na cabeça cornos esculpidos,

Qual Júpiter Amon em Líbia estava;

Outro, num corpo rostos tinha unidos,

Bem como o antigo Jano se pintava;

Outro, com muitos braços divididos,

A Briareu parece que imitava;

Outro, fronte canina tem de fora,

Qual Anúbis Menfítico se adora.

Aqui feita do bárbaro Gentio

A supersticiosa adoração,

Direitos vão, sem outro algum desvio,

Pera onde estava o Rei do povo vão.

Engrossando-se vai da gente o fio

Cos que vêm ver o estranho Capitão.

Estão pelos telhados e janelas

Velhos e moços, donas e donzelas.

Já chegam perto, e não [com] passos lentos,

Dos jardins odoríferos fermosos,

Que em si escondem os régios apousentos,

Altos de torres não, mas sumptuosos;

Edificam-se os nobres seus assentos

Por entre os arvoredos deleitosos:

Assi vivem os Reis daquela gente,

No campo e na cidade juntamente.

Pelos portais da cerca a sutileza

Se enxerga da Dedálea facultade,

Em figuras mostrando, por nobreza,

Da Índia a mais remota antiguidade.

Afiguradas vão com tal viveza

As histórias daquela antiga idade,

Que quem delas tiver notícia inteira,

Pela sombra conhece a verdadeira.

Estava um grande exército, que pisa

A terra Oriental que o Idaspe lava;

Rege-o um capitão de fronte lisa,

Que com frondentes tirsos pelejava

(Por ele edificada estava Nisa

Nas ribeiras do rio que manava),

Tão próprio que, se ali estiver Semele,

Dirá, por certo, que é seu filho aquele.

Mais avante, bebendo, seca o rio

Mui grande multidão da Assíria gente,

sujeita a feminino senhorio

De üa tão bela como incontinente.

Ali tem, junto ao lado nunca frio,

Esculpido o feroz ginete ardente

Com quem teria o filho competência.

Amor nefando, bruta incontinência!

Daqui mais apartadas, tremulavam

As bandeiras de Grécia gloriosas

(Terceira Monarquia), e sojugavam

Até as águas Gangéticas undosas.

Dum capitão mancebo se guiavam,

De palmas rodeado valerosas,

Que já não de Filipo, mas, sem falta

De progénie de Júpiter se exalta.

Os Portugueses vendo estas memórias,

Dizia o Catual ao Capitão:

- «Tempo cedo virá que outras vitórias

Estas que agora olhais abaterão;

Aqui se escreverão novas histórias

Por gentes estrangeiras que virão;

Que os nossos sábios magos o alcançaram

Quando o tempo futuro especularam.

«E diz-lhe mais a mágica ciência

Que, pera se evitar força tamanho,

Não valerá dos homens resistência,

Que contra o Céu não val da gente manha;

Mas também diz que a bélica excelência,

Nas armas e na paz, da gente estranha

Será tal, que será no mundo ouvido

O vencedor por glória do vencido».

Assi falando, entravam já na sala

Onde aquele potente Emperador

Nüa camilha jaz, que não se iguala

De outra algüa no preço e no lavor.

No recostado gesto se assinala

Um venerando e próspero senhor;

Um pano de ouro cinge, e na cabeça

De preciosas gemas se adereça.

Bem junto dele, um velho reverente,

Cos giolhos no chão, de quando em quando

Lhe dava a verde folha da erva ardente,

Que a seu costume estava ruminando.

Um Brâmene, pessoa preminente,

Pera o Gama vem com passo brando,

Pera que ao grande Príncipe o apresente,

Que diante lhe acena que se assente.

Sentado o Gama junto ao rico leito,

Os seus mais afastados, pronto em vista

Estava o Samori no trajo e jeito

Da gente, nunca de antes dele vista.

Lançando a grave voz do sábio peito,

Que grande autoridade logo aquista

Na opinião do Rei e do povo todo,

O Capitão lhe fala deste modo:

- «Um grande Rei, de lá das partes onde

O Céu volúbil, com perpétua roda,

Da terra a luz solar co a Terra esconde,

Tingindo, a que deixou, de escura noda,

Ouvindo do rumor que lá responde

O eco, como em ti da Índia toda

O principado está e a majestade,

Vínculo quer contigo de amizade.

«E por longos rodeios a ti manda

Por te fazer saber que tudo aquilo

Que sobre o mar, que sobre as terras anda,

De riquezas, de lá do Tejo ao Nilo,

E desd'a fria plaga de Gelanda

Até bem donde o Sol não muda o estilo

Nos dias, sobre a gente de Etiópia,

Tudo tem no seu Reino em grande cópia.

«E se queres, com pactos e lianças

De paz e de amizade, sacra e nua,

Comércio consentir das abondanças

Das fazendas da terra sua e tua,

Por que creçam as rendas e abastanças

(Por quem a gente mais trabalha e sua)

De vossos Reinos, será certamente

De ti proveito, e dele glória ingente.

«E sendo assi que o nó desta amizade

Entre vós firmemente permaneça,

Estará pronto a toda adversidade

Que por guerra a teu Reino se ofereça,

Com gente, armas e naus, de qualidade

Que por irmão te tenha e te conheça;

E da vontade em ti sobr'isto posta

Me dês a mi certíssima resposta.»

Tal embaxada dava o Capitão,

A quem o Rei gentio respondia

Que, em ver embaxadores de nação

Tão remota, grão glória recebia;

Mas neste caso a última tenção

Com os de seu conselho tomaria,

Informando-se certo de quem era

O Rei e a gente e terra que dissera;

E que, entanto, podia do trabalho

Passado ir repousar; e em tempo breve

Daria a seu despacho um justo talho,

Com que a seu Rei reposta alegre leve.

Já nisto punha a noite o usado atalho

Ás humanas canseiras, por que ceve

De doce sono os membros trabalhados,

Os olhos ocupando, ao ócio dados.

Agasalhados foram juntamente

O Gama e Portugueses no apousento

Do nobre Regedor da Indica gente,

Com festas e geral contentamento.

O Catual, no cargo diligente

De seu Rei, tinha já por regimento

Saber da gente estranha donde vinha,

Que costumes, que lei, que terra tinha.

Tanto que os ígneos carros do fermoso

Mancebo Délio viu, que a luz renova,

Manda chamar Monçaide, desejoso

De poder-se informar da gente nova.

Já lhe pergunta, pronto e curioso,

Se tem notícia inteira e certa prova

Dos estranhos, quem são; que ouvido tinha

Que é gente de sua pátria mui vizinha;

Que particularmente ali lhe desse

Informação mui larga, pois fazia

Nisso serviço ao Rei, por que soubesse

O que neste negócio se faria

Monçaide torna: - «posto que eu quisesse

Dizer-te disto mais, não saberia;

Sòmente sei que é gente lá de Espanha,

Onde o meu ninho e o Sol no mar se banha.

«Tem a lei dum Profeta que gerado

Foi sem fazer na carne detrimento

Da mãe, tal que por bafo está aprovado

Do Deus que tem do Mundo o regimento.

O que entre meus antigos é vulgado

Deles, é que o valor sanguinolento

Das armas no seu braço resplandece,

O que em nossos passados se parece.

«Porque eles, com virtude sobre-humana,

Os deitaram dos campos abundosos

Do rico Tejo e fresca Guadiana,

Com feitos memoráveis e famosos;

E não contentes inda, e na Africana

Parte, cortando os mares procelosos,

Nos não querem deixar viver seguros,

Tomando-nos cidades e altos muros.

«Não menos têm mostrado esforço e manha

Em quaisquer outras guerras que aconteçam,

Ou das gentes belígeras de Espanha,

Ou lá dalguns que do Pirene deçam.

Assi que nunca, enfim, com lança estranha

Se tem que por vencidos se conheçam;

Nem se sabe inda, não, te afirmo e asselo

Pera estes Anibais nenhum Marcelo.

«E s'esta informação não for inteira

Tanto quanto convém, deles pretende

Informar-te, que é gente verdadeira,

A quem mais falsidade enoja e ofende;

Vai ver-lhe a frota, as armas e a maneira

Do fundido metal que tudo rende

E folgarás de veres a polícia

Portuguesa, na paz e na milícia.»

Já com desejos o Idolátra ardia

De ver isto que o Mouro lhe contava;

Manda esquipar batéis, que ir ver queria

Os lenhos em que o Gama navegava.

Ambos partem da praia, a quem seguia

A Naira geração, que o mar coalhava;

À capitaina sobem, forte e bela,

Onde Paulo os recebe a bordo dela.

Purpúreos são os toldos, e as bandeiras

Do rico fio são que o bicho gera;

Nelas estão pintadas as guerreiras

Obras que o forte braço já fizera;

Batalhas têm campais aventureiras,

Desafios cruéis, pintura fera,

Que, tanto que ao Gentio se apresenta,

A tento nela os olhos apacenta.

Pelo que vê pergunta; mas o Gama

Lhe pedia primeiro que se assente

E que aquele deleite que tanto ama

A seita Epicureia experimente.

Dos espumantes vasos se derrama

O licor que Noé mostrara à gente;

Mas comer o Gentio não pretende,

Que a seita que seguia lho defende.

A trombeta, que, em paz, no pensamento

Imagem faz de guerra, rompe os ares;

Co fogo o diabólico instrumento

se faz ouvir no fundo lá dos mares.

Tudo o Gentio nota; mas o intento

Mostrava sempre ter nos singulares

Feitos dos homens que, em retrato breve

A muda poesia ali descreve.

Alça-se em pé, co ele o Gama junto,

Coelho de outra parte e o Mauritano;

Os olhos põe no bélico trasunto

De um velho branco, aspeito venerando,

Cujo nome não pode ser defunto

Enquanto houver no mundo trato humano:

No trajo a Grega usança está perfeita;

Um ramo, por insígnia, na direita.

Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego,

Eu, que cometo, insano e temerário,

Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,

Por caminho tão árduo, longo e vário!

Vosso favor invoco, que navego

Por alto mar, com vento tão contrário

Que, se não me ajudais, hei grande medo

Que o meu fraco batel se alague cedo.

Olhai que há tanto tempo que, cantando

O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,

A Fortuna me traz peregrinando,

Novos trabalhos vendo e novos danos:

Agora o mar, agora experimentando

Os perigos Mavórcios inumanos,

Qual Cánace, que à morte se condena,

Nüa mão sempre a espada e noutra a pena;

Agora, com pobreza avorrecida,

Por hospícios alheios degradado;

Agora, da esperança já adquirida,

De novo mais que nunca derribado;

Agora às costas escapando a vida,

Que dum fio pendia tão delgado

Que não menos milagre foi salvar-se

Que pera o Rei Judaico acrecentar-se.

E ainda, Ninfas minhas, não bastava

Que tamanhas misérias me cercassem,

Senão que aqueles que eu cantando andava

Tal prémio de meus versos me tornassem:

A troco dos descansos que esperava,

Das capelas de louro que me honrassem,

Trabalhos nunca usados me inventaram,

Com que em tão duro estado me deitaram.

Vede, Ninfas, que engenhos de senhores

O vosso Tejo cria valerosos,

Que assi sabem prezar, com tais favores,

A quem os faz, cantando, gloriosos!

Que exemplos a futuros escritores,

Pera espertar engenhos curiosos,

Pera porem as cousas em memória

Que merecerem ter eterna glória!

Pois logo, em tantos males, é forçado

Que só vosso favor me não faleça,

Principalmente aqui, que sou chegado

Onde feitos diversos engrandeça:

Dai-mo vós sós, que eu tenho já jurado

Que não no empregue em quem o não mereça,

Nem por lisonja louve algum subido,

Sob pena de não ser agradecido.

Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse

A quem ao bem comum e do seu Rei

Antepuser seu próprio interesse,

Imigo da divina e humana Lei.

Nenhum ambicioso que quisesse

Subir a grandes cargos, cantarei,

Só por poder com torpes exercícios

Usar mais largamente de seus vícios;

Nenhum que use de seu poder bastante

Pera servir a seu desejo feio,

E que, por comprazer ao vulgo errante,

Se muda em mais figuras que Proteio.

Nem, Camenas, também cuideis que cante

Quem, com hábito honesto e grave, veio,

Por contentar o Rei, no ofício novo,

A despir e roubar o pobre povo!

Nem quem acha que é justo e que é direito

Guardar-se a lei do Rei severamente,

E não acha que é justo e bom respeito

Que se pague o suor da servil gente;

Nem quem sempre, com pouco experto peito,

Razões aprende, e cuida que é prudente,

Pera taxar, com mão rapace e escassa,

Os trabalhos alheios que não passa.

Aqueles sós direi que aventuraram

Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida,

Onde, perdendo-a, em fama a dilataram,

Tão bem de suas obras merecida.

Apolo e as Musas, que me acompanharam,

Me dobrarão a fúria concedida,

Enquanto eu tomo alento, descansado,

Por tornar ao trabalho, mais folgado.

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Canto VIII

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a primeira figura se detinha

O Catual que vira estar pintada,

Que por divisa um ramo na mão tinha,

A barba branca, longa e penteada.

Quem era e por que causa lhe convinha

A divisa que tem na mão tomada?

Paulo responde, cuja voz discreta

O Mauritano sábio lhe interpreta:

- «Estas figuras todas que aparecem,

Bravos em vista e feros nos aspeitos,

Mais bravos e mais feros se conhecem,

Pela fama, nas obras e nos feitos.

Antigos são, mas inda resplandecem

Co nome, entre os engenhos mais perfeitos.

Este que vês, é Luso, donde a Fama

O nosso Reino «Lusitânia» chama.

«Foi filho e companheiro do Tebano

Que tão diversas partes conquistou;

Parece vindo ter ao ninho Hispano

Seguindo as armas, que contino usou.

Do Douro, Guadiana o campo ufano,

Já dito EIísio, tanto o contentou

Que ali quis dar aos já cansados ossos

Eterna sepultura, e nome aos nossos.

«O ramo que lhe vês, pera divisa,

O verde tirso foi, de Baco usado;

O qual à nossa idade amostra e avisa

Que foi seu companheiro e filho amado.

Vês outro, que do Tejo a terra pisa,

Despois de ter tão longo mar arado,

Onde muros perpétuos edifica,

E templo a Palas, que em memória fica?

«Ulisses é, o que faz a santa casa

À Deusa que lhe dá língua facunda;

Que se lá na Ásia Tróia insigne abrasa,

Cá na Europa Lisboa ingente funda.»

- «Quem será estoutro cá, que o campo arrasa

De mortos, com presença furibunda?

Grandes batalhas tem desbaratadas,

Que as Águias nas bandeiras tem pintadas!»

Assi o Gentio diz. Responde o Gama:

- «Este que vês, pastor já foi de gado;

Viriato sabemos que se chama,

Destro na lança mais que no cajado;

Injuriada tem de Roma a fama,

Vencedor invencíbil, afamado.

Não tem com ele, não, nem ter puderam,

O primor que com Pirro já tiveram.

«Com força, não; com manha vergonhosa

A vida lhe tiraram, que os espanta;

Que o grande aperto, em gente inda que honrosa,

As vezes leis magnânimas quebranta.

Outro está aqui que, contra a pátria irosa,

Degradado, connosco se alevanta;

Escolheu bem com quem se alevantasse

Pera que eternamente se ilustrasse.

Vês, connosco também vence as bandeiras

Dessas aves de Júpiter validas;

Que já naquele tempo as mais guerreiras

Gentes de nós souberam ser vencidas.

Olha tão sutis artes e maneiras

Pera adquirir os povos, tão fingidas:

A fatídica cerva que o avisa.

Ele é Sertório, e ela a sua divisa.

«OIha estoutra bandeira, e vê pintado

O grão progenitor dos Reis primeiros:

Nós Húngaro o fazemos, porém nado

Crêm ser em Lotaríngia os estrangeiros.

Despois de ter, cos Mouros, superado

Galegos e Lioneses cavaleiros,

À Casa Santa passa o santo Henrique,

Por que o tronco dos Reis se santifique.»

- «Quem é, me dize, estoutro que me espanta

(Pergunta o Malabar maravilhado),

Que tantos esquadrões, que gente tanta,

Com tão pouca, tem roto e destroçado?

Tantos muros aspérrimos quebranta,

Tantas batalhas dá, nunca cansado,

Tantas coroas tem, por tantas partes,

A seus pés derribadas, e estandartes?»

- «Este é o primeiro Afonso (disse o Gama),

Que todo Portugal aos Mouros toma;

Por quem no Estígio lago jura a Fama

De mais não celebrar nenhum de Roma.

Este é aquele zeloso a quem Deus ama,

Com cujo braço o Mouro imigo doma,

Pera quem de seu Reino abaxa os muros,

Nada deixando já pera os futuros.

«Se César, se Alexandre Rei, tiveram

Tão pequeno poder, tão pouca gente,

Contra tantos imigos quantos eram

Os que desbaratava este excelente,

Não creias que seus nomes se estenderam

Com glórias imortais tão largamente;

Mas deixa os feitos seus inexplicáveis,

Vê que os de seus vassalos são notáveis.

«Este que vês olhar, com gesto irado,

Pera o rompido aluno mal sofrido,

Dizendo-lhe que o exército espalhado

Recolha, e torne ao campo defendido;

Torna o Moço, do velho acompanhado,

Que vencedor o torna de vencido:

Egas Moniz se chama o forte velho,

Pera leais vassalos claro espelho.

«Vê-lo cá vai cos filhos a entregar-se,

A corda ao colo, nu de seda e pano,

Porque não quis o Moço sujeitar-se,

Como ele prometera, ao Castelhano.

Fez com siso e promessas levantar-se

O cerco, que já estava soberano.

Os filhos e mulher obriga à pena:

Pera que o senhor salve, a si condena.

«Não fez o Cônsul tanto que cercado

Foi nas Forcas Caudinas, de ignorante,

Quando a passar por baxo foi forçado

Do Samnítico jugo triunfante.

Este, pelo seu povo injuriado,

A si se entrega só, firme e constante;

Estoutro a si e os filhos naturais

E a consorte sem culpa, que dói mais.

«Vês este que, saindo da cilada,

Dá sobre o Rei que cerca a vila forte?

Já o Rei tem preso e a vila descercada;

Ilustre feito, dino de Mavorte!

Vê-lo cá vai pintado nesta armada,

No mar também aos Mouros dando a morte,

Tomando-lhe as galés, levando a glória

Da primeira marítima vitória:

É Dom Fuas Roupinho, que na terra

E no mar resplandece juntamente,

Co fogo que acendeu junto da serra

De Ábila, nas galés da Maura gente.

Olha como, em tão justa e santa guerra,

De acabar pelejando está contente.

Das mãos dos Mouros entra a felice alma,

Triunfando, nos Céus, com justa palma.

«Não vês um ajuntamento, de estrangeiro

Trajo, sair da grande armada nova,

Que ajuda a combater o Rei primeiro

Lisboa, de si dando santa prova?

Olha Heurique, famoso cavaleiro,

A palma que lhe nasce junto à cova.

Por eles mostra Deus milagre visto;

Germanos são os Mártires de Cristo.

«Um Sacerdote vê, brandindo a espada

Contra Arronches, que toma, por vingança.

De Leiria, que de antes foi tomada

Por quem por Mafamede enresta a lança:

É Teotónio Prior. Mas vê cercada

Santarém, e verás a segurança

Da figura nos muros que, primeira

Subindo, ergueu das Quinas a bandeira.

Vê-lo cá, donde Sancho desbarata

Os Mouros de Vandália em fera guerra;

Os imigos rompendo, o alferes mata

E Hispálico pendão derriba em terra:

Mem Moniz é, que em si o valor retrata

Que o sepulcro do pai cos ossos corra.

Dino destas bandeiras, pois sem falta

A contrária derriba e a sua exalta.

«Olha aquele que dece pela lança,

Com as duas cabeças dos vigias,

Ande a cilada esconde, com que alcança

A cidade, por manhas e ousadias.

Ela por armas toma a semelhança

Do cavaleiro que as cabeças frias

Na mão levava (feito nunca feito!):

Giraldo Sem Pavor é o forte peito.

«Não vês um Castelhano, que, agravado

De Afonso nono, Rei, pelo ódio antigo

Dos de Lara, cos Mouros é deitado,

De Portugal fazendo-se inimigo?

Abrantes vila toma, acompanhado

Dos duros Infiéis que traz consigo;

Mas vê que um Português com pouca gente

O desbarata e o prende ousadamente.

. «Martim Lopes se chama o cavaleiro

que destes levar pode a palma e o louro.

Mas olha um Eclesiástico guerreiro,

Que em lança de aço torna o bago de ouro.

Vê-lo, entre os duvidosos, tão inteiro

Em não negar batalha ao bravo Mouro;

Olha o sinal no Céu, que lhe aparece,

Com que nos poucos seus o esforço crece

. «Vês, vão os Reis de Córdova e Sevilha

Rotos, cos outros dous, e não de espaço;

Rotos? Mas antes mortos: maravilha

Feita de Deus, que não de humano braço.

Vês? Já a vila de Alcácere se humilha,

Sem lhe valer defesa ou muro de aço,

A Dom Mateus, o Bispo de Lisboa,

Que a coroa de palma ali coroa.

«Olha um Mestre que dece de Castela,

Português de nação, como conquista

A terra dos Algarves, e já nela

Não acha que por armas lhe resista.

Com manha, esforço e com benigna estrela,

Vilas, castelos, toma à escala vista.

Vês Tavila tomada aos moradores,

Em vingança dos sete caçadores?

«Vês, com bélica astúcia ao Mouro ganha

Silves, que ele ganhou com força ingente:

É Dom Paio Correia, cuja manha

E grande esforço faz enveja à gente.

Mas não passes os três que em França e Espanha

Se fazem conhecer perpètuamente

Em desafios, justas e tornéus,

Nelas deixando públicos troféus.

«Vê-los co nome vêm de aventureiros

A Castela, onde o preço sós levaram

Dos jogos de Belona verdadeiros,

Que com dano de alguns se exercitaram.

Vê mortos os soberbos cavaleiros

Que o principal dos três desafiaram,

Que Gonçalo Ribeiro se nomeia,

Que pode não temer a lei Leteia.

«Atenta num que a fama tanto estende

Que de nenhum passado se contenta;

Que a Pátria, que de um fraco fio pende,

Sobre seus duros ombros a sustenta.

Não no vês tinto de ira, que reprende

A vil desconfiança, inerte e lenta,

Do povo, e faz que tome o doce freio

De Rei seu natural, e não de alheio?

«Olha: por seu conselho e ousadia,

De Deus guiada só e de santa estrela,

Só, pode o que impossíbil parecia:

Vencer o povo ingente de Castela.

Vês, por indústria, esforço e valentia,

Outro estrago e vitória, clara e bela,

Na gente, assi feroz como infinita,

Que entre o Tarteso e Guadiana habita?

«Mas não vês quási já desbaratado

O poder Lusitano, pela ausência

Do Capitão devoto, que, apartado,

Orando invoca a suma e trina Essência?

Vê-lo com pressa já dos seus achado,

Que lhe dizem que falta resistência

Contra poder tamanho, e que viesse

Por que consigo esforço aos fracos desse.

«Mas olha com que santa confiança,

Que «inda não era tempo» respondia,

Como quem tinha em Deus a segurança

Da vitória que logo lhe daria.

Assi Pompílio, ouvindo que a possança

Dos imigos a terra lhe corria,

A quem lhe a dura nova estava dando,

«Pois eu (responde) estou sacrificando.»

«Se quem com tanto esforço em Deus se atreve

Ouvir quiseres como se nomeia,

«Português Cipião» chamar-se deve;

Mas mais de «Dom Nuno Álvares» se arreia.

Ditosa pátria que tal filho teve!

Mas antes, pai! que, enquanto o Sol rodeia

Este globo de Ceres e Neptuno,

Sempre suspirará por tal aluno.

«Na mesma guerra vê que presas ganha

Estoutro Capitão de pouca gente;

Comendadores vence e o gado apanha

Que levavam roubado ousadamente;

Outra vez vê que a lança em sangue banha

Destes, só por livrar, co amor ardente,

O preso amigo, preso por leal:

Pero Rodrigues é do Landroal.

«Olha este desleal e como paga

O perjúrio que fez e vil engano;

Gil Fernandes é de Elvas quem o estraga

E faz vir a passar o último dano:

De Xerez rouba o campo e quási alaga

Co sangue de seus donos Castelhano.

Mas olha Rui Pereira, que co rosto

Faz escudo às galés, diante posto.

«Olha que dezessete Lusitanos,

Neste outeiro subidos, se defendem

Fortes, de quatrocentos Castelhanos,

Que em derredor, pelos tomar, se estendem;

Porém logo sentiram, com seus danos,

Que não só se defendem, mas ofendem.

Dino feito de ser, no mundo, eterno,

Grande no tempo antigo e no moderno!

«Sabe-se antigamente que trezentos

Já contra mil Romanos pelejaram,

No tempo que os viris atrevimentos

De Viriato tanto se ilustraram,

E deles alcançando vencimentos

Memoráveis, de herança nos deixaram

Que os muitos, por ser poucos, não temamos;

Que despois mil vezes amostramos.

«Olha cá dons Infantes, Pedro e Henrique,

Progénie generosa de Joane;

Aquele faz que fama ilustre fique

Dele em Germânia, com que a morte engane;

Este, que ela nos mares o pubrique

Por seu descobridor, e desengane

De Ceita a Maura túmida vaidade,

Primeiro entrando as portas da cidade.

«Vês o Conde Dom Pedro, que sustenta

Dous cercos contra toda a Barbaria.

Vês, outro Conde está, que representa

Em terra Marte, em forças e ousadia;

De poder defender se não contenta

Alcácere, da ingente companhia;

Mas do seu Rei defende a cara vida,

Pondo por muro a sua, ali perdida.

«Outros muitos verias, que os pintores

Aqui também por certo pintariam;

Mas falta-lhe pincel, faltam-lhe cores:

Honra, prémio, favor, que as artes criam.

Culpa dos viciosos sucessores,

Que degeneram, certo, e se desviam

Do lustre e do valor dos seus passados,

Em gostos e vaidades atolados.

«Aqueles pais ilustres que já deram

Princípio à geração que deles pende,

Pela virtude muito antão fizeram

E por deixar a casa que descende.

Cegos, que, dos trabalhos que tiveram,

Se alta fama e rumor deles se estende,

Escuros deixam sempre seus menores,

Com lhe deixar descansos corrutores!

«Outros também há grandes e abastados,

Sem nenhum tronco ilustre donde venham:

Culpa de Reis, que às vezes a privados

Dão mais que a mil que esforço e saber tenham.

Estes os seus não querem ver pintados,

Crendo que cores vãs lhe não convenham,

E, como a seu contrairo natural,

A pintura que fala querem mal.

«Não nego que há, contudo, descendentes

Do generoso tronco e casa rica,

Que, com costumes altos e excelentes,

Sustentam a nobreza que lhe fica;

E se a luz dos antigos seus parentes

Neles mais o valor não clarifica,

Não falta, ao menos, nem se faz escura;

Mas destes acha poucos a pintura.»

Assi está declarando os grandes feitos

O Gama, que ali mostra a vária tinta

Que a douta mão tão claros, tão perfeitos.

Do singular artífice ali pinta.

Os olhos tinha prontos e direitos

O Catual na história bem distinta;

Mil vezes perguntava e mil ouvia

As gostosas batalhas que ali via.

Mas já a luz se mostrava duvidosa,

Porque a alâmpada grande se escondia

Debaxo do Horizonte e, luminosa,

Levava aos Antípodas o dia,

Quando o Gentio e a gente generosa

Dos Naires da nau forte se partia,

A buscar o repouso que descansa

Os lassos animais, na noite mansa.

Entretanto, os arúspices famosos

Na falsa opinião, que em sacrifícios

Antevêm sempre os casos duvidosos

Por sinais diabólicos e indícios,

Mandados do Rei próprio, estudiosos,

Exercitavam a arte e seus ofícios,

Sobre esta vinda desta gente estranha,

Que às suas terras vem da ignota Espanha.

Sinal lhe mostra o Demo, verdadeiro,

De como a nova gente lhe seria

Jugo perpétuo, eterno cativeiro,

Destruição de gente e de valia.

Vai-se espantado o atónito agoureiro

Dizer ao Rei (segundo o que entendia)

Os sinais temerosos que alcançara

Nas entranhas das vítimas que oulhara.

A isto mais se ajunta que um devoto

Sacerdote da lei de Mafamede,

Dos ódios concebidos não remoto

Contra a divina Fé, que tudo excede,

Em forma do Profeta falso e noto

Que do filho da escrava Agar procede,

Baco odioso em sonhos lhe aparece,

Que de seus ódios inda se não dece.

E diz-lhe assi: - «Guardai-vos, gente minha,

Do mal que se aparelha pelo imigo

Que pelas águas húmidas caminha,

Antes que esteis mais perto do perigo!»

Isto dizendo, acorda o Mouro asinha,

Espantado do sonho; mas consigo

Cuida que não é mais que sonho usado;

Torna a dormir, quieto e sossegado.

Torna Baco dizendo: - «Não conheces

O grão legislador que a teus passados

Tem mostrado o preceito a que obedeces,

Sem o qual fôreis muitos baptizados?

Eu por ti, rudo, velo, e tu adormeces?

Pois saberás que aqueles que chegados

De novo são, serão mui grande dano

Da Lei que eu dei ao néscio povo humano.

«Enquanto é fraca a força desta gente,

ordena como em tudo se resista;

Porque, quando o Sol sai, fàcilmente

Se pode nele pôr a aguda vista;

Porém, despois que sobe claro e ardente.

Se agudeza dos olhos o conquista,

Tão cega fica, quanto ficareis

Se raízes criar lhe não tolheis.»

Isto dito, ele e o sono se despede

Tremendo fica o atónito Agareno;

Salta da cama, lume aos servos pede,

Lavrando nele o férvido veneno.

Tanto que a nova luz que ao Sol precede

Mostrara rosto angélico e sereno,

Convoca os principais da torpe seita,

Aos quais do que sonhou dá conta estreita.

Diversos pareceres e contrários

Ali se dão, segundo o que entendiam;

Astutas traições, enganos vários,

Perfídias, inventavam e teciam;

Mas, deixando conselhos temerários,

Destruição da gente pretendiam,

Por manhas mais sutis e ardis milhores,

Com peitas adquirindo os regedores.

Com peitas, ouro e dádivas secretas

Conciliam da terra os principais;

E com razões notáveis e discretas

Mostram ser perdição dos naturais,

Dizendo que são gentes inquietas,

Que, os mares discorrendo Ocidentais,

Vivem só de piráticas rapinas,

Sem Rei, sem leis humanas ou divinas.

Oh, quanto deve o Rei que bem governa

De olhar que os conselheiros ou privados

De consciência e de virtude interna

E de sincero amor sejam dotados!

Porque, como estê posto na superna

Cadeira, pode mal dos apartados

Negócios ter notícia mais inteira

Do que lhe der a língua conselheira.

Nem tão-pouco direi que tome tanto

Em grosso a consciência limpa e certa,

Que se enleve num pobre e humilde manto,

Onde ambição acaso ande encoberta.

E, quando um bom em tudo é justo e santo,

E em negócios do mundo pouco acerta;

Que mal co eles poderá ter conta

A quieta inocência, em só Deus pronta.

Mas aqueles avaros Catuais

Que o Gentílico povo governavam,

Induzidos das gentes infernais,

O Português despacho dilatavam.

Mas o Gama, que não pretende mais,

De tudo quanto os Mouros ordenavam,

Que levar a seu Rei um sinal certo

Do mundo que deixava descoberto,

Nisto trabalha só; que bem sabia

Que despois, que levasse esta certeza,

Armas e naus e gentes mandaria

Manuel, que exercita a suma alteza,

Com que a seu jugo e Lei someteria

Das terras e do mar a redondeza;

Que ele não era mais que um diligente

Descobridor das terras do Oriente.

Falar ao Rei gentio determina,

Por que com seu despacho se tornasse,

Que já sentia em tudo da malina

Gente impedir-se quanto desejasse.

O Rei, que da notícia falsa e indina

São era de espantar se s'espantasse,

Que tão crédulo era em seus agouros,

E mais sendo afirmados pelos Mouros,

Este temor lhe esfria o baixo peito.

Por outra parte, a força da cobiça,

A quem por natureza está sujeito,

Um desejo imortal lhe acende e atiça:

Que bem vê que grandíssimo proveito

Fará, se, com verdade e com justiça,

O contrato fizer, por longos anos,

Que lhe comete o Rei dos Lusitanos.

Sobre isto, nos conselhos que tomava,

Achava mui contrários pareceres;

Que naqueles com quem se aconselhava

Executa o dinheiro seus poderes.

O grande Capitão chamar mandava,

A quem chegado disse:- «Se quiseres

Confessar-me a verdade limpa e nua,

Perdão alcançarás da culpa tua.

«Eu sou bem informado que a embaxada

Que de teu Rei me deste, que é fingida;

Porque nem tu tens Rei, nem pátria amada,

Mas vagabundo vás passando a vida.

Que quem da Hespéria última alongada,

Rei ou senhor de insânia desmedida,

Há-de vir cometer, com naus e frotas,

Tão incertas viagens e remotas?

«E se de grandes Reinos poderosos

O teu Rei tem a Régia majestade,

Que presentes me trazes valerosos,

Sinais de tua incógnita verdade?

Com peças e dões altos, sumptuosos,

Se lia dos Reis altos a amizade;

Que sinal nem penhor não é bastante

As palavras dum vago navegante.

«Se porventura vindes desterrados,

Como já foram homens d'alta sorte,

Em meu Reino sereis agasalhados,

Que toda a terra é pátria pera o forte;

Ou se piratas sois, ao mar usados,

Dizei-mo sem temor de infâmia ou morte,

Que, por se sustentar, em toda idade

Tudo faz a vital necessidade.»

Isto assi dito, o Gama, que já tinha

Suspeitas das insídias que ordenava

O Mahomético ódio, donde vinha

Aquilo que tão mal o Rei cuidava,

Cüa alta confiança, que convinha,

Com que seguro crédito alcançava,

Que Vénus Acidália lhe influía,

Pais palavras do sábio peito abria:

- «Se os antigos delitos que a malícia

Humana cometeu na prisca idade

Não causaram que o vaso da nequícia,

Açoute tão cruel da Cristandade,

Viera pôr perpétua inimicícia

Na geração de Adão, co a falsidade,

Ó poderoso Rei, da torpe seita,

Não conceberas tu tão má suspeita.

«Mas, porque nenhum grande bem se alcança

Sem grandes opressões, e em todo o feito

Segue o temor os passos da esperança,

Que em suor vive sempre de seu peito,

Me mostras tu tão pouca confiança

Desta minha verdade, sem respeito

Das razões em contrário que acharias

Se não cresses a quem não crer devias.

«Porque, se eu de rapinas só vivesse,

Undívago ou da pátria desterrado,

Como crês que tão longe me viesse

Buscar assento incógnito e apartado?

Por que esperanças, ou por que interesse

Viria exprimentando o mar irado,

Os Antárticos frios e os ardores

Que sofrem do Carneiro os moradores?

«Se com grandes presentes d'alta estima

O crédito me pedes do que digo,

Eu não vim mais que a achar o estranho clima

Onde a Natura pôs teu Reino antigo;

Mas, se a Fortuna tanto me sublima,

Que eu torne à minha pátria e Reino amigo,

Então verás o dom soberbo e rico

Com que minha tornada certifico.

«Se te parece inopinado feito

Que Rei da última Hespéria a ti me mande,

O coração sublime, o régio peito,

Nenhum caso possíbil tem por grande.

Bem parece que o nobre e grão conceito

Do Lusitano espírito demande

Maior crédito e fé de mais alteza,

Que creia dele tanta fortaleza

«Sabe que há muitos anos que os antigos

Reis nossos firmemente propuseram

De vencer os trabalhos e perigos

Que sempre às grandes cousas se opuseram;

E, descobrindo os mares inimigos

Do quieto descanso, pretenderam

De saber que fim tinham e onde estavam

As derradeiras praias que lavavam.

«Conceito dino foi do ramo claro

Do venturoso Rei que arou primeiro

O mar, por ir deitar do ninho caro

O morador de Abila derradeiro;

Este, por sua indústria e engenho raro,

Num madeiro ajuntando outro madeiro,

Descobrir pôde a parte que faz clara

De Argos, da Hidra a luz, da Lebre e da Ara.

«Crescendo cos sucessos bons primeiros

No peito as ousadias, descobriram,

Pouco e pouco, caminhos estrangeiros,

Que, uns sucedendo aos outros, prosseguiram.

De África os moradores derradeiros

Austrais, que nunca as Sete Flamas viram,

Foram vistos de nós, atrás deixando

Quantos estão os Trópicos queimando.

«Assi, com firme peito e com tamanho

Propósito vencemos a Fortuna,

Até que nós no teu terreno estranho

Viemos pôr a última coluna.

Rompendo a força do líquido estanho,

Da tempestade horrífica e importuna,

A ti chegámos, de quem só queremos

Sinal que ao nosso Rei de ti levemos.

«Esta é a verdade, Rei; que não faria

Por tão incerto bem, tão fraco prémio,

Qual, não sendo isto assi, esperar podia,

Tão longo, tão fingido e vão proémio;

Mas antes descansar me deixaria

No nunca descansado e fero grémio

Da madre Tétis, qual pirata inico,

Dos trabalhos alheios feito rico.

«Assi que, ó Rei, se minha grão verdade

Tens por qual é, sincera e não dobrada,

Ajunta-me ao despacho brevidade,

Não me impidas o gosto da tornada;

E, se inda te parece falsidade,

Cuida bem na razão que está provada,

Que com claro juízo pode ver-se,

Que fácil é a verdade d'entender-se.»

A tento estava o Rei na segurança

Com que provava o Gama o que dizia;

Concebe dele certa confiança,

Crédito firme, em quanto proferia;

Pondera das palavras a abastança,

Julga na autoridade grão valia,

Começa de julgar por enganados

Os Catuais corrutos, mal julgados.

Juntamente, a cobiça do proveito

Que espera do contrato Lusitano

O faz obedecer e ter respeito.

Co Capitão, e não co Mauro engano.

Enfim ao Gama manda que direito

As naus se vá e, seguro dalgum dano,

Possa a terra mandar qualquer fazenda

Que pela especiaria troque e venda.

Que mande da fazenda, enfim, lhe manda

Que nos Reinos Gangéticos faleça,

S'algüa traz idónea lá da banda

Donde a terra se acaba e o mar começa.

Já da real presença veneranda

Se parte o Capitão, pera onde peça

Ao Catual que dele tinha cargo,

Embarcação, que a sua está de largo.

Embarcação que o leve às naus lhe pede,

Mas o mau Regedor, que novos laços

Lhe maquinava, nada lhe concede,

Interpondo tardanças e embaraços.

Co ele parte ao cais, por que o arrede

Longe quanto puder dos régios paços,

Onde, sem que seu Rei tenha notícia

Faça o que lhe ensinar sua malícia.

Lá bem longe lhe diz que lhe daria

Embarcação bastante em que partisse,

Ou que pera a luz crástina do dia

Futuro, sua partida diferisse.

Já com tantas tardanças entendia

O Gama que o Gentio consentisse

Na má tenção dos Mouros, torpe e fera,

O que dele até'li não entendera.

Era este Catual um dos que estavam

Corrutos pela Maumetana gente,

O principal por quem se governavam

As cidades do Samorim potente.

Dele sòmente os Mouros esperavam

Efeito a seus enganos torpemente;

Ele, que no concerto vil conspira,

De suas esperanças não delira.

O Gama com instância lhe requer

Que o mande pôr nas naus, e não lhe val;

E que assi lho mandara, lhe refere,

O nobre sucessor de Perimal.

Por que razão lhe impede e lhe difere

A fazenda trazer de Portugal?

Pois aquilo que os Reis já têm mandado

Não pode ser por outrem derrogado.

Pouco obedece o Catual corruto

A tais palavras; antes, revolvendo

Na fantasia algum sutil e astuto

Engano diabólico e estupendo,

Ou como banhar possa o ferro bruto

No sangue avorrecido, estava vendo,

Ou como as naus em fogo lhe abrasasse,

Por que nenhüa à pátria mais tornasse.

Que nenhum torne à pátria só pretende

O conselho infernal dos Maumetanos,

Por que não saiba nunca onde se estende

A terra Eoa o Rei dos Lusitanos.

Não parte o Gama, enfim, que lho defende

O Regedor dos Bárbaros profanos;

Nem sem licença sua ir-se podia,

Que as almadias todas lhe tolhia.

Aos brados e razões do Capitão

Responde o Idolátra, que mandasse

Chegar à terra as naus, que longe estão,

Por que milhor dali fosse e tornasse.

- «Sinal é de inimigo e de ladrão

Que lá tão longe a frota se alargasse,

(Lhe diz), porque do certo e fido amigo

É não temer do seu nenhum perigo.»

Nestas palavras o discreto Gama

Enxerga bem que as naus deseja perto

O Catual, por que com ferro e flama

Lhas assalte, por ódio descoberto.

Em vários pensamentos se derrama;

Fantasiando está remédio certo

Que desse a quanto mal se lhe ordenava;

Tudo temia, tudo, enfim, cuidava.

Qual o reflexo lume do polido

Espelho de aço ou de cristal fermoso,

Que, do raio solar sendo ferido,

Vai ferir noutra parte, luminoso,

E, sendo da ouciosa mão movido,

Pela casa, do moço curioso,

Anda pelas paredes e telhado

Trémulo, aqui e ali, e dessossegado:

Tal o vago juizo fluctuava

Do Gama preso, quando lhe lembrara

Coelho, se por acaso o esperava

Na praia cos batéis, como ordenara.

Logo secretamente lhe mandava

Que se tornasse à frota, que deixara,

Não fosse salteado dos enganos

Que esperava dos feros Maumetanos.

Tal há-de ser quem quer, co dom de Marte,

Imitar os Ilustres e igualá-los:

Voar co pensamento a toda parte,

Adivinhar perigos e evitá-los,

Com militar engenho e sutil arte,

Entender os imigos e enganá-los,

Crer tudo, enfim; que nunca louvarei

O capitão que diga: «Não cuidei.»

Insiste o Malabar em tê-lo preso

Se neo manda chegar a terra a armada;

Ele, constante e de ira nobre aceso,

Os ameaços seus não teme nada;

Que antes quer sobre si tomar o peso

De quanto mal a vil malícia ousada

Lhe andar armando, que pôr em ventura

A frota de seu Rei, que tem segura.

Aquela noite esteve ali detido

E parte do outro dia, quando ordena

De se tornar ao Rei; mas impedido

Foi da guarda que tinha, não pequena.

Comete-lhe o Gentio outro partido,

Temendo de seu Rei castigo ou pena

Se sabe esta malícia, a qual asinha

Saberá, se mais tempo ali o detinha.

Diz-lhe que mande vir toda a fazenda

Vendíbil que trazia, pera a terra,

Pera que, devagar, se troque e venda;

Que, quem não quer comércio, busca guerra.

Posto que os maus propósitos entenda

O Gama, que o danado peito encerra,

Consente, porque sabe por verdade

Que compra co a fazenda a liberdade.

Concertam-se que o Negro mande dar

Embarcações idóneas com que venha;

Que os seus batéis não quer aventurar

Onde lhos tome o imigo, ou lhos detenha.

Partem as almadias a buscar

Mercadoria Hispana que convenha;

Escreve a seu irmão que lhe mandasse

A fazenda com que se resgatasse.

Vem a fazenda a terra, aonde logo

A agasalhou o infame Catual;

Co ela ficam Álvaro e Diogo,

Que a pudessem vender pelo que val.

Se mais que obrigação, que mando e rogo,

No peito vil o prémio pode e val,

Bem o mostra o Gentio a quem o entenda,

Pois o Gama soltou pela fazenda.

Por ela o solta, crendo que ali tinha

Penhor bastante, donde recebesse

Interesse maior do que lhe vinha

Se o Capitão mais tempo detivesse.

Ele, vendo que já lhe não convinha

Tornar a terra, por que não pudesse

Ser mais retido, sendo às naus chegado

Nelas estar se deixa descansado.

Nas naus estar se deixa, vagaroso,

Até ver o que o tempo lhe descobre;

Que não se fia já do cobiçoso

Regedor, corrompido e pouco nobre.

Veja agora o juízo curioso

Quanto no rico, assi como no pobre,

Pode o vil interesse e sede imiga

Do dinheiro, que a tudo nos obriga.

A Polidoro mata o Rei Treício,

Só por ficar senhor do grão tesouro;

Entra, pelo fortíssimo edifício,

Com a filha de Acriso a chuva d'ouro;

Pode tanto em Tarpeia avaro vício

Que, a troco do metal luzente e louro,

Entrega aos inimigos a alta torre,

Do qual quási afogada em pago morre.

Este rende munidas fortalezas;

Faz trédoros e falsos os amigos;

Este a mais nobres faz fazer vilezas,

E entrega Capitães aos inimigos;

Este corrompe virginais purezas,

Sem temer de honra ou fama alguns perigos;

Este deprava às vezes as ciências,

Os juízos cegando e as consciências.

Este interpreta mais que sutilmente

Os textos; este faz e desfaz leis;

Este causa os perjúrios entre a gente

E mil vezes tiranos torna os Reis.

Até os que só a Deus omnipotente

Se dedicam, mil vezes ouvireis

Que corrompe este encantador, e ilude;

Mas não sem cor, contudo, de virtude!

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Canto IX

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iveram longamente na cidade,

Sem vender-se, a fazenda os dous feitores,

Que os Infiéis, por manha e falsidade,

Fazem que não lha comprem mercadores;

Que todo seu propósito e vontade

Era deter ali os descobridores

Da Índia tanto tempo que viessem

De Meca as naus, que as suas desfizessem.

Lá no seio Eritreu, onde fundada

Arsínoe foi do Egípcio Ptolomeu

(Do nome da irmã sua assi chamada,

Que despois em Suez se converteu),

Não longe o porto jaz da nomeada

Cidade Meca, que se engrandeceu

Com a superstição falsa e profana

Da religiosa água Maumetana.

Gidá se chama o porto aonde o trato

De todo o Roxo Mar mais florecia,

De que tinha proveito grande e grato

O Soldão que esse Reino possuía.

Daqui aos Malabares, por contrato

Dos Infiéis, fermosa companhia

De grandes naus, pelo Índico Oceano,

Especiaria vem buscar cada ano.

Por estas naus os Mouros esperavam,

Que, como fossem grandes e possantes,

Aquelas que o comércio lhe tomavam,

Com flamas abrasassem crepitantes.

Neste socorro tanto confiavam

Que já não querem mais dos navegantes

Senão que tanto tempo ali tardassem

Que da famosa Meca as naus chegassem.

Mas o Governador dos Céus e gentes,

Que, pera quanto tem determinado,

De longe os meios dá convenientes

Por onde vem a efeito o fim fadado,

Influiu piadosos acidentes

De afeição em Monçaide, que guardado

Estava pera dar ao Gama aviso

E merecer por isso o Paraíso.

Este, de quem se os Mouros não guardavam

Por ser Mouro como eles (antes era

Participante em quanto maquinavam),

A tenção lhe descobre torpe e fera.

Muitas vezes as naus que longe estavam

Visita, e com piedade considera

O dano sem razão que se lhe ordena

Pela maligna gente Sarracena.

Informa o cauto Gama das armadas

Que de Arábica Meca vem cad'ano,

Que agora são dos seus tão desejadas,

Pera ser instrumento deste dano;

Diz-lhe que vêm de gente carregadas

E dos trovões horrendos de Vulcano,

E que pode ser delas oprimido,

Segundo estava mal apercebido.

O Gama, que também considerava

O tempo que pera a partida o chama,

E que despacho já não esperava

Milhor do Rei, que os Maumetanos ama,

Aos feitores que em terra estão, mandava

Que se tornem às naus; e, por que a fama

Desta súbita vinda os não impida,

Lhe manda que a fizessem escondida.

Porém não tardou muito que, voando,

Um rumor não soasse, com verdade:

Que foram presos os feitores, quando

Foram sentidos vir-se da cidade.

Esta fama as orelhas penetrando

Do sábio Capitão, com brevidade

Faz represária nuns que às naus vieram

A vender pedraria que trouxeram.

Eram estes antigos mercadores

Ricos em Calecu e conhecidos;

Da falta deles, logo entre os milhores

Sentido foi que estão no mar retidos.

Mas já nas naus os bons trabalhadores

Volvem o cabrestante e, repartidos

Pelo trabalho, uns puxam pela amarra,

Outros quebram co peito duro a barra,

Outros pendem da verga e já desatam

A vela, que com grita se soltava,

Quando, com maior grita, ao Rei relatam

A pressa com que a armada se levava.

As mulheres e filhos, que se matam,

Daqueles que vão presos, onde estava

O Samorim se aqueixam que perdidos

Uns têm os pais, as outras os maridos.

Manda logo os feitores Lusitanos

Com toda sua fazenda, livremente,

Apesar dos imigos Maumetanos,

Por que lhe torne a sua presa gente.

Desculpas manda o Rei de seus enganos;

Recebe o Capitão de melhormente

Os presos que as desculpas e, tornando

Alguns negros, se parte, as velas dando.

Parte-se costa abaxo, porque entende

Que em vão co Rei gentio trabalhava

Em querer dele paz, a qual pretende

Por firmar o comércio que tratava;

Mas como aquela terra, que se estende

Pela Aurora, sabida já deixava,

Com estas novas torna à pátria cara,

Certos sinais levando do que achara.

Leva alguns Malabares, que tomou

Per força, dos que o Samorim mandara

Quando os presos feitores lhe tornou;

Leva pimenta ardente, que comprara;

A seca flor de Banda não ficou;

A noz e o negro cravo, que faz clara

A nova ilha Maluco, co a canela

Com que Ceilão é rica, ilustre e bela.

Isto tudo lhe houvera a diligência

De Monçaide fiel, que também leva,

Que, inspirado de Angélica influência,

Quer no livro de Cristo que se escreva.

Oh, ditoso Africano, que a clemência

Divina assi tirou de escura treva,

E tão longe da pátria achou maneira

Pera subir à pátria verdadeira!

Apartadas assi da ardente costa

As venturosas naus, levando a proa

Pera onde a Natureza tinha posta

A meta Austrina da Esperança Boa,

Levando alegres novas e reposta

Da parte Oriental pera Lisboa,

Outra vez cometendo os duros medos

Do mar incerto, tímidos e ledos.

O prazer de chegar à pátria cara,

A seus penates caros e parentes,

Pera contar a peregrina e rara

Navegação, os vários céus e gentes;

Vir a lograr o prémio que ganhara,

Por tão longos trabalhos e acidentes:

Cada um tem por gosto tão perfeito,

Que o coração para ele é vaso estreito.

Porém a Deusa Cípria, que ordenada

Era, pera favor dos Lusitanos,

Do Padre Eterno, e por bom génio dada,

Que sempre os guia já de longos anos,

A glória por trabalhos alcançada,

Satisfação de bem sofridos danos,

Lhe andava já ordenando, e pretendia

Dar-lhe nos mares tristes, alegria.

Despois de ter um pouco revolvido

Na mente o largo mar que navegaram,

Os trabalhos que pelo Deus nascido

Nas Anfiónias Tebas se causaram,

Já trazia de longe no sentido,

Pera prémio de quanto mal passaram,

Buscar-lhe algum deleite, algum descanso,

No Reino de cristal, líquido e manso;

Algum repouso, enfim, com que pudesse

Refocilar a lassa humanidade

Dos navegantes seus, como interesse

Do trabalho que encurta a breve idade.

Parece-lhe razão que conta desse

A seu filho, por cuja potestade

Os Deuses faz decer ao vil terreno

E os humanos subir ao Céu sereno.

Isto bem revolvido, determina

De ter-lhe aparelhada, lá no meio

Das águas, algüa ínsula divina,

Ornada d'esmaltado e verde arreio;

Que muitas tem no reino que confina

Da primeira co terreno seio,

Afora as que possui soberanas

Pera dentro das portas Herculanas.

Ali quer que as aquáticas donzelas

Esperem os fortíssimos barões

(Todas as que têm título de belas,

Glória dos olhos, dor dos corações)

Com danças e coreias, porque nelas

Influirá secretas afeições,

Pera com mais vontade trabalharem

De contentar a quem se afeiçoarem.

Tal manha buscou já pera que aquele

Que de Anquises pariu, bem recebido

Fosse no campo que a bovina pele

Tomou de espaço, por sutil partido.

Seu filho vai buscar, porque só nele

Tem todo seu poder, fero Cupido,

Que, assi como naquela empresa antiga

A ajudou já, nestoutra a ajude e siga.

No carro ajunta as aves que na vida

Vão da morte as exéquias celebrando,

E aquelas em que já foi convertida

Perístera, as boninas apanhando;

Em derredor da Deusa, já partida,

No ar lascivos beijos se vão dando;

Ela, por onde passa, o ar e o vento

Sereno faz. com brando movimento

Já sobre os Idálios montes pende,

Onde o filho frecheiro estava então,

Ajuntando outros muitos, que pretende

Fazer üa famosa expedição

Contra o mundo revelde, por que emende

Erros grandes que há dias nele estão,

Amando cousas que nos foram dadas,

Não pera ser amadas, mas usadas.

Via Actéon na caça tão austero,

De cego na alegria bruta, insana,

Que, por seguir um feio animal fero,

Foge da gente e bela forma humana;

E por castigo quer, doce e severo,

Mostrar-lhe a fermosura de Diana.

(E guarde-se não seja inda comido

Desses cães que agora ama, e consumido).

E vê do mundo todo os principais

Que nenhum no bem púbrico imagina;

Vê neles que não têm amor a mais

Que a si somente, e a quem Filáucia ensina;

Vê que esses que frequentam os reais

Paços, por verdadeira e sã doutrina

Vendem adulação, que mal consente

Mondar-se o novo trigo florecente.

Vê que aqueles que devem à pobreza

Amor divino, e ao povo caridade,

Amam somente mandos e riqueza,

Simulando justiça e integridade;

Da feia tirania e de aspereza

Fazem direito e vã severidade;

Leis em favor do Rei se estabelecem,

As em favor do povo só perecem.

Vê, enfim, que ninguém ama o que deve,

Senão o que somente mal deseja.

Não quer que tanto tempo se releve

O castigo que duro e justo seja.

Seus ministros ajunta, por que leve

Exércitos conformes à peleja

Que espera ter co a mal regida gente

Que lhe não for agora obediente.

Muitos destes mininos voadores

Estão em várias obras trabalhando:

Uns amolando ferros passadores,

Outros hásteas de setas delgaçando.

Trabalhando, cantando estão de amores,

Vários casos em verso modulando;

Melodia sonora e concertada,

Suave a letra, angélica a soada.

Nas fráguas imortais onde forjavam

Pera as setas as pontas penetrantes,

Por lenha corações ardendo estavam,

Vivas entranhas inda palpitantes;

As águas onde os ferros temperavam,

Lágrimas são de míseros amantes;

A viva flama, o nunca morto lume,

Desejo é só que queima e não consume.

Alguns exercitando a mão andavam

Nos duros corações da plebe ruda;

Crebros suspiros pelo ar soavam

Dos que feridos vão da seta aguda.

Fermosas Ninfas são as que curavam

As chagas recebidas, cuja ajuda

Não somente dá vida aos mal feridos,

Mas põe em vida os inda não nascidos.

Fermosas são algüas e outras feias,

Segundo a qualidade for das chagas,

Que o veneno espalhado pelas veias

Curam-no às vezes ásperas triagas.

Alguns ficam ligados em cadeias

Por palavras sutis de sábias magas;

Isto acontece às vezes, quando as setas

Acertam de levar ervas secretas.

Destes tiros assi desordenados,

Que estes moços mal destros vão tirando,

Nascem amores mil desconcertados

Entre o povo ferido miserando;

E também nos heróis de altos estados

Exemplos mil se vêm de amor nefando.

Qual o das moças Bíbli e Cinireia,

Um mancebo de Assíria, um de Judeia.

E vós, ó poderosos, por pastoras

Muitas vezes ferido o peito vedes;

E por baixos e rudos, vós, senhoras,

Também vos tomam nas Vulcâneas redes.

Uns esperando andais nocturnas horas,

Outros subis telhados e paredes;

Mas eu creio que deste amor indino

É mais culpa a da mãe que a do minino.

Mas já no verde prado o carro leve

Punham os brancos cisnes mansamente;

E Dione, que as rosas entre a neve

No rosto traz, decia diligente.

O frecheiro que contra o Céu se atreve

A recebê-la vem, ledo e contente;

Vêm todos os Cupidos servidores

Beijar a mão à Deusa dos amores.

Ela, por que não gaste o tempo em vão

Nos braços tendo o filho, confiada

Lhe diz: - «Amado filho, em cuja mão

Toda minha potência está fundada;

Filho, em quem minhas forças sempre estão,

Tu, que as armas Tifeias tens em nada,

A socorrer-me a tua potestade

Me traz especial necessidade.

«Bem vês as Lusitânicas fadigas,

Que eu já de muito longe favoreço,

Porque das Parcas sei, minhas amigas,

Que me hão-de venerar e ter em preço.

E porque tanto imitam as antigas

Obras de meus Romanos, me ofereço

A lhe dar tanta ajuda, em quanto posso,

A quanto se estender o poder nosso.

«E porque das insídias do odioso

Baco foram na India molestados,

E das injúrias sós do mar undoso

Puderam mais ser mortos que cansados,

No mesmo mar, que sempre temeroso

Lhe foi, quero que sejam repousados,

Tomando aquele prémio e doce glória

Do trabalho que faz clara a memória.

«E pera isso queria que, feridas

As filhas de Nereu no ponto fundo,

D'amor dos Lusitanos incendidas

Que vêm de descobrir o novo mundo,

Todas nüa ilha juntas e subidas,

(Ilha que nas entranhas do profundo

Oceano terei aparelhada,

De dões de Flora e Zéfiro adornada);

«Ali, com mil refrescos e manjares,

Com vinhos odoríferos e rosas,

Em cristalinos paços singulares,

Fermosos leitos, e elas mais fermosas;

Enfim, com mil deleites não vulgares,

Os esperem as Ninfas amorosas,

D'amor feridas, pera lhe entregarem

Quanto delas os olhos cobiçarem.

«Quero que haja no reino Neptunino,

Onde eu nasci, progénie forte e bela;

E tome exemplo o mundo vil, malino,

Que contra tua potência se rebela,

Por que entendam que muro Adamantino

Nem triste hipocrisia val contra ela;

Mal haverá na terra quem se guarde

Se teu fogo imortal nas águas arde.»

Assi Vénus propôs; e o filho inico,

Pera lhe obedecer, já se apercebe:

Manda trazer o arco ebúrneo rico,

Onde as setas de ponta de ouro embebe.

Com gesto ledo a Cípria, e impudico,

Dentro no carro o filho seu recebe;

A rédea larga às aves cujo canto

A Faetonteia morte chorou tanto.

Mas diz Cupido que era necessária

üa famosa e célebre terceira,

Que, posto que mil vezes lhe é contrária,

Outras muitas a tem por companheira:

A Deusa Giganteia, temerária,

Jactante, mentirosa e verdadeira,

Que com cem olhos vê, e, por onde voa,

O que vê, com mil bocas apregoa.

Vão-a buscar e mandam-a diante,

Que celebrando vá com tuba clara

Os louvores da gente navegante,

Mais do que nunca os d'outrem celebrara.

Já, murmurando, a Fama penetrante

Pelas fundas cavernas se espalhara;

Fala verdade, havida por verdade,

Que junto a Deusa traz Credulidade.

O louvor grande, o rumor excelente,

No coração dos Deuses que indinados

Foram por Baco contra a ilustre gente,

Mudando, os fez um pouco afeiçoados.

O peito feminil, que levemente

Muda quaisquer propósitos tomados,

Já julga por mau zelo e por crueza

Desejar mal a tanta fortaleza.

Despede nisto o fero moço as setas,

üa após outra: geme o mar cos tiros;

Direitas pelas ondas inquietas

Algüas vão, e algüas fazem giros;

Caem as Ninfas, lançam das secretas

Entranhas ardentíssimos suspiros;

Cai qualquer, sem ver o vulto que ama,

Que tanto como a vista pode a fama.

Os cornos ajuntou da ebúrnea Lüa,

Com força, o moço indómito, excessiva,

Que Tétis quer ferir mais que nenhüa,

Porque mais que nenhüa lhe era esquiva.

Já não fica na aljava seta algüa,

Nem nos equóreos campos Ninfa viva;

E se, feridas, inda estão vivendo,

Será pera sentir que vão morrendo.

Dai lugar, altas e cerúleas ondas,

Que, vedes, Vénus traz a medicina,

Mostrando as brancas velas e redondas,

Que vêm por cima da água Neptunina.

Pera que tu recíproco respondas,

Ardente Amor, à flama feminina,

É forçado que a pudicícia honesta

Faça quanto lhe Vénus amoesta.

Já todo o belo coro se aparelha

Das Nereidas, e junto caminhava

Em coreias gentis, usança velha,

Pera a ilha a que Vénus as guiava.

Ali a fermosa Deusa lhe aconselha

O que ela fez mil vezes, quando amava;

Elas, que vão do doce amor vencidas,

Estão a seu conselho oferecidas.

Cortando vão as naus a larga via

Do mar ingente pera a pátria amada,

Desejando prover-se de água fria

Pera a grande viagem prolongada,

Quando, juntas, com súbita alegria,

Houveram vista da Ilha namorada,

Rompendo pelo céu a mãe fermosa

De Menónio, suave e deleitosa.

De longe a Ilha viram, fresca e bela,

Que Vénus pelas ondas lha levava

(Bem como o vento leva branca vela)

Pera onde a forte armada se enxergava;

Que, por que não passassem, sem que nela

Tomassem porto, como desejava,

Pera onde as naus navegam a movia

A Acidália, que tudo, enfim, podia.

Mas firme a fez e imóbil, como viu

Que era dos Nautas vista e demandada,

Qual ficou Delos, tanto que pariu

Latona Febo e a Deusa à caça usada.

Pera lá logo a proa o mar abriu,

Onde a costa fazia üa enseada

Curva e quieta, cuja branca areia

Pintou de ruivas conchas Citereia.

Três fermosos outeiros se mostravam,

Erguidos com soberba graciosa,

Que de gramíneo esmalte se adornavam,

Na fermosa Ilha, alegre e deleitosa.

Claras fontes e límpidas manavam

Do cume, que a verdura tem viçosa;

Por entre pedras alvas se deriva

A sonorosa linfa fugitiva.

Num vale ameno, que os outeiros fende.

Vinham as claras águas ajuntar-se,

Onde üa mesa fazem, que se estende

Tão bela quanto pode imaginar-se.

Arvoredo gentil sobre ela pende,

Como que pronto está pera afeitar-se,

Vendo-se no cristal resplandecente,

Que em si o está pintando pròpriamente.

Mil árvores estão ao céu subindo,

Com pomos odoríferos e belos;

A laranjeira tem no fruito lindo

A cor que tinha Dafne nos cabelos.

Encosta-se no chão, que está caindo,

A cidreira cos pesos amarelos;

Os fermosos limões ali cheirando,

Estão virgíneas tetas imitando.

As árvores agrestes, que os outeiros

Têm com frondente coma ennobrecidos,

Álemos são de Alcides, e os loureiros

Do louro Deus amados e queridos;

Mirtos de Citereia, cos pinheiros

De Cibele, por outro amor vencidos;

Está apontando o agudo cipariso

Pera onde é posto o etéreo Paraíso.

Os dões que dá Pomona ali Natura

Produze, diferentes nos sabores,

Sem ter necessidade de cultura,

Que sem ela se dão muito milhores:

As cereijas, purpúreas na pintura,

As amoras, que o nome têm de amores,

O pomo que da pátria Pérsia veio,

Milhor tornado no terreno alheio;

Abre a romã, mostrando a rubicunda

Cor, com que tu, rubi, teu preço perdes,

Entre os braços do ulmeiro está a jocunda

Vide, cuns cachos roxos e outros verdes;

E vós, se na vossa árvore fecunda,

Peras piramidais, viver quiserdes,

Entregai-vos ao dano que cos bicos

Em vós fazem os pássaros inicos.

Pois a tapeçaria bela e fina

Com que se cobre o rústico terreno,

Faz ser a de Aqueménia menos dina,

Mas o sombrio vale mais ameno.

Ali a cabeça a flor Cifísia inclina

Sôbolo tanque lúcido e sereno;

Florece o filho e neto de Ciniras,

Por quem tu, Deusa Páfia, inda suspiras.

Pera julgar, difícil cousa fora,

No céu vendo e na terra as mesmas cores,

Se dava às flores cor a bela Aurora,

Ou se lha dão a ela as belas flores.

Pintando estava ali Zéfiro e Flora

As violas da cor dos amadores,

O lírio roxo, a fresca rosa bela,

Qual reluze nas faces da donzela;

A cândida cecém, das matutinas

Lágrimas rociada, e a manjerona;

Vêm-se as letras nas flores Hiacintinas,

Tão queridas do filho de Latona.

Bem se enxerga nos pomos e boninas

Que competia Clóris com Pomona.

Pois, se as aves no ar cantando voam,

Alegres animais o chão povoam.

Ao longo da água o níveo cisne canta;

Responde-lhe do ramo filomela;

Da sombra de seus cornos não se espanta

Acteon n'água cristalina e bela.

Aqui a fugace lebre se levanta

Da espessa mata, ou tímida gazela;

Ali no bico traz ao caro ninho

O mantimento o leve passarinho.

Nesta frescura tal desembarcavam

Já das naus os segundos Argonautas,

Onde pela floresta se deixavam

Andar as belas Deusas, como incautas.

Algüas, doces cítaras tocavam;

Algüas, harpas e sonoras frautas;

Outras, cos arcos de ouro, se fingiam

Seguir os animais, que não seguiam.

Assi lho aconselhara a mestra experta:

Que andassem pelos campos espalhadas;

Que, vista dos barões a presa incerta,

Se fizessem primeiro desejadas.

Algüas, que na forma descoberta

Do belo corpo estavam confiadas,

Posta a artificiosa fermosura,

Nuas lavar se deixam na água pura.

Mas os fortes mancebos, que na praia

Punham os pés, de terra cobiçosos

(Que não há nenhum deles que não saia),

De acharem caça agreste desejosos,

Não cuidam que, sem laço ou redes, caia

Caça naqueles montes deleitosos,

Tão suave, doméstica e benina,

Qual ferida lha tinha já Ericina.

Alguns, que em espingardas e nas bestas

Pera ferir os cervos, se fiavam,

Pelos sombrios matos e florestas

Determinadamente se lançavam;

Outros, nas sombras, que de as altas sestas

Defendem a verdura, passeavam

Ao longo da água, que, suave e queda,

Por alvas pedras corre à praia leda.

Começam de enxergar sùbitamente,

Por entre verdes ramos, várias cores,

Cores de quem a vista julga e sente

Que não eram das rosas ou das flores,

Mas da lã fina e seda diferente,

Que mais incita a força dos amores,

De que se vestem as humanas rosas,

Fazendo-se por arte mais fermosas.

Dá Veloso, espantado, um grande grito:

- «Senhores, caça estranha (disse) é esta!

Se inda dura o Gentio antigo rito,

A Deu sas é sagrada esta floresta.

Mais descobrimos do que humano esprito

Desejou nunca, e bem se manifesta

Que são grandes as cousas e excelentes

Que o mundo encobre aos homens imprudentes.

«Sigamos estas Deusas e vejamos

Se fantásticas são, se verdadeiras.»

Isto dito, veloces mais que gamos,

Se lançam a correr pelas ribeiras.

Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos,

Mas, mais industriosas que ligeiras,

Pouco e pouco, sorrindo e gritos dando,

Se deixam ir dos galgos alcançando

De üa os cabelos de ouro o vento leva,

Correndo, e da outra as fraldas delicadas;

Acende-se o desejo, que se ceva

Nas alves carnes, súbito mostradas.

üa de indústria cai, e já releva,

Com mostras mais macias que indinadas,

Que sobre ela, empecendo, também caia

Quem a seguiu pela arenosa praia.

Outros, por outra parte, vão topar

Com as Deusas despidas, que se lavam;

Elas começam súbito a gritar,

Como que assalto tal não esperavam;

üas, fingindo menos estimar

A vergonha que a força, se lançavam

Nuas por entre o mato, aos olhos dando

O que às mãos cobiçosas vão negando;

Outra, como acudindo mais depressa

À vergonha da Deusa caçadora,

Esconde o corpo n'água; outra se apressa

Por tomar os vestidos que tem fora.

Tal dos mancebos há que se arremessa,

Vestido assi e calçado (que, co a mora

De se despir, há medo que inda tarde)

A matar na água o fogo que nele arde.

Qual cão de caçador, sagaz e ardido,

Usado a tomar na água a ave ferida,

Vendo [ò] rosto o férreo cano erguido

Pera a garcenha ou pata conhecida,

Antes que soe o estouro, mal sofrido Salta

n'água e da presa não duvida,

Nadando vai e latindo: assi o mancebo

Remete à que não era irmã de Febo.

Leonardo, soldado bem disposto,

Manhoso, cavaleiro e namorado,

A quem Amor não dera um só desgosto

Mas sempre fora dele mal tratado,

E tinha já por firme pros[s]uposto

Ser com amores mal afortunado,

Porém não que perdesse a esperança

De inda poder seu fado ter mudança,

Quis aqui sua ventura que corria

Após Efire, exemplo de beleza,

Que mais caro que as outras dar queria

O que deu, pera dar-se, a natureza.

Já cansado, correndo, lhe dizia:

- «Ó fermosura indina de aspereza,

Pois desta vida te concedo a palma,

Espera um corpo de quem levas a alma!

«Todas de correr cansam, Ninfa pura.

Rendendo-se à vontade do inimigo;

Tu só de mi só foges na espessura?

Quem te disse que eu era o que te sigo?

Se to tem dito já aquela ventura

Que em toda a parte sempre anda comigo,

Oh, não na creias, porque eu, quando a cria,

Mil vezes cada hora me mentia.

«Não canses, que me cansas! E se queres

Fugir-me, por que não possa tocar-te,

Minha ventura é tal que, inda que esperes,

Ela fará que não possa alcançar-te.

Espera; quero ver, se tu quiseres,

Que sutil modo busca de escapar-te;

E notarás, no fim deste sucesso,

'Tra la spica e la man qual muro he messo.'

«Oh! Não me fujas! Assi nunca o breve

Tempo fuja de tua fermosura;

Que, só com refrear o passo leve,

Vencerás da fortuna a força dura.

Que Emperador, que exército se atreve

A quebrantar a fúria da ventura

Que, em quanto desejei, me vai seguindo,

O que tu só farás não me fugindo?

«Pões-te da parte da desdita minha?

Fraqueza é dar ajuda ao mais potente.

Levas-me um coração que livre tinha?

Solta-mo e correrás mais levemente.

Não te carrega essa alma tão mesquinha

Que nesses fios de ouro reluzente

Atada levas? Ou, despois de presa,

Lhe mudaste a ventura e menos pesa?

«Nesta esperança só te vou seguindo:

Que ou tu não sofrerás o peso dela,

Ou na virtude de teu gesto lindo

Lhe mudarás a triste e dura estrela.

E se se lhe mudar, não vás fugindo,

Que Amor te ferirá, gentil donzela,

E tu me esperarás, se Amor te fere;

E se me esperas, não há mais que espere.»

Já não fugia a bela Ninfa tanto,

Por se dar cara ao triste que a seguia,

Como por ir ouvindo o doce canto,

As namoradas mágoas que dizia.

Volvendo o rosto, já sereno e santo,

Toda banhada em riso e alegria,

Cair se deixa aos pés do vencedor,

Que todo se desfaz em puro amor.

Oh, que famintos beijos na floresta,

E que mimoso choro que soava!

Que afagos tão suaves! Que ira honesta,

Que em risinhos alegres se tornava!

O que mais passam na manhã e na sesta,

Que Vénus com prazeres inflamava,

Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo;

Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.

Destarte, enfim, conformes já as fermosas

Ninfas cos seus amados navegantes,

Os ornam de capelas deleitosas

De louro e de ouro e flores abundantes.

As mãos alvas lhe davam como esposas;

Com palavras formais e estipulantes

Se prometem eterna companhia,

Em vida e morte, de honra e alegria.

üa delas, maior, a quem se humilha

Todo o coro das Ninfas e obedece,

Que dizem ser de Celo e Vesta Filha,

O que no gesto belo se parece,

Enchendo a terra e o mar de maravilha,

O capitão ilustre, que o merece,

Recebe ali com pompa honesta e régia,

Mostrando-se senhora grande e egrégia.

Que, despois de lhe ter dito quem era,

Cum alto exórdio, de alta graça ornado,

Dando-lhe a entender que ali viera

Por alta influïção do imóbil fado,

Pera lhe descobrir da unida esfera

Da terra imensa e mar não navegado

Os segredos, por alta profecia,

O que esta sua nação só merecia,

Tomando-o pela mão, o leva e guia

Pera o cume dum monte alto e divino,

No qual üa rica fábrica se erguia,

De cristal toda e de ouro puro e fino.

A maior parte aqui passam do dia,

Em doces jogos e em prazer contino.

Ela nos paços logra seus amores,

As outras pelas sombras, entre as flores.

Assi a fermosa e a forte companhia

O dia quási todo estão passando

Nüa alma, doce, incógnita alegria,

Os trabalhos tão longos compensando.

Porque dos feitos grandes, da ousadia

Forte e famosa, o mundo está guardando

O prémio lá no fim, bem merecido,

Com fama grande e nome alto e subido.

Que as Ninfas do Oceano, tão fermosas,

Tétis e a Ilha angélica pintada,

Outra cousa não é que as deleitosas

Honras que a vida fazem sublimada.

Aquelas preminências gloriosas,

Os triunfos, a fronte coroada

De palma e louro, a glória e maravilha,

Estes são os deleites desta Ilha.

Que as imortalidades que fingia

A antiguidade, que os Ilustres ama,

Lá no estelante Olimpo, a quem subia

Sobre as asas ínclitas da Fama,

Por obras valorosas que fazia,

Pelo trabalho imenso que se chama

Caminho da virtude, alto e fragoso,

Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso,

Não eram senão prémios que reparte,

Por feitos imortais e soberanos,

O mundo cos varões que esforço e arte

Divinos os fizeram, sendo humanos.

Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte,

Eneas e Quirino e os dous Tebanos,

Ceres, Palas e Juno com Diana,

Todos foram de fraca carne humana.

Mas a Fama, trombeta de obras tais,

Lhe deu no Mundo nomes tão estranhos

De Deuses, Semideuses, Imortais,

Indígetes, Heróicos e de Magnos.

Por isso, ó vós que as famas estimais,

Se quiserdes no mundo ser tamanhos,

Despertai já do sono do ócio ignavo,

Que o ânimo, de livre, faz escravo.

E ponde na cobiça um freio duro,

E na ambição também, que indignamente

Tomais mil vezes, e no torpe e escuro

Vício da tirania infame e urgente;

Porque essas honras vãs, esse ouro puro,

Verdadeiro valor não dão à gente:

Milhor é merecê-los sem os ter,

Que possuí-los sem os merecer.

Ou dai na paz as leis iguais, constantes,

Que aos grandes não dêem o dos pequenos,

Ou vos vesti nas armas rutilantes,

Contra a lei dos imigos Sarracenos:

Fareis os Reinos grandes e possantes,

E todos tereis mais e nenhum menos:

Possuireis riquezas merecidas,

Com as honras que ilustram tanto as vidas.

E fareis claro o Rei que tanto amais,

Agora cos conselhos bem cuidados,

Agora co as espadas, que imortais

Vos farão, como os vossos já passados.

Impossibilidades não façais,

Que quem quis, sempre pôde; e numerados

Sereis entre os Heróis esclarecidos

E nesta «Ilha de Vénus» recebidos.

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Canto X

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as já o claro amador da Larisseia

Adúltera inclinava os animais

Lá pera o grande lago que rodeia

Temistitão, nos fins Ocidentais;

O grande ardor do Sol Favónio enfreia

Co sopro que nos tanques naturais

Encrespa a água serena e despertava

Os lírios e jasmins, que a calma agrava,

Quando as fermosas Ninfas, cos amantes

Pela mão, já conformes e contentes,

Subiam pera os paços radiantes

E de metais ornados reluzentes,

Mandados da Rainha, que abundantes

Mesas d’altos manjares excelentes

Lhe tinha aparelhados, que a fraqueza

Restaurem da cansada natureza.

Ali, em cadeiras ricas, cristalinas,

Se assentam dous e dous, amante e dama;

Noutras, à cabeceira, d’ouro finas,

Está co a bela Deusa o claro Gama.

De iguarias suaves e divinas,

A quem não chega a Egípcia antiga fama ,

Se acumulam os pratos de fulvo ouro,

Trazidos lá do Atlântico tesouro.

Os vinhos odoríferos, que acima

Estão não só do Itálico Falerno

Mas da Ambrósia, que Jove tanto estima

Com todo o ajuntamento sempiterno,

Nos vasos, onde em vão trabalha a lima,

Crespas escumas erguem, que no interno

Coração movem súbita alegria,

Saltando co a mistura d’água fria.

Mil práticas alegres se tocavam;

Risos doces, sutis e argutos ditos,

Que entre um e outro manjar se ale vantavam,

Despertando os alegres apetitos;

Músicos instrumentos não faltavam

(Quais, no profundo Reino, os nus espritos

Fizeram descansar da eterna pena)

Cüa voz düa angélica Sirena.

Cantava a bela Ninfa, e cos acentos,

Que pelos altos paços vão soando,

Em consonância igual, os instumentos

Suaves vêm a um tempo conformando.

Um súbito silêncio enfreia os ventos

E faz ir docemente murmurando

As águas, e nas casas naturais

Adormecer os brutos animais.

Com doce voz está subindo ao Céu

Altos varões que estão por vir ao mundo,

Cujas claras Ideias viu Proteu

Num globo vão, diáfano, rotundo,

Que Júpiter em dom lho concedeu

Em sonhos, e despois no Reino fundo,

Vaticinando, o disse, e na memória

Recolheu logo a Ninfa a clara história.

Matéria é de coturno, e não de soco,

A que a Ninfa aprendeu no imenso lago;

Qual Iopas não soube, ou Demodoco,

Entre os Feaces um, outro em Cartago.

Aqui, minha Calíope, te invoco

Neste trabalho extremo, por que em pago

Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo,

O gosto de escrever, que vou perdendo.

Vão os anos decendo, e já do Estio

Há pouco que passar até o Outono;

A Fortuna me faz o engenho frio,

Do qual já não me jacto nem me abono;

Os desgostos me vão levando ao rio

Do negro esquecimento e eterno sono.

Mas tu me dá que cumpra, ó grão rainha

Das Musas, co que quero à nação minha!

Cantava a bela Deusa que viriam

Do Tejo, pelo mar que o Gama abrira,

Armadas que as ribeiras venceriam

Por onde o Oceano Índico suspira;

E que os Gentios Reis que não dariam

A cerviz sua ao jugo, o ferro e ira

Provariam do braço duro e forte,

Até render-se a ele ou logo à morte.

Cantava dum que tem nos Malabares

Do sumo sacerdócio a dignidade,

Que, só por não quebrar cos singulares

Barões os nós que dera d’amizade,

Sofrerá suas cidades e lugares,

Com ferro, incêndios, ira e crueldade,

Ver destruir do Samorim potente,

Que tais ódios terá co a nova gente.

E canta como lá se embarcaria

Em Belém o remédio deste dano,

Sem saber o que em si ao mar traria,

O grão Pacheco, Aquiles Lusitano.

O peso sentirão, quando entraria,

O curvo lenho e o férvido Oceano,

Quando mais n’água os troncos que gemerem

Contra sua natureza se meterem.

Mas, já chegado aos fins Orientais

E deixado em ajuda do gentio Rei de

Cochim, com poucos naturais,

Nos braços do salgado e curvo rio

Desbaratará os Naires infernais

No passo Cambalão, tornando frio

D’espanto o ardor imenso do Oriente,

Que verá tanto obrar tão pouca gente.

Chamará o Samorim mais gente nova;

Virão Reis [de] Bipur e de Tanor,

Das serras de Narsinga, que alta prova

Estarão prometendo a seu senhor;

Fará que todo o Naire, enfim, se mova

Que entre Calecu jaz e Cananor,

D’ambas as Leis imigas pera a guerra:

Mouros por mar, Gentios pola terra.

E todos outra vez desbaratando,

Por terra e mar, o grão Pacheco ousado,

A grande multidão que irá matando

A todo o Malabar terá admirado.

Cometerá outra vez, não dilatando,

O Gentio os combates, apressado,

Injuriando os seus, fazendo votos

Em vão aos Deuses vãos, surdos e imotos.

Já não defenderá somente os passos,

Mas queimar-lhe-á lugares, templos, casas;

Aceso de ira, o Cão, não vendo lassos

Aqueles que as cidades fazem rasas,

Fará que os seus, de vida pouco escassos,

Cometam o Pacheco, que tem asas,

Por dous passos num tempo; mas voando

Dum noutro, tudo irá desbaratando.

Virá ali o Samorim, por que em pessoa

Veja a batalha e os seus esforce e anime;

Mas um tiro, que com zunido voa,

De sangue o tingirá no andor sublime.

Já não verá remédio ou manha boa

Nem força que o Pacheco muito estime;

Inventará traições e vãos venenos,

Mas sempre (o Céu querendo) fará menos.

Que tornará a vez sétima (cantava)

Pelejar co invicto e forte Luso,

A quem nenhum trabalho pesa e agrava;

Mas, contudo, este só o fará confuso.

Trará pera a batalha, horrenda e brava,

Máquinas de madeiros fora de uso,

Pera lhe abalroar as caravelas,

Que até’li vão lhe fora cometê-las.

Pela água levará serras de fogo

Pera abrasar-lhe quanta armada tenha;

Mas a militar arte e engenho logo

Fará ser vã a braveza com que venha.

- «Nenhum claro barão no Márcio jogo,

Que nas asas da Fama se sustenha,

Chega a este, que a palma a todos toma.

E perdoe-me a ilustre Grécia ou Roma.

«Porque tantas batalhas, sustentadas

Com muito pouco mais de cem soldados,

Com tantas manhas e artes inventadas,

Tantos Cães não imbeles profligados,

Ou parecerão fábulas sonhadas,

Ou que os celestes Coros, invocados,

Decerão a ajudá-lo e lhe darão

Esforço, força, ardil e coração.

«Aquele que nos campos Maratónios

O grão poder de Dário estrui e rende,

Ou quem, com quatro mil Lacedemónios,

O passo de Termópilas defende,

Nem o mancebo Cocles dos Ausónios,

Que com todo o poder Tusco contende

Em defensa da ponte, ou Quinto Fábio,

Foi como este na guerra forte e sábio.»

Mas neste passo a Ninfa, o som canoro

Abaxando, fez ronco e entristecido,

Cantando em baxa voz, envolta em choro,

O grande esforço mal agardecido.

- «Ó Belisário (disse) que no coro

Das Musas serás sempre engrandecido,

Se em ti viste abatido o bravo Marte,

Aqui tens com quem podes consolar-te!

«Aqui tens companheiro, assi nos feitos

Como no galardão injusto e duro;

Em ti e nele veremos altos peitos

A baxo estado vir, humilde e escuro.

Morrer nos hospitais, em pobres leitos,

Os que ao Rei e à Lei servem de muro!

Isto fazem os Reis cuja vontade

Manda mais que a justiça e que a verdade.

«Isto fazem os Reis quando embebidos

Nüa aparência branda que os contenta

Dão os prémios, de Aiace merecidos,

À língua vã de Ulisses, fraudulenta.

Mas vingo-me: que os bens mal repartidos

Por quem só doces sombras apresenta,

Se não os dão a sábios cavaleiros,

Dão-os logo a avarentos lisonjeiros.

«Mas tu, de quem ficou tão mal pagado

Um tal vassalo, ó Rei, só nisto inico,

Se não és pera dar-lhe honroso estado,

É ele pera dar-te um Reino rico.

Enquanto for o mundo rodeado

Dos Apolíneos raios, eu te fico

Que ele seja entre a gente ilustre e claro,

E tu nisto culpado por avaro.

«Mas eis outro (cantava) intitulado

Vem com nome real e traz consigo

O filho, que no mar será ilustrado,

Tanto como qualquer Romano antigo.

Ambos darão com braço forte, armado,

A Quíloa fértil, áspero castigo,

Fazendo nela Rei leal e humano,

Deitado fora o pérfido tirano.

«Também farão Mombaça, que se arreia

De casas sumptuosas e edifícios,

Co ferro e fogo seu queimada e feia,

Em pago dos passados malefícios.

Despois, na costa da Índia, andando cheia

De lenhos inimigos e artifícios

Contra os Lusos, com velas e com remos

O mancebo Lourenço fará extremos.

«Das grandes naus do Samorim potente,

Que encherão todo o mar, co a férrea pela,

Que sai com trovão do cobre ardente,

Fará pedaços leme, masto, vela.

Despois, lançando arpéus ousadamente

Na capitaina imiga, dentro nela

Saltando o fará só com lança e espada

De quatrocentos Mouros despejada.

«Mas de Deus a escondida providência

(Que ela só sabe o bem de que se serve)

O porá onde esforço nem prudência

Poderá haver que a vida lhe reserve.

Em Chaúl, onde em sangue e resistência

O mar todo com fogo e ferro ferve,

Lhe farão que com vida se não saia

As armadas de Egipto e de Cambaia.

«Ali o poder de muitos inimigos

(Que o grande esforço só com força rende),

Os ventos que faltaram, e os perigos

Do mar, que sobejaram, tudo o ofende.

Aqui ressurjam todos os Antigos,

A ver o nobre ardor que aqui se aprende:

Outro Ceva verão, que, espedaçado,

Não sabe ser rendido nem domado.

«Com toda üa coxa fora, que em pedaços

Lhe leva um cego tiro que passara,

Se serve inda dos animosos braços

E do grão coração que lhe ficara.

Até que outro pelouro quebra os laços

Com que co alma o corpo se liara:

Ela, solta, voou da prisão fora

Onde súbito se acha vencedora.

«Vai-te, alma, em paz, da guerra turbulenta,

Na qual tu mereceste paz serena!

Que o corpo, que em pedaços se apresenta,

Quem o gerou, vingança já lhe ordena:

Que eu ouço retumbar a grão tormenta,

Que vem já dar a dura e eterna pena,

De esperas, basiliscos e trabucos,

A Cambaicos cruéis e Mamelucos.

«Eis vem o pai, com ânimo estupendo,

Trazendo fúria e mágoa por antolhos,

Com que o paterno amor lhe está movendo

Fogo no coração, água nos olhos.

A nobre ira lhe vinha prometendo

Que o sangue fará dar pelos giolhos

Nas inimigas naus; senti-lo-á o Nilo,

Podê-lo-á o Indo ver e o Gange ouvi-lo.

«Qual o touro cioso, que se ensaia

Pera a crua peleja, os cornos tenta

No tronco dum carvalho ou alta faia

E, o ar ferindo, as forças experimenta:

Tal, antes que no seio de Cambaia

Entre Francisco irado, na opulenta

Cidade de Dabul a espada afia,

Abaxando-lhe a túmida ousadia.

«E logo, entrando fero na enseada

De Dio, ilustre em cercos e batalhas,

Fará espalhar a fraca e grande armada

De Calecu, que remos tem por malhas.

A de Melique Iaz, acautelada,

Cos pelouros que tu, Vulcano, espalhas,

Fará ir ver o frio e fundo assento,

Secreto leito do húmido elemento.

«Mas a de Mir Hocém, que, abalroando,

A fúria esperará dos vingadores,

Verá braços e pernas ir nadando

Sem corpos, pelo mar, de seus senhores.

Raios de fogo irão representando,

No cego ardor, os bravos domadores.

Quanto ali sentirão olhos e ouvidos

É fumo, ferro, flamas e alaridos.

«Mas ah, que desta próspera vitória,

Com que despois virá ao pátrio Tejo,

Quási lhe roubará a famosa glória

Um sucesso, que triste e negro vejo!

O Cabo Tormentório, que a memória

Cos ossos guardará, não terá pejo

De tirar deste mundo aquele esprito,

Que não tiraram toda a Índia e Egipto.

«Ali, Cafres selvagens poderão

O que destros imigos não puderam;

E rudos paus tostados sós farão

O que arcos e pelouros não fizeram.

Ocultos os juízos de Deus são;

As gentes vãs, que não nos entenderam,

Chamam-lhe fado mau, fortuna escura,

Sendo só providência de Deus pura.

«Mas oh, que luz tamanha que abrir sinto

(Dizia a Ninfa, e a voz alevantava)

Lá no mar de Melinde, em sangue tinto

Das cidades de Lamo, de Oja e Brava,

Pelo Cunha também, que nunca extinto

Será seu nome em todo o mar que lava

As ilhas do Austro, e praias que se chamam

De São Lourenço, e em todo o Sul se afamam!

«Esta luz é do fogo e das luzentes

Armas com que Albuquerque irá amansando

De Ormuz os Párseos, por seu mal valentes,

Que refusam o jugo honroso e brando.

Ali verão as setas estridentes

Reciprocar-se, a ponta no ar virando

Contra quem as tirou; que Deus peleja

Por quem estende a fé da Madre Igreja.

«Ali do sal os montes não defendem

De corrupção os corpos no combate,

Que mortos pela praia e mar se estendem

De Gerum, de Mazcate e Calaiate;

Até que à força só de braço aprendem

A abaxar a cerviz, onde se lhe ate

Obrigação de dar o reino inico

Das perlas de Barém tributo rico.

«Que gloriosas palmas tecer vejo

Com que Vitória a fronte lhe coroa,

Quando, sem sombra vã de medo ou pejo,

Toma a ilha ilustríssima de Goa!

Despois, obedecendo ao duro ensejo,

A deixa, e ocasião espera boa

Com que a torne a tomar, que esforço e arte

Vencerão a Fortuna e o próprio Marte.

«Eis já sobr’ela torna e vai rompendo

Por muros, fogo, lanças e pelouros,

Abrindo com a espada o espesso e horrendo

Esquadrão de Gentios e de Mouros.

Irão soldados ínclitos fazendo

Mais que liões famélicos e touros,

Na luz que sempre celebrada e dina

Será da Egípcia Santa Caterina.

«Nem tu menos fugir poderás deste,

Posto que rica e posto que assentada

Lá no grémio da Aurora, onde naceste,

Opulenta Malaca nomeada.

As setas venenosas que fizeste,

Os crises com que já te vejo armada,

Malaios namorados, Jaus valentes,

Todos farás ao Luso obedientes.»

Mais estanças cantara esta Sirena

Em louvor do ilustríssimo Albuquerque,

Mas alembrou-lhe üa ira que o condena,

Posto que a fama sua o mundo cerque.

O grande Capitão, que o fado ordena

Que com trabalhos glória eterna merque,

Mais há-de ser um brando companheiro

Pera os seus, que juiz cruel e inteiro.

Mas em tempo que fomes e asperezas,

Doenças, frechas e trovões ardentes,

A sazão e o lugar, fazem cruezas

Nos soldados a tudo obedientes,

Parece de selváticas brutezas,

De peitos inumanos e insolentes,

Dar extremo suplício pela culpa

Que a fraca humanidade e Amor desculpa.

Não será a culpa abominoso incesto

Nem violento estupro em virgem pura,

Nem menos adultério desonesto,

Mas cüa escrava vil, lasciva e escura.

Se o peito, ou de cioso, ou de modesto,

Ou de usado a crueza fera e dura,

Cos seus üa ira insana não refreia,

Põe na fama alva noda negra e feia.

Viu Alexandre Apeles namorado

Da sua Campaspe, e deu-lha alegremente,

Não sendo seu soldado exprimentado,

Nem vendo-se num cerco duro e urgente.

Sentiu Ciro que andava já abrasado

Araspas, de Panteia, em fogo ardente,

Que ele tomara em guarda, e prometia

Que nenhum mau desejo o venceria;

Mas, vendo o ilustre Persa que vencido

Fora de Amor, que, enfim, não tem defensa,

Levemente o perdoa, e foi servido

Dele num caso grande, em recompensa.

Per força, de Judita foi marido

O férreo Balduíno; mas dispensa

Carlos, pai dela, posto em causas grandes,

Que viva e povoador seja de Frandes.

Mas, prosseguindo a Ninfa o longo canto,

De Soares cantava, que as bandeiras

Faria tremular e pôr espanto

Pelas roxas Arábicas ribeiras:

- «Medina abominábil teme tanto,

Quanto Meca e Gidá, co as derradeiras

Praias de Abássia; Barborá se teme

Do mal de que o empório Zeila geme.

«A nobre ilha também de Taprobana,

Já pelo nome antigo tão famosa

Quanto agora soberba e soberana

Pela cortiça cálida, cheirosa,

Dela dará tributo à Lusitana

Bandeira, quando, excelsa e gloriosa,

Vencendo se erguerá na torre erguida,

Em Columbo, dos próprios tão temida.

«Também Sequeira, as ondas Eritreias

Dividindo, abrirá novo caminho

Pera ti, grande Império, que te arreias

De seres de Candace e Sabá ninho.

Maçuá, com cisternas de água cheias

Verá, e o porto Arquico, ali vizinho;

E fará descobir remotas Ilhas,

Que dão ao mundo novas maravilhas.

«Virá despois Meneses, cujo ferro

Mais na Africa, que cá, terá provado;

Castigará de Ormuz soberba o erro,

Com lhe fazer tributo dar dobrado.

Também tu, Gama, em pago do desterro

Em que estás e serás inda tornado,

Cos títulos de Conde e d’honras nobres

Virás mandar a terra que descobres.

«Mas aquela fatal necessidade

De quem ninguém se exime dos humanos,

Ilustrado co a Régia dignidade,

Te tirará do mundo e seus enganos.

Outro Meneses logo, cuja idade

É maior na prudência que nos anos,

Governará; e fará o ditoso Henrique

Que perpétua memória dele fique.

«Não vencerá somente os Malabares,

Destruindo Panane com Coulete,

Cometendo as bombardas, que, nos ares,

Se vingam só do peito que as comete;

Mas com virtudes, certo, singulares,

Vence os imigos d’alma todos sete;

De cobiça triunfa e incontinência,

Que em tal idade é suma de excelência.

«Mas, despois que as Estrelas o chamarem,

Sucederás, ó forte Mascarenhas;

E, se injustos o mando te tomarem,

Prometo-te que fama eterna tenhas.

Pera teus inimigos confessarem

Teu valor alto, o fado quer que venhas

A mandar, mais de palmas coroado,

Que de fortuna justa acompanhado.

«No reino de Bintão, que tantos danos

Terá a Malaca muito tempo feitos,

Num só dia as injúrias de mil anos

Vingarás, co valor de ilustres peitos.

Trabalhos e perigos inumanos,

Abrolhos férreos mil, passos estreitos,

Tranqueiras, baluartes, lanças, setas:

Tudo fico que rompas e sometas.

«Mas na Índia, cobiça e ambição,

Que claramente põem aberto o rosto

Contra Deus e Justiça, te farão

Vitupério nenhum, mas só desgosto.

Quem faz injúria vil e sem razão,

Com forças e poder em que está posto,

Não vence; que a vitória verdadeira

É saber ter justiça nua e inteira.

«Mas, contudo, não nego que Sampaio

Será, no esforço, ilustre e assinalado,

Mostrando-se no mar um fero raio,

Que de inimigos mil verá coalhado.

Em Bacanor fará cruel ensaio

No Malabar, pera que, amedrontado,

Despois a ser vencido dele venha

Cutiale, com quanta armada tenha.

«E não menos de Dio a fera frota,

Que Chaúl temerá, de grande e ousada,

Fará, co a vista só, perdida e rota,

Por Heitor da Silveira e destroçada;

Por Heitor Português, de quem se nota

Que na costa Cambaica, sempre armada,

Será aos Guzarates tanto dano,

Quanto já foi aos Gregos o Troiano.

«A Sampaio feroz sucederá

Cunha, que longo tempo tem o leme:

De Chale as torres altas erguerá,

Enquanto Dio ilustre dele treme;

O forte Baçaim se lhe dará,

Não sem sangue, porém, que nele geme

Melique, porque à força só de espada

A tranqueira soberba vê tomada.

«Trás este vem Noronha, cujo auspício

De Dio os Rumes feros afugenta;

Dio, que o peito e bélico exercício

De António da Silveira bem sustenta.

Fará em Noronha a morte o usado ofício,

Quando um teu ramo, ó Gama, se exprimenta

No governo do Império, cujo zelo

Com medo o Roxo Mar fará amarelo.

«Das mãos do teu Estêvão vem tomar

As rédeas um, que já será ilustrado

No Brasil, com vencer e castigar

O pirata Francês, ao mar usado.

Despois, Capitão-mor do Índico mar,

O muro de Damão, soberbo e armado,

Escala e primeiro entra a porta aberta,

Que fogo e frechas mil terão coberta.

«A este o Rei Cambaico soberbíssimo

Fortaleza dará na rica Dio,

Por que contra o Mogor poderosíssimo

Lhe ajude a defender o senhorio.

Despois irá com peito esforçadíssimo

A tolher que não passe o Rei gentio

De Calecu, que assi com quantos veio

O fará retirar, de sangue cheio.

«Destruirá a cidade Repelim,

Pondo o seu Rei, com muitos, em fugida;

E despois, junto ao Cabo Comorim,

üa façanha faz esclarecida:

A frota principal do Samorim,

Que destruir o mundo não duvida,

Vencerá co furor do ferro e fogo;

Em si verá Beadala o Márcio jogo.

«Tendo assi limpa a Índia dos imigos,

Virá despois com ceptro a governá-Ia

Sem que ache resistência nem perigos,

Que todos tremem dele e nenhum fala.

Só quis provar os ásperos castigos

Baticalá, que vira já Beadala.

De sangue e corpos mortos ficou cheia

E de fogo e trovões desfeita e feia.

«Este será Martinho, que de Marte

O nome tem co as obras derivado;

Tanto em armas ilustre em toda parte,

Quanto, em conselho, sábio e bem cuidado.

Suceder-lhe-á ali Castro, que o estandarte

Português terá sempre levantado,

Conforme sucessor ao sucedido,

Que um ergue Dio, outro o defende erguido.

«Persas feroces, Abassis e Rumes,

Que trazido de Roma o nome têm,

Vários de gestos, vários de costumes

(Que mil nações ao cerco feras vêm),

Farão dos Céus ao mundo vãos queixumes

Porque uns poucos a terra lhe detêm.

Em sangue Português, juram, descridos,

De banhar os bigodes retorcidos.

«Basiliscos medonhos e liões,

Trabucos feros, minas encobertas,

Sustenta Mascarenhas cos barões

Que tão ledos as mortes têm por certas;

Até que, nas maiores opressões,

Castro libertador, fazendo ofertas

Das vidas de seus filhos, quer que fiquem

Com fama eterna e a Deus se sacrifiquem.

«Fernando, um deles, ramo da alta pranta,

Onde o violento fogo, com ruido,

Em pedaços os muros no ar levanta,

Será ali arrebatado e ao Céu subido.

Álvaro, quando o Inverno o mundo espanta

E tem o caminho húmido impedido,

Abrindo-o, vence as ondas e os perigos,

Os ventos e despois os inimigos.

«Eis vem despois o pai, que as ondas corta

Co restante da gente Lusitana,

E com força e saber, que mais importa,

Batalha dá felice e soberana.

Uns, paredes subindo, escusam porta;

Outros a abrem na fera esquadra insana.

Feitos farão tão dinos de memória

Que não caibam em verso ou larga história.

«Este, despois, em campo se apresenta,

Vencedor forte e intrépido, ao possante

Rei de Cambaia e a vista lhe amedrenta

Da fera multidão quadrupedante.

Não menos suas terras mal sustenta

O Hidalcão, do braço triunfante

Que castigando vai Dabul na costa;

Nem lhe escapou Pondá, no sertão posta.

«Estes e outros Barões, por várias partes,

Dinos todos de fama e maravilha,

Fazendo-se na terra bravos Martes,

Virão lograr os gostos desta Ilha,

Varrendo triunfantes estandartes

Pelas ondas que corta a aguda quilha;

E acharão estas Ninfas e estas mesas,

Que glórias e honras são de árduas empresas.»

Assi cantava a Ninfa; e as outras todas,

Com sonoroso aplauso, vozes davam,

Com que festejam as alegres vodas

Que com tanto prazer se celebravam.

- «Por mais que da Fortuna andem as rodas

(Nüa cônsona voz todas soavam),

Não vos hão-de faltar, gente famosa,

Honra, valor e fama gloriosa.»

Despois que a corporal necessidade

Se satisfez do mantimento nobre,

E na harmonia e doce suavidade

Viram os altos feitos que descobre,

Tétis, de graça ornada e gravidade,

Pera que com mais alta glória dobre

As festas deste alegre e claro dia,

Pera o felice Gama assi dizia:

- «Faz-te mercê, barão, a Sapiência

Suprema de, cos olhos corporais,

Veres o que não pode a vã ciência

Dos errados e míseros mortais.

Sigue-me firme e forte, com prudência,

Por este monte espesso, tu cos mais.»

Assi lhe diz e o guia por um mato

Árduo, difícil, duro a humano trato.

Não andam muito que no erguido cume

Se acharam, onde um campo se esmaltava

De esmeraldas, rubis, tais que presume

A vista que divino chão pisava.

Aqui um globo vêm no ar, que o lume

Claríssimo por ele penetrava,

De modo que o seu centro está evidente,

Como a sua superfícia, claramente.

Qual a matéria seja não se enxerga,

Mas enxerga-se bem que está composto

De vários orbes, que a Divina verga

Compôs, e um centro a todos só tem posto.

Volvendo, ora se abaxe, agora se erga,

Nunca s’ergue ou se abaxa, e um mesmo rosto

Por toda a parte tem; e em toda a parte

Começa e acaba, enfim, por divina arte,

Uniforme, perfeito, em si sustido,

Qual, enfim, o Arquetipo que o criou.

Vendo o Gama este globo, comovido

De espanto e de desejo ali ficou.

Diz-lhe a Deusa: - «O transunto, reduzido

Em pequeno volume, aqui te dou

Do Mundo aos olhos teus, pera que vejas

Por onde vás e irás e o que desejas.

«Vês aqui a grande máquina do Mundo,

Etérea e elemental, que fabricada

Assi foi do Saber, alto e profundo,

Que é sem princípio e meta limitada.

Quem cerca em derredor este rotundo

Globo e sua superfícia tão limada,

É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,

Que a tanto o engenho humano não se estende.

«Este orbe que, primeiro, vai cercando

Os outros mais pequenos que em si tem,

Que está com luz tão clara radiando

Que a vista cega e a mente vil também,

Empíreo se nomeia, onde logrando

Puras almas estão daquele Bem

Tamanho, que ele só se entende e alcança,

De quem não há no mundo semelhança.

«Aqui, só verdadeiros, gloriosos

Divos estão, porque eu, Saturno e Jano,

Júpiter, Juno, fomos fabulosos,

Fingidos de mortal e cego engano.

Só pera fazer versos deleitosos

Servimos; e, se mais o trato humano

Nos pode dar, é só que o nome nosso

Nestas estrelas pôs o engenho vosso.

«E também, porque a santa Providência,

Que em Júpiter aqui se representa,

Por espíritos mil que têm prudência

Governa o Mundo todo que sustenta

(Ensina-lo a profética ciência,

Em muitos dos exemplos que apresenta);

Os que são bons, guiando, favorecem,

Os maus, em quanto podem, nos empecem;

«Quer logo aqui a pintura que varia

Agora deleitando, ora ensinando,

Dar-lhe nomes que a antiga Poesia

A seus Deuses já dera, fabulando;

Que os Anjos de celeste companhia

Deuses o sacro verso está chamando,

Nem nega que esse nome preminente

Também aos maus se dá, mas falsamente.

«Enfim que o Sumo Deus, que por segundas

Causas obra no Mundo, tudo manda.

E tornando a contar-te das profundas

Obras da Mão Divina veneranda,

Debaxo deste círculo onde as mundas

Almas divinas gozam, que não anda,

Outro corre, tão leve e tão ligeiro

Que não se enxerga: é o Móbile primeiro.

«Com este rapto e grande movimento

Vão todos os que dentro tem no seio;

Por obra deste, o Sol, andando a tento,

O dia e noite faz, com curso alheio.

Debaxo deste leve, anda outro lento,

Tão lento e sojugado a duro freio,

Que enquanto Febo, de luz nunca escasso,

Duzentos cursos faz, dá ele um passo.

«Olha estoutro debaxo, que esmaltado

De corpos lisos anda e radiantes,

Que também nele tem curso ordenado

E nos seus axes correm cintilantes.

Bem vês como se veste e faz ornado

Co largo Cinto d, ouro, que estelantes

Animais doze traz afigurados,

Apousentos de Febo limitados.

«Olha por outras partes a pintura

Que as Estrelas fulgentes vão fazendo:

Olha a Carreta, atenta a Cinosura,

Andrómeda e seu pai, e o Drago horrendo;

Vê de Cassiopeia a fermosura

E do Orionte o gesto turbulento;

Olha o Cisne morrendo que suspira,

A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira.

«Debaxo deste grande Firmamento,

Vês o céu de Saturno, Deus antigo;

Júpiter logo faz o movimento,

E Marte abaxo, bélico inimigo;

O claro Olho do céu, no quarto assento,

E Vénus, que os amores traz consigo;

Mercúrio, de eloquência soberana;

Com três rostos, debaxo vai Diana.

«Em todos estes orbes, diferente

Curso verás, nuns grave e noutros leve;

Ora fogem do Centro longamente,

Ora da Terra estão caminho breve,

Bem como quis o Padre omnipotente,

Que o fogo fez e o ar, o vento e neve,

Os quais verás que jazem mais a dentro

E tem co Mar a Terra por seu centro.

«Neste centro, pousada dos humanos,

Que não somente, ousados, se contentam

De sofrerem da terra firme os danos,

Mas inda o mar instábil exprimentam,

Verás as várias partes, que os insanos

Mares dividem, onde se apousentam

Várias nações que mandam vários Reis,

Vários costumes seus e várias leis.

«Vês Europa Cristã, mais alta e clara

Que as outras em polícia e fortaleza.

Vês África, dos bens do mundo avara,

Inculta e toda cheia de bruteza;

Co Cabo que até’aqui se vos negara,

Que assentou pera o Austro a Natureza.

Olha essa terra toda, que se habita

Dessa gente sem Lei, quási infinita.

«Vê do Benomotapa o grande império,

De selvática gente, negra e nua,

Onde Gonçalo morte e vitupério

Padecerá, pola Fé santa sua.

Nace por este incógnito Hemispério

O metal por que mais a gente sua.

Vê que do lago donde se derrama

O Nilo, também vindo está Cuama.

«Olha as casas dos negros, como estão

Sem portas, confiados, em seus ninhos,

Na justiça real e defensão

E na fidelidade dos vizinhos;

Olha deles a bruta multidão,

Qual bando espesso e negro de estorninhos,

Combaterá em Sofala a fortaleza, Que

defenderá Nhaia com destreza.

«Olha lá as alagoas donde o Nilo

Nace, que não souberam os antigos;

Vê-lo rega, gerando o crocodilo,

Os povos Abassis, de Crista amigos;

Olha como sem muros (novo estilo)

Se defendem milhor dos inimigos;

Vê Méroe, que ilha foi de antiga fama,

Que ora dos naturais Nobá se chama.

«Nesta remota terra um filho teu

Nas armas contra os Turcos será claro;

Há-de ser Dom Cristóvão o nome seu;

Mas contra o fim fatal não há reparo.

Vê cá a costa do mar, onde te deu

Melinde hospício gasalhoso e caro;

O Rapto rio nota, que o romance

Da terra chama Obi; entra em Quilmance.

«O Cabo vê já Arómata chamado,

E agora Guardafú, dos moradores,

Onde começa a boca do afamado

Mar Roxo, que do fundo toma as cores;

Este como limite está lançado

Que divide Asia de Africa; e as milhores

Povoações que a parte Africa tem

Maçuá são, Arquico e Suaquém.

«Vês o extremo Suez, que antigamente

Dizem que foi dos Héroas a cidade

(Outros dizem que Arsínoe), e ao presente

Tem das frotas do Egipto a potestade.

Olha as águas nas quais abriu patente

Estrada o grão Mousés na antiga idade.

Ásia começa aqui, que se apresenta

Em terras grande, em reinos opulenta.

«Olha o monte Sinai, que se ennobrece

Co sepulcro de Santa Caterina;

Olha Toro e Gidá, que lhe falece

Água das fontes, doce e cristalina;

Olha as portas do Estreito, que fenece

No reino da seca Ádem, que confina

Com a serra d’Arzira, pedra viva,

Onde chuva dos céus se não deriva.

«Olha as Arábias três, que tanta terra

Tomam, todas da gente vaga e baça,

Donde vêm os cavalos pera a guerra,

Ligeiros e feroces, de alta raça;

Olha a costa que corrre, até que cera

Outro Estreito de Pérsia, e faz a traça

O Cabo que co nome se apelida

Da cidade Fartaque, ali sabida.

«Olha Dófar, insigne porque manda

O mais cheiroso incenso pera as aras;

Mas atenta: já cá destoutra banda

De Roçalgate, e praias sempre avaras,

Começa o reino Ormuz, que todo se anda

Pelas ribeiras que inda serão claras

Quando as galés do Turco e fera armada

Virem de Castelbranco nua a espada.

«Olha o Cabo Asaboro, que chamado

Agora é Moçandão, dos navegantes;

Por aqui entra o lago que é fechado

De Arábia e Pérsias terras abundantes.

Atenta a ilha Barém, que o fundo ornado

Tem das suas perlas ricas, e imitantes

A cor da Aurora; e vê na água salgada

Ter o Tígris e Eufrates üa entrada.

«Olha da grande Pérsia o império nobre,

Sempre posto no campo e nos cavalos,

Que se injuria de usar fundido cobre

E de não ter das armas sempre os calos.

Mas vê a ilha Gerum, como descobre

O que fazem do tempo os intervalos,

Que da cidade Armuza, que ali esteve,

Ela o nome despois e a glória teve.

«Aqui de Dom Filipe de Meneses

Se mostrará a virtude, em armas clara,

Quando, com muito poucos Portugueses,

Os muitos Párseos vencerá de Lara.

Virão provar os golpes e reveses

De Dom Pedro de Sousa, que provara

Já seu braço em Ampaza, que deixada

Terá por terra, à força só de espada.

«Mas deixemos o Estreito e o conhecido

Cabo de Jasque, dito já Carpela,

Com todo o seu terreno mal querido

Da Natura e dos dões usados dela;

Carmânia teve já por apelido.

Mas vês o fermoso Indo, que daquela

Altura nace, junto à qual, também

Doutra altura correndo o Gange vem?

«OIha a terra de Ulcinde, fertilíssima,

E de Jáquete a íntima enseada;

Do mar a enchente súbita, grandíssima,

E a vazante, que foge apressurada.

A terra de Cambaia vê, riquíssima,

Onde do mar o seio faz entrada;

Cidades outras mil, que vou passando,

A vós outros aqui se estão guardando.

«Vês corre a costa célebre Indiana

Pera o Sul, até o Cabo Comori,

Já chamado Cori, que Taprobana

(Que ora é Ceilão) defronte tem de si.

Por este mar a gente Lusitana,

Que com armas virá despois de ti,

Terá vitórias, terras e cidades,

Nas quais hão-de viver muitas idades.

«As províncias que entre um e o outro rio

Vês, com várias nações, são infinitas:

Um reino Mahometa, outro Gentio,

A quem tem o Demónio leis escritas.

Olha que de Narsinga o senhorio

Tem as relíquias santas e benditas

Do corpo de Tomé, barão sagrado,

Que a Jesu Cristo teve a mão no lado.

«Aqui a cidade foi que se chamava

Meliapor, fermosa, grande e rica;

Os Ídolos antigos adorava

Como inda agora faz a gente inica.

Longe do mar naquele tempo estava,

Quando a Fé, que no mundo se pubrica,

Tomé vinha prègando, e já passara

Províncias mil do mundo, que ensinara.

«Chegado aqui, pregando e junto dando

A doentes saúde, a mortos vida,

Acaso traz um dia o mar, vagando,

Um lenho de grandeza desmedida.

Deseja o Rei, que andava edificando,

Fazer dele madeira; e não duvida

Poder tirá-lo a terra, com possantes

Forças d’ homens, de engenhos, de alifantes.

«Era tão grande o peso do madeiro

Que, só pera abalar-se, nada abasta;

Mas o núncio de Cristo verdadeiro

Menos trabalho em tal negócio gasta:

Ata o cordão que traz, por derradeiro,

No tronco, e fàcilmente o leva e arrasta

Pera onde faça um sumptuoso templo

Que ficasse aos futuros por exemplo.

«Sabia bem que se com fé formada

Mandar a um monte surdo que se mova,

Que obedecerá logo à voz sagrada,

Que assi lho ensinou Cristo, e ele o prova.

A gente ficou disto alvoraçada;

Os Brâmenes o têm por cousa nova;

Vendo os milagres, vendo a santidade,

Hão medo de perder autoridade.

«São estes sacerdotes dos Gentios

Em quem mais penetrado tinha enveja;

Buscam maneiras mil, buscam desvios,

Com que Tomé não se ouça, ou morto seja.

O principal, que ao peito traz os fios,

Um caso horrendo faz, que o mundo veja

Que inimiga não há, tão dura e fera,

Como a virtude falsa, da sincera.

«Um filho próprio mata, e logo acusa

De homicídio Tomé, que era inocente;

Dá falsas testemunhas, como se usa;

Condenaram-no a morte brevemente.

O Santo, que não vê milhor escusa

Que apelar pera o Padre omnipotente,

Quer, diante do Rei e dos senhores,

Que se faça um milagre dos maiores.

«O corpo morto manda ser trazido,

Que res[s]ucite e seja perguntado

Quem foi seu matador, e será crido

Por testemunho, o seu, mais aprovado.

Viram todos o moço vivo, erguido,

Em nome de Jesu crucificado:

Dá graças a Tomé, que lhe deu vida,

E descobre seu pai ser homicida.

«Este milagre fez tamanho espanto

Que o Rei se banha logo na água santa,

E muitos após ele; um beija o manto,

Outro louvor do Deus de Tomé canta.

Os Brâmenes se encheram de ódio tanto,

Com seu veneno os morde enveja tanta,

Que, persuadindo a isso o povo rudo,

Determinam matá-lo, em fim de tudo.

«Um dia que pregando ao povo estava,

Fingiram entre a gente um arruído.

(Já Cristo neste tempo lhe ordenava

Que, padecendo, fosse ao Céu subido);

A multidão das pedras que voava

No Santo dá, já a tudo oferecido;

Um dos maus, por fartar-se mais depressa,

Com crua lança o peito lhe atravessa.

«Choraram-te, Tomé, o Gange e o Indo;

Chorou-te toda a terra que pisaste;

Mais te choram as almas que vestindo

Se iam da santa Fé que lhe ensinaste.

Mas os Anjos do Céu, cantando e rindo,

Te recebem na glória que ganhaste.

Pedimos-te que a Deus ajuda peças

Com que os teus Lusitanos favoreças.

«E vós outros que os nomes usurpais

De mandados de Deus, como Tomé,

Dizei: se sois mandados, como estais

Sem irdes a pregar a santa Fé?

Olhai que, se sois Sal e vos danais

Na pátria, onde profeta ninguém é,

Com que se salgarão em nossos dias

(Infiéis deixo) tantas heresias?

«Mas passo esta matéria perigosa

E tornemos à costa debuxada.

Já com esta cidade tão famosa

Se faz curva a Gangética enseada;

Corre Narsinga, rica e poderosa;

Corre Orixa, de roupas abastada;

No fundo da enseada, o ilustre rio

Ganges vem ao salgado senhorio;

«Ganges, no qual os seus habitadores

Morrem banhados, tendo por certeza

Que, inda que sejam grandes pecadores,

Esta água santa os lava e dá pureza.

Vê Catigão, cidade das milhores

De Bengala província, que se preza

De abundante. Mas olha que está posta

Pera o Austro, daqui virada, a costa.

«Olha o reino Arracão; olha o assento

De Pegu, que já monstros povoaram,

Monstros filhos do feio ajuntamento

Düa mulher e um cão, que sós se acharam.

Aqui soante arame no instrumento

Da geração costumam, o que usaram

Por manha da Rainha que, inventando

Tal uso, deitou fora o error nefando.

«Olha Tavai cidade, onde começa

De Sião largo o império tão comprido;

Tenassari, Quedá, que é só cabeça

Das que pimenta ali têm produzido.

Mais avante fareis que se conheça

Malaca por empório ennobrecido,

Onde toda a província do mar grande

Suas mercadorias ricas mande.

«Dizem que desta terra co as possantes

Ondas o mar, entrando, dividiu

A nobre ilha Samatra, que já d’antes

Juntas ambas a gente antiga viu.

Quersoneso foi dita; e das prestantes

Veias d’ouro que a terra produziu,

'Aurea', por epitéto lhe ajuntaram;

Alguns que fosse Ofir imaginaram.

«Mas, na ponta da terra, Cingapura

Verás, onde o caminho às naus se estreita;

Daqui tornando a costa à Cinosura,

Se encurva e pera a Aurora se endireita.

Vês Pam, Patane, reinos, e a longura

De Sião, que estes e outros mais sujeita;

Olha o rio Menão, que se derrama

Do grande lago que Chiamai se chama.

Vês neste grão terreno os diferentes

Nomes de mil nações, nunca sabidas:

Os Laos, em terra e número potentes;

Avás, Bramás, por serras tão compridas;

Vê nos remotos montes outras gentes,

Que Gueos se chamam, de selvages vidas;

Humana carne comem, mas a sua

Pintam com ferro ardente, usança crua.

«Vês, passa por Camboja Mecom rio,

Que capitão das águas se interpreta;

Tantas recebe d’ outro só no Estio,

Que alaga os campos largos e inquieta;

Tem as enchentes quais o Nilo frio;

A gente dele crê, como indiscreta,

Que pena e glória têm, despois de morte,

Os brutos animais de toda sorte.

«Este receberá, plácido e brando,

No seu regaço os Cantos que molhados

Vêm do naufrágio triste e miserando,

Dos procelosos baxos escapados,

Das fomes, dos perigos grandes, quando

Será o injusto mando executado

Naquele cuja Lira sonorosa

Será mais afamada que ditosa.

«Vês, corre a costa que Champá se chama,

Cuja mata é do pau cheiroso ornada;

Vês Cauchichina está, de escura fama,

E de Ainão vê a incógnita enseada;

Aqui o soberbo Império, que se afama

Com terras e riqueza não cuidada,

Da China corre, e ocupa o senhorio

Desde o Trópico ardente ao Cinto frio.

«Olha o muro e edifício nunca crido,

Que entre um império e o outro se edifica,

Certíssimo sinal, e conhecido,

Da potência real, soberba e rica.

Estes, o Rei que têm, não foi nacido

Príncipe, nem dos pais aos filhos fica,

Mas elegem aquele que é famoso

Por cavaleiro, sábio e virtuoso.

«Inda outra muita terra se te esconde

Até que venha o tempo de mostrar-se;

Mas não deixes no mar as Ilhas onde

A Natureza quis mais afamar-se:

Esta, meia escondida, que responde

De longe à China, donde vem buscar-se,

É Japão, onde nace a prata fina,

Que ilustrada será co a Lei divina.

«Olha cá pelos mares do Oriente

Ás infinitas Ilhas espalhadas:

Vê Tidore e Ternate, co fervente

Cume, que lança as flamas ondeadas.

As árvores verás do cravo ardente,

Co sangue Português inda compradas.

Aqui há as áureas aves, que não decem

Nunca à terra e só mortas aparecem.

«Olha de Banda as Ilhas, que se esmaltam

Da vária cor que pinta o roxo fruto;

Às aves variadas, que ali saltam,

Da verde noz tomando seu tributo.

Olha também Bornéu, onde não faltam

Lágrimas no licor coalhado e enxuto

Das árvores, que cânfora é chamado,

Com que da Ilha o nome é celebrado.

«Ali também Timor, que o lenho manda

Sândalo, salutífero e cheiroso;

Olha a Sunda, tão larga que üa banda

Esconde pera o Sul dificultoso;

A gente do Sertão, que as terras anda,

Um rio diz que tem miraculoso,

Que, por onde ele só, sem outro, vai,

Converte em pedra o pau que nele cai.

«Vê naquela que o tempo tornou Ilha,

Que também flamas trémulas vapora,

A fonte que óleo mana, e a maravilha

Do cheiroso licor que o tronco chora,

- Cheiroso, mais que quanto estila a filha

De Ciniras na Arábia, onde ela mora;

E vê que, tendo quanto as outras têm,

Branda seda e fino ouro dá também.

«Olha, em Ceilão, que o monte se alevanta

Tanto que as nuvens passa ou a vista engana;

Os naturais o têm por cousa santa,

Pola pedra onde está a pegada humana.

Nas ilhas de Maldiva nace a pranta

No profundo das águas, soberana,

Cujo pomo contra o veneno urgente

É tido por antídoto excelente.

«Verás defronte estar do Roxo Estreito

Socotorá, co amaro aloé famosa;

Outras ilhas, no mar também sujeito

A vós, na costa de África arenosa,

Onde sai do cheiro mais perfeito

A massa, ao mundo oculta e preciosa.

De São Lourenço vê a Ilha afamada,

Que Madagáscar é dalguns chamada.

«Eis aqui as novas partes do Oriente

Que vós outros agora ao mundo dais,

Abrindo a porta ao vasto mar patente,

Que com tão forte peito navegais.

Mas é também razão que, no Ponente,

Dum Lusitano um feito inda vejais,

Que, de seu Rei mostrando-se agravado,

Caminho há-de fazer nunca cuidado.

«Vedes a grande terra que contina

Vai de Calisto ao seu contrário Pólo,

Que soberba a fará a luzente mina

Do metal que a cor tem do louro Apolo.

Castela, vossa amiga, será dina

De lançar-lhe o colar ao rudo colo.

Varias províncias tem de várias gentes,

Em ritos e costumes, diferentes.

«Mas cá onde mais se alarga, ali tereis

Parte também, co pau vermelho nota;

De Santa Cruz o nome lhe poreis;

Descobri-la-á a primeira vossa frota.

Ao longo desta costa, que tereis,

Irá buscando a parte mais remota

O Magalhães, no feito, com verdade,

Português, porém não na lealdade.

«Dês que passar a via mais que meia

Que ao Antártico Pólo vai da Linha,

Düa estatura quási giganteia

Homens verá, da terra ali vizinha;

E mais avante o Estreito que se arreia

Co nome dele agora, o qual caminha

Pera outro mar e terra que fica onde

Com suas frias asas o Austro a esconde.

«Até’aqui Portugueses concedido

Vos é saberdes os futuros feitos

Que, pelo mar que já deixais sabido,

Virão fazer barões de fortes peitos.

Agora, pois que tendes aprendido

Trabalhos que vos façam ser aceitos

As eternas esposas e fermosas,

Que coroas vos tecem gloriosas,

«Podeis-vos embarcar, que tendes vento

E mar tranquilo, pera a pátria amada.»

Assi lhe disse; e logo movimento

Fazem da Ilha alegre e namorada.

Levam refresco e nobre mantimento;

Levam a companhia desejada

Das Ninfas, que hão-de ter eternamente,

Por mais tempo que o Sol o mundo aquente.

Assi foram cortando o mar sereno,

Com vento sempre manso e nunca irado,

Até que houveram vista do terreno

Em que naceram, sempre desejado.

Entraram pela foz do Tejo ameno,

E à sua pátria e Rei temido e amado

O prémio e glória dão por que mandou,

E com títulos novos se ilustrou.

Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho

Destemperada e a voz enrouquecida,

E não do canto, mas de ver que venho

Cantar a gente surda e endurecida.

O favor com que mais se acende o engenho

Não no dá a pátria, não, que está metida

No gosto da cobiça e na rudeza

Düa austera, apagada e vil tristeza.

E não sei por que influxo de Destino

Não tem um ledo orgulho e geral gosto,

Que os ânimos levanta de contino

A ter pera trabalhos ledo o rosto.

Por isso vós, ó Rei, que por divino

Conselho estais no régio sólio posto,

Olhai que sois (e vede as outras gentes)

Senhor só de vassalos excelentes.

Olhai que ledos vão, por várias vias,

Quais rompentes liões e bravos touros,

Dando os corpos a fomes e vigias,

A ferro, a fogo, a setas e pelouros,

A quentes regiões, a plagas frias,

A golpes de Idolátras e de Mouros,

A perigos incógnitos do mundo,

A naufrágios, a pexes, ao profundo.

Por vos servir, a tudo aparelhados;

De vós tão longe, sempre obedientes;

A quaisquer vossos ásperos mandados,

Sem dar reposta, prontos e contentes.

Só com saber que são de vós olhados,

Demónios infernais, negros e ardentes,

Cometerão convosco, e não duvido

Que vencedor vos façam, não vencido.

Favorecei-os logo, e alegrai-os

Com a presença e leda humanidade;

De rigorosas leis desalivai-os,

Que assi se abre o caminho à santidade.

Os mais exprimentados levantai-os,

Se, com a experiência, têm bondade

Pera vosso conselho, pois que sabem

O como, o quando, e onde as cousas cabem.

Todos favorecei em seus ofícios,

Segundo têm das vidas o talento;

Tenham Religiosos exercícios

De rogarem, por vosso regimento,

Com jejuns, disciplina, pelos vícios

Comuns; toda ambição terão por vento,

Que o bom Religioso verdadeiro

Glória vã não pretende nem dinheiro.

Os Cavaleiros tende em muita estima,

Pois com seu sangue intrépido e fervente

Estendem não sòmente a Lei de cima,

Mas inda vosso Império preminente.

Pois aqueles que a tão remoto clima

Vos vão servir, com passo diligente,

Dous inimigos vencem: uns, os vivos,

E (o que é mais) os trabalhos excessivos.

Fazei, Senhor, que nunca os admirados

Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses,

Possam dizer que são pera mandados,

Mais que pera mandar, os Portugueses.

Tomai conselho só d’exprimentados

Que viram largos anos, largos meses,

Que, posto que em cientes muito cabe.

Mais em particular o experto sabe.

De Formião, filósofo elegante,

Vereis como Anibal escarnecia,

Quando das artes bélicas, diante

Dele, com larga voz tratava e lia.

A disciplina militar prestante

Não se aprende, Senhor, na fantasia,

Sonhando, imaginando ou estudando,

Senão vendo, tratando e pelejando.

Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo,

De vós não conhecido nem sonhado?

Da boca dos pequenos sei, contudo,

Que o louvor sai às vezes acabado.

Tem me falta na vida honesto estudo,

Com longa experiência misturado,

Nem engenho, que aqui vereis presente,

Cousas que juntas se acham raramente.

Pera servir-vos, braço às armas feito,

Pera cantar-vos, mente às Musas dada;

Só me falece ser a vós aceito,

De quem virtude deve ser prezada.

Se me isto o Céu concede, e o vosso peito

Dina empresa tomar de ser cantada,

Como a pres[s]aga mente vaticina

Olhando a vossa inclinação divina,

Ou fazendo que, mais que a de Medusa,

A vista vossa tema o monte Atlante,

Ou rompendo nos campos de Ampelusa

Os muros de Marrocos e Trudante,

A minha já estimada e leda Musa

Fico que em todo o mundo de vós cante,

De sorte que Alexandro em vós se veja,

Sem à dita de Aquiles ter enveja.

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1.

Trovas

a uma Dama que lhe mandou

pedir algumas obras suas

Senhora, se eu alcançasse

no tempo que ler quereis,

que a dita dos meus papéis

pola minha se trocasse;

e por ver

tudo o que posso escrever

em mais breve relação,

indo eu onde eles vão,

por mim só quisésseis ler;

Depois de ver um cuidado

tão contente de seu mal,

veríeis o natural

do que aqui vedes pintado;

que o perfeito

Amor, de que sou sujeito,

vereis áspero e cruel,

aqui com tinta e papel,

em mim co sangue no peito.

Que um contino imaginar

naquilo que Amor ordena,

é pena que, enfim, por pena

se não pode declarar;

que, se eu levo

dentro n'alma quanto devo

de trasladar em papéis,

vede qual melhor lereis:

se a mim, se aquilo que escrevo?

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2.

Cantiga

A este cantar velho:

Saudade minha,

quando vos veria?

VOLTAS

Este tempo vão,

esta vida escassa,

para todos passa,

só para mim não.

Os dias se vão

sem ver este dia,

quando vos veria?

Vede esta mudança

se está bem perdida,

em tão curta vida

tão longa esperança!

Se este bem se alcança,

tudo sofreria,

quando vos veria.

Saudosa dor,

eu bem vos entendo;

mas não me defendo,

porque ofendo Amor.

Se fôsseis maior,

em maior valia

vos estimaria.

Minha saudade,

caro penhor meu,

a quem direi eu

tamanha verdade?

Na minha vontade,

de noite e de dia

sempre vos teria.

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Índice das Trovas

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3.

Cantiga

a esta cantiga alheia:

Vida da minh'alma

não vos posso ver:

isto não é vida

para se sofrer!

VOLTAS

Quando vos eu via,

esse bem lograva,

a vida estimava;

mais então vivia,

porque vos servia

só para vos ver.

Já que vos não vejo,

para que é viver?

Vivo sem rezão,

porque em minha dor

não a pôs Amor,

que inimigos são.

Mui grande treição

me obriga a fazer

que viva, Senhora,

sem vos poder ver.

Não me atrevo já,

minha tão querida,

a chamar-vos vida,

porque a tenho má.

Ninguém cuidará,

que isto pode ser,

sendo-me vós vida,

não poder viver!

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Índice das Trovas

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4.

Outra volta à mesma cantiga

Dous tormentos vejo

grandes por extremo;

se vos vejo, temo,

e, se não, desejo.

Quando me despejo

e venho a escolher

se temo o desejo,

desejo o temer.

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Índice das Trovas

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5.

Cantiga

a esta cantiga alheia:

Pastora da serra,

da serra da Estrela,

perco-me por ela.

VOLTAS

Nos seus olhos belos

tanto Amor se atreve,

que abrasa entre a neve

quantos ousam vê-los.

Não solta os cabelos

Aurora mais bela:

perco-me por ela.

Não teve esta serra

no meio da altura

mais que a fermosura

que nela se encerra.

Bem céu fica a terra

que tem tal estrela:

perco-me por ela.

Sendo entre pastores

causa de mil males,

não se ouvem nos vales

senão seus louvores.

Eu só por amores

não sei falar nela:

sei morrer por ela.

De alguns que, sentindo,

seu mal vão mostrando,

se ri, não cuidando

que inda paga, rindo.

Eu, triste, encobrindo

só meus males dela,

perco-me por ela.

Se flores deseja

por ventura delas,

das que colhe, belas,

mil morrem de enveja.

Não há quem não veja

todo o milhor nela:

perco-me por ela.

Se na água corrente

seusolhos inclina,

faz luz cristalina

parar a corrente.

Tal se vê, que sente,

por ver-se, água nela:

perco-me por ela.

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Índice das Trovas

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6.

Trovas

a uma Dama,

em forma de carta

Querendo escrever um dia

o mal que tanto estimei,

cuidando no que poria,

vi Amor que me dizia:

escreve, que eu notarei.

E como para se ler

não era história pequena

a que de mim quis fazer,

das asas tirou a pena

com que me fez escrever.

E, logo como a tirou,

me disse: Aviva os espritos,

que, pois em teu favor sou,

esta pena que te dou

fará voar teus escritos.

E dando-me a padecer

tudo o que quis que pusesse,

pude, enfim, dele dizer

que me deu com que escrevesse

o que me deu a escrever.

Eu, qu' este engano entendi,

disse-lhe:—que escreverei ?

Respondeu, dizendo assi:

—Altos afeitos de ti,

e daquela a quem te dei.

E já que te manifesto

todas minhas estranhezas,

escreve, pois que te prezas,

milagres dum claro gesto

e, de quem o viu, tristezas.

Ah! Senhora, em quem se apura,

a fé de meu pensamento!

Escutai e estai a tento,

que, com vossa fermosura,

iguala Amor meu tormento.

E, posto que tão remota

estejais de me escutar,

por me não remediar,

ouvi, que, pois Amor nota,

milagres se hão-de notar:

Nota

Escrevem vários autores,

que, junto da clara fonte

do Ganges, os moradores

vivem do cheiro das flores

que nascem naquele monte.

Se os sentidos podem dar

mantimento ao viver,

não é, logo, d'espantar,

se estes vivem de cheirar,

que viv' eu só de vos ver.

üa árvore se conhece,

que, na geral alegria,

ela só tanto entristece, que,

como é noite, florece,

e perde as flores de dia.

Eu, que em ver-vos sinto o preço

que em vossa vista consiste,

em a vendo me entristeço,

porque sei que não mereço

a glória de viver triste.

Um rei de grande poder

com veneno foi criado,

porque, sendo costumado,

não lhe pudesse empecer

se despois lhe fosse dado.

Eu, que criei de pequena

a vida a quanto padece,

desta sorte me acontece,

que não me faz mal a pena

senão quando me falece.

Quem da doença real,

de longe, enfermo se sente,

por segredo natural

fica são, vendo somente

um volátil animal.

Do mal que Amor em mim cria,

quando aquela Fénix vejo,

são de todo ficaria;

mas fica-me hidropesia,

que quanto mais, mais desejo.

Da bívora é verdadeiro

se a consorte vai buscar,

que, em se querendo juntar,

deixa a peçonha primeiro,

porque lhe impede o gerar.

Assi quando me apresento

à vossa vista inumana,

a peçonha do tormento

deixo a parte, porque dana

tamanho contentamento.

Querendo Amor sustentar-se,

fez üa vontade esquiva

düa estátua namorar-se;

despois, por manifestar-se,

converteu-a em mulher viva.

De quem me irei queixando,

ou quem direi que m'engana,

se vou seguindo e buscando

üa imagem que, de humana,

em pedra se vai tornando?

De üa fonte se sabia,

da qual certo se provava

que, quem sobr' ela jurava,

se falsidade dizia,

dos olhos logo cegava.

Vós, que minha liberdade,

Senhora, tiranizais,

injustamente mandais

quando vos falo verdade

que vos não possa ver mais.

Da palma se escreve e canta

ser tão dura e tão forçosa,

que peso não a quebranta,

mas antes, de presunçosa,

com ele mais se levanta.

Co peso do mal que dais,

a constancia que em mim vejo

não somente ma dobrais,

mas dobra-se meu desejo,

com que então vos quero mais.

Se alguém os olhos quiser

as andorinhas quebrar,

logo a mãe, sem se deter,

üa erva lhe vai buscar,

que lhe faz outros nascer.

Eu, que os olhos tenho a tento

nos vossos, que estrelas são,

cegam-se os do entendimento,

mas nascem-me os da razão

de folgar com meu tormento.

Lá para onde o sol sai

descobrimos, navegando,

um novo rio admirando,

que o lenho que nele cai,

em pedra se vai tornando.

Não se espantem disto as gentes;

mais razão será que espante

um coração tão possante

que, com lágrimas ardentes,

se converte em diamante.

Pode um mudo nadador

na linha e cana influir

tão venenoso vigor

que faz mais não se bulir

o braço do pescador.

Se começam de beber

deste veneno excelente

meus olhos, sem se deter,

não se sanem mais mover

a nada que se apresente.

Isto são claros sinais

do muito que em mim podeis:

nem podeis desejar mais;

que, se ver-vos desejais,

em mim claro vos vereis.

E quereis ver a que fim

em mim tanto bem se pôs?

Porque quis Amor assim

que, por vos verdes a vós,

também me vísseis a mim.

Dos males que me ordenais,

que inda tenho por pequenos,

sabei, se mos escutais,

que ja não sei dizer mais,

nem vós podeis saber menos.

Mas já que a tanto tormento

não se acha quem resista,

eu, Senhora, me contento

de terdes meu sofrimento

por alvo de vossa vista.

Quantos contrários consente

Amor, por mais padecer!

Que aquela vista excelente,

que me faz viver contente,

me faça tão triste ser!

Mas dou este entendimento

ao mal que tanto me ofende,

como na vela se entende

que, se se apaga co vento,

co mesmo vento se acende.

Exprimentou-se algüa hora

da ave que chamam Camão,

que, se da casa onde mora

vê adúltera a senhora,

morre de pura paixão.

A dor é tão sem medida,

que remédio lhe não val;

mas, oh ditoso animal,

que pode perder a vida

quando vê tamanho mal!

Nos gostos de vos querer

estava agora enlevado,

se não fora salteado

das lembranças de temer

ser por outrem desamado.

Estas suspeitas tão frias,

com que o pensamento sonha,

são assi como as Harpias,

que as mais doces iguarias,

vão converter em peçonha.

Faz-me este mal infinito

não poder já mais dizer,

por não vir a corromper

os gostos que tenho escrito

cos males que hei-de escrever.

Não quero que se apregoe

mal tanto para encobrir,

porque, enquanto aqui se ouvir,

nenhüa outra coisa soe

que a glória de vos servir.

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Índice das Trovas

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7.

Cantiga

a este moto alheio

Vós, Senhora, tudo tendes,

senão que tendes os olhos verdes.

VOLTAS

Dotou em vós Natureza

o sumo da perfeição,

que, o que em vós é senão,

é em outras gentileza:

o verde não se despreza,

que, agora que vós o tendes,

são belos os olhos verdes.

Ouro e azul é a milhor

cor por que a gente se perde;

mas, a graça desse verde

tira a graça a toda a cor.

Fica agora sendo a flor

a cor que nos olhos tendes,

porque são vossos... e verdes!

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Índice das Trovas

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8.

Cantiga

a este cantar velho:

Sois fermosa e tudo tendes,

senão que tendes os olhos verdes.

VOLTAS

Ninguém vos pode tirar

[o] serdes bem assombrada;

mas heis-me de perdoar,

que os olhos não valem nada.

Fostes mal aconselhada

em querer que fossem verdes:

trabalhai de os esconderdes.

A vossa testa é jardim,

onde Amor se desenfada;

é branca e bem talhada,

que parece de marfim.

Assim é; e, quanto a mim,

isso nasce de a terdes

tão perto dos olhos verdes.

Os cabelos desatados

o mesmo Sol escurecem;

senão que, por serem ondados,

algum tanto desmerecem:

mas, à fé, que se parecem

a furto dos olhos verdes,

não vos pese de os terdes.

As pestanas têm mostrado

ser raios que abrasam vidas;

se não foram tão compridas

tudo o mais era pintado:

elas me tinham levado

já sem o vós saberdes,

se não foram os olhos verdes.

O mimo desse carão

nem pôr-lhe os olhos consente:

e ser liso e transparente

rouba todo o coração.

Inda assim achareis gente

que lhe não pese de o terdes;

mas não seja cos olhos verdes.

Esse riso é composto

de quantas graças nasceram;

senão que alguns me disseram

vos faz covinhas no rosto.

Na vontade tenho posto

dar-vos a alma, se quiserdes,

a troco dos olhos verdes.

Nunca se viu, nem se escreve

boca nem graça igual,

se não fora de coral

e os dentes de cor de neve.

Dou-me a Deus, que me leve!

Sofrerei quanto tiverdes,

não me tenhais os olhos verdes.

Essa garganta merece

outras palavras, não minhas,

senão que é feita em rosquinhas

de alfenim, o que parece.

Eu sei quem se ofrece

a tomar tudo o que tendes,

e também os olhos verdes.

Essas mãos são ferropeias,

só o vê-las, enfeitiça;

senão que são alvas e cheias,

e têm a feição roliça,

com que apelais por justiça,

pera com elas prenderdes

quem vê vossos olhos verdes.

A vossa galantaria

matará a quem falardes;

tendes uns desdéns e tardes

que eu logo vos roubaria.

Dou-me a Santa Maria!

Sou cujo de quanto tendes,

também desses olhos verdes.

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Índice das Trovas

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9.

Outras voltas ao mesmo moto

Tudo tendes singular,

com que os corações rendeis,

senão que rindo fazeis

covinhas para enterrar;

e para ressuscitar

em força a graça que tendes;

senão que tendes os olhos verdes.

Tudo, Senhora, alcançais,

quanto ser fermosa alcança;

senão que dais esperança

cos olhos com que matais.

Se acaso os alevantais,

[é para as almas renderdes;

senão que tendes os olhos verdes].

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10.

Cantiga

a este moto alheio.

Verdes são as hortas

com rosas e flores;

moças que as regam

matam-me d'amores.

VOLTAS

Entre estes penedos

que daqui parecem,

verdes ervas crecem,

altos arvoredos.

Vai destes rochedos

água com que as flores

d'outras são regadas

que matam d'amores.

Co a água que cai

daquela espessura,

outra se mestura

que dos olhos sai:

toda junta vai

regar brancas flores,

onde há outros olhos

que matam d'amores.

Celestes jardins,

as flores, estrelas,

horteloas delas

são uns serafins.

Rosas e jasmins

de diversas cores;

Anjos que as regam

matam-me d'amores.

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Índice das Trovas

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11.

Cantiga

a este moto alheio:

Verdes são os campos

de cor do limão:

assi são os olhos

do meu coração.

VOLTAS

Campo, que te estendes

com verdura bela;

ovelhas, que nela

vosso pasto tendes;

d'ervas vos mantendes

que traz o Verão,

e eu das lembranças

do meu coração.

Gado, que pasceis,

co contentamento,

vosso mantimento

não no entendeis:

Isso que comeis

não são ervas, não:

são graças dos olhos

do meu coração.

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12.

Cantiga

a este mato alheio:

Menina dos olhos verdes,

porque me não vedes?

VOLTAS

Eles verdes são,

e têm por usança

na cor, esperança

e nas obras, não.

Vossa condição

não é d'olhos verdes,

porque me não vedes.

Isenções a molhos

que eles dizem terdes,

não são d'olhos verdes,

nem de verdes olhos.

Sirvo de giolhos,

e vós não me credes

porque me não vedes.

Haviam de ser,

porque possa vê-los,

que uns olhos tão belos

não se hão-de esconder;

mas fazeis-me crer

que já não são verdes,

porque me não vedes.

Verdes não o são

no que alcanço deles;

verdes são aqueles

que esperança dão.

Se na condição

está serem verdes,

porque me não vedes?

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Índice das Trovas

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13.

Cantiga

a este moto [seu?]

Com vossos olhos Gonçalves,

Senhora, cativo tendes

este meu coração Mendes.

VOLTAS

Eu sou boa testemunha

que Amor tem por cousa má

que olhos, que são homens já,

se nomeiem sem alcunha,

pois o coração apunha

e diz: olhos, pois vós tendes,

chamai-me coração Mendes.

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Índice das Trovas

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14.

Cantiga

a este meto seu:

Se Helena apartar do

campo seus olhos,

nascerão abrolhos.

VOLTAS

A verdura amena,

gados, que pasceis,

sabei que a deveis

aos olhos de Helena.

Os ventos serena,

faz flores de abrolhos

o ar de seus olhos.

Faz serras floridas,

faz claras as fontes:

se isto faz nos montes,

que fará nas vidas?

Trá-las suspendidas

como ervas em molhos,

na luz de seus olhos.

Os corações prende

com graça inumana

de cada pestana

ü alma lhe pende.

Amor se lhe rende,

e, posto em giolhos,

pasma nos seua olhos

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Índice das Trovas

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15.

Trovas

a üa Dama

Dama d'estranho primor,

se vos for

pesada minha firmeza,

olhai não me deis tristeza,

porque a converto em amor.

Se cuidais de

me matar quando usais

de esquivança,

irei tomar por vingança

amar-vos cada vez mais.

Porém vosso pensamento,

como isento,

seguirá sua tenção

crendo que em tanta afeição

não haja acrescentamento.

Não creiais

que destarte vos façais

invencível;

que Amor sobre o impossível

amostra que pode mais.

Mas já da tenção que sigo

me desdigo;

que, se há tanto poder nele

também vós podeis mais qu'ele

neste mal que usais comigo.

Mas se for

o vosso poder maior

entre nós,

quem poderá mais que vós

se vós podeis mais que Amor?

Despois que, Dama, vos vi,

entendi

que perdera Amor seu preço;

pois o favor que lhe eu peço

vos pede ele para si.

Nem duvido

que não pode, de sentido,

resistir;

pois, em vez de vos ferir,

ficou, de vos ver,

ferido.

Mas, pois vossa vista e tal

em meu mal,

que posso de vós querer?

Que mal poderei valer

onde o mesmo Amor não val?

Se atentar,

nenhum bem posso esperar;

e oxalá

Que vos

alembrasse já,

sequer para me matar.

Mas nem com isto creiais

que façais

meus serviços mais pequenos;

porqu'eu, quando espero menos,

sabei que então quero mais.

Nada espero,

mas de mim crede este fero

que, em ser vosso,

vos quero tudo o que posso

e não posso quanto quero.

Só por esta fantasia

merecia

de meus males algum fruito;

que ainda não quero muito

para o muito que queria.

De maneira

que não é, na derradeira,

grande espanto,

que quem, Dama, vos quer tanto

que outro tanto de vós queira.

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Índice das Trovas

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16.

Trovas

a üas suspeitas

Suspeitas, que me quereis?

Que eu vos quero dar lugar,

que, de certas, me mateis,

se a causa de que nasceis

vos quisesse confessar.

Que de não lhe achar desculpa

a grande mágoa passada

me tem a alma tão cansada

que, se me confessa a culpa,

tê-la-ei por desculpada.

Ora vede que perigos

têm cercado o coração,

que, no meio da opressão,

a seus próprios inimigos

vai pedir a defensão!

Que, suspeitas, eu bem sei,

como se claro vos visse,

que é certo o que já cuidei;

que nunca mal suspeitei

que certo me não saísse.

Mas queria esta certeza

daquela que me atormenta;

por que em tamanha estreiteza

ver que disso se contenta

é descanso da tristeza.

Porque se esta só verdade

me confessa, limpa e nua

de cautela e falsidade,

não pode a minha vontade

desconformar-se da sua.

Por segredo namorado

é certo estar conhecido

que o mal de ser enjeitado

mais atormenta sabido,

mil vezes, que suspeitado.

Mas eu só, em quem se ordena

novo modo de querela,

de medo da dor pequena,

venho achar na maior pena

o refrigério para ela.

Já nas iras me inflamei,

nas vinganças, nos furores

que já, doudo, imaginei;

e já mais doudo o jurei

de arrancar d'alma os amores.

Já determinei mudar-me

pra outra parte com ira;

depois vim a concertar-me que

era bom certificar-me

no que mostrava a mentira.

Mas depois já de cansadas

as fúrias do imaginar,

vinha enfim a arrebentar

em lágrimas magoadas

e bem para magoar.

E deixando-se vencer

os meus fingidos enganos,

de tão claros desenganos

não posso menos fazer

que contentar-me cos danos.

E pedir que me tirassem

este mal de suspeitar

que me vejo atormentar,

ainda que me confessassem

quanto me pode matar.

Olhai bem se me trazeis,

Senhora, posto no fim;

pois neste estado a que vim,

para que vós confesseis

se dão os tratos a mim.

Mas para que tudo possa

Amor, que tudo encaminha,

tal justiça lhe convinha;

porque da culpa que é vossa

venha a ser a morte minha.

Justiça tão mal olhada,

olhai com que-cor se doura,

que quer, no fim da jornada,

que vós sejais confessada

para que eu seja o que moura!

Pois confessai-vos já' gora,

inda que tenho temor

que nem nest' última hora

me há-de perdoar Amor

vossos pecados, Senhora.

E assi vou desesperado,

porque estes são os costumes

de amor que é mal empregado,

do qual vou já condenado

ao inferno, de ciúmes!

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Índice das Trovas

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17.

Cantiga

a este cantar velho:

Coifa de beirame

namorou Joane.

VOLTAS

por cousa tão pouca

andas namorado?

Amas a toucado

e não quem o touca?

Ando cega e louca

por ti, meu Joane;

tu, pelo beirame.

Amas o vestido?

És falso amador.

Tu não vês que Amor

se pinta despido?

Cego e perdido

andas por beirame,

e eu por ti, Joane.

Se alguém te vir,

que dirá de ti?

Que deixas a mi

por cousa tão vil!

Terá bem que rir,

pois amas beirame,

e a mim não, Joane.

Quem ama assi

há-de ser amada;

ando maltratada

de amores, por ti.

Ama-me a mi,

e deixa o beirame,

que é razão, Joane!

A todos encanta

tua parvoíce;

de tua doudice

Gonçalo se espanta

e zombando canta:

—Coifa de beirame

namorou Joane!

Eu não sei que viste

neste meu toucado,

que tão namorado

dele te sentiste.

Não te veja triste:

ama-me, Joane,

e deixa o beirame!

(Joane gemia,

Maria chorava,

assi lamentava

o mal que sentia;

os olhos feria,

e não o beirame

que matou Joane.)

Não sei de que vem

Amares vestido;

que o mesmo Cupido

vestido não tem.

Sabes de que vem

amares beirame?

Vem de ser Joane.

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Índice das Trovas

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18.

Trovas

a üa Senhora a quem deram um

pedaço de cetim amarelo pera hüa

filha de quem se tinha suspeita

Se derivais da verdade

esta palavra Sitim,

achareis, sem falsidade,

que após o Si, tem o Tim,

que tine em toda a cidade.

Bem vejo que me entendeis;

mas porque não fale em vão,

sabei que a esta nação

tanto que o Si concedeis

o Tim logo está na mão.

E quem da fama se arreda,

que tudo vai descobrir,

deve sempre de fugir

de sitins, porque da seda

seu natural é rugir.

Mas pano fino e delgado,

qual raxa e outros assi,

dura, aquenta e é calado,

amoroso, e dá de si,

mais que sitim, nem borcado.

Mas estes, que sedas são

com quem s'enganam mil Damas,

mais vos tomam do que dão;

prometem, mas não darão

senão nódoas para as famas.

E se não me quereis crer,

ou tomais outro caminho,

por exemplo o podeis ver,

quando lá virdes arder

a casa de algum vezinho.

Ó feminina simpreza,

donde estão culpas a pares,

que por um Dom de nobreza,

deixam dões de natureza,

mais altos e singulares

—um dom que anda enxertado

no nome, e nas obras não!—

(Falo como exprimentado;

que, sitim desta feição,

eu tenho muito cortado.)

Dizem-me que era amarelo;

a quem assi o quis dar,

só para me Deus vingar,

se vem à mão, amarelo,

o que eu não posso cuidar.

Porque quem sabe viver

por estas artes manhosas

(isto bem pode não ser),

dá a mininas fermosas

somente polas fazer.

Quem vos isto diz, Senhora,

serviu nas vossas armadas

muito, mas anda já fora;

e pode ser que inda agora

traz abertas as frechadas.

E, posto que desfavores

o tiram de servidor,

quer-vos ventura milhor;

que dos antigos amores

inda lhe fica este amor.

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Índice das Trovas

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19.

Cantiga

a esta cantiga alheia:

Minina fermosa

dizei: de que vem

serdes rigorosa

a quem vos quer bem?

VOLTAS

Não sei quem assela

vossa fermosura;

que quem é tão dura

não pode ser bela.

Vós sereis fermosa,

mas a razão tem

que quem é irosa

não parece bem.

A mostra é de bela,

as o obras são cruas;

pois qual destas duas

ficará na sela?

Se ficar irosa

não vos está bem.

fique antes fermosa,

que mais força tem.

O Amor, fermoso

se pinta e se chama:

se é amor, ama,

se ama, é piadoso.

Diz agora a grosa

que este texto tem,

que quem é fermosa

há-de querer bem.

Havei dó, minina,

dessa fermosura;

que se a terra é dura,

seca-se a bonina.

Sede piadosa;

não veja ninguém

que, por rigorosa,

percais tanto bem.

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Índice das Trovas

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20.

Trovas

a üa Senhora que estava

rezando por üas contas

Peço-vos que me digais

as orações que rezastes

se são pelos que matastes,

se por vós, que assi matais?

Se são por vós, sãoperdidas;

que, qual será a oração

que seja satisfação,

Senhora, de tantas vidas?

Que, se vedes quantos vêm

a só vida vos pedir,

como vos há Deus ouvir

se vós não ouvis ninguém?

Não podeis ser perdoada

com mãos a matar tão prontas,

que, se nüa trazeis contas,

na outra trazeis espada

Se dizeis que encomendando

os que matastes andais,

se rezais por quem matais,

para que matais rezando?

Que, se na força do orar

levantais as mãos aos

Céus, não as ergueis para Deus,

erguei-las para matar.

E quando os olhos cerrais

todaenlevada na fé,

cerram-se os de quem vos vê,

para nunca verem mais.

Pois se assi forem tratados

os que vos vêm quando orais,

essas horas que rezais

são as horas dos finados.

Pois logo, se sais servida

que tantos mortos não sejam,

não rezeis onde vos vejam,

ou vede para dar vida.

Ou, se quereis escusar

estes males que causastes,

ressuscitai quem matastes,

não tereis por quem rezar.

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21.

Cantiga

a este mato alheio:

Se me levam águas

nos olhos as levo.

VOLTAS

Se de saudade

morrerei ou não,

meus olhos dirão

de mim a verdade.

Por eles me atrevo

a lançar as águas

que mostrem as mágoas

que nesta alma levo.

As águas que em vão

me fazem chorar,

se elas são do mar

estas d'amar são.

Por elas relevo

todas minhas mágoas;

que, se força d'águas

me leva, eu as levo.

Todas me entristecem,

todas são salgadas;

porém as choradas

doces me parecem.

Correi, doces águas,

que, se em vós me enlevo,

não doem as mágoas

que no peito levo!

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Índice das Trovas

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22.

Trovas

que mandou com um papel

d'alfinetes a üa Dama

Esses alfinetes vão

a vos picarem, não mais,

só porque julgueis então,

o como me picarão

os com que vós me picais.

Mas os que dessas estrelas

vêm, têm pontas tão agudas

que, em que estoutros vão co elas,

podem-vos dar picadelas,

mas os vossos dão feridas.

Assi que, se bem notais,

no como ambos debatem,

nunca podem ser iguais,

que, inda que esses lá maltratem,

estes cá maltratam mais.

Porém, já que Amor consente

em piques tão desiguais,

onde vós sois mais valente,

eu, Senhora, sou contente

do que vos contentar mais.

Venham os alfinetes cá

desses olhos, porque acertem

donde acerto já não há;

porém os meus que vão lá,

só quero que vos apertem.

E deixando o mais passado,

fazei que este papel seja

pregado, digo, empregado,

porque do seu gasalhado

eu mesmo lhe tenho enveja.

E se eles em vós se pregam,

por força os hei-de envejar,

não só porque bem se empregam,

mas porque, Senhora, chegam

onde eu não posso chegar.

Lá vão e lá ficarão

adonde continuamente

a par de si vos terão; e

nfim, lá vos picarão,

eu cá picarei no dente.

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Índice das Trovas

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23.

Trovas

a üa Dama que lhe jurara

sempre por seus olhos

Quando me quer enganar

a minha bela perjura,

para mais me confirmar

o que quer certificar,

pelos seus olhos mo jura.

Como meu contentamento

todo se rege por eles,

imagina o pensamento

que se faz agravo a eles

não crer tão grão juramento.

Porém, como em casos tais

ando já visto e corrente,

sem outros certos sinais,

quanto me ela jura mais

tanto mais cuido que mente.

Então, vendo-lhe ofender

uns tais olhos como aqueles,

deixo-me antes tudo crer,

só pela não constranger

a jurar falso por eles.

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24.

Cantiga

a este moto:

Vi chorar uns claros olhos

quando deles me partia.

Oh! que mágoa! Oh! que alegria!

VOLTAS

Pelo meu apartamento

se arrasaram todos d'água.

Quem cuidou que em tanta mágoa

achasse contentamento?

Julgue todo entendimento

qual mais sentir se devia:

se esta dor, se esta alegria!

Quando mais perdido estive,

então deu a esta alma minha

na maior mágoa que tinha

o maior gosto que tive.

Assi, se minh'alma vive

foi porque me defendia

desta dor esta alegria.

O bem que Amor me não deu no

tempo que o desejei,

quando dele me apartei

me confessou que era meu.

Agora, que farei eu

se a fortuna me desvia

de lograr esta alegria?

Não sei se foi enganado,

pois me tinha defendido

das iras de mal querido

no mel de ser apartado.

Agora peno dobrado,

achando no fim do dia

o princípio d'alegria.

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25.

Cantiga

a este mato alheio:

Trocai o cuidado,

Senhora, comigo;

vereis o perigo

que é ser desamado.

VOLTAS

Se trocar desejo

o amor entre nós,

é para que em vós

vejais o que vejo.

E sendo trocado

este amor comigo,

ser-vos-á castigo

terdes meu cuidado.

Tendes o sentido

d'amor livre e isento;

e cuidais que é vento

ser tão mal querido.

Não seja o cuidado

tão vosso inimigo

que queira o perigo

de ser desamado.

Mas nunca foi tal

este meu querer,

que a quem tanto quer

queira tanto mal.

Seja eu maltratado,

e nunca o castigo

vos mostre o perigo

que é ser desamado.

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Índice das Trovas

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26.

Cantiga

à tenção de Miraguarda

MOTO:

Ver, e mais guardar

de ver outro dia,

quem o acabaria ?

VOLTAS

Da lindeza vossa,

Dama, quem a vê,

impossível é

que guardar-se possa.

Se faz tanta mossa

ver-vos um só dia,

quem se guardaria?

Milhor deve ser

neste aventurar,

ver, e não guardar,

que guardar de ver.

Ver, e defender,

muito bom seria;

mas... quem poderia?

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27.

Trovas

a üna Senhoras que haviam de ser

terceiras para com üa Dama sua

Pois a tantas perdições,

Senhoras, quereis dar vida,

ditosa seja a ferida

que tem tais cerurgiões!

Pois ventura

me subiu a tanta altura

que me sejais valedoras,

ditosa seja a tristura

que se cura

por vossos rogos, Senhoras!

Ser minha pena mortal,

já que entendeis que é assim,

não quero falar por mim,

que por mim fala meu mal.

Sois fermosas,

haveis de ser piadosas,

por ser tudo düa cor;

que pois Amor vos fez rosas

milagrosas,

fazei milagres d'amor.

Pedi a quem vós sabeis

que saiba de meu trabalho,

não pelo que eu nisso valho,

mas pelo que vós valeis.

Que o valer

de vosso alto merecer,

com lho pedir de giolhos,

fará que em meu padecer

possa ver

o poder que têm seus olhos.

Vossa muita fermosura

co a sua tanto val

que me rio de meu mal

quando cuido em quem mo cura.

A meus ais

peço-vos que lhe valhais,

Damas de Amor tão validas,

que nunca tal dor sintais

que queirais

onde não sejais queridas.

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28.

Glosas

ao moto que lhe enviou Dona

Francisca de Aragão para que Iho

glosasse:

Mas porém a que cuidados ?

1ª.

Tanto maiores tormentos

foram sempre os que sofri,

daquilo que cabe em mi,

que não sei que pensamentos

são os para que nasci.

Quando vejo este meu peito

a perigos arriscados

inclinado, bem suspeito

que a cuidados sou sujeito;

Mas porém a que cuidados ?

2ª.

Que vindes em mim buscar,

cuidados, que sou cativo,

e não tenho que vos dar?

Se vindes a me matar,

já há muito que não vivo;

se vindes, porque me dais

tormentos desesperados,

eu, que sempre sofri mais,

não digo que não venhais;

Mas porém a quê, cuidados?

3ª.

Se as penas que Amor me deu

vêm por tão suaves meios,

não há que temer receios,

que val um cuidado meu

por mil descansos alheios.

Ter nuns olhos tão fermosos

os sentidos enlevados,

bem sei que em baixos estados

são cuidados perigosos;

Mas porém, ah! que cuidados!

Carta

que Luís de Camões mandou

a Dona Francisca de Aragão,

com as glosas acima:

Senhora

Deixei-me enterrar no esquecimento de v. m., crendo me seria assi mais seguro: mas agora que é servida de me tornar a ressuscitar, por mostrar seus poderes, lembro-lhe que üa vida trabalhosa é menos de agradecer que üa morte descansada. Mas se esta vida, que agora de novo me dá, for para ma tornar a tomar, servindo-se dela, não me fica mais que desejar, que poder acertar com este moto de v. m., ao qual dei três entendimentos, segundo as palavras dele puderam sofrer: se forem bons, é o moto de v. m.; se maus, são as glosas minhas.

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29.

Glosa

a este mato alheio:

Trabalhos descansariam

se para vós trabalhasse;

tempos tristes passariam

se algüa hora vos lembrasse.

GLOSA

Nunca o prazer se conhece

senão despois da tormenta;

tão pouco o bem permanece

que, se o descanso florece,

logo o trabalho arrebenta.

Sempre os bens se lograriam,

mas os males tudo atalham;

porém, já que assi porfiam,

onde descansos trabalham,

trabalhos descansariam.

Qualquer trabalho me fora

por vós grão contentamento;

nada sentira, Senhora,

se vira disto algüa hora

em vós um conhecimento.

Por mal que o mal me tratasse

tudo por bem tomaria;

posto que o corpo cansasse,

a alma descansaria,

se para vós trabalhasse.

Quem vossas cruezas já

sofreu, a tudo se pôs;

costumado ficará;

e muito milhor será,

se trabalhar para vós.

Tristezas esqueceriam,

posto que mal me trataram;

anos não me lembrariam,

que, como estoutros passaram,

tempos tristes passariam.

Se fosse galardoado

este trabalho tão duro,

não vivera magoado;

mas não o foi o passado,

como o será o futuro?

De cansar não cansaria,

se quiséreis que cansasse;

cansar, morrer, fá-lo-ia,

tudo, enfim, me esqueceria,

se algüa hora vos lembrasse.

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30.

Cantiga

a este moto:

Ojos, herido me habéis,

acabad ya de matarme;

mas, muerto, volve á mirarme,

por que me resucitéis.

VOLTAS

Pues me distes tal herida,

con gana de darme muerte,

el morir me es dulce suerte,

pues con morir me dais vida.

Ojos, ¿qué os detenéis?

Acabad ya de matarme;

mas muerto volved á mirarme,

por que me resuscitéis.

La llaga cierto ya es mía,

aunque, ojos, vos no queráis;

mas si la muerte me dais,

el morir me es alegría.

Y así digo que acabéis,

ojos, ya de matarme;

mas muerto, volved á mirarme,

por que me resucitéis.

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31.

Glosa

a este moto de Francisco

de Morais:

Triste vida se me ordena,

pois quer vossa condição

que os males, que dais por pena,

me fiquem por galardão,

Despois de sempre sofrer,

Senhora, vossas cruezas,

apesar de meu querer,

me quereis satisfazer

meus serviços com tristezas.

Mas pois embalde resiste

quem vossa vista condena,

prestes estou para a pena,

que, de galardão, tão triste,

triste vida se me ordena.

De contente do mal meu

a tão grande extremo vim,

que consinto em minha fim:

assi que, vos e mais eu,

ambos somos contra mim.

Mas que sofra meu tormento

sem querer mais galardão,

não é fora de razão

que queraa meu sofrimento,

pois quer vossa condição.

O mel, que vós dais por bem,

esse, Senhora, é mortal;

que o mal que dais como mal,

em muito menos se tem,

por costume natural.

Mas porém nesta vitória,

que comigo é bem pequena,

a maior dor me condena

a pena, que dais por glória,

que os males, que dais por pena.

Que mor bem me possa vir,

que servir-vos, não o sei.

Pois que mais quero eu pedir,

se quanto mais vos

servir, tanto mais vos deverei?

Se vossos merecimentos

de tão alta estima são,

assaz de favor me dão

em querer que meus tormentos

me fiquem por galardão.

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Índice das Trovas

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32.

Glosa

a este moto seu (acróstico):

A morte, pois que sou vosso,

não na quero, mas se vem,

[h]a-de ser todo meu bem.

Amor, que em meu pensamento

com tanta fé se fundou,

me tem dado um regimento

que, quando vir meu tormento,

me salve com cujo sou.

E com esta defensão,

com que tudo vencer posso,

diz a causa ao coração:

não tem em mim jurdição

A morte, pois que sou vosso.

Por exprimentar um dia

Amor se me achava forte

nesta fé, como dizia,

me convidou com a morte,

só por ver se a tomaria.

E, como ele seja a cousa

onde está todo o meu bem,

respondi-lhe (como quem

quer dizer mais, e não ousa):

não na quero, mas se vem...

Não disse mais, porque então

entendeu quanto me toca;

e se tinha dito o não,

muitas vezes diz a boca

o que nega o coração.

Toda a cousa defendida

em mais estima se tem:

por isso é cousa sabida

que perder por vós a vida

[h]a-de ser todo meu bem.

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Índice das Trovas

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33.

A B C em motos

AAAA

Ana quisestes que fosse

o vosso nome da pia,

para mor minha agonia.

Apeles, se fora vivo

e a ver-vos alcançara,

por vós retratos tirara.

Aquiles morreu no templo,

contemplando de giolhos;

eu, quando vejo esses olhos.

Artemisa sepultou

a seu irmão e marido;

vós a mim, e a meu sentido.

B

Bem vejo que sois, Senhora,

extremo de fermosura,

para minha sepultura.

CC

Cleópatra se matou

vendo morto a seu amante;

e eu por vós, em ser constante.

Cassandra disse de Tróia

que havia ser destruída;

e eu por vós, d'alma e da vida.

DD

Dido morreu por Enéas,

e vós matais quem vos ama;

julgai se sois cruel dama!

Dianira, inocente,

da má morte causadora;

vós, da minha, sabedora.

E

Eurídice foi a causa

de Orfeu ir ao Inferno;

vos, de ser meu mal eterno.

FF

Fedra, só de puro amor,

morreu por seu enteado;

eu, morro de desamado.

Febo vai escurecendo

ante vossa claridade;

e eu, sem ter liberdade.

GG

Galateia sois, Senhora,

Da fermosura extremo;

e eu, perdido Polifemo.

Genebra, que foi rainha,

se perdeu por Lançarote;

e vós, por me dar a morte.

HH

Hércules, uma camisa

de chamas o consumiu;

minha alma, dês que vos viu.

Hébis e Dido morreram

com origor da mudança;

eu, vendo vossa esquivança.

JJJJ

Judit, que o duro Holofernes

degolou, se viva fora,

mate lhe déreis, Senhora.

Júlio César conquistou

o mundo com fortaleza;

vós a mim com gentileza.

Júlio César se livrou

dos imigos com abrolhos;

eu, não posso desses olhos.

Jazia-se o Minotauro

preso no seu labirinto;

mas eu mais preso me sinto.

LL

Leandro se afogou

e foi sua causa Hero;

e a mim o que vos quero.

Leandro se afogou

no mar de sua bonança;

eu, no de vossa esperança.

MM

Minerva dizem que foi,

e Palas, deusas da guerra:

e vós, Senhora, da terra.

Medeia foi mui cruel,

mas não chegou a metade

de vossa grã crueldade.

NN

Narciso o siso perdeu

em vendo a sua figura;

eu, por vossa fermosura;

Ninfas enganam mil Faunos

com seu ar e fermosura;

e, a mim, vossa figura.

OO

Os olhos choram o dano

que em vos verem sentiram,

mas eu pago o que eles viram.

Orfeu com a doce harpa

venceu o reino de Plutão;

vós a mim, com perfeição.

PP

Páris a Helena roubou,

por quem Tróia foi perdida;

e vós a mim, alma e vida.

Pirro matou Policena,

perfeita em todos sinais;

e vós a mim me matais.

QQ

Quanto mais desejo ver-vos,

menos vos vejo, Senhora:

não vos ver milhor me fora.

Querendo ver a Diana,

Actéon perdeu a vida,

que eu por vós trago perdida.

RR

Remédio nenhum não vejo

que romedeie meu mal;

nem crueza à vossa igual.

Roma o mundo sujeita

com armas, saber, temor

vós a mim só por amor.

S

Sirena, na mor fortuna

com enganos vai cantando;

e vós, sempre a mim matando.

TT

Tisbe morreu por Píramo,

a ambos matou o Amor;

a mim, vosso desfavor.

Tisbe pelo seu amante

morreu com amor sobejo;

mas eu mais morto me vejo.

WW

Vénus, que por mais fermosa

lhe deu Páris a maçã,

não foi quanto vós louçã.

Vénus levou a maçã

por vós não serdes, Senhora,

nascida naquela hora.

XX

Xpõ vos acabe em graça,

e vos faça piadosa

tanto, quanto sois fermosa.

Xantopea tornou atrás

por Apónio a invocar;

e vós não, a meu chamar.

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Índice das Trovas

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34.

Glosa

a este moto alheio:

Vejo-a n'alma pintada

quando me pede o desejo

o natural que não vejo.

Se só no ver puramente

me transformei no que vi,

de vista tão excelente

mal poderei ser ausente

enquanto o não for de mi.

Porque a alma namorada

a traz tão bem debuxada,

e a memória tanto voa

que se a não vejo em pessoa,

vejo-a n'alma pintada.

O desejo, que se estende

ao que menos se concede,

sobre vós pede e pretende,

como o doente que pede

o que mais se lhe defende.

Eu, que em ausência não vejo,

tenho piadade e pejo

de me ver tão pobre estar,

que então não tenho que dar

quando me pede o desejo,

Como aquele que cegou

é cousa vista e notória

que a natureza ordenou

que se lhe dobre em memória

o que em vista lhe faltou;

assi a mim, que não rejo

os olhos ao que desejo,

na memória e na firmeza

me concede a natureza

o natural que não vejo.

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Índice das Trovas

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35.

Glosa

a este moto:

¿Qué veré que me contente?

Desque una vez miré,

Señora, vuestra beldad,

jamás por mi voluntad

los ojos de vos quité.

Pues sin vos placer no siente

mi vida, ni lo desea,

si no quereis que os vea,

¿qué veré que me contente?

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36.

Cantiga

a este moto:

Quem se confia em olhos,

nas meninas deles vê,

que meninas não têm fé.

VOLTAS

Quem põe suas confianças

em meninas sem assento,

ofereça o sofrimento

a duzentas mil mudanças.

Mostram no ar esperanças,

mas em seus olhos se vê

como não têm n'alma fé.

Enganam ao parecer,

porque, no caso de amar,

são mulheres no matar

e meninas no querer.

Quem em seus olhos se crer,

cem mil graças neles vê;

vê-las, sim, mas não ter fé.

Amostram-vos num momento

favores assi a molhos;

mas na mudança dos olhos

se lhe muda o pensamento.

Em nada têm assento,

e o que mais neles se vê

é fermosura sem fé.

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Índice das Trovas

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37.

Glosa

a este moto:

Sem vós e com meu cuidado

Olha; com quem e sem quem.

Vendo amor que, com vos ver,

mais levemente sofria

os males que me fazia,

não me pode isto sofrer;

conjurou-se com meu fado,

um novo mal me ordenou;

ambos me levam forçado

não sei onde, pois que sou

sem vós e com meu cuidado.

Não sei qual é mais estranho

destes dous males que sigo,

se não vos ver, se comigo

levar imigo tamanho.

O que fica e o que vem,

um me mata, outro desejo.

Com tal mal e sem tal bem,

em tais extremos me vejo:

olhai com quem e sem quem,

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Índice das Trovas

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38.

Glosa

a este moto alheio:

Sem vós e com meu cuidado

olhai com quem, e sem quem.

Amor, cuja providência

foi sempre que não errasse,

porque n'alma vos levasse,

respeitando o mal de ausência

quis que em vós me transformasse.

E vendo-me ir maltratado,

eu e meu cuidado sós,

proveio nisso, de atentado,

por não me ausentar de vós,

sem vós e com meu cuidado.

Mas est'alma que eu trazia

porque vós nela morais,

deixa-me cego, e sem guia;

que há por milhor companhia

ficar onde vós ficais.

Assi me vou de meu bem

onde quer a forte estrela,

sem alma, que em si vos tem,

co mal de viver sem ela:

olhai com quem, e sem que

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39.

Glosa

ao mesmo moto

Querendo Amor esconder-vos

em parte que vos não visse,

com extremos de querer-vos

cegou-me os olhos com ver-vos,

levou-os, sem que vos visse.

Eu, cego, mas atinado,

quando vi que vos não via,

do mesmo Amor indinado,

já vedes qual ficaria

sem vós e com meu cuidado.

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Índice das Trovas

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40.

Cantiga

a este moto:

Menina fermosa e crua,

bem sei eu

quem deixará de ser seu,

se vós quiséreis ser sua.

VOLTAS

Menina mais que na idade,

se, para me querer bem,

vos não vejo ter vontade,

é porque outrem vo-la tem;

tem-vo-la, e faz-vo-la crua.

Porém eu

já tomara não ser meu,

se vós não fôreis tão sua.

Nos olhos e na feição

vos vi, quando vos olhava,

tanta graça que vos dava

de graça este coração;

não no quisestes de crua,

por ser meu:

se outrem vos dera o seu

pode ser fôreis mais sua.

Menina, tende maneira

que ainda não venha a ser

—pois não quereis quem vos quer, —

que queirais quem vos não queira.

Olhai, não me sejais crua;

que pois eu

quero ser vosso e não meu,

sede vós minha e não sua.

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Índice das Trovas

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41.

Cantiga

a este moto:

Da doença em que ardeis eu

fora vossa mezinha,

só com vós serdes minha

VOLTAS

É muito para notar

cura tão bem acertada,

que podereis ser curada

somente com me curar.

e quereis, Dama, trocar,

ambos temos a mezinha:

eu a vossa, e vos a minha.

Olhai que não quer Amor

(porque fiquemos iguais

pois meu ardor não curais,

que se cure vosso ardor.

Eu cá sinto a vossa dor;

e se vós sentis a minha,

dai e tomai a mezinha

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Índice das Trovas

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42.

Trovas

a üa dama doente

Olhai que dura sentença

foi Amor dar contra mi:

que, porque em vós me

perdi, em vós me busca a doença.

Claro está

que em vós só me achará;

que em mim, se me vem buscar,

não poderá mais achar

que a forma do que eu fui já.

Que se em vós Amor se pôs,

Senhora, é forçado assi

que o mal, que me busca a mi,

que vos faça mal a vós.

Sem mentir,

Amor me quis destruir

por modo nunca cuidado,

pois vos há-de ser forçado

pesar-vos de vos servir.

Mas sois tão desconhecida,

e são meus males de sorte

que vos ameaça a morte

porque me negais a vida.

Se por boa

tal justiça se pregoa,

quando desta sorte for,

havei vós perdão de Amor,

que a parte já vos perdoa.

Mas o que mais temo, enfim,

é que nesta diferença

que se não torne a doença

se me não tornais a mim.

De verdade,

que já vossa humanidade

de que se queixe não tem;

pois para as almas também

fez Amor enfermidade.

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43.

Cantiga

a este moto:

Deu, Senhora, por sentença

Amor, que fôsseis doente,

para fazerdes à gente

doce e fermosa a doença.

VOLTAS

Não sabendo Amor curar,

foi a doença fazer

fermosa, para se ver,

doce para se passar.

Então, vendo a diferença

que há de vós a toda a gente,

mandou que fôsseis doente

para glória da doença.

E digo-vos, de verdade,

que a saúde anda envejosa,

por ver estar tão fermosa

em vós essa enfermidade.

Não façais logo detença,

Senhora, em estar doente,

porque adoecerá a gente

com desejos da doença.

Que eu, por ter, fermosa Dama,

a doença que em vós vejo,

vos confesso que desejo

de cair convosco em cama.

Se consentis que me vença

este mal, não houve gente

de saúde tão contente

como eu serei da doença.

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44.

Glosa

a este moto alheio:

Sem ventura é por de mais.

Todo o trabalhado bem

promete gostoso fruito,

mas os trabalhos que vêm

para quem dita não tem,

valem pouco e custam muito.

Rompe toda a pedra dura,

faz os homens imortais

o trabalho, quando atura;

mas querer achar ventura

sem ventura, é por de mais.

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45.

Glosa

a este moto alheio:

Minha alma, lembrai-vos dela.

Pois o ver-vos tenho em mais

que mil vidas que me deis,

assi como a que me dais,

meu bem, já que mo negais,

meus olhos, não mos negueis.

E se a tal estado vim,

guiado de minha estrela,

quando houverdes dó de mim,

minha vida, dai-lhe a fim,

minha alma. lembrai-vos dela.

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46.

Glosa

a este moto alheio:

Tudo pode üa afeição.

Tem tal jurdição Amor

n'alma donde se aposenta

e de que se faz senhor,

que a liberta e isenta

de todo o humano temor.

E com mui justa razão,

como senhor soberano,

que Amor não consente dano;

e pois me sofre tenção,

gritarei por desengano:

tudo pode üa afeição.

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47.

Cantiga

a este moto alheio:

¿Para que me dan tormento,

aprovechando tan poco?

Perdido, mas no tan loco

que descubra lo que siento.

VOLTAS

Tiempo perdido es aquel

que se pasa en darme afán,

pues quanto más me lo dán

tanto menos siento del.

¿Que descubra lo que siento?

No lo haré, que no es tan poco;

que no puede ser tan loco

quién tiene tal pensamiento.

Sepan que me manda Amor,

que de tan dulce querella,

a nadie dé parte della,

porque la sienta mayor.

Es tan dulce mi tormento

que aun se me antoja poco;

y si es mucho, quedo loco

de gusto de lo que siento.

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48.

Cantiga

a este moto alheio:

De vuestros ojos centellas,

que encienden pechos de hielo

suben por el aire al cielo,

y en llegando son estrellas.

VOLTAS

Falsos loores os dan,

que essas centellas tan raras

no son nel cielo más claras

que en los ojos donde están.

Porque cuando miro en ellas

de como alumbran el suelo

no sé que serán nel cielo;

mas sé que acá son estrellas.

Ni se puede presumir

que al cielo suban, Senora,

que la lumbre que en vos mora

no tiene más que subir;

mas pienso que dán querellas

a Dios nel octavo cielo,

porque son acá en el suelo,

dos tan hermosas estrellas.

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49.

Improviso

A üas Senhoras que, jogando

perto de üa janela, Ihes cairam

«três paus» e deram na cabeça

de Camões:

Para evitar dias maus

da vida triste que passo,

mandem-me dar um baraço,

que já cá tenho três paus.

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50.

Cantiga

este moto:

Quem disser que a barca pende,

dir-lhe hei, mana, que mente.

VOLTAS

Se vos quereis embarcar

e para isso estais no cais,

entrai logo; que tardais?

Olhai que está preiamar!

E se outrem, por vos fretar,

vos disser que esta que pende,

dir-lhe hei, mana, que mente.

Esta barca é de carreira,

tem seus aparelhos novos;

não há como ela outra em Povos,

boa de leme e veleira.

Mas, se por ser a primeira,

vos disser alguém que pende,

dir-lhe hei, mana, que mente.

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51..

Glosa

a este mato alheio:

Campos bem-aventurados,

tornai-vos agora tristes,

que os dias em que me vistes

alegre são já passados.

Campos cheios de prazer,

vós, que estais reverdecendo,

já me alegrei com vos ver;

agora venho a temer

que entristeçais em me vendo.

E, pois a vista alegrais

dos olhos desesperados,

não quero que me vejais,

para que sempre sejais

campos bem-aventurados.

Porém, se por acidente,

vos pesar de meu tormento,

sabereis que Amor consente

que tudo me descontente,

senão descontentamento.

Por isso vós, arvoredos,

que já nos meus olhos vistes

mais alegrias que medos,

se mos quereis fazer ledos,

tornai-vos agora tristes.

Já me vistes ledo ser,

mas despois que o falso Amor

tão triste me fez viver, .

ledos folgo de vos ver,

porque me dobreis a dor.

E se este gosto sobejo

de minha dor me sentistes,

julgai quanto mais desejo

as horas que vos não vejo

que os dias em que me vistes.

O tempo, que é desigual,

de secos, verdes vos tem;

porque em vosso natural

se muda o mal para o bem,

mas o meu para mor mal.

Se perguntais, verdes prados,

pelos tempos diferentes

que de Amor me foram dados,

tristes, aqui são presentes,

alegres, já são passados.

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52.

Cantiga

a este mato seu:

Descalça vai pela neve:

assi faz quem Amor serve.

VOLTAS

Os privilégios que os reis

não podem dar, pode Amor,

que faz qualquer amador

livre das humanas leis.

Mortes e guerras cruéis,

ferro, frio, fogo e neve,

tudo sofre quem o serve.

Moça fermosa despreza

todo o frio e toda a dor

(olhai quanto pode Amor

mais que a própria natureza):

medo nem delicadeza

lhe impede que passe a nove;

assi faz quem Amor serve.

Por mais trabalhos que leve,

a tudo se ofreceria;

passa pela nove fria,

mais alva que a própria neve;

com todo o frio se atreve;

vede em que fogo ferve

o triste que o Amor serve.

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53.

Cantiga

a este moto:

Descalça vai para a fonte

Leanor pela verdura;

vai fermosa, e não segura.

VOLTAS

Leva na cabeça o pote,

o testo nas mãos de prata,

cinta de fina escarlata,

sainho de chamalote;

traz a vasquinha de cote,

mais branca que a nove pura;

vai fermosa, e não segura.

Descobre a touca a garganta,

cabelos d'ouro o trançado,

fita, de cor d'encarnado,

tão linda que o mundo espanta—;

chave nela graça tanta

que dá graça à fermosura;

vai fermosa, e não segura.

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54.

Cantiga

a esta cantiga alheia:

Na fonte está Leanor

lavando a talha e chorando,

as amigas perguntando:

vistes lá o meu amor?

VOLTAS

Posto o pensamento nele,

porque a tudo o Amor a obriga,

cantava, mas a cantiga

eram suspiros por ele.

Nisto estava Leanor

o seu desejo enganando,

às amigas perguntando:

vistes lá o meu amor?

O rosto sobre üa mão,

os olhos no chão pregados,

que, do chorar já cansados,

algum descanso lhe dão.

Desta sorte Leanor

suspende de quando em quando

sua dor; e, em si tornando,

mais pesada sente a dor.

Não deita dos olhos água,

que não quer que a dor se abrande

Amor, porque em mágoa grande

seca as lágrimas a mágoa.

Que, despois de seu amor

soube novas, perguntando,

d'emproviso a vi chorando.

Olhai que extremos de dor!

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55.

Cantiga

a este moto:

Ferro, fogo, frio e calma,

todo o mundo acabarão;

mas nunca vos tirarão,

alma minha da minh'alma!

VOLTAS

Não vos guardei, quando vinha,

em torre, força, ou engenho;

que mais guardada vos tenho

em vós, que sois alma minha.

Ali, nem frio nem calma,

não podem ter jurdição;

na vida sim, porém não

em vós, que tenho por alma.

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56.

Cantiga

a este moto:

A alma que está ofrecida a

tudo, nada lhe é forte; assi

passa o bem da vida como

passa o mal da morte

VOLTAS

De maneira me sucede

o que temo, e o que desejo,

que sempre o que temo, vejo,

nunca o que a vontade pede.

Tenho tão oferecida

alma e vida a toda a sorte

que isso me dera da morte

como já me dá da vida.

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57.

Cantiga

a este moto:

Esconjuro-te, Domingas,

pois me dás tanto cuidado,

que me digas se te vingas:

viverei menos penado.

VOLTAS

Juravas-me que outras cabras

folgavas de apacentar;

eu, por nao me magoar,

fingia que eram palavras.

Agora d'arte te vingas

d'algum meu doudo pecado,

qu'inda [que] queiras, Domingas,

não posso ser enganado.

Qualquer cousa busca o seu;

a fonte vai para o Tejo,

e tu para o teu desejo

por te vingares do meu.

De mi te esqueces, Domingas,

como eu faço do meu gado.

Praza a Deus que, se te vingas,

que moura desesperado.

Na fantasia te pinto;

falo-te, responde o monte;

busco o rio, busco a fonte,

endoudeço, e não o sinto.

Domingas! no vale brado;

responde o eco:—Domingas!

E tu ainda te não vingas

de me ver doudo tornado?

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58.

Glosa

a este moto alheio:

Todo es poco lo posible.

Ved que enganos señorea

nuestro juicio tan loco,

que por mucho que se crea,

todo el bien que se desea,

alcançado, queda poco.

Un bien de cualquiera grado,

si de haberse es imposible,

queda mucho deseado,

mas para mucho, alcanzado,

todo es poco lo posible

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59.

Glosa

ao mesmo moto

Posible es a mi cuidado

poderme hacer satisfecho,

si fuera posible al hado

hacer no echo lo echo,

y futuro lo pasado.

Si olvido pudiera haber,

fuera remedio sufrible;

mas ya que no puede ser,

para contento me hacer,

todo es poco lo posible.

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60.

Cantiga

a este moto alheio:

Caterina bem promete;

eramá I como ela mente I

VOLTAS

Caterina é mais fermosa

para mim que a luz do dia;

mas mais fermosa seria

se não fosse mentirosa.

Hoje a vejo piadosa,

amanhã tão diferente

que sempre cuido que mente.

Caterina me mentiu

muitas vezes, sem ter lei,

mas todas lhe perdoei

por üa só que cumpriu.

Se, como me consentiu

falar, o mais me consente,

nunca mais direi que mente.

Má, mentirosa, malvada,

dizei: para que mentis?

Prometeis, e não cumpris?

Pois sem cumprir, tudo é nada.

Não sois bem aconselhada;

que quem promete, se mente,

o que perde não no sente.

Jurou-me aquela cadela

de vir, pela alma que tinha;

enganou-me; tem a minha;

dá-lhe pouco de perdê-la.

A vida gasto após ela,

porque ma dá se promete,

mas tira-ma quando mente.

Tudo vos consentiria

quanto quisésseis fazer,

se esse vosso prometer

fosse prometer um dia

todo então me desfaria

convosco; e vós, de contente,

zombaríeis de quem mente.

Prometou-me ontem de vir,

nunca mais me apareceu;

creio que não prometeu

senão só por me mentir.

Faz-me enfim chorar e rir;

rio quando me promete,

mas choro quando me mente.

Mas pois folgais de mentir,

prometendo de me ver,

eu vos deixo o prometer,

deixai-me vós o cumprir:

haveis então de sentir

quanto fica mais contente

o que cumpre que o que mente.

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61.

Cantiga

a üa Dama que estava

vestida de dó

MOTO:

De atormentado e perdido,

já vos não peço senão

que tenhais no coração

o que tendes no vestido.

VOLTAS

Se de dó vestida andais

por quem já vida não tem,

porque não no haveis de quem

vós tantas vezes matais?

Que brado sem ser ouvido,

e nunca vejo senão

cruezas no coração,

e grande dó no vestido.

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62.

Cantiga

a Dona Guiamar de Blasfé,

que se queimara no rosto

com üa vela

MOTO:

Amor que todos ofende

teve, Senhora, por gosto,

que sentisse o vosso rosto

o que nas almas acende.

VOLTAS

Aquele rosto que traz

o mundo todo abrasado,

se foi da flama tocado,

foi porque sinta o que faz.

Bem sei que Amor se lhe rende;

porém o seu pros[s]uposto

foi sentir o vosso rosto

o que nas almas acende.

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63.

Cantiga

a este mato seu:

Da alma, e de quanto tiver,

quero que me despojeis,

contanto que me deixeis

os olhos para vos ver.

VOLTAS

Cousa que este corpo não tem

que já não tenhais rendida;

depois de tirar-lhe a vida,

tirai-lhe a morte também.

Se mais tenho que perder

mais quero que me leveis,

cantento que me deixeis

os olhos para vos ver.

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64.

Cantiga

a este moto alheio:

Amores de ua casada

que eu vi pelo meu mel.

VOLTAS

Nüa casada fui pôr

os olhos, de si senhores;

cuidei que fossem amores,

eles fizeram-se Amor.

Faz-se o desejo maior

donde o remédio não val

em perigo de meu mal.

Não me pareceu que Amor

pudesse tanto comigo

que donde entra por amigo

se levante por senhor.

Leva-me de dor em dor

e de sinal em sinal,

cada vez para mor mal.

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65.

Cantiga

a este mato seu:

Enforquei minha esperança;

mas Amor foi tão madraço

que lhe cortou o baraço.

VOLTAS

Foi a Esperança julgada

por sentença da Ventura,

que, pois me teve à pendura,

que fosse dependurada.

Vem Cupido co a espada,

corta-lhe cerco o baraço.

Cupido, foste madraço!

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66.

Cantiga

a este moto seu:

Pus o coração nos olhos

e os olhos pus no chão,

por vingar o coração.

VOLTAS

O coração envejoso

como dos olhos andava,

sempre remoques me dava

que não era o meu mimoso:

venho eu, de piadoso

do senhor meu coração,

boto os meus olhos no chão.

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67.

Cantiga

a este moto seu:

Pus meus olhos nüa funda,

e fiz um tiro com ela

às grades de üa janela.

VOLTAS

üa Dama, de malvada,

tomou seus olhos na mão

e tirou me üa pedrada

com eles ao coração.

Armei minha funda então,

e pus os meus olhos nela:

trape! quebro-lh'a janela.

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68.

Glosa

a este moto:

Vos tenéis mi corazón.

Mi corazón me han robado,

y Amor, viendo mis enojos,

me dijo: fuéte llevado

por los más hermosos hojos

que desque vivo he mirado.

Gracias sobrenaturales,

te lo tienen en prisión,

y si Amor tiene razón,

Señora, por la señales

vos tenéis mi corazón.

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69.

Cantiga

a este moto alheio:

De dentro tengo mi mal,

que de fuera no hay señal.

VOLTAS

Mi nueva y dulce querella,

es invisible á la gente;

el alma sola la siente,

que el cuerpo no es dino della.

Como la viva centena

se encubra en el pedernal

de dentro tengo mi mal.

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70.

Cantiga

a este moto seu:

De que me serve fugir

da morte, dor e perigo,

se me eu levo comigo?

VOLTAS

Tenho-me persuadido,

por razão conveniente,

que não posso ser contente,

pois que pude ser nacido.

Anda sempre tão unido

o meu tormento comigo

que eu mesmo sou meu perigo.

E se de mi me livrasse,

nenhum gosto me seria;

que, não sendo eu, não teria

mal que esse bem me tirasse.

Força é logo que assi passe,

ou com desgosto comigo,

ou sem gosto e sem perigo.

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71.

Cantiga

a esta cantiga velha:

Falso cavaleiro ingrato,

enganais-me:

vós dizeis que eu vos mato,

e vós matais-me.

VOLTAS

Costumadas artes são

para enganar inocências,

piadosas aparências

sobre isento coração.

Eu vos amo, e vós, ingrato,

magoais-me,

dizendo que eu vos mato,

e vós matais-me.

Vede agora qual de nós

anda mais perto do fim,

que a justiça faz-se em mim

e o pregão diz que sois vós.

Quando mais verdade trato,

levantais-me

que vos desamo e vos mato,

e vós matais-me.

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72.

Cantiga

a este moto sei:

Se de meu mal me contento,

é porque para vós vejo

em todo o mundo desejo

e em ninguém merecimento.

VOLTAS

Para quem vos soube olhar,

tão impossível foi ser

o poder-vos merecer,

como o não vos desejar.

Pois logo a meu pensamento

nenhum remédio lhe vejo,

senão se der o desejo

asas ao merecimento.

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73.

Cantiga

a este moto alheio:

Amor loco amor loco,

yo por vos, y vos por o otro.

VOLTAS

Dióme Amor tormentos dos

para que pene doblado:

uno es verme desamado,

otro es mancilla de vos.

!Ved que ordena Amor en nos!

Porque me vos hacéis loca?

que seáis loca por otro.

Tratáis Amor de manera

que porque así me tratáis

quiere que, pues no me amáis,

que améis otro que no os quiera.

Mas con todo, so no os viera

de todo loca por otro,

con mas razón fuera loco.

Y tan contrario viviendo,

alfin, alfin, conformamos,

pues ambos a dos buscamos

lo que más nos va huyendo.

Voy tras vos siempre siguiendo,

y vos huyendo por otro:

andáis loca, y me hacéis loco.

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74.

Cantiga

a este moto alheio:

De pequena tomei Amor,

porque o não entendi;

agora que o conheci,

mata-me com desfavor.

VOLTAS

Vi-o moço e pequenino,

e a mesma idade ensina

que se incline üa minina,

às mostras de um minino.

Ouvi-lhe chamar Amor,

pelo nome me venci;

nunca tal engano vi,

nem tamanho desamor.

Creceu-me de dia em dia

com a idade a afeição,

porque amor de criação,

n'alma e na vida se cria.

Criou-se em mim este amor,

e senhoreou-se de mi:

agora que o conheci,

mata-me com desfavor.

As flores me torna abrolhos,

a morte me determina

quem eu trouxe de minina

nas mininas dos meus olhos.

Desta mágoa e desta dor

tenho sabido enfim,

por amor me perco a mim,

por quem de mim perde o amor.

Parece ser caso estranho

o que Amor em mim ordena,

que em idade tão pequena

haja tormento tamanho.

milagres de Amor,

hei-os de sofrer assi,

até que haja dó de mi

quem entender esta dor.

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75.

Cantiga

a esta cantiga velha:

Apartaram-se os meus olhos

de mim tão longe...

Falsos amores,

falsos, maus, enganadores !

VOLTAS

Trataram-me com cautela

por me enganar mais asinha;

dei-lhe posse da alma minha,

foram-me fugir co ela.

Não há vê-los, nem há vê-la,

de mim tão longe...

Falsos amores,

falsos, maus, enganadores!

Entreguei-lhe a liberdade,

e enfim, da vida o milhor:

foram-se, e do desamor

fizeram necessidade.

Quem teve a sua vontade

de mim tão longe?

Falsos amores,

e tão cruéis matadores!

Não se pôs serra nem mar

entre nós, que fora em vão;

pôs-se vossa condição,

que não doce é de passar.

Só ela vos quis leixar

de mim tão longe!

Falsos amores!

...e oxalá que enganadores!

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76.

Cantiga

a este moto alheio:

Vede bem se nos meus dias

os desgostos vi sobejos,

pois tenho medo a desejos

e quero mal a alegrias.

VOLTAS

Se desejos fui já ter,

serviram de atormentar-me;

se algum pôde alegrar-me,

quis-me antes entristecer.

Passei anos, passei dias,

em desgostos tão sobejas

que, só por não ter desejos,

perderei mil alegrias.

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77.

Cantiga

a este moto seu:

Pois me faz dano olhar-vos

não quero, por não perder-vos

que ninguém me veja ver-vos.

VOLTAS

De ver-vos a não vos ver

há dous extremos mortais;

e são eles em si tais

que um por um me faz morrer;

mas antes quero escolher

que possa viver sem ver-vos

minh'alma, por não perder-vos.

Deste tamanho perigo

que remédio posso ter,

se vivo só com vos ver,

se vos não vejo, perigo?

Quero acabar comigo

que ninguém me veja ver-vos,

Senhora, por não perder-vos.

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78.

Cantiga

a três Damas que lhe diziam

que o amavam

MOTO:

Não sei se me engana Helena,

se Maria, se Joana,

não sei qual delas me engana.

VOLTAS

Üa diz que me quer bem,

outra jura que mo quer;

mas, em jura de mulher

quem crerá, se elas não crêm?

Não posso não crer a Helena,

a Maria, nem Joana,

mas não sei qual mais me engana.

Üa faz-me juramentos

que só meu amor estima;

a outra diz que se fina;

Joana, que bebe os ventos.

Se cuido que mente Helena,

também mentirá Joana;

mas quem mente, não me engana.

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79.

Cantiga

a üa Dama mal empregada

MOTO SEU:

Minina, não sei dizer,

vendo vos tão acabada,

quão triste estou por vos ver

fermosa e mal empregada.

VOLTAS

Quem tão mal vos empregou,

pouco de mi se doía,

pois não viu quanto me ia

em tirar-me o que tirou.

Obriga o primor que tem

lindeza tão extremada

que digam quantos a vêm:

— Fermosa e mal empregada!

Tomastes da fermosura

quanto dela desejastes,

e com ela me guardastes

para tão triste ventura.

Matáveis sendo solteira,

matais agora em casada;

matais de toda a maneira;

Fermosa e mal empregada!

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80.

Cantiga

a este moto alheio:

Há um bem que chega e foge;

e chama-se este bem tal,

ter bem para sentir mal.

VOLTAS

Quem viveu sempre num ser,

inda que seja em pobreza,

não viu o bem da riqueza,

nem o mal de empobrecer:

não ganhou para perder;

mas ganhou com vida igual

não ter bem nem sentir mal.

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81.

Cantiga

a üa Dama que lhe virou o rosto

MOTO

Olhos, não vos mereci

que tenhais tal condição:

tão liberais para o chão,

tão irosos para mi.

VOLTAS

Baixos e honestos andais,

por vos negardes a quem

não quer mais que aquele bem

que vós no chão espalhais.

Se pouco vos mereci,

não me estimais mais que o chão,

a quem vós o galardão

dais, e mo neguis a mi.

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82.

Cantiga

a esta cantiga alheia:

Pequenos contentamentos,

i buscar quem contenteis,

que a mim não me conheceis,

VOLTAS

Os gostos, que tantas dores

fizeram já valer menos,

não os aceita pequenas,

quem nunca teve maiores.

Bem parecem vãos favores,

pois tão tarde me quereis

qu'inda me não conheceis.

Ofereceis-me alegria,

tendo-me já cego e mouco:

é baixeza aceitar pouco

quem tanto vos merecia.

Ide-vos por outra via,

pois o bem que me deveis

nunca mo satisfareis.

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Índice das Trovas

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83.

Glosa

a esta Trova de Boscão:

Justa fué mi perdición,

de mis males soy contento;

ya no espero galardón,

pues vuestro merecimiento

satistizo a mi pasiôn.

Después que Amor me formó

todo de amor, cual me veo,

en las leyes que me dió,

el mirar me consintió,

y defendióme el deseo.

Mas el alma, como injusta,

en viendo tal perfección,

dió a al deseo ocasión:

y pues quebré ley tan justa,

justa fué mi perdición.

Mostrándoseme el Amor

más benigno que cruel,

sobre tirano, traidor,

de celos de mi dolor,

quiso tomar parte en él.

Yo, que tan dulce tormento

no quieto dallo, aunque peco,

resisto, y no lo consiento;

mas si me lo toma á trueco,

de mis males soy contento.

Señora, ved lo que ordena

este Amor tan falso nuestro!

Por pagar á costa ajena

manda que de un mirar vuestro

haga el premio de mi pena.

Mas vos, para que veáis

tan engañosa tención,

aunque muerto me sintáis,

no miréis, que, si miráis,

ya no espero galardón.

¿Pues que premio (me diréis)

esperas que será bueno?

Sabed, si no lo sabéis,

que es lo más de lo que peno

lo menos que merecéis.

¿Quién hace al mal tan ufano,

y tan libre al sentimiento?

¿El deseo? No, que es vano.

¿El Amor? No, que es tirano

¿Pues? Vuestro merecimiento.

No pudiendo Amor robarme

de mis tan caros despojos,

aunque fué por más honrarme,

vos sola para matarme

le prestastes vuestros ojos.

Matáronme ambos á dos;

mas á vos con mas razón

debe él la satisfacción;

que á mi por él, y por vos,

satisfizo mi pasión,

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Índice das Trovas

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84.

Glosa

a este moto:

Foi-se gastando a esperança,

fui entendendo os enganos;

do mal ficaram meus danos

e do bem só a lembrança.

Nunca em prazeres passados

tive firmeza segura,

antes tão arrebatados

que inda não eram chegados

quando mos levou ventura.

E como quem desconfia

ter em tal sorte mudança,

no meio desta porfia,

de quanto bem pretendia

foi-se gastando a esperança.

Não tive por desatino

a ocasião de perdê-la;

mas foi culpa do destino,

que a ninguém, como mais dino,

Amor pudera sustê-la.

Dei-lhe tudo o que era seu,

não receando tais danos

deste, a quem alma lhe deu;

quando já não era meu,

foi entendendo os enganos.

Fiquei, deste mal sobejo

a quem a causa compete,

dizer-lhe tudo o que vejo,

que Amor aceita o desejo,

mas mente no que promete.

Que, se a mim se me obrigou

a dar-me bens soberanos,

foi engano que ordenou,

que do bem tudo levou,

do mal ficaram meus danos.

E se de dor tão desigual

sofro em mim com padecê-los,

quero de novo sofrê-los;

que, por a causa ser tal,

não determino ofendê-los.

Dobre-se o mal, falte a vida,

creça a fé, falte a esperança,

pois foi mal agradecida;

fique a dor n'alma imprimida,

e do bem só a lembrança.

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Índice das Trovas

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85.

Cantiga

a üa Dama que perguntou

ao Autor quem o matava

MOTO:

Pergunteis-me quem me mata?

Não quero responder nada,

por vos não fazer culpada.

VOLTAS

E se a pena neo me atiça

a dizer pena tão forte,

quero-me entregar à morte,

antes que vós à justiça.

Porém, se tendes cobiça

de vos verdes tão culpada,

direi que não sinto nada.

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Índice das Trovas

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86.

Cantiga

a este moto alheio:

Se alma ver-se não pode

onde pensamentos ferem,

que farei para me crerem?

VOLTAS SUAS

N'alma üa só ferida

faz na vida mil sinais;

tanto se descobre mais

quanto é mais escondida.

Se esta dor tão conhecida

me não vêm, porque não querem,

que farei para me crerem?

Se se pudesse bem ver

quanto calo, e quanto sento,

despois de tanto tormento

cuidaria alegre ser.

Mas se não me querem crer

olhos que tão mal me ferem,

que farei para me crerem?

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JOGA

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87.

Cantiga

a esta cantiga alheia:

Se me desta terra for,

eu vos levarei, amor.

VOLTAS

Se me for, e vos deixar

(ponho, por caso, que possa),

esta alma minha, que é vossa,

convosco me há-de ficar.

Assi que, só por levar

a minh'alma, se me for,

vos levarei, meu amor.

Que mal pode maltratar-me

que convosco seja mal?

Ou que bem pode ser tal

que sem vós possa alegrar-me?

O mal não pode enojar-me,

o bem me será maior

se vos levar, meu amor.

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Índice das Trovas

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88.

Cantiga

a este moto alheio

Vosso bem querer, Senhora:

vosso mal milhor me fora.

VOLTAS

Já'gora certo conheço

ser milhor todo tormento

onde o arrependimento

se compra por justo preço.

Enganou-me um bom começo;

mas o fim me diz agora

que o mal milhor me fora.

Quando um bem é tão danoso

que, sendo bem, dá cuidado,

o dano fica obrigado

a ser menos perigoso.

Mas se a mim, por desditoso,

co bem me foi mal, Senhora,

co vosso mal bem me fora.

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JOGA

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89.

Cantiga

a este moto:

Irme quieto, madre,

á aquella galera,

con el marinero

á ser marinera.

VOLTAS

Madre, si me fuere,

dó quiera que vó,

no lo quiero yo,

que el Amor lo quiere.

Aquél niño fiero

hace que me muera,

por un marinero

á ser marinera.

Él, que todo puede,

madre, no podrá,

pues el alma vá,

que el cuerpo se quede.

Con él, por quién muero,

voy, porque no muera;

que, si es marinero,

seré marinera.

Es tirana ley,

del niño Señor,

que por un amor

se desenhe un Rey:

pues desta manera

quiere, yo me quiero

por un marinero

hacer marinera.

Decid, ondas, ¿cuándo

vistes vos doncella,

siendo tierna y bella,

andar navegando?

|Pues| más no se espera

daquel niño fiero,

vea yo quién quiero,

sea marinera.

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Índice das Trovas

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90.

Cantiga

a üa Dama a quem

não podia encontrar

MOTO:

Qual terá culpa de nós

neste mal que todo é meu?

quando vindes, não vou eu,

quando vou, não vindes vós

VOLTAS

Reinando Amor em dous peitos,

tece tantas falsidades,

que, de conformes vontades,

faz desconformes efeitos.

Igualmente vive em nós;

mas, por desconcerto seu,

vos leva, se venho eu,

me leva, se vindes vós.

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Índice das Trovas

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91.

Cantiga

a este moto:

Com razão queixar-me posso

de vós, que mel vos queixais;

pois, Senhora, vos sangrais,

que seja num corpo vosso.

VOLTAS

Eu, para levar a palma

com que ser vosso mereça,

quero que o corpo padeça

por vós, que dele sois alma.

Vós do corpo vos queixais,

eu queixar-me de vós posso,

porque, tendo um corpo vosso,

na minh'alma vos sangrais.

E sem fazer diferença

no que de mim possuís,

pelo pouco que sentis,

dais à minh'alma doença.

Pois que dous aventurais

oh! não seja o dano nosso:

sangre-se este corpo vosso,

porque, minh'alma, vivais.

E inda, se atentardes bem,

seguis medicina errada,

porque para ser sangrada

üa alma sangue não tem.

E pois em mim sarar posso

males, que à minha alma dais,

se inda outra vez vos sangrais,

seja neste corpo vosso.

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Índice das Trovas

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92.

Cantiga

a esta cantiga alheia

Perdigão perdeu a pena,

não há mal que lhe não venha:

VOLTAS

Perdigão, que o pensamento

subiu em alto lugar,

perde a pena do voar,

ganha a pena do tormento.

Não tem no ar nem no vento

asas, com que se sustenha:

não há mal que lhe não venha.

Quis voar a üa alta torre

mas achou-se desasado;

e, vendo-se depenado,

de puro penado morre.

Se a queixumes se socorre,

lança no fogo mais lenha:

não há mal que lhe não venha.

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Índice das Trovas

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93.

Cantiga

a esta cantiga alheia:

Tende-me mão nele

qu'um real me deve I

VOLTAS

Cum real de amor,

dous de confiança

e três de esperança

me foge o tredor.

Falso desamor

se encerra naquele

qu'um real me deve.

Pediu-mo emprestado,

não lhe quis penhor;

é mau pagador,

tendo-mo aferrado.

Cum cordel atado,

ao Tronco se leve,

qu'um real me deve.

Por esta travessa

se vai acolhendo;

ei-lo vai correndo,

fugindo a grã pressa.

Nesta mão e nessa

o falso s'atreve,

qu'um real me deve.

Comprou-me amor

sem lhe fazer preço:

eu não lhe mereço

dar-me desfavor.

Dá-me tanta dor

que ando após ele

pelo que me deve.

Eu de cá bradando,

ele vai fugindo;

ele sempre rindo,

eu sempre chorando.

{El} de quando em quando

no amor s'atreve,

como que não deve.

A falar verdade,

ele já pagou;

mas inda ficou

devendo ametade.

Minha liberdade

é a que me deve:

só nela se atreve.

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Índice das Trovas

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94.

Cantiga

a este moto seu:

Venceu-me Amor, não o nego;

tem mais força qu'eu assaz;

que, como é cego, e rapaz,

dá-me porrada de cego!

VOLTAS

Só porque é rapaz ruim,

dei-lhe um bofete, zombando;

diz-me:—Ó mau, estais-me dando

porque sois maior que mim?

pois se vos eu descarrego...

Em dizendo isto, chaz!

torna-m'outra. Tá! rapaz,

que dás porrada de cego!

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Índice das Trovas

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95.

Cantiga

a este moto:

Dó la mi ventura?

Que no veo alguna.

VOLTAS

Sepa quién padece

que en la sepultura

se esconde ventura de

quién la merece.

Allá me parece

que quiere fortuna

que yo halle alguna.

Naciendo mezquino,

dolor fué mi cama;

tristeza fué el ama,

cuidado el padrino.

Vestióse el destino,

negra vestidura;

huyó la ventura.

No se halló tormento,

que allí no se hallase;

ni bien que pasase,

sino como viento.

¡Oh, que nacimiento,

que luego en la cuna

me seguió fortuna!

Esta dicha mía,

que siempre busqué,

buscandola, hallé

que no la hallaría;

que quién nace en día

d'estrella tan dura,

nunca halla ventura.

No puso mi estrella

más ventura en mí;

así vive en fin

quién nace sin ella.

No me quejo della;

quéjome que atura

vida tan escura.

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Índice das Trovas

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96.

Trovas

{Vós} sois üa dama

das feias do mundo;

de toda a má fama

sois cabo profundo.

A vossa figura

não é para ver;

em vosso poder

não há fermosura.

{Vós} fostes dotada

de toda a maldade;

perfeita beldade

de vós é tirada.

Sois muito acabada

de tacha e de glosa:

pois, quanto a fermosa,

em vós não há nada.

De grão merecer

sois bem apartada;

andais alongada

do bem parecer.

Bem claro mostrais

em vós fealdade:

não há i maldade

que não precedais.

De fresco carão

vos vejo ausente;

em vós é presente

a má condição.

De ter perfeição

mui alheia estais;

mui muito alcançais

de pouca razão.

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Índice das Trovas

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97.

Esparsa

a üa Dama por quem penava

Se na alma e no pensamento

por vosso me manifesto,

não me pesa do que sento;

que, se não sofrer tormento,

faço ofensa a vosso gesto.

E, pois quanto Amor ordena

e quanto esta alma deseja

tudo à morte me condena,

não quero senão que seja

tudo pena, pena, pena.

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Índice das Trovas

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98.

Esparsa

a üa Dama que lhe chamou

«cara-sem-olhos»

Sem olhos vi o mal claro

que dos olhos se seguiu:

pois «cara-sem-olhos» viu

olhos que lhe custam caro.

De olhos não faço menção,

pois quereis que olhos neo sejam;

vendo-vos, olhos sobejam,

não vos vendo olhos não são.

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Índice das Trovas

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99.

Cantiga

a uma Dama de apelido Anjos,

que lhe chamou diabo

MOTO:

Senhora, pois me chamais

tão sem razão tão mau nome,

inda o diabo vos tome,

VOLTAS

Quem quer que viu, ou que leu,

terá por novo e moderno

ter quem vive no Inferno

o pensamento no Céu.

Mas se a vós vos pareceu

que me estava bem tal nome,

esse diabo vos tome.

Perdido mais que ninguém

confesso, Senhora, ser;

mas «diabo» não quer

aos «Anjos» tamanho bem.

Pois logo não me convém,

ou se me convém tal nome

será para que vos tome.

Se vos benzeis com cautela,

como de Anjo, e não de luz,

mal pode fugir da Cruz

quem vós tendes posto nela.

Mas já que foi minha estrela,

ser «diabo», e ter tal nome,

guardai-vos, que vos não tome

Já que chegais tanto ao cabo,

co as mãos postas aos Céus,

vou sempre pedindo a Deus

que vos leve este «diabo».

Eu, Senhora, não me gabo;

mas, pois que me dais tal nome,

tomo-o, para que vos tome.

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Índice das Trovas

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100.

Esparsa

ao mesmo assunto

Não posso chegar ao cabo

de tamanho desarranjo,

que sendo vós, Senhora, «Anjo»,

vos queira tanto o «diabo».

Dais manifesto sinal

de minha muita firmeza,

que os «diabos» querem mal

aos «Anjos», por natureza.

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Índice das Trovas

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101.

Volta

a D. António, senhor de Cascais,

que prometera a Luís de Camões seis

galinhas recheadas por uma cópia

que Ihe fizera, e Ihe mandava, por

princípio de paga, meia galinha

Cinco galinhas e meia

deve o Senhor de Cascais;

e a meia vinha cheia

de apetites para as mais.

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Índice das Trovas

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102.

Cantiga

a este vilancete pastoril:

—¿Porqué no miras, Giraldo,

mi zampoña como suena ?

Porque no me mira Elena.

VOLTAS

Vuelve acá, no estês pasmado,

¡mira que gentil sonar!

¿Como te podrá mirar quién

no puede ser mirado?

{¡Y} que bueno enamorado!

¿No dirás, si es mala o buena?

No, que me hizo mudo Elena.

Mira tan dulce armonía,

déjate desos enojes.

Tengo clavados los ojos

con que mirar te podía.

Así Dios te de alegría:

¿no vés cuán dulce y serena?

No, porque no veo Elena.

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Índice das Trovas

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103.

Cantiga

a este vilancete pastoril

Deus te salve, Vasco amigo

Não me falas ? Como assi ?

Bofé, Gil, não estava aqui

VOLTAS

Pois onde te hão-de falar,

se não estás onde apareces?

Se Madanela conheces,

nela me podes achar.

E como te hão-de ir buscar,

aonde fogem de ti?

Pois nem eu estou em mi.

Porque te não acharei

em ti, como em Madanela?

Porque me fui perder nela

o dia que me ganhei.

Quem tão bem fala, não sei

como anda fora de si.

Ela fala dentro em mi.

Como estás aqui presente,

se lá tens a alma e a vida?

Porque é de üa alma perdida

aparecer sempre à gente.

Se és morto, bem se consente

que todos fujam de ti.

Eu também fujo de mi.

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Índice das Trovas

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104.

Cantiga

a üa mulher que se chamava Grada de Morais

MOTO:

Olhos em que estão mil flores

e com tanta graça olhais,

que parece que os Amores

moram onde vós morais.

VOLTAS

Vêm-se rosas e boninas,

olhos, nesse vosso ver;

vêm-se mil almas arder

no fogo dessas mininas.

E di-lo hão minhas dores,

meus suspiros, e meus ais;

e dirão mais, que os Amores

moram onde vós morais.

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Índice das Trovas

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105.

Cantiga

a este moto:

Quem ora soubesse

onde o Amor nasce,

que o semeasse!

VOLTAS

D'amor e seus danos

me fiz lavrador;

semeava amor

e colhia enganos;

não vi, em meus anos,

homem que apanhasse

o que semeasse.

Vi terra florida

de lindos abrolhos,

lindos para os olhos,

duros para a vida;

mas a rês perdida

que tal erva pace

em forte hora nace.

Com quanto perdi,

trabalhava em vão;

se semeei grão,

grande dor colhi.

Amor nunca vi

que muito durasse,

que não magoasse.

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Índice das Trovas

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106.

Trovas

a üa cativa com quem andava

de amores na Índia, chamada

Bárbora

Aquela cativa,

que me tem cativo,

porque nela vivo

já não quer que viva.

Eu nunca vi rosa

em suaves molhos,

que para meus olhos

fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,

nem no céu estrelas,

me parecem belas

como os meus amores.

Rosto singular,

olhos sossegados,

pretos e cansados,

mas não de matar.

üa graça viva,

que neles lhe mora,

para ser senhora

de quem é cativa.

Pretos os cabelos,

onde o povo vão

perde opinião

que os louros são belos.

Pretidão de Amor,

tão doce a figura,

que a neve lhe jura

que trocara a cor.

Leda mansidão

que o siso acompanha;

bem parece estranha,

mas bárbora não.

Presença serena

que a tormenta amansa;

nela enfim descansa

toda a minha pena.

Esta é a cativa

que me tem cativo,

e, pois nela vivo,

é força que viva.

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Índice das Trovas

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107.

Cantiga

a üa mulher que foi açoutada

por um homem de apelido

Quaresma, na Índia

MOTO:

Não estejais agravada,

senão se for de vós mesma;

porque a mulher que é errada

com razão pela Coresma

deve ser desciprinada.

VOLTAS

Quererdes profano amor

em Coresma, é consciência:

açoutes e penitência

vos está muito milhor.

Não fiqueis disto afrontada,

pois a culpa é vossa mesma;

que mulher que é tão malvada

é bem que pela Coresma

seja bem desciprinada.

Se a penitência vos val,

mui bem açoutada estais;

pois por Coresma pagais

vossos vícios do carnal.

Não torneis a ser errada,

nem condeneis a vós mesma,

pois estais já emendada;

e não sereis por Coresma

outra vez desciprinada.

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Índice das Trovas

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108.

Esparsa

a um fidaldo, na Índia, que lhe

tardava com uma camisa galante,

que lhe prometera

Quem no mundo quiser ser

havido por singular,

para mais se engrandecer

há-de trazer sempre o dar

nas ancas do prometer.

E já que vossa mercê

largueza tem por divisa,

como todo mundo vê,

há mister que tanto dê

que venha [a] dar a camisa.

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Índice das Trovas

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109.

Trovas

que o Autor mandou da cadeia

em que o tinha embargado por

üa dívida Miguel Roiz, «Fios-Secos»

de alcunha, que se embarcava para fora,

ao Conde do Redondo, Vizo-Rei, pedindo-lhe

o fizesse desembargar

Que diabo há tão danado

que não tema a cutilada

dos fios secos da espada

do fero Miguel armado?

Pois se tanto um golpe seu

soa na infernal cadeia,

do que o demónio arreceia,

como não fugirei eu?

Com razão lhe fugiria,

se contra ele, e contra tudo,

não tivesse um forte escudo

só em Vossa Senhoria.

Portanto, Senhor, proveja,

pois me tem ao remo atado,

que, antes que seja embarcado,

eu desembargado seja.

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Índice das Trovas

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110.

Trovas

que Heitor da Silveira mandou ao

mesmo Conde, invernando em Goa

Vossa Senhoria creia

que não apura o engenho

fome, se é como a que tenho,

mas afraca e corta a veia.

E quem o contrário sente

está farto em toda a hora,

como estou faminto agora.

Mas Marta, se está contente,

dá-lhe pouco de quem chora.

E pois Vossa Senhoria,

em geral, a tudo acode,

acuda a mim, que só

dar-me no engenho valia.

Esperte esta musa minha,

que o tempo traz sonorenta,

valha-me nesta tormenta

com essa doce mezinha

que só dá vida e a contenta.

Acuda com provisão

não de papel, mas provida

de ouro e prata: que esta vida

não sustentam papéis, não.

De feitor a tesoureiro

ser-me hia trabalho grande;

Vossa Senhoria mande

algum remédio primeiro

com que a morte o ferro abrande.

Ajuda de Luís de Camões:

Nos livros doutos se trata,

que o grande Aquiles insano

deu a morte a Heitor troiano;

mas agora a fome mata

o nosso Heitor lusitano.

Só ela o pode acabar,

se essa vossa condição

liberal e singular

não mete entre eles bastão

bastante para o fartar.

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Índice das Trovas

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111.

Cantiga

a este moto que lhe mandou

o Vizo-Rei, na Índia, para

que Luís de Camões lhe

fizesse üas voltas

MOTO:

Muito sou meu inimigo,

pois que não tiro de mi

cuidados com que nasci,

que põem a vida em perigo.

Oxalá que fora assi!

VOLTAS

Viver eu, sendo mortal,

de cuidados rodeado,

parece meu natural;

que a peçonha não faz mal

a quem foi nela criado.

Tanto sou meu inimigo,

que, por não tirar de mi

cuidados, com que naci,

porei a vida em perigo.

Oxalá que fora assi!

Tanto vim a acrecentar

cuidados, que nunca amansam

enquanto a vida durar,

que canso já de cuidar

como cuidados não cansam.

Se estes cuidados que digo

dessem fim a mi e a si,

fariam pazes comigo;

que pôr a vida em perigo,

o bom fora para mi.

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Índice das Trovas

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112.

Trovas

mandadas ao Vizo-Rei,

com o mato anterior:

Conde, cujo ilustre peito

merece nome de Rei,

do qual muito certo sei

que lhe fica sendo estreito

o cargo de Vizo-Rei;

servirdes-vos de ocupar-me,

tanto contra meu planeta,

não foi senão asas dar-me,

com as quais vou a queimar-me,

como faz a borboleta.

E se eu a pena tomar

que tão mal cortada tenho,

será para celebrar

vosso valor singular,

dino de mais alto engenho.

Que, se o meu vos celebrasse,

necessário me seria

que os olhos da águia tomasse,

só para que não cegasse

no sol de vossa valia.

Vossos feitos sublimados,

nas armas dinos de glória,

são no mundo tão soados

que em vós de vossos passados

se ressuscita a memória.

Pois aquele animo estranho,

pronto para todo efeito,

espanta todo o conceito,

como coração tamanho

vos pode caber no peito.

A clemência que asserena

coração tão singular,

se eu nisso pusesse a pena,

seria encerrar o mar

em cova muito pequena

Bem basta, Senhor, que agora

vos sirvais de me ocupar,

que assi fareis aparar

a pena com que algüa hora

vos vereis ao Céu voar.

Assi vos irei louvando,

vós a mim do chão erguendo,

ambos o mundo espantando:

vós, co a espada cortando,

eu, co a pena escrevendo.

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Índice das Trovas

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113.

Trovas

que Luís de Camões fez, na Índia,

a certos fidalgos a quem convidara para cear

A primeira iguaria foi posta

a Casco de Ataíde. entre dous pratos,

e diria assim:

Se não quereis padecer

üa ou duas horas tristes,

sabeis que haveis de fazer?

Volveros por do venistes,

que aqui não há que comer.

E posto que aqui leiais

trovinha que vos enleia,

corrido não estejais;

porque por mais que corrais

não heis-de alcançar a ceia.

A segunda, a D. Franeisco d'Almeida:

Heliogábalo zombava

das pessoas convidadas,

e de sorte as enganava

que as iguarias que dava

vinham nos pratos pintadas.

Não temais tal travessura,

pois já não pode ser nova;

que a ceia está mui segura

de vos não vir em pintura,

mas há-de vir toda em trova.

A terecira, a Heitor da Silveira:

Ceia não a papareis;

contudo, porque não minta,

para beber achareis,

não Caparica, mas tinta,

e mil cousas que papeis.

E vós torceis o focinho,

com esta anfibologia?

Pois sabei que a Poesia

vos dá aqui tinta por vinho,

e papéis por iguaria.

A quarta foi posta a João Lopes Leitão,

a quem o Autor mandou um moto,

que vai adiante, sobre uma peça

de cacha, que este mandas ü a da Dama:

Porque os que vos convidaram

vosso estâmago não danem,

por justa causa ordenaram,

se trovas vos enganaram,

que trovas vos desenganem.

Vós tereis isto por tacha,

converter tudo em trovar;

pois se me virdes zombar,

não cuideis, Senhor, que é cacha,

que aqui não há cachar.

Finge que, responde João Lopes Leitão:

Pesar ora não de São!

Eu juro pelo Céu bento

se de comer me não dão,

que eu não sou camaleão

que me hei-de manter do vento.

Finge que responde o Autor:

Senhor, não vos agasteis,

porque Deus vos proverá;

e se mais saber quereis,

nas costas deste lereis

as iguarias que há.

Vira o papel, que dizia assi:

Tendes nem migalha assada,

cousa ne~nua de molho,

e nada feito em empada,

e vento de tigelada,

picar no dente em remalho.

De fumo tendes tassalhos,

aves da pena que sente

quem de fome anda doente;

bocejar de vinho e de alhos,

manjar em branco excelente.

A quinta e derradeira iguaria foi posta

a Francisco de Melo e dizia:

De um homem que teve o ceptro

da veia maravilhosa,

não foi cousa duvidosa

que se lhe tornava em metro

o que ia a dizer em prosa.

De mim vos quero apostar

que faça cousas mais novas

de quanto podeis cuidar:

esta ceia, que é manjar,

vos faça na boca em trovas.

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Índice das Trovas

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114.

Cantiga

a João Lopez, Leitão, na Índia,

por causa de~ua peça de cacha

que este mandou a ~ua Dama

que se lhe fazia donzela

MOTO:

Se vossa dama vos dá

tudo quanto vós quisestes,

dizei: para que lhe destes

o que vos ela fez já?

VOLTAS

Sendo os restos envidados

e vós de cachas mil contos,

sabeis com quão poucos pontos

que lhos achastes quebrados.

Se o que tem, isso vos dá,

vós mui bem lho merecestes,

porque, se a cacha lhe destes,

tinha-vo-la feita já.

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Índice das Trovas

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115.

Trovas

do Autor, na Índia, conhecidas

pelo nome de «Disparates»

Este mundo es el camino

adó ay ducientos vaus

ou por onde bons e maus

todos somos del menino.

Mas os maus são de teor

que, dês que mudam a cor,

chamam logo a el-Rei compadre;

e, enfim, dejalhos, mi madre,

que sempre tem um sabor

de «Quem torto naeo, tarde se

[endireita».

Deixai a um que se abone,

diz logo de muito sengo:

villas e castillos tengo,

todos a mi mandar sone.

Então eu, que estou de molho,

com a lágrima no olho,

pelo virar do envés,

digo-lhe: tu insanus es,

e por isso não to talho:

pois «Honra e proveito não cabem |

[num saco».

Vereis uns, que no seu seio

cuidam que trazem Paris,

e querem com dous ceitis

fender anca pelo meio.

Vereis mancebinho de arte

com espada em talabarte;

não há mais Italiano.

A este direis:—Meu mano,

vós sais galante que farte:

mas «Pan y vino anda el camino, que

no mozo garrido».

Outros em cada teatro

por ofício lhe ouvireis

que se matarán con tres

y lo mismo harán com cuatro.

Prezam-se de dar respostas

com palavras bem compostas;

mas, se lhe meteis a mão,

na paz mostram coração,

na guerra mostram as costas:

porque «Aqui torce a porca o rabo».

Outros vejo por aqui,

a que se acha mal o fundo,

que andam emendando o mundo

e não se emendam a si.

Estes respondem a quem

deles não entende bem

el dolor que está secreto;

mas porém quem for discreto

responder-lhe há muito bem:

«Assi entrou o mundo, assi há-de sair».

Achareis rafeiro velho,

que se quer vender por galgo:

diz que o dinheiro é fidalgo,

que o sangue todo é vermelho.

Se ele mais alto o dissera,

este pelote pusera;

que o seu eco lhe responda,

que su padre era de Ronda,

y su madre de Antequera

e «Quer cobrir o céu cüa joeira».

Fraldas largas, grave aspeito

para senador romano.

Õ que grandíssimo engano!

Que Momo lhe abrisse o peito!

Consciência que sobeja,

siso, com que o mundo reja,

mansidão outro que si;

mas que lobo está em ti,

metido em pele de oveja!

E sabem-no poucos.

Guardai-vos d'uns meus senhores,

que ainda compram e vendem;

uns que é certo que descendem

da geração de pastores;

mostram-se-vos bons amigos,

mas, se vos vêm em perigos,

escarram-vos nas paredes;

que de fora dormiredes,

irmão, que é tempo de figos;

porque «De rabo de porco nunca

bom virote».

[Que dizeis duns, qu'as entranhas

lhe estão ardendo em cobiça?

E, se têm mando, a justiça

fazem de teias de aranhas,

com suas hipocrisias

que são de vós as espias?

Para os pequenos, uns Neros;

para os grandes, tudo feros.

Pois tu, parvo, não sabias

que «Lá vão leis, onde querem

cruzados»?

Mas tornando a uns enfadonhos

cujas cousas são notórias;

uns, que contam mil histórias

mais desmanchadas que sonhos;

uns, mais parvos que zamboas,

que estudam palavras boas,

[a que ignorancia os atiça;]

estes paguem por justiça,

que têm morto mil pessoas,

por vida de quanto quero

Adónde ienen las mentes

uns secretos trovadores,

que fazem cartas d'amores,

de que ficam mui contentes?

Não querem sair à praça;

trazem trova por negaça;

e se lha gabais, que é boa,

diz que é de certa pessoa.

Ora que quereis que faça,

senão ir-me por esse mundo?

Ó tu, como me atarracas,

escudeiro de solia,

com bocais de fidalguia,

trazidos quase com vacas;

importuno a importunar,

morto por desenterrar

parentes que cheiram já!

Voto a tal, que me fará

um destes nunca falar

mais com viva alma.

Uns que falam muito, vi,

de que quisera fugir;

uns que, enfim, sem se sentir,

andam falando entre si;

porfiosos sem razão;

e dês que tomam a mão,

falam sem necessidade;

e se algüa hora é verdade,

deve ser na confissão;

porque «Quem não mente...» Já me

[entendeis.

Õ vós, quem quer que me ledes,

que haveis de ser avisado,

que dizeis ao namorado

que caça vento com redes?

Jura por vida da Dama,

fala consigo na cama,

passa de noite, e escarra;

por falsete na guitarra

põe sempre: viva quem ama,

porque calça a seu propósito.

Mas deixemos, se quiserdes,

por um pouco as travessuras

porque entre quatro maduras

leveis também cinco verdes.

Deitemo-nos mais ao mar;

e, se algum se arrecear,

passe três ou quatro trovas.

E vós tomais cores novas?

Mas não é para espantar;

que «Quem porcos há menos, em cada

[mouta lhe roncam».

Ó vós, que sois secretários

das conciências reais,

que entre os homens estais

por senhores ordinários;

porque não pondes um freio

ao roubar que vai sem meio,

debaixo de bom governo?

Pois um pedaço d'inferno

por pouco dinheiro alheio

se vende a Mouro e a Judeu

Porque a mente, afeiçoada

sempre à real dignidade,

vos faz julgar por bondade

a malícia desculpada.

Move a presença real

üa afeição natural,

que logo inclina ao juiz

a seu favor; e não diz

um rifão muito geral

que «O abade donde canta,

[daí janta»?

E vós bailhais a esse som?

Por isso, gentis pastores,

vos chama a vós mercadores

um que só foi pastor bom.]

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Índice das Trovas

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116.

Esparsa

do Autor ao desconcerto do mundo

Os bons vi sempre passar

no mundo graves tormentos;

e, para mais m'espantar,

os maus vi sempre nadar

em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim

o bem tão mal ordenado,

fui mau, mas fui castigado.

Assim que, só para mim

anda o mundo concertado.

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Índice das Trovas

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117.

Labirinto

do Autor a queixar-se do mundo

Corre sem vela e sem leme

o tempo desordenado,

dum grande vento levado;

o que perigo não teme

é de pouco exprimentado.

As rédeas trazem na mão

os que rédeas não tiveram:

vendo quando mal fizeram

a cobiça e ambição

disfarçados se acolheram.

A nau que se vai perder

destrue mil esperanças;

vejo o mau que vem a ter;

vejo perigos correr

quem não cuida que há mudanças.

Os que nunca sem sela andaram

na sela postos se vêm:

de fazer mal não deixaram;

de demónio hábito têm

os que o justo profanaram.

Que poderá vir a ser

o mal nunca refreado?

Anda, por certo, enganado

aquele que quer valer,

levando o caminho errado.

É para os bons confusão

ver que os maus prevaleceram;

posto que se detiveram

com esta simulação,

sempre castigos tiveram.

Não porque governe o leme

em mar envolto e turbado,

quem tem seu rumo mudado,

se perece, grita e geme

em tempo desordenado.

Terem justo galardão

e dor dos que mereceram,

sempre castigos tiveram

sem nenhüa redenção,

posto que se detiveram.

Na tormenta, se vier,

desespere na bonança

quem manhas não sabe ter.

Sem que lhe valha gemer

verá falsar a balança.

Os que nunca trabalharam,

tendo o que lhes não convém,

se ao inocente enganaram

perderão o eterno bem

se do mal não se apartaram.

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Índice das Trovas

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118.

SUPER FLUMINA ...

Sôbolos rios que vão

por Babilónia, m'achei,

onde sentado chorei

as lembranças de Sião

e quanto nela passei.

Ali o rio corrente

de meus olhos foi manado,

e tudo bem comparado,

Babilónia ao mal presente,

Sião ao tempo passado.

Ali, lembranças contentes

n'alma se representaram,

e minhas cousas ausentes

se fizeram tão presentes

como se nunca passaram.

Ali, despois de acordado,

co rosto banhado em água,

deste sonho imaginado,

vi que todo o bem passado

não é gosto, mas é mágoa.

E vi que todos os danos

se causavam das mudanças

e as mudanças dos anos;

onde vi quantos enganos

faz o tempo às esperanças.

Ali vi o maior bem

quão pouco espaço que dura,

o mal quão depressa vem,

e quão triste estado tem

quem se fia da ventura.

Vi aquilo que mais val,

que então se entende milhor

quanto mais perdido for;

vi o bem suceder mal,

e o mal, muito pior.

E vi com muito trabalho

comprar arrependimento;

vi nenhum contentamento,

e vejo-me a mim, que espalho

tristes palavras ao vento.

Bem são rios estas águas,

com que banho este papel;

bem parece ser cruel

variedade de mágoas

e confusão de Babel.

Como homem que, por exemplo

dos transes em que se achou,

despois que a guerra deixou,

pelas paredes do templo

suas armas pendurou:

Assi, despois que assentei

que tudo o tempo gastava,

da tristeza que tomei nos

salgueiros pendurei os órgãos

com que cantava.

Aquele instrumento ledo

deixei da vida passada,

dizendo:—Música amada,

deixo-vos neste arvoredo

à memória consagrada.

Frauta minha que, tangendo,

os montes fazíeis vir

para onde estáveis, correndo;

e as águas, que iam decendo,

tornavam logo a subir:

jamais vos não ouvirão

os tigres, que se amansavam,

e as ovelhas, que pastavam,

das ervas se fartarão

que por vos ouvir deixavam.

Já não fareis docemente

em rosas tornar abrolhos

na ribeira florecente;

nem poreis freio à corrente,

e mais, se for dos meus olhos.

Não movereis a espessura,

nem podereis já trazer

atrás vós a fonte pura,

pois não pudestes mover

desconcertos da ventura

Ficareis oferecida

à Fama, que sempre vela,

frauta de mim tão querida;

porque, mudando-se a vida,

se mudam os gostos dela.

Acha a tenta mocidade

prazeres acomodados,

e logo a maior idade

já sente por pouquidade

aqueles gostos passados.

Um gosto que hoje se alcança,

amanhã já o não vejo;

assi nos traz a mudança

de esperança em esperança,

e de desejo em desejo.

Mas em vida tão escassa

que esperança será forte?

Fraqueza da humana sorte,

que, quanto da vida passa

está receitando a morte!

Mas deixar nesta espessura

o canto da mocidade,

não cuide a gente futura

que será obra da idade

o que é força da ventura.

Que idade, tempo, o espanto

de ver quão ligeiro passe,

nunca em mim puderam tanto

que, posto que deixe o canto,

a causa dele deixasse.

Mas, em tristezas e enojas

em gosto e contentamento,

por sol, por neve, por vento,

terné presente a los ojos

por quien muero tan contento.

Orgãos e frauta deixava,

despojo meu tão querido,

no salgueiro que ali estava

que para troféu ficava

de quem me tinha vencido.

Mas lembranças da afeição

que ali cativo me tinha,

me perguntaram então:

que era da música minha

que eu cantava em Sião?

Que foi daquele cantar

das gentes tão celebrado?

Porque o deixava de usar?

Pois sempre ajuda a passar

qualquer trabalho passado.

Canta o caminhante ledo

no caminho trabalhoso.

por antr'o espesso arvoredo

e, de noite, o temeroso

cantando, refreia o medo.

Canta o preso documente

os duros grilhões tocando;

canta o segador contente;

e o trabalhador, cantando,

o trabalho menos sente.

Eu, qu'estas cousas senti

n'alma, de mágoas tão cheia

Como dirá, respondi,

quem tão alheio está de si

doce canto em terra alheia?

Como poderá cantar

quem em choro banh'o peito?

Porque se quem trabalhar

canta por menos cansar,

eu só descansos enjeito.

Que não parece razão

nem seria cousa idónea,

por abrandar a paixão,

que cantasse em Babilónia

as cantigas de Sião.

Que, quando a muita graveza

de saudade quebrante

esta vital fortaleza,

antes moura de tristeza

que, por abrandá-la, cante.

Que se o fino pensamento

só na tristeza consiste,

não tenho medo ao tormento

que morrer de puro triste,

que maior contentamento?

Nem na frauta cantarei

O que passo, e passei já,

nem menos o escreverei,

porque a pena cansará,

e eu não descansarei.

Que, se vida tão pequena

se acrecenta em terra estranha,

e se amor assi o ordena,

razão é que canse a pena

de escrever pena tamanha.

Porém se, para assentar

o que sente o coração,

a pena já me cansar

não canse para voar

a memória em Sião.

Terra bem-aventurada,

se, por algum movimento,

d'alma me fores mudada,

minha pena seja dada

a perpétuo esquecimento.

A pena deste desterro,

que eu mais desejo esculpida

em pedra, ou em duro ferro,

essa nunca sela ouvida,

em castigo de meu erro.

E se eu cantar quiser,

em Babilónia sujeito,

Hierusalém, sem te ver,

a voz, quando a mover,

se me congele no peito.

A minha língua se apegue

às fauces, pois te perdi,

se, enquanto viver assi,

houver tempo em que te negue

ou que me esqueça de ti.

Mas ó tu, terra de Glória,

se eu nunca vi tua essência,

como me lembras na ausência?

Não me lembras na memória,

senão na reminiscência.

Que a alma é tábua rasa,

que, com a escrita doutrina

celeste, tanto imagina,

que voa da própria casa

e sobe à pátria divina.

Não é, logo, a saudade

das terras onde naceu

a carne, mas é do Céu,

daquela santa cidade,

donde esta alma descendeu.

E aquela humana figura,

que cá me pôde alterar,

não é quem se há-de buscar:

é raio de fermosura,

que só se deve de amar.

Que os olhos e a luz que ateia

o fogo que cá sujeita,

não do sol, mas da candeia,

é sombra daquela Ideia

que em Deus está mais perfeita.

E os que cá me cativaram

são poderosos afeitos

que os corações têm sujeitos;

sofistas que me ensinaram

maus caminhos por direitos.

Destes, o mando tirano

me obriga, com desatino,

a cantar ao som do dano

cantares d'amor profano

por versos d'amor divino.

Mas eu, lustrado co santo

Raio, na terra de dor,

de confusão e de espanto,

como hei-de cantar o canto

que só se deve ao Senhor?

Tanto pode o beneficio

da Graça, que dá saúde,

que ordena que a vida mude;

e o que tomei por vício

me faz grau para a virtude;

e faz que este natural

amor, que tanto se preza,

suba da sombra ao Real,

da particular beleza

para a Beleza geral.

Pique logo pendurada

a frauta com que tangi,

ó Hierusalém sagrada,

e tome a lira dourada,

para só cantar de ti.

Não cativo e ferrolhado

na Babilónia infernal,

mas dos vícias desatado,

e cá desta a ti levado,

Pátria minha natural.

E se eu mais der a cerviz

a mundanos acidentes,

duros, tiranos e urgentes,

risque-se quanto já fiz

do grão livro dos viventes.

E tomando já na mão

a lira santa, e capaz

doutra mais alta invenção,

cale-se esta confusão,

cante-se a visão da paz.

Ouça-me o pastor e o Rei,

retumbe este acento santo,

mova-se no mundo espanto,

que do que já mal cantei

a palinódia já canto.

A vós só me quero ir,

Senhor e grão Capitão

da alta torre de Sião,

à qual não posso subir

se me vós não dais a mão.

No grão dia singular

que na lira o douto som

Hierusalém celebrar,

lembrai-vos de castigar

os ruins filhos de Edom.

Aqueles que tintos vão

no pobre sangue inocente,

soberbos co poder vão,

arrasai-os igualmente,

conheçam que humanos são.

E aquele poder tão duro

dos afeitos com que venho,

que encendem alma e engenho,

que já me entraram o muro

do livre alvídrio que tenho;

estes, que tão furiosos

gritando vêm a escalar-me,

maus espíritos danosos,

que querem como forçosos

do alicerce derrubar-me;

Derrubui-os, fiquem sós,

de forças fracos, imbeles,

porque não podemos nós

nem com eles ir a Vós,

nem sem Vós tirar-nos deles.

Não basta minha fraqueza,

para me dar defensão,

se vós, santo Capitão,

nesta minha fortaleza

não puserdes guarnição.

E tu, ó carne que encantas,

filha de Babel tão feia,

toda de misérias cheia,

que mil vezes te levantas,

contra quem te senhoreia:

beato só pode ser

quem co a ajuda celeste

contra ti prevalecer,

e te vier a fazer

o mal que lhe tu fizeste;

Quem com disciplina crua

se fere mais que üa vez,

cuja alma, de vícios nua,

faz nódoas na carne sua,

que já a carne n'alma fez.

E boato quem tomar

seus pensamentos recentes

e em nacendo os afogar,

por não virem a parar

em vícios graves e urgentes;

Quem com eles logo der

na pedra do furar santo,

e, batendo, os desfizer

na Pedra, que veio a ser

enfim cabeça do Canto;

Quem logo, quando imagina

nos vícios da carne má,

os pensamentos declina

àquela Carne divina

que na Cruz esteve já.

Quem do vil contentamento

cá deste mundo visível,

quanto ao homem for possível,

passar logo o entendimento

para o mundo inteligível:

ali achará alegria

em tudo perfeita e cheia,

de tão suave harmonia

que nem, por pouca, recreia,

nem, por sobeja, enfastia.

Ali verá tão-profundo

mistério na suma alteza

que, vencida a natureza,

os mores faustos do mundo

julgue por maior baixesa

Ó tu, divino aposento,

minha pátria singular!

Se só com te imaginar

tanto sobe o entendimento,

que fará se em ti se achar?

Ditoso quem se partir

para ti, terra excelente,

tão justo e tão penitente

que, despois de a ti subir

lá descanse eternamente.

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Índice das Trovas

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1

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nquanto quis Fortuna que tivesse

esperança de algum contentamento,

o gosto de um suave pensamento

me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse

minha escritura a algum juízo isento,

escureceu-me o engenho co tormento,

para que seus enganos não dissesse.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos

a diversas vontades! Quando lerdes

num breve livro casos tão diversos,

verdades puras são, e não defeitos...

E sabei que, segundo o amor tiverdes,

tereis o entendimento de meus versos!

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2

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u cantarei de amor tão docemente,

por uns termos em si tão concertados,

que dous mil acidentes namorados

faça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente,

pintando mil segredos delicados,

brandas iras, suspiros namorados,

temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto

de vossa vista branda e rigorosa,

contentar me hei dizendo a menos parte.

Porém, para cantar de vosso gesto

a composição alta e milagrosa,

aqui falta saber, engenho e arte.

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Índice

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3

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usque Amor novas artes, novo engenho,

para matar me, e novas esquivanças;

que não pode tirar me as esperanças,

que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!

Vede que perigosas seguranças!

Que não temo contrastes nem mudanças,

andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto

onde esperança falta, lá me esconde

Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que n'alma me tem posto

um não sei quê, que nasce não sei onde,

vem não sei como, e dói não sei porquê.

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Índice

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4

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anto de meu estado me acho incerto,

que em vivo ardor tremendo estou de frio;

sem causa, juntamente choro e rio,

o mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto, um desconcerto;

da alma um fogo me sai, da vista um rio;

agora espero, agora desconfio,

agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando,

num'hora acho mil anos, e é de jeito

que em mil anos não posso achar ü'hora.

Se me pergunta alguém porque assi ando,

respondo que não sei; porém suspeito

que só porque vos vi, minha Senhora.

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5

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mor é um fogo que arde sem se ver,

é ferida que dói, e não se sente;

é um contentamento descontente,

é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;

é um andar solitário entre a gente;

é nunca contentar se de contente;

é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;

é servir a quem vence, o vencedor;

é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor

nos corações humanos amizade,

se tão contrário a si é o mesmo Amor?

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6

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oces águas e claras do Mondego,

doce repouso de minha lembrança,

onde a comprida e pérfida esperança

longo tempo após si me trouxe cego;

de vós me aparto; mas, porém, não nego

que inda a memória longa, que me alcança,

me não deixa de vós fazer mudança,

mas quanto mais me alongo, mais me achego.

Bem pudera Fortuna este instrumento

d'alma levar por terra nova e estranha,

oferecido ao mar remoto e vento;

mas alma, que de cá vos acompanha,

nas asas do ligeiro pensamento,

para vós, águas, voa, e em vós se banha.

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7

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fogo que na branda cera ardia,

vendo o rosto gentil que eu n'alma vejo,

se acendeu de outro fogo do desejo,

por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dous ardores se encendia,

da grande impaciência fez despejo,

e remetendo com furor sobejo

vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama, que se atreve

[a] apagar seus ardores e tormentos

na vista de que o mundo tremer deve.

Namoram se, Senhora, os Elementos

de vós, e queima o fogo aquela neve

que queima corações e pensamentos.

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8

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ede o desejo, Dama, que vos veja,

não entende o que pede; está enganado.

É este amor tão fino e tão delgado,

que quem o tem não sabe o que deseja.

Não há cousa a qual natural seja

que não queira perpétuo seu estado;

não quer logo o desejo o desejado,

porque não falte nunca onde sobeja.

Mas este puro afeito em mim se dana;

que, como a grave pedra tem por arte

o centro desejar da natureza,

assi o pensamento (pola parte que

vai tomar de mim, terreste [e] humana)

foi, Senhora, pedir esta baixeza.

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9

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uando da bela vista e doce riso,

tomando estão meus olhos mantimento,

tão enlevado sinto o pensamento

que me faz ver na terra o Paraíso.

Tanto do bem humano estou diviso,

que qualquer outro bem julgo por vento;

assi, que em caso tal, segundo sento,

assaz de pouco faz quem perde o siso.

Em vos louvar, Senhora, não me fundo,

porque quem vossas cousas claro sente,

sentirá que não pode merecê las.

Que de tanta estranheza sois ao mundo,

que não é de estranhar, Dama excelente,

que quem vos fez, fizesse Céu e estrelas.

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10

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uem pode livre ser, gentil Senhora,

vendo-vos com juízo sossegado,

se o Minino que de olhos é privado,

nas mininas dos vossos olhos mora?

Ali manda, ali reina, ali namora,

ali vive das gentes venerado;

que o vivo lume e o rosto delicado,

imagens são, nas quais o Amor se adora.

Quem vê que em branca neve nascem rosas

que fios crespos de ouro vão cercando,

se por entre esta luz a vista passa,

raios de ouro verá, que as duvidosas

almas estão no peito traspassando,

assi como um cristal o Sol traspassa...

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omou-me vossa vista soberana

adonde tinha armas mais à mão,

por mostrar que quem busca defensão

contra esses belos olhos, que se engana.

Por ficar da vitória mais ufana,

deixou-me armar primeiro da Razão;

cuidei de me salvar, mas foi em vão,

que contra o Céu não val defensa humana.

Mas porém se vos tinha prometido

o vosso alto destino esta vitória,

ser-vos tudo bem pouco está sabido.

Que, posto que estivesse apercebido,

não levais de vencer-me grande glória:

maior a levo eu de ser vencido.

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ossos olhos, Senhora, que competem

co Sol em fermosura e claridade,

enchem os meus de tal suavidade

que em lágrimas, de vê-los, se derretem.

Meus sentidos vencidos se sometem

assi cegos a tanta majestade;

e da triste prisão, da escuridade,

cheios de medo, por fugir remetem.

Mas se nisto me vedes por acerto,

o áspero desprezo com que olhais

torna a espertar a alma enfraquecida.

Ó gentil cura e estranho desconcerto!

Que fará o favor que vós não dais,

quando o vosso desprezo torna a vida?

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legres campos, verdes arvoredos,

claras e frescas águas de cristal,

que em vós os debuxais ao natural,

discorrendo da altura dos rochedos;

Silvestres montes, ásperos penedos,

compostos em concerto desigual,

sabei que, sem licença de meu mal,

já não podeis fazer meus olhos ledos.

E, pois me já não vedes como vistes,

não me alegrem verduras deleitosas,

nem águas que correndo alegres vêm.

Semearei em vós lembranças tristes,

regando-vos com lágrimas saudosas,

e nascerão saudades de meu bem.

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stá o lascivo e doce passarinho

com o biquinho as penas ordenando;

o verso sem medida, alegre e brando,

espedindo no rústico raminho;

o cruel caçador (que do caminho

se vem calado e manso desviando)

na pronta vista a seta endireitando,

lhe dá no Estígio lago eterno ninho.

Dest' arte o coração, que livre andava,

(posto que já de longe destinado)

onde menos temia, foi ferido.

Porque o Frecheiro cego me esperava,

para que me tomasse descuidado,

em vossos claros olhos escondido.

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embranças saudosas, se cuidais

de me acabar a vida neste estado,

não vivo com meu mal tão enganado,

que não espere dele muito mais.

De muito longe já me costumais

a viver de algum bem desesperado;

já tenho co a Fortuna concertado

de sofrer os trabalhos que me dais.

Atado ao remo tenho a paciência,

para quantos desgostos der a vida,

cuide em quanto quiser o pensamento;

que, pois não há i outra resistência

para tão certa queda da caída,

aparar-lhe hei debaixo o sofrimento.

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e as penas com que Amor tão mal me trata

quiser que tanto tempo viva delas

que veja escuro o lume das estrelas

em cuja vista o meu se acende e mata;

e se o tempo, que tudo desbarata,

secar as frescas rosas sem colhê-las,

mostrando a linda cor das tranças belas

mudada de ouro fino em bela prata;

vereis, Senhora, então também mudado

o pensamento e aspereza vossa,

quando não sirva já sua mudança.

Suspirareis então pelo passado,

em tempo quando executar-se possa

em vosso arrepender minha vingança.

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uem vê, Senhora, claro e manifesto

o lindo ser de vossos olhos belos,

se não perder a vista só em vê los,

já não paga o que deve a vosso gesto.

Este me parecia preço honesto;

mas eu, por de vantagem merecê los,

dei mais a vida e alma por querê los,

donde já me não fica mais de resto.

Assi que a vida e alma e esperança

e tudo quanto tenho, tudo é vosso,

e o proveito disso eu só o levo.

Porque é tamanha bem aventurança

o dar vos quanto tenho e quanto posso

que, quanto mais vos pago, mais vos devo.

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uando o Sol encoberto vai mostrando

ao mundo a luz quieta e duvidosa,

ao longo de üa praia deleitosa,

vou na minha inimiga imaginando.

Aqui a vi, os cabelos concertando;

ali, co a mão na face tão fermosa;

aqui, falando alegre, ali cuidosa;

agora estando queda, agora andando.

aqui esteve sentada, ali me viu,

erguendo aqueles olhos tão isentos;

aqui movida um pouco, ali segura;

qui se entristeceu, ali se riu;

enfim, nestes cansados pensamentos

passo esta vida vã, que sempre dura.

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empo é já que minha confiança

se desça de üa falsa opinião;

mas Amor não se rege por razão;

não posso perder, logo, a esperança.

A vida, si; que üa áspera mudança

não deixa viver tanto um coração.

E eu na morte tenho a salvação?

Si, mas quem a deseja não a alcança.

Forçado é logo que eu espere e viva.

Ah! dura lei de Amor, que não consente

quietação nüa alma que é cativa!

Se hei de viver, enfim, forçadamente,

para que quero a glória fugitiva

de üa esperança vã que me atormente?

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ransforma se o amador na cousa amada,

por virtude do muito imaginar;

não tenho, logo, mais que desejar,

pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,

que mais deseja o corpo de alcançar?

Em si sòmente pode descansar,

pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,

que, como um acidente em seu sujeito,

assi co a alma minha se conforma,

está no pensamento como ideia:

[e] o vivo e puro amor de que sou feito,

como a matéria simples busca a forma.

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asso por meus trabalhos tão isento

de sentimento grande nem pequeno,

que só pola vontade com que peno

me fica Amor devendo mais tormento.

Mas vai me Amor matando tanto a tento,

temperando a triaga co veneno,

que do penar a ordem desordeno,

porque não mo consente o sofrimento.

Porém, se esta fineza o Amor sente,

e pagar me meu mal com mal pretende,

torna me com prazer como ao Sol neve.

Mas se me vês cos males tão contente,

faz se avaro da pena, porque entende

que quanto mais me paga, mais me deve.

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um jardim adornado de verdura,

a que esmaltam por cima várias flores,

entrou um dia a deusa dos amores,

com a deusa da caça e da espessura.

Diana tomou logo üa rosa pura,

Vénus um roxo lírio, dos milhores;

mas excediam muito às outras flores

as violas, na graça e fermosura.

Perguntam a Cupido, que ali estava,

qual daquelas três flores tomaria,

por mais suave, pura e mais fermosa?

Sorrindo se, o Minino lhe tornava:

todas fermosas são, mas eu queria

V i o l 'a n t e s que lírio, nem que rosa.

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indo e sutil trançado, que ficaste

em penhor do remédio que mereço,

se só contigo, vendo te, endoudeço,

que fora cos cabelos que apertaste?

Aquelas tranças d'ouro, que ligaste,

que os raios do Sol têm em pouco preço,

não sei se para engano do que peço

se para me atar, os desataste.

Lindo trançado, em minhas mãos te vejo,

e por satisfação de minhas dores

como quem não tem outra, hei de tomar te.

E se não for contente meu desejo,

dir lhe hei que, nesta regra dos amores,

pelo todo também se toma a parte.

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stá se a Primavera trasladando

em vossa vista deleitosa e honesta;

nas lindas faces, olhos, boca e testa,

boninas, lírios, rosas debuxando.

De sorte, vosso gesto matizando,

Natura quanto pode manifesta

que o monte, o campo, o rio e a floresta

se estão de vós, Senhora, namorando.

Se agora não quereis que quem vos ama

possa colher o fruito destas flores,

perderão toda a graça vossos olhos.

Porque pouco aproveita, linda Dama,

que semeasse Amor em vós amores,

se vossa condição produze abrolhos.

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h! como se me alonga, de ano em ano,

a peregrinação cansada minha!

Como se encurta, e como ao fim caminha

este meu breve e vão discurso humano!

Vai se gastando a idade e cresce o dano;

perde se me um remédio, que inda tinha;

se por experiência se adivinha,

qualquer grande esperança é grande engano.

Corro após este bem que não se alcança;

no meio do caminho me falece,

mil vezes caio, e perco a confiança.

Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança,

se os olhos ergo a ver se inda parece,

da vista se me perde, e da esperança.

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rão tempo há já que soube da Ventura

a vida que me tinha destinada;

que a longa experiência da passada

me dava claro indício da futura.

Amor fero, cruel, Fortuna dura,

bem tendes vossa força exprimentada:

assolai, destruí, não fique nada;

vingai vos desta vida, qu'inda dura.

Soube Amor da Ventura, que a não tinha,

e, por que mais sentisse a falta dela,

de imagens impossíveis me mantinha.

Mas vós, Senhora, pois que minha estrela

não foi milhor, vivei nesta alma minha,

que não tem a Fortuna poder nela.

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orque quereis, Senhora, que ofereça

a vida a tanto mal como padeço?

Se vos nasce do pouco que mereço,

bem por nascer está quem vos mereça.

Sabei que, enfim, por muito que vos peça,

que posso merecer quanto vos peço;

que não consente Amor que em baixo preço

tão alto pensamento se conheça.

Assi que a paga igual de minhas dores,

com nada se restaura, mas deveis ma,

por ser capaz de tantos disfavores.

E se o valor de vossos servidores

houver de ser igual convosco mesma,

vós só convosco mesma andai d'amores.

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uando vejo que meu destino ordena

que por me exprimentar de vós me aparte,

deixando de meu bem tão grande parte

que a mesma culpa fica grave pena;

o duro disfavor que me condena,

quando pela memória se reparte,

endurece os sentidos de tal arte

que a dor da ausência fica mais pequena.

Pois como pode ser que na mudança

daquilo que mais quero estê tão fora

de me não apartar também da vida?

Eu refrearei tão áspera esquivança;

porque mais sentirei partir, Senhora,

sem sentir muito a pena da partida.

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e algü'hora em vós a piedade

de tão longo tormento se sentira,

não consentira Amor que me partira

de vossos olhos, minha saüdade.

Apartei me de vós, mas a vontade,

que pelo natural n'alma vos tira,

me faz crer que esta ausência é de mentira;

mas inda mal, porém, porque é verdade.

Ir me hei, Senhora; e, neste apartamento,

tomarão tristes lágrimas vingança

nos olhos de quem fostes mantimento.

E assi darei vida a meu tormento;

que, enfim, cá me achará minha lembrança

sepultado no vosso esquecimento.

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ete anos de pastor Jacob servia

Labão, pai de Raquel, serrana bela;

mas não servia ao pai, servia a ela,

e a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,

passava, contentando se com vê la;

porém o pai, usando de cautela,

em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos

lhe fora assi negada a sua pastora,

como se a não tivera merecida;

começa de servir outros sete anos,

dizendo:—Mais servira, se não fora

para tão longo amor tão curta a vida.

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ensamentos, que agora novamente

cuidados vãos em mim ressuscitais,

dizei me: ainda não vos contentais

de terdes, quem vos tem, tão descontente?

Que fantasia é esta, que presente

cad'hora ante meus olhos me mostrais?

Com sonhos e com sombras atentais

quem nem por sonhos pode ser contente?

Vejo vos, pensamentos, alterados

e não quereis, d'esquivos, declarar me

que é isto que vos traz tão enleados?

Não me negueis, se andais para negar me;

que, se contra mim estais alevantados,

eu vos ajudarei mesmo a matar me.

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ós que, d'olhos suaves e serenos,

com justa causa a vida cativais,

e que os outros cuidados condenais

por indevidos, baixos e pequenos;

se ainda do Amor domésticos venenos

nunca provastes, quero que saibais

que é tanto mais o amor despois que amais,

quanto são mais as causas de ser menos.

E não cuide ninguém que algum defeito,

quando na cousa amada s'apresenta,

possa deminuir o amor perfeito;

antes o dobra mais; e se atormenta,

pouco e pouco o desculpa o brando peito;

que Amor com seus contrairos s'acrescenta.

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e tomar minha pena em penitência

do erro em que caiu o pensamento,

não abranda, mas dobra meu tormento,

a isto, e a mais, obriga a paciência.

E se üa cor de morto na aparência,

um espalhar suspiros vãos ao vento,

em vós não faz, Senhora, movimento,

fique meu mal em vossa consciência.

E se de qualquer áspera mudança

toda a vontade isenta Amor castiga

(como eu vi bem no mal que me condena);

e se em vós não s'entende haver vingança,

será forçado (pois Amor me obriga)

que eu só de vossa culpa pague a pena.

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e pena por amar vos se merece,

quem dela livre está? Ou quem isento?

Que alma, que razão, qu'entendimento,

em ver vos se não rende e obedece?

Que mor glória na vida s'oferece

que ocupar se em vós o pensamento?

Toda a pena cruel, todo o tormento

em ver vos se não sente, mas esquece.

Mas se merece pena quem amando

contino vos está, se vos ofende,

o mundo matareis, que todo é vosso.

Em mim podeis, Senhora, ir começando,

que claro se conhece e bem se entende

amar vos quanto devo e quanto posso.

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ue modo tão sutil da natureza,

para fugir ao mundo, e seus enganos,

permite que se esconda em tenros anos,

debaixo de um burel tanta beleza!

Mas esconder se não pode aquela alteza

e gravidade de olhos soberanos,

a cujo resplandor entre os humanos

resistência não sinto, ou fortaleza.

Quem quer livre ficar de dor e pena,

vendo a ou trazendo a na memória,

da mesma razão sua se condena.

Porque quem mereceu ver tanta glória,

cativo há de ficar; que Amor ordena

que de juro tenha ela esta vitória.

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resença bela, angélica figura,

em quem, quanto o Céu tinha, nos tem dado;

gesto alegre, de rosas semeado,

entre as quais se está rindo a Fermosura;

olhos, onde tem feito tal mistura

em cristal branco o preto marchetado,

que vemos já no verde delicado

não esperança, mas enveja escura;

brandura, aviso e graça, que aumentando

a natural beleza cum desprezo,

com que, mais desprezada, mais se aumenta;

são as prisões de um coração que, preso,

seu mal ao som dos ferros vai cantando,

como faz a sereia na tormenta.

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or cima destas águas, forte e firme,

irei por onde as sortes ordenaram,

pois, por cima de quantas me choraram

aqueles claros olhos, pude vir me.

Já chegado era o fim de despedir me,

já mil impedimentos se acabaram,

quando rios de amor se atravessaram

a me impedir o passo de partir me.

Passei os eu com ânimo obstinado,

com que a morte forçada e gloriosa

faz o vencido já desesperado.

Em que figura, ou gesto desusado,

pode já fazer medo a morte irosa,

a quem tem a seus pés rendido e atado?

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rvore, cujo pomo, belo e brando,

natureza de leite e sangue pinta,

onde a pureza, de vergonha tinta,

está virgíneas faces imitando;

nunca da ira e do vento, que arrancando

os troncos vão, o teu injúria sinta;

nem por malícia de ar te seja extinta

a cor, que está teu fruto debuxando;

que, pois me emprestas doce e idóneo abrigo

a meu contentamento, e favoreces

com teu suave cheiro minha glória,

se não te celebrar como mereces,

cantando te, sequer farei contigo

doce, nos casos tristes, a memória.

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culto divinal se celebrava

no templo donde toda a criatura

louva o Feitor divino, que a feitura

com seu sagrado sangue restaurava.

Ali Amor, que o tempo me aguardava

onde a vontade tinha mais segura,

nüa celeste e angélica figura

a vista da razão me salteava.

Eu, crendo que o lugar me defendia,

e seu livre costume não sabendo

que nenhum confiado lhe fugia,

deixei me cativar; mas já que entendo,

Senhora, que por vosso me queria,

do tempo que fui livre me arrependo.

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enhora minha, se a Fortuna imiga,

que em minha fim com todo o Céu conspira,

os olhos meus de ver os vossos tira,

porque em mais graves casos me persiga;

comigo levo esta alma, que se obriga,

na mor pressa de mar, de fogo, de ira,

a dar vos a memória, que suspira,

só por fazer convosco eterna liga.

Nest'alma, onde a Fortuna pode pouco,

tão viva vos terei, que frio e fome

vos não possam tirar, nem vãos perigos.

Antes co som da voz, trémulo e rouco,

bradando por vós, só com vosso nome

farei fugir os ventos e os imigos.

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quela fera humana que enriquece

sua presuntuosa tirania

destas minhas entranhas, onde cria

Amor um mal que falta quando crece;

Se nela o Céu mostrou (como parece)

quanto mostrar ao mundo pretendia,

porque de minha vida se injuria?

Porque de minha morte s'enobrece?

Ora, enfim, sublimai vossa vitória,

Senhora, com vencer me e cativar me:

fazei disto no mundo larga história.

Que, por mais que vos veja maltratar me,

já me fico logrando desta glória

de ver que tendes tanta de matar me.

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mor, que o gesto humano n'alma escreve,

vivas faíscas me mostrou um dia,

donde um puro cristal se derretia

por entre vivas rosas e alva neve.

A vista, que em si mesma não se atreve,

por se certificar do que ali via,

foi convertida em fonte, que fazia

a dor ao sofrimento doce e leve.

Jura Amor que brandura de vontade

causa o primeiro efeito; o pensamento

endoudece, se cuida que é verdade.

Olhai como Amor gera num momento,

de lágrimas de honesta piedade

lágrimas de imortal contentamento.

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omo quando do mar tempestuoso

o marinheiro, lasso e trabalhado,

d'um naufrágio cruel já salvo a nado,

só ouvir falar nele o faz medroso;

e jura que em que veja bonançoso

o violento mar, e sossegado

não entre nele mais, mas vai, forçado

pelo muito interesse cobiçoso;

Assi, Senhora eu, que da tormenta,

de vossa vista fujo, por salvar me,

jurando de não mais em outra ver me;

minh'alma que de vós nunca se ausenta,

dá me por preço ver vos, faz tornar me

donde fugi tão perto de perder me.

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Ditoso seja aquele que somente

se queixa de amorosas esquivanças;

pois por elas não perde as esperanças

de poder n'algum tempo ser contente.

Ditoso seja quem, estando ausente,

não sente mais que a pena das lembranças;

porqu', inda que se tema de mudanças,

menos se teme a dor quando se sente.

Ditoso seja, enfim, qualquer estado

onde enganos, desprezos e isenção

trazem o coração atormentado.

Mas triste quem se sente magoado

d'erros em que não pode haver perdão,

sem ficar n'alma a mágoa do pecado.

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eda serenidade deleitosa, que

representa em terra um paraíso;

entre rubis e perlas doce riso;

debaixo de ouro e neve, cor-de-rosa;

presença moderada e graciosa,

onde ensinando estão despejo e siso

que se pode por arte e por aviso,

como por natureza, ser fermosa;

fala, de quem a morte e a vida pende,

rara, suave; enfim, Senhora, vossa;

repouso, nela, alegre e comedido;

estas as armas são com que me rende

e me cativa Amor; mas não que possa

despojar me da glória de rendido.

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o mundo quis um tempo que se achasse

o bem que por acerto ou sorte vinha;

e, por exprimentar que dita tinha,

quis que a Fortuna em mim se exprimentasse.

Mas, por que meu destino me mostrasse

que nem ter esperanças me convinha,

nunca nesta tão longa vida minha

cousa me deixou ver que desejasse.

Mudando andei costume, terra e estado,

por ver se se mudava a sorte dura;

a vida pus nas mãos de um leve lenho.

Mas (segundo o que o Céu me tem mostrado)

já sei que deste meu buscar ventura,

achado tenho já, que não a tenho.

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h! quão caro me custa o entender te,

molesto Amor, que, só por alcançar te,

de dor em dor me tens trazido a parte

onde em ti ódio e ira se converte!

Cuidei que para em tudo conhecer te,

me não faltasse experiência e arte;

agora vejo n'alma acrecentar te

aquilo que era causa de perder te.

Estavas tão secreto no meu peito

que eu mesmo, que te tinha, não sabia

que me senhoreavas deste jeito.

Descobriste t'agora; e foi por via

que teu descobrimento e meu defeito,

um me envergonha e outro m'injuria.

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uem quiser ver d'Amor üa excelência

onde sua fineza mais se apura,

atente onde me põe minha ventura,

por ter de minha fé experiência.

Onde lembranças mata a longa ausência,

em temeroso mar, em guerra dura,

ali a saudade está segura,

quando mor risco corre a paciência.

Mas ponha me Fortuna e o duro Fado

em nojo, morte, dano e perdição,

ou em sublime e próspera ventura;

Ponha me, enfim, em baixo ou alto estado;

que até na dura morte me acharão

na língua o nome, n'alma a vista pura.

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e, despois d'esperança tão perdida,

Amor pola ventura consentisse

que inda algü'hora breve alegre visse

de quantas tristes viu tão longa vida;

ü'alma já tão fraca e tão caída,

por mais alto que a sorte me subisse,

não tenho para mim que consentisse

alegria tão tarde consentida.

Não tão somente Amor me não mostrou

um'hora em que vivesse alegremente,

de quantas nesta vida me negou;

mas inda tanta pena me consente,

que co contentamento me tirou

o gosto de algü'hora ser contente.

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enhor João Lopes, o meu baixo estado

ontem vi posto em grau tão excelente,

que vós, que sois enveja a toda a gente,

só por mim vos quiséreis ver trocado.

Vi o gesto suave e delicado

que já vos fez, contente e descontente,

lançar ao vento a voz tão docemente

que fez o ar sereno e sossegado.

Vi lhe em poucas palavras dizer, quanto

ninguém diria em muitas; eu só, cego,

magoado fiquei na doce fala.

Mas mal haja a Fortuna, e o Moço cego!

Um, porque os corações obriga a tanto;

outra, porque os estados desiguala.

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polo e as nove Musas, discantando

com a dourada lira, me influíam

na suave harmonia que faziam,

quando tomei a pena, começando:

—Ditoso seja o dia e hora, quando

tão delicados olhos me feriam!

Ditosos os sentidos que sentiam

estar se em seu desejo traspassando!

Assi cantava, quando Amor virou

a roda à esperança, que corria

tão ligeira que quase era invisível.

Converteu se me em noite o claro dia;

e, se algüa esperança me ficou,

será de maior mal, se for possível.

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ai me üa lei, Senhora, de querer vos,

que a guarde, sô pena de enojar vos;

que a fé que me obriga a tanto amar vos

fará que fique em lei de obedecer vos.

Tudo me defendei, senão só ver vos,

e dentro na minh'alma contemplar vos;

que, se assi não chegar a contentar vos,

ao menos que não chegue [a] aborrecer vos.

E, se essa condição cruel e esquiva,

que me dois lei de vida não consente,

dai ma, Senhora, já, seja de morte.

Se nem essa me dais, é bem que viva,

sem saber como vivo, tristemente,

mas contente porém de minha sorte.

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e tanta pena tenho merecida

em pago de sofrer tantas durezas,

provai, Senhora, em mim vossas cruezas,

que aqui tendes ua alma oferecida.

Nela experimental, se sois servida,

desprezos, disfavores e asperezas;

que mores sofrimentos e firmezas

sustentarei na guerra desta vida.

Mas contra vossos olhos quais serão?

Forçado é que tudo se lhe renda;

mas porei por escudo o coração.

Porque em tão dura e áspera contenda,

é bem que, pois não acho defensão,

com me meter nas lanças me defenda.

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54

a esta cantiga alheia:

Na fonte está Leanor

lavando a talha e chorando,

as amigas perguntando:

vistes lá o meu amor?

VOLTAS

Posto o pensamento nele,

porque a tudo o Amor a obriga,

cantava, mas a cantiga

eram suspiros por ele.

Nisto estava Leanor

o seu desejo enganando,

às amigas perguntando:

vistes lá o meu amor?

O rosto sobre üa mão,

os olhos no chão pregados,

que, do chorar já cansados,

algum descanso lhe dão.

Desta sorte Leanor

suspende de quando em quando

sua dor; e, em si tornando,

mais pesada sente a dor.

Não deita dos olhos água,

que não quer que a dor se abrande

Amor, porque em mágoa grande

seca as lágrimas a mágoa.

Que, despois de seu amor

soube novas, perguntando,

d'emproviso a vi chorando.

Olhai que extremos de dor!

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empre a Razão vencida foi de Amor;

mas, porque assi o pedia o coração,

quis Amor ser vencido da Razão.

Ora que caso pode haver maior!

Novo modo de morte, e nova dor!

Estranheza de grande admiração,

que perde suas forças a afeição,

porque não perca a pena o seu rigor.

Pois nunca houve fraqueza no querer,

mas antes muito mais se esforça assim

um contrário com outro por vencer.

Mas a Razão, que a luta vence, enfim,

não creio que é razão; mas há de ser

inclinação que eu tenho contra mim.

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iversos dões reparte o Céu benino,

e quer que cada üa um só possua;

assi, ornou de casto peito a Lüa,

ornamento do assento cristalino.

De graça, a Mãe fermosa do Minino,

que nessa vista tem perdido a sua;

Palas, de discrição, que imite a tua;

do valor, Juno, só de império dino.

Mas junto agora o mesmo Céu derrama

em ti o mais que tinha, e foi o menos,

em respeito do Autor da natureza;

que, a seu pesar, te dão, fermosa Dama,

Diana, honestidade, e graça, Vénus,

Palas o aviso seu, Juno a nobreza.

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e vós me aparto, ó vida! Em tal mudança,

sinto vivo da morte o sentimento.

Não sei para que é ter contentamento,

se mais há de perder quem mais alcança.

Mas dou vos esta firme segurança

que, posto que me mate meu tormento,

pelas águas do eterno esquecimento

segura passará minha lembrança.

Antes sem vós meus olhos se entristeçam,

que com qualquer cous' outra se contentem;

antes os esqueçais, que vos esqueçam.

Antes nesta lembrança se atormentem,

que com esquecimento desmereçam

a glória que em sofrer tal pena sentem.

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Morte, que da vida o nó desata,

os nós, que dá o Amor, cortar quisera

na Ausência, que é contr' ele espada fera,

e co Tempo, que tudo desbarata.

Duas contrárias, que üa a outra mata,

a Morte contra o Amor ajunta e altera:

üa é Razão contra a Fortuna austera,

outra, contra a Razão, Fortuna ingrata.

Mas mostre a sua imperial potência

a Morte em apartar dum corpo a alma,

duas num corpo o Amor ajunte e una;

porque assi leve triunfante a palma,

Amor da Morte, apesar da Ausência,

do Tempo, da Razão e da Fortuna.

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uspiros inflamados, que cantais

a tristeza com que eu vivi tão ledo!

Eu mouro e não vos levo, porque hei medo

que ao passar do Lete vos percais.

Escritos para sempre já ficais

onde vos mostrarão todos co dedo

como exemplo de males; que eu concedo

que para aviso d'outros estejais.

Em quem, pois, virdes falsas esperanças

d'Amor e da Fortuna, cujos danos

alguns terão por bem aventuranças,

dizei lhe que os servistes muitos anos,

e que em Fortuna tudo são mudanças,

e que em Amor não há senão enganos.

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odo o animal da calma repousava,

só Liso o ardor dela não sentia;

que o repouso do fogo em que ardia

consistia na Ninfa que buscava.

Os montes parecia que abalava

o triste som das mágoas que dezia;

mas nada o duro peito comovia,

que na vontade d'outrem posto estava.

Cansado já de andar pela espessura,

no tronco d'üa faia, por lembrança,

escreveu estas palavras de tristeza:

«Nunca ponha ninguém sua esperança

em peito feminil, que, de natura,

somente em ser mudável tem firmeza».

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eguia aquele fogo, que o guiava,

Leandro, contra o mar e contra o vento;

as forças lhe faltavam já e o alento,

Amor lhas refazia e renovava.

Despois que viu que a alma lhe faltava,

não esmorece; mas, no pensamento,

(que a língua já não pode) seu intento

ao mar que lho cumprisse, encomendava.

Ó mar (dezia o moço só consigo),

já te não peço a vida; só queria

que a de Hero me salves; não me veja...

Este meu corpo morto, lá o desvia

daquela torre. Sê me nisto amigo,

pois no meu maior bem me houveste enveja!

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or sua Ninfa, Céfalo deixava

Aurora, que por ele se perdia,

posto que dá princípio ao claro dia,

posto que as roxas flores imitava.

Ele, que a bela Prócris tanto amava

que só por ela tudo enjeitaria,

deseja de atentar se lhe acharia

tão firme fé como nele achava.

Mudado o trajo, tece o duro engano:

outro se finge, preço põe diante,

quebra se a fé mudável, e consente.

Ó engenho sutil para seu dano!

Vede que manhas busca um cego amante

para que sempre seja descontente!

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entindo se tomada a bela esposa

de Céfalo, no crime consentido,

para os montes fugia do marido;

e não sei se de astuta, ou vergonhosa.

Porque ele, enfim, sofrendo a dor ciosa,

de amor cego e forçoso compelido,

após ela se vai como perdido,

já perdoando a culpa criminosa.

Deita se aos pés da Ninfa endurecida,

que do cioso engano está agravada;

já lhe pede perdão, já pede a vida.

Ó força de afeição desatinada!

Que da culpa contra ele cometida,

perdão pedia à parte que é culpada!

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s vestidos Elisa revolvia

que lh'Eneias deixara por memória:

doces despojos da passada glória,

doces, quando seu Fado o consentia.

Entr'eles a fermosa espada via

que instrumento foi da triste história;

e, como quem de si tinha a vitória,

falando só com ela, assi dezia:

—Fermosa e nova espada, se ficaste

só para executares os enganos

de quem te quis deixar, em minha vida,

Sabe que tu comigo t'enganaste;

que, para me tirar de tantos danos,

sobeja me a tristeza da partida.

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Ferido sem ter cura perecia

o forte e duro Télefo temido,

por aquele que n'água foi metido,

a quem ferro nenhum cortar podia.

Ao Apolíneo Oráculo pedia

conselho para ser restituído;

respondeu que tornasse a ser ferido

por quem o já ferira, e sararia.

Assi, Senhora, quer minha ventura

que, ferido de ver vos, claramente

com vos tornar a ver Amor me cura.

Mas é tão doce vossa fermosura,

que fico como hidrópico doente,

que co beber lhe cresce mor secura.

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iou se o coração, de muito isento,

de si cuidando mal, que tomaria

tão ilícito amor tal ousadia,

tal modo nunca visto de tormento.

Mas os olhos pintaram tão a tento

outros que visto tem na fantasia,

que a razão, temerosa do que via,

fugiu, deixando o campo ao pensamento.

Ó Hipólito casto, que, de jeito,

de Fedra, tua madrasta, foste amado,

que não sabia ter nenhum respeito:

em mim vingou o amor teu casto peito;

mas está desse agravo tão vingado,

que se arrepende já do que tem feito.

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raio cristalino s'estendia

pelo mundo, da Aurora marchetada,

quando Nise, pastora delicada,

donde a vida deixava, se partia.

Dos olhos, com que o Sol escurecia,

levando a vista em lágrimas banhada,

de si, do Fado e Tempo magoada,

pondo os olhos no Céu, assi dezia:

—Nasce, sereno Sol, puro e luzente;

resplandece, fermosa e roxa Aurora,

qualquer alma alegrando descontente;

que a minha, sabe tu que, desd'agora,

jamais na vida a podes ver contente,

nem tão triste nenhüa outra pastora.

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partava se Nise de Montano,

em cuja alma partindo se ficava;

que o pastor na memória a debuxava,

por poder sustentar se deste engano.

Pelas praias do Índico Oceano

sobre o curvo cajado s'encostava,

e os olhos pelas águas alongava,

que pouco se doíam de seu dano.

Pois com tamanha mágoa e saudade

(dezia) quis deixar me a que eu adoro,

por testemunhas tomo Céu e estrelas.

Mas se em vós, ondas, mora piedade,

levai também as lágrimas que choro,

pois assi me levais a causa delas!

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omava Daliana por vingança

da culpa do pastor que tanto amava,

casar com Gil vaqueiro; e em si vingava

o erro alheio e pérfida esquivança.

A discrição segura, a confiança,

as rosas que seu rosto debuxava,

o descontentamento lhas secava,

que tudo muda üa áspera mudança.

Gentil planta disposta em seca terra,

lindo fruito de dura mão colhido,

lembranças d'outro amor, e fé perjura,

tornaram verde prado em dura serra;

interesse enganoso, amor fingido,

fizeram desditosa a fermosura.

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uantas vezes do fuso s'esquecia

Daliana, banhando o lindo seio,

tantas vezes de um áspero receio

salteado, Laurénio a cor perdia.

Ela, que a Sílvio mais que a si queria,

para podê lo ver não tinha meio:

ora, como curara o mal alheio

quem o seu mal tão mal curar sabia?

Ele, que viu tão clara esta verdade,

com soluços, dezia (que a espessura

comovia, de mágoa, a piedade):

—Como pode a desordem da Natura

fazer tão diferentes na vontade

a quem fez tão conformes na ventura?

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omo fizeste, Pórcia, tal ferida?

Foi voluntária, ou foi por inocência?

—Mas foi fazer Amor experiência

se podia sofrer tirar me a vida.

—E com teu próprio sangue te convida

a não pores à vida resistência?

—Ando me acostumando à paciência,

porque o temor a morte não impida.

—Pois porque comes, logo, fogo ardente,

se a ferro te costumas?—Porque ordena

Amor que morra e pene juntamente.

E tens a dor do ferro por pequena?

—Si: que a dor costumada não se sente;

e eu não quero a morte sem a pena.

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m fermosa Leteia se confia,

por onde vaïdade tanta alcança,

que, tornada em soberba a confiança,

com os deuses celestes competia.

Porque não fosse avante esta ousadia

(que nascem muitos erros da tardança),

em efeito puseram a vingança,

que tamanha doudice merecia.

Mas Oleno, perdido por Leteia,

não lhe sofrendo Amor que suportasse

castigo duro tanta fermosura,

quis padecer em si a pena alheia;

mas, porque a morte Amor não apartasse,

ambos tornados são em pedra dura.

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áiades, vós, que os rios habitais

que os saudosos campos vão regando,

de meus olhos vereis estar manando

outros, que quase aos vossos são iguais.

Dríades, vós, que as setas atirais,

os fugitivos cervos derrubando,

outros olhos vereis que triunfando

derrubam corações, que valem mais.

Deixai as aljavas logo, e as águas frias,

e vinde, Ninfas minhas, se quereis

saber como de uns olhos nascem mágoas;

vereis como se passam em vão os dias;

mas não vireis em vão, que cá achareis

nos seus as setas, e nos meus as águas.

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um bosque que das Ninfas se habitava

Sílvia, Ninfa linda, andava um dia;

subida nüa árvore sombria,

as amarelas flores apanhava.

Cupido, que ali sempre costumava

a vir passar a sesta à sombra fria,

num ramo o arco e setas que trazia,

antes que adormecesse, pendurava.

A Ninfa, como idóneo tempo vira

para tamanha empresa, não dilata,

mas com as armas foge ao Moço esquivo.

As setas traz nos olhos, com que tira:

—Ó pastores! fugi, que a todos mata,

senão a mim, que de matar me vivo.

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al mostra dá de si vossa figura,

Sibela, clara luz da redondeza,

que as forças e o poder da natureza

com sua claridade mais apura.

Quem viu üa confiança tão segura,

tão singular esmalte da beleza,

que não padeça mais, se ter defesa

contra vossa gentil vista procura?

Eu, pois, por escusar essa esquivança,

a razão sujeitei ao pensamento,

que, rendida, os sentidos lhe entregaram.

Se vos ofende o meu atrevimento,

inda podeis tomar nova vingança

nas relíquias da vida, que escaparam.

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elos extremos raros que mostrou

em saber, Palas, Vénus em fermosa,

Diana em casta, Juno em animosa,

África, Europa e Asia as adorou.

Aquele saber grande que ajuntou

esprito e corpo em liga generosa,

esta mundana máquina lustrosa,

de só quatro Elementos fabricou.

Mas mor milagre fez a natureza

em vós, Senhoras, pondo em cada üa

o que por todas quatro repartiu.

A vós seu resplandor deu Sol e Lüa,

a vós com viva luz, graça e pureza,

Ar, Fogo, Terra e Água vos serviu.

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a metade do Céu subido ardia

o claro, almo Pastor, quando deixavam

o verde pasto as cabras, e buscavam

a frescura suave da água fria.

Co a folha da árvore sombria,

do raio ardente as aves s'emparavam;

o módulo cantar, de que cessavam,

só nas roucas cigarras se sentia;

quando Liso pastor, num campo verde

Natércia, crua Ninfa, só buscava

com mil suspiros tristes que derrama.

Porque te vás de quem por ti se perde,

para quem pouco te ama? (suspirava).

[E] o Eco lhe responde: Pouco te ama.

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á a saudosa Aurora destoucava

os seus cabelos d'ouro delicados,

e as flores, nos campos esmaltados,

do cristalino orvalho borrifava;

quando o fermoso gado se espalhava

de Sílvio e de Laurente pelos prados;

pastores ambos, e ambos apartados,

de quem o mesmo Amor não se apartava.

Com verdadeiras lágrimas, Laurente,

—Não sei (dizia) ó Ninfa delicada,

porque não morre já quem vive ausente,

pois a vida sem ti não presta nada?

Responde Sílvio:—Amor não o consente,

que ofende as esperanças da tornada.

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filho de Latona esclarecido,

que com seu raio alegra a humana gente,

o hórrido Piton, brava serpente,

matou, sendo das gentes tão temido.

Feriu com arco, e de arco foi ferido,

com ponta aguda d'ouro reluzente;

nas tessálicas praias, docemente,

pela Ninfa Peneia andou perdido.

Não lhe pôde valer, para seu dano,

ciência, diligências, nem respeito

de ser alto, celeste e soberano.

Se este nunca alcançou nem um engano

de quem era tão pouco em seu respeito,

eu que espero de um ser que é mais que humano?

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lma minha gentil, que te partiste

tão cedo desta vida descontente,

repousa lá no Céu eternamente,

e viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,

memória desta vida se consente,

não te esqueças daquele amor ardente

que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer te

algüa causa a dor que me ficou

da mágoa, sem remédio, de perder te,

roga a Deus, que teus anos encurtou,

que tão cedo de cá me leve a ver te,

quão cedo de meus olhos te levou.

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quela triste e leda madrugada,

cheia toda de mágoa e de piedade,

enquanto houver no mundo saudade

quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada

saía, dando ao mundo claridade,

viu apartar se de ua outra vontade,

que nunca poderá ver se apartada.

Ela só, viu as lágrimas em fio,

que, de uns e d'outros olhos derivadas,

s'acrescentaram em grande e largo rio.

Ela viu as palavras magoadas

que puderam tornar o fogo frio,

e dar descanso às almas condenadas.

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oces lembranças da passada glória,

que me tirou Fortuna roubadora,

deixai me repousar em paz ü'hora,

que comigo ganhais pouca vitória.

Impressa tenho n'alma larga história

deste passado bem que nunca fora;

ou fora, e não passara; mas já agora

em mim não pode haver mais que a memória.

Vivo em lembranças, mouro d'esquecido,

de quem sempre devera ser lembrado,

se lhe lembrara estado tão contente.

Oh! quem tornar pudera a ser nascido!

Soubera me lograr do bem passado,

se conhecer soubera o mal presente.

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mor, co a esperança já perdida,

teu soberano templo visitei;

por sinal do naufrágio que passei,

em lugar dos vestidos, pus a vida.

Que queres mais de mim, que destruída

me tens a glória toda que alcancei?

Não cuides de forçar me, que não sei

tornar a entrar onde não há saída.

Vês aqui alma, vida e esperança,

despojos doces de meu bem passado,

enquanto quis aquela que eu adoro:

nelas podes tomar de mim vingança;

e se inda não estás de mim vingado,

contenta te com as lágrimas que choro.

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ales, que contra mim vos conjurastes,

quanto há de durar tão duro intento?

Se dura porque dura meu tormento,

baste vos quanto já me atormentastes.

Mas se assi perfiais porque cuidastes

derrubar meu tão alto pensamento,

mais pode a causa dele, em que o sustento,

que vós, que dela mesma o ser tomastes.

E, pois vossa tenção, com minha morte,

há de acabar o mal destes amores,

dai já fim a um tormento tão comprido,

porque d'ambos contente seja a sorte:

vós, porque me acabastes, vencedores;

e eu, porque acabei de vós vencido.

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m prisões baixas fui um tempo atado,

vergonhoso castigo de meus erros;

inda agora arrojando levo os ferros

que a Morte, a meu pesar, tem já quebrado.

Sacrifiquei a vida a meu cuidado,

que Amor não quer cordeiros, nem bezerros;

vi mágoas, vi misérias, vi desterros:

parece me que estava assi ordenado.

Contentei me com pouco, conhecendo

que era o contentamento vergonhoso,

só por ver que cousa era viver ledo.

Mas minha estrela, que eu já'gora entendo,

a Morte cega, e o Caso duvidoso,

me fizeram de gostos haver medo.

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ara minha inimiga, em cuja mão

pôs meus contentamentos a ventura,

faltou te a ti na terra sepultura,

porque me falte a mim consolação.

Eternamente as águas lograrão

a tua peregrina fermosura;

mas, enquanto me a mim a vida dura,

sempre viva em minh'alma te acharão.

E se meus rudos versos podem tanto

que possam prometer te longa história

daquele amor tão puro e verdadeiro,

celebrada serás sempre em meu canto;

porque enquanto no mundo houver memória,

será minha escritura teu letreiro.

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oi já num tempo doce cousa amar,

enquanto m'enganava a esperança;

O coração, com esta confiança,

todo se desfazia em desejar.

Ó vão, caduco e débil esperar!

Como se desengana üa mudança!

Que, quanto é mor a bem aventurança,

tanto menos se crê que há de durar!

Quem já se viu contente e prosperado,

vendo se em breve tempo em pena tanta,

razão tem de viver bem magoado.

Porém quem tem o mundo exprimentado,

não o magoa a pena nem o espanta,

que mal se estranhará o costumado.

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ue poderei do mundo já querer,

que naquilo em que pus tamanho amor,

não vi senão `desgosto e desamor,

e morte, enfim, que mais não pode ser!

Pois vida me não farta de viver,

pois já sei que não mata grande dor,

se cousa há que mágoa dê maior,

eu a verei; que tudo posso ver.

A morte, a meu pesar, me assegurou

de quanto mal me vinha; já perdi

o que perder o medo me ensinou.

Na vida desamor somente vi,

na morte a grande dor que me ficou:

parece que para isto só nasci!

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ois meus olhos não cansam de chorar

tristezas, que não cansam de cansar me;

pois não abranda o fogo em que abrasar me

pôde quem eu jamais pude abrandar;

não canse o cego Amor de me guiar

a parte donde não saiba tornar me;

nem deixe o mundo todo de escutar me,

enquanto me a voz fraca não deixar.

E se nos montes, rios, ou em vales,

piedade mora, ou dentro mora Amor

em feras, aves, plantas, pedras, águas,

ouçam a longa história de meus males

e curem sua dor com minha dor;

que grandes mágoas podem curar mágoas.

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m mover d'olhos, brando e piadoso,

sem ver de quê; um riso brando e honesto,

quase forçado; um doce e humilde gesto,

de qualquer alegria duvidoso;

um despejo quieto e vergonhoso;

um repouso gravíssimo e modesto;

üa pura bondade, manifesto

indício da alma, limpo e gracioso;

um encolhido ousar; üa brandura;

um medo sem ter culpa; um ar sereno;

um longo e obediente sofrimento;

esta foi a celeste fermosura

da minha Circe, e o mágico veneno

que pôde transformar meu pensamento.

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ermosos olhos que na idade nossa

mostrais do Céu certissimos sinais,

se quereis conhecer quanto possais,

olhai me a mim, que sou feitura vossa.

Vereis que de viver me desapossa

aquele riso com que a vida dais;

vereis como de Amor não quero mais,

por mais que o tempo corra e o dano possa.

E se dentro nest'alma ver quiserdes,

como num claro espelho, ali vereis

também a vossa, angélica e serena.

Mas eu cuido que só por não me verdes,

ver vos em mim, Senhora, não quereis:

tanto gosto levais de minha pena!

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udam se os tempos, mudam se as vontades,

muda se o ser, muda se a confiança;

todo o mundo é composto de mudança,

tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,

diferentes em tudo da esperança;

do mal ficam as mágoas na lembrança,

e do bem (se algum houve), as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,

que já coberto foi de neve fria, e, enfim,

converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar se cada dia,

outra mudança faz de mor espanto,

que não se muda já como soía.

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onversação doméstica afeiçoa,

ora em forma de boa e sã vontade,

ora de üa amorosa piedade,

sem olhar qualidade de pessoa.

Se despois, porventura, vos magoa

com desamor e pouca lealdade,

logo vos faz mentira da verdade

o brando Amor, que tudo em si perdoa.

Não são isto que falo conjecturas,

que o pensamento julga na aparência,

por fazer delicadas escrituras.

Metido tenho a mão na consciência,

e não falo senão verdades puras

que me ensinou a viva experiência.

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espois que quis Amor que eu só passasse

quanto mal já por muitos repartiu,

entregou me à Fortuna, porque viu

que não tinha mais mal que em mim mostrasse.

Ela, porque do Amor se avantajasse

no tormento que o Céu me permitiu,

o que para ninguém se consentiu,

para mim só mandou que se inventasse.

Eis me aqui vou com vário som gritando,

copioso exemplário para a gente

que destes dous tiranos é sujeita,

desvarios em versos concertando.

Triste quem seu descanso tanto estreita,

que deste tão pequeno está contente!

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ndados fios d'ouro reluzente,

que, agora da mão bela recolhidos,

agora sobre as rosas estendidos,

fazeis que sua beleza se acrecente;

Olhos, que vos moveis tão docemente,

em mil divinos raios entendidos,

se de cá me levais alma e sentidos,

que fora, se de vós não fora ausente?

Honesto riso, que entre a mor fineza

de perlas e corais nasce e parece,

se n'alma em doces ecos não o ouvisse!

Se imaginando só tanta beleza

de si, em nova glória, a alma se esquece,

que fará quando a vir? Ah! quem a visse!

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em sei, Amor, que é certo o que receio;

mas tu, porque com isso mais te apuras,

de manhoso mo negas, e mo juras

no teu dourado arco; e eu to creio.

A mão tenho metida no teu seio,

e não vejo meus danos às escuras;

e tu contudo tanto me asseguras,

que me digo que minto, e que me enleio.

Não somente consinto neste engano,

mas inda to agradeço, e a mim me nego

tudo o que vejo e sinto de meu dano.

Oh! poderoso mal a que me entrego!

Que, no meio do justo desengano,

me possa inda cegar um Moço cego!

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om grandes esperanças já cantei,

com que os deuses no Olimpo conquistara;

despois vim a chorar porque cantara

e agora choro já porque chorei.

Se cuido nas passadas que já dei,

custa me esta lembrança só tão cara

que a dor de ver as mágoas que passara

tenho pola mor mágoa que passei.

Pois logo, se está claro que um tormento

dá causa que outro n'alma se acrescente,

já nunca posso ter contentamento.

Mas esta fantasia se me mente?

Oh! ocioso e cego pensamento!

Ainda eu imagino em ser contente?

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quela que, de pura castidade,

de si mesma tomou cruel vingança

por üa breve e súbita mudança,

contrária a sua honra e qualidade

(venceu à fermosura a honestidade,

venceu no fim da vida a esperança

porque ficasse viva tal lembrança,

tal amor, tanta fé, tanta verdade!),

de si, da gente e do mundo esquecida,

feriu com duro ferro o brando peito,

banhando em sangue a força do tirano.

[Oh!] estranha ousadia ! estranho feito !

Que, dando breve morte ao corpo humano,

tenha sua memória larga vida!

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o tempo que de Amor viver soía,

nem sempre andava ao remo ferrolhado;

antes agora livre, agora atado,

em várias flamas variamente ardia.

Que ardesse num só fogo, não queria

O Céu, porque tivesse exprimentado

que nem mudar as causas ao cuidado

mudança na ventura me faria.

E se algum pouco tempo andava isento,

foi como quem co peso descansou,

por tornar a cansar com mais alento.

Louvado seja Amor em meu tormento,

pois para passatempo seu tomou

este meu tão cansado sofrimento!

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uando de minhas mágoas a comprida

maginação os olhos me adormece,

em sonhos aquela alma me aparece

que para mim foi sonho nesta vida.

Lá nüa soïdade, onde estendida

a vista pelo campo desfalece,

corro par'ela; e ela então parece

que mais de mim se alonga, compelida.

Brado: Não me fujais, sombra benina!

Ela (os olhos em mim cum brando pejo,

como quem diz que já não pode ser),

torna a fugir-me; e eu, gritando: Dina...

antes que diga mene, alardo, e vejo

que nem um breve engano posso ter.

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h! minha Dinamene! Assi deixaste

quem não deixara nunca de querer-te?

Ah! Ninfa! Já não posso ver-te,

tão asinha esta vida desprezaste!

Como já para sempre te apartaste

de quem tão longe estava de perder-te?

Puderam estas ondas defender-te,

que não visses quem tanto magoaste?

Nem falar-te somente a dura morte

me deixou, que tão cedo o negro manto

em teus olhos deitado consentiste!

Ó mar, ó Céu, ó minha escura sorte!

Que pena sentirei, que valha tanto,

que inda tenho por pouco o viver triste?

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uem fosse acompanhando juntamente

por esses verdes campos a avezinha

que, despois de perder um bem que tinha,

não sabe mais que cousa é ser contente!

[E] quem fosse apartando-se da gente,

ela, por companheira e por vizinha,

me ajudasse a chorar a pena minha,

eu a ela o pesar que tanto sente!

Ditosa ave! que, ao menos, se a Natura

a seu primeiro bem não dá segundo,

dá-lhe o ser triste a seu contentamento.

Mas triste quem de longe quis ventura,

que, para respirar, lhe falte o vento,

e, para tudo, enfim, lhe falte o mundo!

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antando estava um dia bem seguro quando,

passando, Sílvio me dizia

(Sílvio, pastor antigo, que sabia

pelo canto das aves o futuro):

—Méris, quando quiser o fado escuro,

oprimir-te virão em um só dia

dous lobos; logo a voz e a melodia

te fugirão, e o som suave e puro.

Bem foi assi: porque um me degolou

quanto gado vacum pastava e tinha,

de que grandes soldadas esperava;

E outro por meu dano me matou

a cordeira gentil que eu tanto amava,

perpétua saudade da alma minha!

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orrem turvas as águas deste rio,

que as do Céu e as do monte as enturbaram;

os campos florecidos se secaram,

intratável se fez o vale, e frio.

Passou o Verão, passou o ardente Estio,

üas cousas por outras se trocaram;

os fementidos Fados já deixaram

do mundo o regimento, ou desvario.

Tem o tempo sua ordem já sabida;

o mundo, não; mas anda tão confuso,

que parece que dele Deus se esquece.

Casos, opiniões, natura e uso

fazem que nos pareça desta vida

que não há nela mais que o que parece.

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ulga-me a gente toda por perdido,

vendo-me, tão entregue a meu cuidado,

andar sempre dos homens apartado,

e dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,

e quase que sobre ele ando dobrado,

tenho por baixo, rústico, enganado,

quem não é com meu mal engrandecido.

Vão revolvendo a terra, o mar e o vento,

busquem riquezas, honras a outra gente,

vencendo ferro, fogo, frio e calma;

que eu só em humilde estado me contento,

de trazer esculpido eternamente

vosso fermoso gesto dentro n'alma.

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céu, a terra, o vento sossegado...

As ondas, que se estendem pela areia...

Os peixes, que no mar o sono enfreia...

O nocturno silêncio repousado...

O pescador Aónio, que, deitado

onde co vento a água se meneia,

chorando, o nome amado em vão nomeia,

que não pode ser mais que nomeado:

Ondas (dezia), antes que Amor me mate,

torna-me a minha Ninfa, que tão cedo

me fizestes à morte estar sujeita.

Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;

move-se brandamente o arvoredo;

leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.

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ue me quereis, perpétuas saudades?

Com que esperança ainda me enganais?

Que o tempo que se vai não torna mais,

e se torna, não tornam as idades.

Razão é já, ó anos!, que vos vades,

porque estes tão ligeiros que passais,

nem todos para um gosto são iguais,

nem sempre são conformes as vontades.

Aquilo a que já quis é tão mudado

que quase é outra causa: porque os dias

têm o primeiro gosto já danado.

Esperanças de novas alegrias

não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,

que do contentamento são espias.

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rros meus, má fortuna, amor ardente

em minha perdição se conjuraram;

os erros e a fortuna sobejaram,

que para mim bastava o amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente

a grande dor das cousas que passaram,

que as magoadas iras me ensinaram

a nao querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;

dei causa que a Fortuna castigasse

as minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.

Oh! quem tanto pudesse que fartasse

este meu duro génio de vinganças!

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u cantei já, e agora vou chorando

o tempo que cantei tão confiado;

parece que no canto já passado

se estavam minhas lágrimas criando.

Cantei; mas se me alguém pergunta: —Quando?

—Não sei; que também fui nisso enganado.

É tão triste este meu presente estado

que o passado, por ledo, estou julgando.

Fizeram-me cantar, manhosamente,

contentamentos não, mas confianças;

cantava, mas já era ao som dos ferros.

De quem me queixarei, que tudo mente?

Mas eu que culpa ponho às esperanças

onde a Fortuna injusta é mais que os erros?

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a desesperação já repousava

o peito longamente magoado,

e, com seu dano eterno concertado,

já não temia, já não desejava;

quando üa sombra vã me assegurava

que algum bem me podia estar guardado

em tão fermosa imagem que o treslado

n'alma ficou, que nela se enlevava.

Que crédito que dá tão facilmente

o coração áquilo que deseja,

quando lhe esquece o fero seu destino!

Oh! deixem-me enganar, que eu sou

contente; que, posto que maior meu dano seja,

fica-me a glória já do que imagino.

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u vivia de lágrimas isento,

num engano tão doce e deleitoso

que em que outro amante fosse mais ditoso,

não valiam mil glórias um tormento.

Vendo-me possuir tal pensamento,

de nenhüa riqueza era envejoso;

vivia bem, de nada receoso,

com doce amor e doce sentimento.

Cobiçosa, a Fortuna me tirou

deste meu tão contente e alegre estado,

e passou-me este bem, que nunca fora:

em troco do qual bem só me deixou

lembranças, que me matam cada hora,

trazendo-me à memória o bem passado.

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ndo o triste pastor todo embebido

na sombra de seu doce pensamento,

tais queixas espalhava ao leve vento

cum brando suspirar da alma saído:

—A quem me queixarei, cego, perdido,

pois nas pedras não acho sentimento?

Com quem falo? A quem digo meu tormento

que onde mais chamo, sou menos ouvido?

Oh! bela Ninfa, porque não respondes?

Porque o olhar-me tanto me encareces?

Porque queres que sempre me querele?

Eu quanto mais te vejo, mais te escondes!

Quanto mais mal me vês, mais te endureces!

Assi que co mal cresce a causa dele.

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embranças que lembrais meu bem passado

para que sinta mais o mal presente,

deixai-me (se quereis) viver contente,

não me deixeis morrer em tal estado.

Mas se também de tudo está ordenado

viver (como se vê) tão descontente,

venha (se vier) o bem por acidente,

e dê a morte fim a meu cuidado.

Que muito milhor é perder a vida,

perdendo-se as lembranças da memória,

pois fazem tanto dano ao pensamento.

Assi que nada perde, quem perdida

a esperança traz de sua glória,

se esta vida há-de ser sempre em tormento.

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h! Fortuna cruel! Ah! duros Fados!

Quão asinha em meu dano vos mudastes!

Passou o tempo que me descansastes,

agora descansais com meus cuidados.

Deixastes-me sentir os bens passados,

para mor dor da dor que me ordenastes;

então nü'hora juntos mos levastes,

deixando em seu lugar males dobrados.

Ah! quanto milhor fora não vos ver,

gostos, que assi passais tão de corrida,

que fico duvidoso se vos vi:

sem vós já me não fica que perder,

se não se for esta cansada vida,

que por mor perda minha não perdi.

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h! imiga cruel, que apartamento

é este que fazeis da pátria terra?

Quem do paterno ninho vos desterra,

glória dos olhos, bem do pensamento?

Is tentar da fortuna o movimento

e dos ventos cruéis a dura guerra?

Ver brenhas d'água, e o mar feito em serra,

levantado de um vento e d'outro vento?

Mas já que vos partis, sem vos partirdes,

para convosco o Céu tanta ventura,

que seja mor que aquela que esperardes.

E só nesta verdade ide segura:

que ficam mais saudades com partirdes,

do que breves desejos de chegardes.

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queles claros olhos que chorando

ficavam quando deles me partia,

agora que farão? Quem mo diria?

Se porventura estarão em mim cuidando?

Se terão na memória, como ou quando

deles me vim tão longe de alegria?

Ou s'estarão aquele alegre dia

que torne a vê-los, n'alma figurando?

Se contarão as horas e os momentos?

Se acharão num momento muitos anos?

Se falarão co as aves e cos ventos?

Oh! bem-aventurados fingimentos,

que, nesta ausência, tão doces enganos

sabeis fazer aos tristes pensamentos!

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uando cuido no tempo que, contente,

vi as pérolas, neve, rosa e ouro,

como quem vê por sonhos um tesouro,

parece tenho tudo aqui presente.

Mas tanto que se passa este acidente,

e vejo o quão distante de vós mouro,

temo quanto imagino por agouro,

porque d'imaginar também me ausente.

Já foram dias em que por ventura

vos vi, Senhora (se, assi dizendo, posso

co coração seguro estar sem medo);

Agora, em tanto mal não mo assegura

a própria fantasia e nojo vosso:

eu não posso entender este segredo!

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uem vos levou de mim, saudoso estado,

que tanta sem-razão comigo usastes?

Quem foi, por quem tão presto me negastes,

esquecido de todo o bem passado?

Trocastes-me um descanso em um cuidado

tão duro, tão cruel, qual m'ordenastes;

a fé, que tínheis dado, me negastes,

quando mais nela estava confiado.

Vivia sem receio deste mal;

Fortuna, que tem tudo a sua mercê,

amor com desamor me revolveu.

Bem sei que neste caso nada val,

que quem naceu chorando, justo é

que pague com chorar o que perdeu.

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enhora já dest'alma, perdoai

de um vencido de Amor os desatinos,

e sejam vossos olhos tão beninos

com este puro amor, que d'alma sai.

A minha pura fé somente olhai,

e vede meus extremos se são finos;

e se de algüa pena forem dinos,

em mim, Senhora minha, vos vingai.

Não seja a dor que abrasa o triste peito

causa por onde pene o coração,

que tanto em firme amor vos é sujeito.

Guardai-vos do que alguns, Dama, dirão,

que, sendo raro em tudo vosso objeito,

possa morar em vós ingratidão.

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á nesta Babilónia, donde mana

matéria a quanto mal o mundo cria;

cá onde o puro Amor não tem valia,

que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

cá, onde o mal se afina, e o bem se dana,

e pode mais que a honra a tirania;

cá, onde a errada e cega Monarquia

cuida que um nome vão a desengana;

cá, neste labirinto, onde a nobreza

com esforço e saber pedindo vão

às portas da cobiça e da vileza;

cá neste escuro caos de confusão,

cumprindo o curso estou da natureza.

Vê se me esquecerei de ti, Sião!

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izei, Senhora, da Beleza ideia:

para fazerdes esse áureo crino,

onde fostes buscar esse ouro fino?

de que escondida mina ou de que veia?

Dos vossos olhos essa luz Febeia,

esse respeito, de um império dino?

Se o alcançastes com saber divino,

se com encantamentos de Medeia?

De que escondidas conchas escolhestes

as perlas preciosas orientais

que, falando, mostrais no doce riso?

Pois vos formastes tal, como quisestes,

vigiai-vos de vós, não vos vejais,

fugi das fontes: lembre-vos Narciso.

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oce contentamento já passado,

em que todo meu bem já consistia,

quem vos levou de minha companhia

e me deixou de vós tão apartado?

Quem cuidou que se visse neste estado

naquelas breves horas de alegria,

quando minha ventura consentia

que de enganos vivesse meu cuidado?

Fortuna minha foi, cruel e dura,

aquela que causou meu perdimento,

com a qual ninguém pode ter cautela.

Nem se engane nenhüa criatura,

que não pode nenhum impedimento

fugir do que [lhe] ordena sua estrela.

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oce sonho, suave e soberano,

se por mais longo tempo me durara!

Ah! quem de sonho tal nunca acordara,

pois havia de ver tal desengano!

Ah! deleitoso bem! ah! doce engano!

Se por mais largo espaço me enganara!

Se então a vida mísera acabara,

de alegria e prazer morrera ufano.

Ditoso, não estando em mim, pois tive,

dormindo, o que acordado ter quisera.

Olhai com que me paga meu destino!

Enfim, fora de mim, ditoso estive.

Em mentiras ter dita razão era,

pois sempre nas verdades fui mofino.

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nquanto Febo os montes acendia

do Céu com luminosa claridade,

por evitar do ócio a castidade

na caça o tempo Délia despendia.

Vénus, que então de furto descendia,

por cativar de Anquises a vontade,

vendo Diana em tanta honestidade,

quase zombando dela, lhe dizia:

- Tu vás com tuas redes na espessura

os fugitivos cervos enredando,

mas as minhas enredam o sentido.

—Melhor é (respondia a deusa pura)

nas redes leves cervos ir tomando

que tomar-te a ti nelas teu marido.

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ste amor que vos tenho, limpo e puro,

de pensamento vil nunca tocado,

em minha tenra idade começado,

tê-lo dentro nesta alma só procuro.

De haver nele mudança estou seguro,

sem temer nenhum caso ou duro Fado,

nem o supremo bem ou baixo estado,

nem o tempo presente nem futuro.

A bonina e a flor asinha passa;

tudo por terra o Inverno e Estio

deita, só para meu amor é sempre Maio.

Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa,

e que essa ingratidão tudo me enjeita,

traz este meu amor sempre em desmaio.

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ortuna em mim guardando seu direito

em verde derrubou minha alegria.

Oh! quanto se acabou naquele dia,

cuja triste lembrança arde em meu peito!

Quando contemplo tudo, bem suspeito

que a tal bem, tal descanso se devia,

por não dizer o mundo que podia

achar-se em seu engano bem perfeito.

Mas se a Fortuna o fez por descontar-me

tamanho gosto , em cujo sentimento

a memória não faz senão matar-me ,

que culpa pode dar-me o sofrimento,

se a causa que ele tem de atormentar-me,

eu tenho de sofrer o seu tormento?

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á não sinto, Senhora, os desenganas

com que minha afeição sempre tratastes,

nem ver o galardão que me negastes,

merecido por fé, há tantos anos.

A mágoa choro só, só choro os danos

de ver por quem, Senhora, me trocastes;

mas em tal caso vós só me vingastes

de vossa ingratidão, vossos enganos.

Dobrada glória dá qualquer vingança,

que o ofendido toma do culpado,

quando se satisfaz com cousa justa;

mas eu de vossos males e esquivança,

de que agora me vejo bem vingado,

não o quisera eu tanto à vossa custa.

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emória de meu bem, cortado em flores

por ordem de meus tristes e maus Fados,

deixai-me descansar com meus cuidados

nesta inquietação de meus amores.

Basta-me o mal presente, e os temores

dos sucessos que espero infortunados,

sem que venham, de novo, bens passados

afrontar meu repouso com suas dores.

Perdi nua hora quanto em termos

tão vagarosos e largos alcancei;

leixai-me, pois, lembranças desta glória.

Cumpre acabe a vida nestes ermos,

porque neles com meu mal acabarei

mil vidas, não ua só, dura memória!

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a ribeira do Eufrates assentado,

discorrendo me achei pela memória

aquele breve bem, aquela glória,

que em ti, doce Sião, tinha passado.

Da causa de meus males perguntado

me foi: Como não cantas a história

de teu passado bem, e da vitória

que sempre de teu mal hás alcançado?

Não sabes, que a quem canta se lhe esquece

o mal, inda que grave e rigoroso?

Canta, pois, e não chores dessa sorte.

Respondo com suspiros: Quando crece

a muita saudade, o piadoso

remédio é não cantar senso a morte.

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um tão alto lugar, de tanto preço,

este meu pensamento posto vejo,

que desfalece nele inda o desejo,

vendo quanto por mim o desmereço.

Quando esta tal baixesa em mim conheço,

acho que cuidar nele é grão despejo,

e que morrer por ele me é sobejo

e mor bem para mim, do que mereço.

O mais que natural merecimento

de quem me causa um mal tão duro e forte,

o faz que vá crecendo de hora em hora.

Mas eu não deixarei meu pensamento,

porque inda que este mal me causa a morte,

Un bel morir tutta la vita onora.

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dia em que eu nasci, moura e pereça,

não o queira jamais o tempo dar,

não torne mais ao mundo, e, se tornar,

eclipse nesse passo o sol padeça.

luz lhe falte, o sol se [lhe] escureça,

mostre o mundo sinais de se acabar,

nasçam-lhe monstros, sangue chova

o ar, a mãe ao próprio filho não conheça.

s pessoas pasmadas de ignorantes,

as lágrimas no rosto, a cor perdida,

cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,

que este dia deitou ao mundo a vida

mais desgraçada que jamais se viu!

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lhos fermosos, em quem quis Natura

mostrar do seu poder altos sinais,

se quiserdes saber quanto possais,

vede-me a mim, que sou vossa feitura.

Pintada em mim se vê vossa figura,

no que eu padeço retratada estais;

que, se eu passo tormentos desiguais,

muito mais pode vossa fermosura.

De mim não quero mais que o meu desejo:

ser vosso; e só de ser vosso me arreio,

porque o vosso penhor em mim se assele.

!Tão me lembro de mim quando vos vejo,

nem do mundo; e não erro, porque creio,

que, em lembrar-me de vós, cumpro com ele.

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tempo acaba o ano, o mês e a hora,

a força, a arte, a manha, a fortaleza;

o tempo acaba a fama e a riqueza,

o tempo o mesmo tempo de si chora.

tempo busca e acaba o onde mora

qualquer ingratidão, qualquer dureza;

mas neo pode acabar minha tristeza,

enquanto não quiserdes vós, Senhora.

O tempo o claro dia torna escuro,

e o mais ledo prazer em choro triste;

o tempo a tempestade em grã bonança.

Mas de abrandar o tempo estou seguro

o peito de diamante, onde consiste

a pena e o prazer desta esperança.

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osto me tem Fortuna em tal estado,

e tanto a seus pés me tem rendido!

Não tenho que perder já, de perdido,

não tenho que mudar já, de mudado.

Todo o bem para mim é acabado;

daqui dou o viver já por vivido;

que, aonde o mal é tão conhecido,

também o viver mais será escusado.

Se me basta querer, a morte quero,

que bem outra esperança não convém,

e curarei um mal com outro mal

E, pois do bem tão pouco bem espero,

já que o mel este só remédio tem,

não me culpem em querer remédio tal.

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uando se vir com água o fogo arder,

e misturar co dia a noite escura,

e a terra se vir naquela altura

em que se vem os Céus prevalecer;

o Amor por razão mandado ser,

e a todos ser igual nossa ventura,

com tal mudança, vossa formosura

então a poderei deixar de ver.

Porém não sendo vista esta mudança

no mundo (como claro está não ver-se),

não se espere de mim deixar de ver-vos.

Que basta estar em vós minha esperança,

o ganho de minha alma, e o perder-se,

para não deixar nunca de querer-vos.

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fermosura fresca serra,

e a sombra dos verdes castanheiros,

o manso caminhar destes ribeiros,

donde toda a tristeza se desterra;

o rouco som do mar, a estranha terra,

o esconder do sol pelos outeiros,

o recolher dos gados derradeiros,

das nuvens pelo ar a branda guerra;

enfim, tudo o que a rara natureza

com tanta variedade nos ofrece,

me está (se não te vejo) magoando.

Sem ti, tudo me enoja e me aborrece;

sem ti, perpetuamente estou passando

nas mores alegrias, mor tristeza.

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137

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iana prateada, esclarecia

com a luz que do claro Febo ardente,

por ser de natureza transparente,

em si, como em espelho, reluzia.

Cem mil milhões de graças lhe influía,

quando me apareceu o excelente

raio de vosso aspecto, diferente

em graça e em amor do que soía.

Eu, vendo-me tão cheio de favores,

e tão propínquo a ser de todo vosso,

louvei a hora clara, e a noite escura,

Sois nela destes cor a meus amores;

donde colijo claro que não posso

de dia para vós já ter ventura.

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uando a suprema dor muito me aperta,

se digo que desejo esquecimento,

é força que se faz ao pensamento,

de que a vontade livre desconserta.

Assi, de erro tão grave me desperta

a luz do bem regido entendimento,

que mostra ser engano ou fingimento

dizer que em tal descanso mais se acerta.

Porque essa própria imagem, que na mente

me representa o bem de que careço,

faz-mo de um certo modo ser presente.

Ditosa é, logo, a pena que padeço,

pois que da causa dela em mim se sente

um bem que, inda sem ver-vos, reconheço.

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uando, Senhora, quis Amor que amasse

essa grã perfeição e gentileza,

logo deu por sentença que a crueza

em vosso peito amor acrescentasse.

Determinou que nada me apartasse,

nem desfavor cruel, nem aspereza;

mas que em minha raríssima firmeza

vossa isenção cruel se executasse.

E, pois tendes aqui oferecida e

sta alma vossa a vosso sacrifício,

acabai de fartar vossa vontade.

Não lhe alargueis, Senhora, mais a vida;

acabará morrendo em seu oficio,

sua fé defendendo e lealdade.

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ue pode já fazer minha ventura

que seja para meu contentamento.,

Ou como fazer devo fundamento

de cousa que o não tem, nem é segura?

Que pena pode ser tão certa e dura

que possa ser maior que meu tormento?

Ou como receará meu pensamento

os males, se com eles mais se apura?

Como quem se costuma de pequeno

com peçonha criar por mão ciente,

da qual o uso já o tem seguro;

assi de acostumado co veneno,

o uso de sofrer meu mal presente

me faz não sentir já nada o futuro.

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uem presumir, Senhora, de louvar-vos

com humano saber, e não divino,

ficará de tamanha culpa dino

quamanha ficais tendo em contemplar-vos.

Não pretenda ninguém de louvar dar-vos,

por mais que raro seja e peregrino:

que vossa fermosura eu imagino

que Deus a Ele só quis comparar-vos.

Ditosa esta alma vossa, que quisestes

em posse pôr de prenda tão subida,

como, Senhora, foi a que me destes.

Melhor a guardarei que a própria vida;

que, pois mercê tamanha me fizestes,

de mim será jamais nunca esquecida.

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e de vosso fermoso e lindo gesto

nasceram lindas flores para os olhos,

que para o peito são duros abrolhos,

em mim se vê mui claro e manifesto:

pois vossa fermosura e vulto honesto

em os ver, de boninas vi mil molhos;

mas se meu coração tivera antolhos,

não vira em vós seu dano o mal funesto.

Um mal visto por bem, um bem tristonho,

que me traz elevado o pensamento

em mil, porém diversas, fantasias,

nas quais eu sempre ando, e sempre sonho;

e vós não cuidais mais que em meu tormento,

em que fundais as vossas alegrias.

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143

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empre, cruel Senhora, receei,

medindo vossa grã desconfiança,

que desse em desamor vossa tardança,

e que me perdesse eu, pois vos amei.

Perca-se, enfim, já tudo o que esperei,

pois noutro amor já tendes esperança.

Tão patente será vossa mudança,

quanto eu encobri sempre o que vos dei.

Dei-vos a alma, a vida e o sentido;

de tudo o que em mim há vos fiz s

enhora. Prometeis e negais o mesmo Amor.

Agora tal estou que, de perdido,

não sei por onde vou, mas algü'hora

vos dará tal lembrança grande dor.

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144

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ustenta meu viver üa esperança

derivada de um bem tão desejado

que, quando nela estou mais confiado,

mor dúvida me põe qualquer mudança.

E quando inda este bem na mor pujança

de seus gostos me tem mais enlevado,

me atormenta então ver eu que, alcançado

será por quem de vós não tem lembrança.

Assi, que nestas redes enlaçado,

a penas dou a vida , sustentando

üa nova matéria a meu cuidado .

Suspiros d'alma tristes arrancando,

dos silvos de ua pedra acompanhado,

estou matérias tristes lamentando.

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145

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encido está de Amor

o mais que pode ser

meu pensamento

vencida a vida,

sujeita a vos servir

oferecendo tudo

Contente deste bem,

ou hora em que se viu

mil vezes desejando

outra vez renovar

Com essa pretensão

a causa que me guia

tão estranha, tão doce,

Jurando não seguir

votando só por vós

ou ser no vosso amor

instituída,

a vosso intento.

louva o momento,

tão bem perdida;

a tal ferida,

seu perdimento.

está segura

nesta empresa,

honrosa e alta.

outra ventura,

rara firmeza,

achado em falta.

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l vaso reluciente y cristalino,

de Ángeles agua clara y olorosa,

de blancas e da ornado y fresca rosa

ligado con cabellos de oro fino;

bien claro parecía el don divino

labrado por la mano artificiosa

de aquella blanca Ninfa, graciosa

más que el rubio lucero matutino.

Nel vaso vuestro cuerpo se afigura,

raxado de los blandos miembros bellos,

y en el agua vuestra ánima pura;

la seda es la blancura, e los cabellos

son las prisiones, y la ligadura

con que mi libertad fue asida dellos.

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147

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ues lágrimas tratáis, mis ojos tristes,

y en lágrimas pasáis la noche y día,

mirad si es llanto este que os envia

aquella por quien vos tantas vertistes

Sentid, mis ojos, bien esta que vistes,

y si ella lo es, oh gran ventura mia!

por muy bien empleadas las habría

mil cuentas que por esta sola distes.

Mas una cosa mucho deseada,

aunque se vea cierta, no es creída,

cuanto más esta, que me es enviada.

Pero digo que aunque sea fingida,

que basta que por lágrima sea dada,

porque sea por lágrima tenida.

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148

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e a Fortuna inquieta e mal olhada,

que a justa lei do Céu consigo infama,

a vida quieta, que ela mais desama,

me concedera, honesta e repousada;

pudera ser que a Musa, alevantada

com luz de mais ardente e viva flama.

fizera ao Tejo lá na pátria cama

adormecer co som da lira amada.

Porém, pois o destino trabalhoso,

que me escurece a Musa fraca e lassa,

louvor de tanto preço não sustenta;

a vossa de louvar-me pouco escassa,

outro sujeito busque valeroso,

tal qual em vós ao mundo se apresenta.

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[À morte de D. António de Noronha]

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m flor vos arrancou, de então crecida

(Ah! senhor dom António!), a dura sorte,

donde fazendo andava o braço forte

a fama dos Antigos esquecida.

üa só razão tenho conhecida

com que tamanha mágoa se conforte:

que, pois no mundo havia honrada morte,

que não podíeis ter mais larga a vida.

Se meus humildes versos podem tanto

que co desejo meu se iguale a arte,

especial matéria me sereis.

E, celebrado em triste e longo canto,

se morrestes nas mãos do fero Marte,

na memória das gentes vivereis.

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150

À sepultura de D. Fernando de Castro

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ebaixo desta pedra está metido,

das sanguinosas armas descansado,

o capitão ilustre, assinalado,

Dom Fernando de Castro esclarecido.

Por todo o Oriente tão temido,

e da enveja da fama tão cantado,

este, pois, só agora sepultado,

está aqui já em terra convertido.

Alegra-te, ó guerreira Lusitânia

por este Viriato que criaste,

e chora-o, perdido, eternamente.

Exemplo toma nisto de Dardânia;

que, se a Roma co ele aniquilaste,

nem por isso Cartago está contente.

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151

A D. Simão da Silveira, em resposta de outro seu,

pelos mesmos consoantes, mandando-lhe perguntar

quem fora o primeiro Poeta que fizera Sonetos

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e um tão felice engenho, produzido

de outro, que o claro Sol não viu maior,

é trazer cousas altas no sentido,

todas dinas de espanto e de louvor.

Museu foi antiquíssimo escritor,

filósofo e poeta conhecido,

discípulo do Músico amador

que co som teve o Inferno suspendido.

Este pôde abalar o monte mudo,

cantando aquele mal, que eu já passei,

do mancebo de Abido mal sisudo.

Agora contam já (segundo achei),

Passo, e o nosso Boscão, que disse tudo

dos segredos que move o cego Rei.

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152

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espois que viu Cibele o corpo humano

do fermoso Átis seu verde pinheiro,

em piedade o vão furar primeiro

convertido, chorou seu grave dano.

E, fazendo a sua dor ilustre engano,

a Júpiter pediu que o verdadeiro

preço da nova palma e do loureiro,

ao seu pinheiro desse, soberano.

Mais lhe concede o filho poderoso

que, as estrelas, subindo, tocar possa,

vendo os segredos lá do Céu superno.

Oh! ditoso Pinheiro! Oh! mais ditoso

quem se vir coroar da folha vossa,

cantando à vossa sombra verso eterno!

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153

Resposta do autor a um Soneto, pelos mesmos consoantes

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e tão divino acento e voz humana,

de tão doces palavras peregrinas,

bem sei que minhas obras não são dinas,

que o rudo engenho meu me desengana.

Mas de vossos escritos corre e mana

licor que vence as águas cabalinas;

e convosco do Tejo as flores finas

farão enveja à cópia mantuana.

E pois, a vós de si não sendo avaras,

as filhas de Mnemósine fermosa

partes dadas vos tem, ao mundo caras,

a minha Musa e a vossa tão famosa,

ambas posso chamar ao mundo raras:

a vossa d'alta, a minha d'envejosa.

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154

A o segundo conde de Redondo, D. João Coutinho

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os ilustres antigos que deixaram

tal nome, que igualou fama à memória,

ficou por luz do tempo a larga história

dos feitos em que mais se assinalaram.

Se se com cousas destes cotejaram

mil vossas, cada üa tão notória,

vencera a menor delas a mor glória

que eles em tantos anos alcançaram.

A glória sua foi; ninguém lha tome.

Seguindo cada um vários caminhos,

estátuas levantando no seu Templo.

Vós, honra portuguesa e dos Coutinhos,

ilustre Dom João, com melhor nome

a vós encheis de glória e a nós de exemplo.

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sforço grande, igual ao pensamento;

pensamentos em obras divulgados,

e não em peito timido encerrados

e desfeitos despois em chuva e vento;

animo da cobiça baixa isento,

dino por isso só de altos estados,

fero açoute dos nunca bem domados

povos do Malabar sanguinolento;

gentileza de membros corporais,

ornados de pudica continência,

obra por certo rara de natura:

estas virtudes e outras muitas mais,

dinas todas da homérica eloquência,

jazem debaixo desta sepultura

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ão passes, caminhante! Quem me chama ?

—üa memória nova e nunca ouvida,

de um que trocou finita e humana vida,

por divina, infinita e clara fama.

Quem é que tão gentil louvor derrama?

—Quem derramar seu sangue não duvida

por seguir a bandeira esclarecida

de um capitão de Cristo, que mais ama.

Ditoso fim, ditoso sacrificio,

que a Deus se fez e ao mundo juntamente,

apregoando direi tão alta sorte.

Mais poderás contar a toda a gente,

que sempre deu sua vida claro indício

de vir a merecer tão santa morte.

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o mundo poucos anos, e cansados,

vivi, cheios de vil miséria dura;

foi-me tão cedo a luz do dia escura,

que não vi cinco lustros acabados.

Corri terras e mares apartados

buscando à vida algum remédio ou cura;

mas aquilo que, enfim, não quer ventura,

não o alcançam trabalhos arriscados.

Criou-me Portugal na verde e cara

pátria minha Alenquer; mas ar corruto

que neste meu terreno vaso tinha,

me fez manjar de peixes em ti, bruto

mar, que bates na Abássia fera e avara,

tão longe da ditosa pátria minha!

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158

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ue levas, cruel Morte?- Um claro dia.

- A que horas o tomaste?- Amanhecendo.

- Entendes o que levas?- Não o entendo.

- Pois quem to faz levar?- Quem o entendia.

Seu corpo quem o goza?- A terra fria.

- Como ficou sua luz?- Anoitecendo.

- Lusitânia que diz?- Fica dizendo:

Enfim, não mereci Dona Maria.

Mataste quem a viu?- Já morto estava.

- Que diz o cru Amor?- Falar não ousa.

- E quem o faz calar?- Minha vontade.

Na corte que ficou?- Saudade brava.

- Que fica lá que ver?- Nenhüa cousa;

mas fica que chorar sua beldade.

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horai, Ninfas, os fados poderosos

daquela soberana fermosura!

Onde foram parar na sepultura

aqueles reais olhos graciosos?

Ó bens do mundo, falsos e enganosos!

Que mágoas para ouvir! Que tal figura

jaza sem resplandor na terra dura,

com tal rosto e cabelos tão fermosos!

Das outras que será, pois poder teve

a morte sobre cousa tanto bela

que ela eclipsava a luz do claro dia?

Mas o mundo não era dino dela,

por isso mais na terra não esteve;

ao Céu subiu, que já *se* lhe devia.

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161

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s reinos e os impérios poderosos

que em grandeza no mundo mais cresceram,

ou por valor de esforço floreceram

ou por varões nas letras espantosos.

Teve Grécia Temístocles famosos;

os Cipiões a Roma engrandeceram;

doze pares a França glória deram;

Cides a Espanha, e Laras belicosas.

Ao nosso Portugal (que agora vemos

tão diferente de seu ser primeiro),

os vossos deram honra e liberdade.

E em vós, grão sucessor e novo herdeiro

do braganção estado, há mil extremos

iguais ao sangue, e mores que a idade.

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162

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lustre o dino ramo dos Meneses,

aos quais o prudente e largo Céu

(que errar não sabe), em dote concedeu

rompesse os maométicos arneses;

desprezando a Fortuna e seus reveses,

ide para onde o Fado vos moveu;

erguei flamas no Mar alto Eritreu,

e sereis nova luz aos Portugueses.

Oprimi com tão firme e forte peito

o Pirata insolente, que se espante

e trema Taprobana e Gedrosia.

Dai nova causa à cor do Arabo estreito:

assi que o roxo mar, daqui em diante,

o seja só co sangue de Turquia!

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163

A D. Leonis Pereira

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ós, Ninfas da gangética espessura,

cantai suavemente, em vez sonora,

um grande Capitão, que a roxa Aurora

dos filhos defendeu da noite escura.

Ajuntou-se a caterva negra e dura,

que na Áurea Quersoneso afouta mora,

para lançar do caro ninho fora

aqueles que mais podem que a ventura.

Mas um forte Leão, com pouca gente,

a multidão tão fera como nécia

destruindo castiga e torna fraca.

Pois, ó Ninfas, cantai! que claramente

mais do que Leonidas fez em Grécia,

o nobre Leonis fez em Malaca.

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164

A D. Luís de Ataíde, Vizo-Rei

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ue vençais no Oriente tantos Reis,

que de novo nos deis da Índia o Estado,

que escureceis a fama que ganhado

tinham os que a ganharam a infiéis;

que do tempo tenhais vencido as leis,

que tudo, enfim, vençais co tempo armado,

mais é vencer na pátria, desarmado,

os monstros e as Quimeras que venceis.

E assi, sobre vencerdes tanto imigo,

e por armas fazer que, sem segundo,

vosso nome no mundo ouvido seja,

o que vos dá mais nome inda no mundo,

é vencerdes, Senhor, no Reino amigo,

tantas ingratidões, tão grande enveja!

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165

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ós outros, que buscais repouso certo

na vida, com diversos exercícios;

a quem, vendo do mundo os benefícios,

o regimento seu está encoberto;

dedicai, se quereis, ao desconcerto

novas hontas e cegos sacrifícios;

que, por castigo igual de antigos vícios,

quer Deus que andem as cousas por acerto.

Não caiu neste modo de castigo

quem pôs culpa à Fortuna, quem sòmente

crê que acontecimentos há no mundo.

A grande experiência é grão perigo;

mas o que a Deus é justo e evidente

parece injusto aos homens e profundo.

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166

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erdade, Amor, Razão, Merecimento,

qualquer alma farão segura e forte;

porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte,

têm do confuso mundo o regimento.

Efeitos mil revolve o pensamento

e nao sa ~e a que causa se reporte;

mas sabe que o que é mais que vida e morte,

que não o alcança humano entendimento.

Doctos varões darão razões subidas,

mas são experiências mais provadas,

e por isso é melhor ter muito visto.

Cousas há i que passam sem ser criadas

e cousas criadas há sem ser passadas,

mas o melhor de tudo é crer em Cristo.

[pic]Índice Geral [pic]

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1

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nquanto quis Fortuna que tivesse

esperança de algum contentamento,

o gosto de um suave pensamento

me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse

minha escritura a algum juízo isento,

escureceu-me o engenho co tormento,

para que seus enganos não dissesse.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos

a diversas vontades! Quando lerdes

num breve livro casos tão diversos,

verdades puras são, e não defeitos...

E sabei que, segundo o amor tiverdes,

tereis o entendimento de meus versos!

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2

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u cantarei de amor tão docemente,

por uns termos em si tão concertados,

que dous mil acidentes namorados

faça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente,

pintando mil segredos delicados,

brandas iras, suspiros namorados,

temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto

de vossa vista branda e rigorosa,

contentar me hei dizendo a menos parte.

Porém, para cantar de vosso gesto

a composição alta e milagrosa,

aqui falta saber, engenho e arte.

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3

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usque Amor novas artes, novo engenho,

para matar me, e novas esquivanças;

que não pode tirar me as esperanças,

que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!

Vede que perigosas seguranças!

Que não temo contrastes nem mudanças,

andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto

onde esperança falta, lá me esconde

Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que n'alma me tem posto

um não sei quê, que nasce não sei onde,

vem não sei como, e dói não sei porquê.

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4

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anto de meu estado me acho incerto,

que em vivo ardor tremendo estou de frio;

sem causa, juntamente choro e rio,

o mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto, um desconcerto;

da alma um fogo me sai, da vista um rio;

agora espero, agora desconfio,

agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando,

num'hora acho mil anos, e é de jeito

que em mil anos não posso achar ü'hora.

Se me pergunta alguém porque assi ando,

respondo que não sei; porém suspeito

que só porque vos vi, minha Senhora.

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5

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mor é um fogo que arde sem se ver,

é ferida que dói, e não se sente;

é um contentamento descontente,

é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;

é um andar solitário entre a gente;

é nunca contentar se de contente;

é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;

é servir a quem vence, o vencedor;

é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor

nos corações humanos amizade,

se tão contrário a si é o mesmo Amor?

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6

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oces águas e claras do Mondego,

doce repouso de minha lembrança,

onde a comprida e pérfida esperança

longo tempo após si me trouxe cego;

de vós me aparto; mas, porém, não nego

que inda a memória longa, que me alcança,

me não deixa de vós fazer mudança,

mas quanto mais me alongo, mais me achego.

Bem pudera Fortuna este instrumento

d'alma levar por terra nova e estranha,

oferecido ao mar remoto e vento;

mas alma, que de cá vos acompanha,

nas asas do ligeiro pensamento,

para vós, águas, voa, e em vós se banha.

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7

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fogo que na branda cera ardia,

vendo o rosto gentil que eu n'alma vejo,

se acendeu de outro fogo do desejo,

por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dous ardores se encendia,

da grande impaciência fez despejo,

e remetendo com furor sobejo

vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama, que se atreve

[a] apagar seus ardores e tormentos

na vista de que o mundo tremer deve.

Namoram se, Senhora, os Elementos

de vós, e queima o fogo aquela neve

que queima corações e pensamentos.

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8

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ede o desejo, Dama, que vos veja,

não entende o que pede; está enganado.

É este amor tão fino e tão delgado,

que quem o tem não sabe o que deseja.

Não há cousa a qual natural seja

que não queira perpétuo seu estado;

não quer logo o desejo o desejado,

porque não falte nunca onde sobeja.

Mas este puro afeito em mim se dana;

que, como a grave pedra tem por arte

o centro desejar da natureza,

assi o pensamento (pola parte que

vai tomar de mim, terreste [e] humana)

foi, Senhora, pedir esta baixeza.

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9

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uando da bela vista e doce riso,

tomando estão meus olhos mantimento,

tão enlevado sinto o pensamento

que me faz ver na terra o Paraíso.

Tanto do bem humano estou diviso,

que qualquer outro bem julgo por vento;

assi, que em caso tal, segundo sento,

assaz de pouco faz quem perde o siso.

Em vos louvar, Senhora, não me fundo,

porque quem vossas cousas claro sente,

sentirá que não pode merecê las.

Que de tanta estranheza sois ao mundo,

que não é de estranhar, Dama excelente,

que quem vos fez, fizesse Céu e estrelas.

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10

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uem pode livre ser, gentil Senhora,

vendo-vos com juízo sossegado,

se o Minino que de olhos é privado,

nas mininas dos vossos olhos mora?

Ali manda, ali reina, ali namora,

ali vive das gentes venerado;

que o vivo lume e o rosto delicado,

imagens são, nas quais o Amor se adora.

Quem vê que em branca neve nascem rosas

que fios crespos de ouro vão cercando,

se por entre esta luz a vista passa,

raios de ouro verá, que as duvidosas

almas estão no peito traspassando,

assi como um cristal o Sol traspassa...

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11

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omou-me vossa vista soberana

adonde tinha armas mais à mão,

por mostrar que quem busca defensão

contra esses belos olhos, que se engana.

Por ficar da vitória mais ufana,

deixou-me armar primeiro da Razão;

cuidei de me salvar, mas foi em vão,

que contra o Céu não val defensa humana.

Mas porém se vos tinha prometido

o vosso alto destino esta vitória,

ser-vos tudo bem pouco está sabido.

Que, posto que estivesse apercebido,

não levais de vencer-me grande glória:

maior a levo eu de ser vencido.

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12

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ossos olhos, Senhora, que competem

co Sol em fermosura e claridade,

enchem os meus de tal suavidade

que em lágrimas, de vê-los, se derretem.

Meus sentidos vencidos se sometem

assi cegos a tanta majestade;

e da triste prisão, da escuridade,

cheios de medo, por fugir remetem.

Mas se nisto me vedes por acerto,

o áspero desprezo com que olhais

torna a espertar a alma enfraquecida.

Ó gentil cura e estranho desconcerto!

Que fará o favor que vós não dais,

quando o vosso desprezo torna a vida?

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13

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legres campos, verdes arvoredos,

claras e frescas águas de cristal,

que em vós os debuxais ao natural,

discorrendo da altura dos rochedos;

Silvestres montes, ásperos penedos,

compostos em concerto desigual,

sabei que, sem licença de meu mal,

já não podeis fazer meus olhos ledos.

E, pois me já não vedes como vistes,

não me alegrem verduras deleitosas,

nem águas que correndo alegres vêm.

Semearei em vós lembranças tristes,

regando-vos com lágrimas saudosas,

e nascerão saudades de meu bem.

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stá o lascivo e doce passarinho

com o biquinho as penas ordenando;

o verso sem medida, alegre e brando,

espedindo no rústico raminho;

o cruel caçador (que do caminho

se vem calado e manso desviando)

na pronta vista a seta endireitando,

lhe dá no Estígio lago eterno ninho.

Dest' arte o coração, que livre andava,

(posto que já de longe destinado)

onde menos temia, foi ferido.

Porque o Frecheiro cego me esperava,

para que me tomasse descuidado,

em vossos claros olhos escondido.

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embranças saudosas, se cuidais

de me acabar a vida neste estado,

não vivo com meu mal tão enganado,

que não espere dele muito mais.

De muito longe já me costumais

a viver de algum bem desesperado;

já tenho co a Fortuna concertado

de sofrer os trabalhos que me dais.

Atado ao remo tenho a paciência,

para quantos desgostos der a vida,

cuide em quanto quiser o pensamento;

que, pois não há i outra resistência

para tão certa queda da caída,

aparar-lhe hei debaixo o sofrimento.

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e as penas com que Amor tão mal me trata

quiser que tanto tempo viva delas

que veja escuro o lume das estrelas

em cuja vista o meu se acende e mata;

e se o tempo, que tudo desbarata,

secar as frescas rosas sem colhê-las,

mostrando a linda cor das tranças belas

mudada de ouro fino em bela prata;

vereis, Senhora, então também mudado

o pensamento e aspereza vossa,

quando não sirva já sua mudança.

Suspirareis então pelo passado,

em tempo quando executar-se possa

em vosso arrepender minha vingança.

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uem vê, Senhora, claro e manifesto

o lindo ser de vossos olhos belos,

se não perder a vista só em vê los,

já não paga o que deve a vosso gesto.

Este me parecia preço honesto;

mas eu, por de vantagem merecê los,

dei mais a vida e alma por querê los,

donde já me não fica mais de resto.

Assi que a vida e alma e esperança

e tudo quanto tenho, tudo é vosso,

e o proveito disso eu só o levo.

Porque é tamanha bem aventurança

o dar vos quanto tenho e quanto posso

que, quanto mais vos pago, mais vos devo.

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uando o Sol encoberto vai mostrando

ao mundo a luz quieta e duvidosa,

ao longo de üa praia deleitosa,

vou na minha inimiga imaginando.

Aqui a vi, os cabelos concertando;

ali, co a mão na face tão fermosa;

aqui, falando alegre, ali cuidosa;

agora estando queda, agora andando.

aqui esteve sentada, ali me viu,

erguendo aqueles olhos tão isentos;

aqui movida um pouco, ali segura;

qui se entristeceu, ali se riu;

enfim, nestes cansados pensamentos

passo esta vida vã, que sempre dura.

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empo é já que minha confiança

se desça de üa falsa opinião;

mas Amor não se rege por razão;

não posso perder, logo, a esperança.

A vida, si; que üa áspera mudança

não deixa viver tanto um coração.

E eu na morte tenho a salvação?

Si, mas quem a deseja não a alcança.

Forçado é logo que eu espere e viva.

Ah! dura lei de Amor, que não consente

quietação nüa alma que é cativa!

Se hei de viver, enfim, forçadamente,

para que quero a glória fugitiva

de üa esperança vã que me atormente?

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ransforma se o amador na cousa amada,

por virtude do muito imaginar;

não tenho, logo, mais que desejar,

pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,

que mais deseja o corpo de alcançar?

Em si sòmente pode descansar,

pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,

que, como um acidente em seu sujeito,

assi co a alma minha se conforma,

está no pensamento como ideia:

[e] o vivo e puro amor de que sou feito,

como a matéria simples busca a forma.

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asso por meus trabalhos tão isento

de sentimento grande nem pequeno,

que só pola vontade com que peno

me fica Amor devendo mais tormento.

Mas vai me Amor matando tanto a tento,

temperando a triaga co veneno,

que do penar a ordem desordeno,

porque não mo consente o sofrimento.

Porém, se esta fineza o Amor sente,

e pagar me meu mal com mal pretende,

torna me com prazer como ao Sol neve.

Mas se me vês cos males tão contente,

faz se avaro da pena, porque entende

que quanto mais me paga, mais me deve.

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um jardim adornado de verdura,

a que esmaltam por cima várias flores,

entrou um dia a deusa dos amores,

com a deusa da caça e da espessura.

Diana tomou logo üa rosa pura,

Vénus um roxo lírio, dos milhores;

mas excediam muito às outras flores

as violas, na graça e fermosura.

Perguntam a Cupido, que ali estava,

qual daquelas três flores tomaria,

por mais suave, pura e mais fermosa?

Sorrindo se, o Minino lhe tornava:

todas fermosas são, mas eu queria

V i o l 'a n t e s que lírio, nem que rosa.

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indo e sutil trançado, que ficaste

em penhor do remédio que mereço,

se só contigo, vendo te, endoudeço,

que fora cos cabelos que apertaste?

Aquelas tranças d'ouro, que ligaste,

que os raios do Sol têm em pouco preço,

não sei se para engano do que peço

se para me atar, os desataste.

Lindo trançado, em minhas mãos te vejo,

e por satisfação de minhas dores

como quem não tem outra, hei de tomar te.

E se não for contente meu desejo,

dir lhe hei que, nesta regra dos amores,

pelo todo também se toma a parte.

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stá se a Primavera trasladando

em vossa vista deleitosa e honesta;

nas lindas faces, olhos, boca e testa,

boninas, lírios, rosas debuxando.

De sorte, vosso gesto matizando,

Natura quanto pode manifesta

que o monte, o campo, o rio e a floresta

se estão de vós, Senhora, namorando.

Se agora não quereis que quem vos ama

possa colher o fruito destas flores,

perderão toda a graça vossos olhos.

Porque pouco aproveita, linda Dama,

que semeasse Amor em vós amores,

se vossa condição produze abrolhos.

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h! como se me alonga, de ano em ano,

a peregrinação cansada minha!

Como se encurta, e como ao fim caminha

este meu breve e vão discurso humano!

Vai se gastando a idade e cresce o dano;

perde se me um remédio, que inda tinha;

se por experiência se adivinha,

qualquer grande esperança é grande engano.

Corro após este bem que não se alcança;

no meio do caminho me falece,

mil vezes caio, e perco a confiança.

Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança,

se os olhos ergo a ver se inda parece,

da vista se me perde, e da esperança.

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rão tempo há já que soube da Ventura

a vida que me tinha destinada;

que a longa experiência da passada

me dava claro indício da futura.

Amor fero, cruel, Fortuna dura,

bem tendes vossa força exprimentada:

assolai, destruí, não fique nada;

vingai vos desta vida, qu'inda dura.

Soube Amor da Ventura, que a não tinha,

e, por que mais sentisse a falta dela,

de imagens impossíveis me mantinha.

Mas vós, Senhora, pois que minha estrela

não foi milhor, vivei nesta alma minha,

que não tem a Fortuna poder nela.

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orque quereis, Senhora, que ofereça

a vida a tanto mal como padeço?

Se vos nasce do pouco que mereço,

bem por nascer está quem vos mereça.

Sabei que, enfim, por muito que vos peça,

que posso merecer quanto vos peço;

que não consente Amor que em baixo preço

tão alto pensamento se conheça.

Assi que a paga igual de minhas dores,

com nada se restaura, mas deveis ma,

por ser capaz de tantos disfavores.

E se o valor de vossos servidores

houver de ser igual convosco mesma,

vós só convosco mesma andai d'amores.

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uando vejo que meu destino ordena

que por me exprimentar de vós me aparte,

deixando de meu bem tão grande parte

que a mesma culpa fica grave pena;

o duro disfavor que me condena,

quando pela memória se reparte,

endurece os sentidos de tal arte

que a dor da ausência fica mais pequena.

Pois como pode ser que na mudança

daquilo que mais quero estê tão fora

de me não apartar também da vida?

Eu refrearei tão áspera esquivança;

porque mais sentirei partir, Senhora,

sem sentir muito a pena da partida.

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e algü'hora em vós a piedade

de tão longo tormento se sentira,

não consentira Amor que me partira

de vossos olhos, minha saüdade.

Apartei me de vós, mas a vontade,

que pelo natural n'alma vos tira,

me faz crer que esta ausência é de mentira;

mas inda mal, porém, porque é verdade.

Ir me hei, Senhora; e, neste apartamento,

tomarão tristes lágrimas vingança

nos olhos de quem fostes mantimento.

E assi darei vida a meu tormento;

que, enfim, cá me achará minha lembrança

sepultado no vosso esquecimento.

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ete anos de pastor Jacob servia

Labão, pai de Raquel, serrana bela;

mas não servia ao pai, servia a ela,

e a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,

passava, contentando se com vê la;

porém o pai, usando de cautela,

em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos

lhe fora assi negada a sua pastora,

como se a não tivera merecida;

começa de servir outros sete anos,

dizendo:—Mais servira, se não fora

para tão longo amor tão curta a vida.

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ensamentos, que agora novamente

cuidados vãos em mim ressuscitais,

dizei me: ainda não vos contentais

de terdes, quem vos tem, tão descontente?

Que fantasia é esta, que presente

cad'hora ante meus olhos me mostrais?

Com sonhos e com sombras atentais

quem nem por sonhos pode ser contente?

Vejo vos, pensamentos, alterados

e não quereis, d'esquivos, declarar me

que é isto que vos traz tão enleados?

Não me negueis, se andais para negar me;

que, se contra mim estais alevantados,

eu vos ajudarei mesmo a matar me.

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ós que, d'olhos suaves e serenos,

com justa causa a vida cativais,

e que os outros cuidados condenais

por indevidos, baixos e pequenos;

se ainda do Amor domésticos venenos

nunca provastes, quero que saibais

que é tanto mais o amor despois que amais,

quanto são mais as causas de ser menos.

E não cuide ninguém que algum defeito,

quando na cousa amada s'apresenta,

possa deminuir o amor perfeito;

antes o dobra mais; e se atormenta,

pouco e pouco o desculpa o brando peito;

que Amor com seus contrairos s'acrescenta.

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e tomar minha pena em penitência

do erro em que caiu o pensamento,

não abranda, mas dobra meu tormento,

a isto, e a mais, obriga a paciência.

E se üa cor de morto na aparência,

um espalhar suspiros vãos ao vento,

em vós não faz, Senhora, movimento,

fique meu mal em vossa consciência.

E se de qualquer áspera mudança

toda a vontade isenta Amor castiga

(como eu vi bem no mal que me condena);

e se em vós não s'entende haver vingança,

será forçado (pois Amor me obriga)

que eu só de vossa culpa pague a pena.

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e pena por amar vos se merece,

quem dela livre está? Ou quem isento?

Que alma, que razão, qu'entendimento,

em ver vos se não rende e obedece?

Que mor glória na vida s'oferece

que ocupar se em vós o pensamento?

Toda a pena cruel, todo o tormento

em ver vos se não sente, mas esquece.

Mas se merece pena quem amando

contino vos está, se vos ofende,

o mundo matareis, que todo é vosso.

Em mim podeis, Senhora, ir começando,

que claro se conhece e bem se entende

amar vos quanto devo e quanto posso.

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ue modo tão sutil da natureza,

para fugir ao mundo, e seus enganos,

permite que se esconda em tenros anos,

debaixo de um burel tanta beleza!

Mas esconder se não pode aquela alteza

e gravidade de olhos soberanos,

a cujo resplandor entre os humanos

resistência não sinto, ou fortaleza.

Quem quer livre ficar de dor e pena,

vendo a ou trazendo a na memória,

da mesma razão sua se condena.

Porque quem mereceu ver tanta glória,

cativo há de ficar; que Amor ordena

que de juro tenha ela esta vitória.

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resença bela, angélica figura,

em quem, quanto o Céu tinha, nos tem dado;

gesto alegre, de rosas semeado,

entre as quais se está rindo a Fermosura;

olhos, onde tem feito tal mistura

em cristal branco o preto marchetado,

que vemos já no verde delicado

não esperança, mas enveja escura;

brandura, aviso e graça, que aumentando

a natural beleza cum desprezo,

com que, mais desprezada, mais se aumenta;

são as prisões de um coração que, preso,

seu mal ao som dos ferros vai cantando,

como faz a sereia na tormenta.

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or cima destas águas, forte e firme,

irei por onde as sortes ordenaram,

pois, por cima de quantas me choraram

aqueles claros olhos, pude vir me.

Já chegado era o fim de despedir me,

já mil impedimentos se acabaram,

quando rios de amor se atravessaram

a me impedir o passo de partir me.

Passei os eu com ânimo obstinado,

com que a morte forçada e gloriosa

faz o vencido já desesperado.

Em que figura, ou gesto desusado,

pode já fazer medo a morte irosa,

a quem tem a seus pés rendido e atado?

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rvore, cujo pomo, belo e brando,

natureza de leite e sangue pinta,

onde a pureza, de vergonha tinta,

está virgíneas faces imitando;

nunca da ira e do vento, que arrancando

os troncos vão, o teu injúria sinta;

nem por malícia de ar te seja extinta

a cor, que está teu fruto debuxando;

que, pois me emprestas doce e idóneo abrigo

a meu contentamento, e favoreces

com teu suave cheiro minha glória,

se não te celebrar como mereces,

cantando te, sequer farei contigo

doce, nos casos tristes, a memória.

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culto divinal se celebrava

no templo donde toda a criatura

louva o Feitor divino, que a feitura

com seu sagrado sangue restaurava.

Ali Amor, que o tempo me aguardava

onde a vontade tinha mais segura,

nüa celeste e angélica figura

a vista da razão me salteava.

Eu, crendo que o lugar me defendia,

e seu livre costume não sabendo

que nenhum confiado lhe fugia,

deixei me cativar; mas já que entendo,

Senhora, que por vosso me queria,

do tempo que fui livre me arrependo.

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enhora minha, se a Fortuna imiga,

que em minha fim com todo o Céu conspira,

os olhos meus de ver os vossos tira,

porque em mais graves casos me persiga;

comigo levo esta alma, que se obriga,

na mor pressa de mar, de fogo, de ira,

a dar vos a memória, que suspira,

só por fazer convosco eterna liga.

Nest'alma, onde a Fortuna pode pouco,

tão viva vos terei, que frio e fome

vos não possam tirar, nem vãos perigos.

Antes co som da voz, trémulo e rouco,

bradando por vós, só com vosso nome

farei fugir os ventos e os imigos.

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quela fera humana que enriquece

sua presuntuosa tirania

destas minhas entranhas, onde cria

Amor um mal que falta quando crece;

Se nela o Céu mostrou (como parece)

quanto mostrar ao mundo pretendia,

porque de minha vida se injuria?

Porque de minha morte s'enobrece?

Ora, enfim, sublimai vossa vitória,

Senhora, com vencer me e cativar me:

fazei disto no mundo larga história.

Que, por mais que vos veja maltratar me,

já me fico logrando desta glória

de ver que tendes tanta de matar me.

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mor, que o gesto humano n'alma escreve,

vivas faíscas me mostrou um dia,

donde um puro cristal se derretia

por entre vivas rosas e alva neve.

A vista, que em si mesma não se atreve,

por se certificar do que ali via,

foi convertida em fonte, que fazia

a dor ao sofrimento doce e leve.

Jura Amor que brandura de vontade

causa o primeiro efeito; o pensamento

endoudece, se cuida que é verdade.

Olhai como Amor gera num momento,

de lágrimas de honesta piedade

lágrimas de imortal contentamento.

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omo quando do mar tempestuoso

o marinheiro, lasso e trabalhado,

d'um naufrágio cruel já salvo a nado,

só ouvir falar nele o faz medroso;

e jura que em que veja bonançoso

o violento mar, e sossegado

não entre nele mais, mas vai, forçado

pelo muito interesse cobiçoso;

Assi, Senhora eu, que da tormenta,

de vossa vista fujo, por salvar me,

jurando de não mais em outra ver me;

minh'alma que de vós nunca se ausenta,

dá me por preço ver vos, faz tornar me

donde fugi tão perto de perder me.

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Ditoso seja aquele que somente

se queixa de amorosas esquivanças;

pois por elas não perde as esperanças

de poder n'algum tempo ser contente.

Ditoso seja quem, estando ausente,

não sente mais que a pena das lembranças;

porqu', inda que se tema de mudanças,

menos se teme a dor quando se sente.

Ditoso seja, enfim, qualquer estado

onde enganos, desprezos e isenção

trazem o coração atormentado.

Mas triste quem se sente magoado

d'erros em que não pode haver perdão,

sem ficar n'alma a mágoa do pecado.

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eda serenidade deleitosa, que

representa em terra um paraíso;

entre rubis e perlas doce riso;

debaixo de ouro e neve, cor-de-rosa;

presença moderada e graciosa,

onde ensinando estão despejo e siso

que se pode por arte e por aviso,

como por natureza, ser fermosa;

fala, de quem a morte e a vida pende,

rara, suave; enfim, Senhora, vossa;

repouso, nela, alegre e comedido;

estas as armas são com que me rende

e me cativa Amor; mas não que possa

despojar me da glória de rendido.

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o mundo quis um tempo que se achasse

o bem que por acerto ou sorte vinha;

e, por exprimentar que dita tinha,

quis que a Fortuna em mim se exprimentasse.

Mas, por que meu destino me mostrasse

que nem ter esperanças me convinha,

nunca nesta tão longa vida minha

cousa me deixou ver que desejasse.

Mudando andei costume, terra e estado,

por ver se se mudava a sorte dura;

a vida pus nas mãos de um leve lenho.

Mas (segundo o que o Céu me tem mostrado)

já sei que deste meu buscar ventura,

achado tenho já, que não a tenho.

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h! quão caro me custa o entender te,

molesto Amor, que, só por alcançar te,

de dor em dor me tens trazido a parte

onde em ti ódio e ira se converte!

Cuidei que para em tudo conhecer te,

me não faltasse experiência e arte;

agora vejo n'alma acrecentar te

aquilo que era causa de perder te.

Estavas tão secreto no meu peito

que eu mesmo, que te tinha, não sabia

que me senhoreavas deste jeito.

Descobriste t'agora; e foi por via

que teu descobrimento e meu defeito,

um me envergonha e outro m'injuria.

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uem quiser ver d'Amor üa excelência

onde sua fineza mais se apura,

atente onde me põe minha ventura,

por ter de minha fé experiência.

Onde lembranças mata a longa ausência,

em temeroso mar, em guerra dura,

ali a saudade está segura,

quando mor risco corre a paciência.

Mas ponha me Fortuna e o duro Fado

em nojo, morte, dano e perdição,

ou em sublime e próspera ventura;

Ponha me, enfim, em baixo ou alto estado;

que até na dura morte me acharão

na língua o nome, n'alma a vista pura.

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e, despois d'esperança tão perdida,

Amor pola ventura consentisse

que inda algü'hora breve alegre visse

de quantas tristes viu tão longa vida;

ü'alma já tão fraca e tão caída,

por mais alto que a sorte me subisse,

não tenho para mim que consentisse

alegria tão tarde consentida.

Não tão somente Amor me não mostrou

um'hora em que vivesse alegremente,

de quantas nesta vida me negou;

mas inda tanta pena me consente,

que co contentamento me tirou

o gosto de algü'hora ser contente.

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enhor João Lopes, o meu baixo estado

ontem vi posto em grau tão excelente,

que vós, que sois enveja a toda a gente,

só por mim vos quiséreis ver trocado.

Vi o gesto suave e delicado

que já vos fez, contente e descontente,

lançar ao vento a voz tão docemente

que fez o ar sereno e sossegado.

Vi lhe em poucas palavras dizer, quanto

ninguém diria em muitas; eu só, cego,

magoado fiquei na doce fala.

Mas mal haja a Fortuna, e o Moço cego!

Um, porque os corações obriga a tanto;

outra, porque os estados desiguala.

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polo e as nove Musas, discantando

com a dourada lira, me influíam

na suave harmonia que faziam,

quando tomei a pena, começando:

—Ditoso seja o dia e hora, quando

tão delicados olhos me feriam!

Ditosos os sentidos que sentiam

estar se em seu desejo traspassando!

Assi cantava, quando Amor virou

a roda à esperança, que corria

tão ligeira que quase era invisível.

Converteu se me em noite o claro dia;

e, se algüa esperança me ficou,

será de maior mal, se for possível.

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ai me üa lei, Senhora, de querer vos,

que a guarde, sô pena de enojar vos;

que a fé que me obriga a tanto amar vos

fará que fique em lei de obedecer vos.

Tudo me defendei, senão só ver vos,

e dentro na minh'alma contemplar vos;

que, se assi não chegar a contentar vos,

ao menos que não chegue [a] aborrecer vos.

E, se essa condição cruel e esquiva,

que me dois lei de vida não consente,

dai ma, Senhora, já, seja de morte.

Se nem essa me dais, é bem que viva,

sem saber como vivo, tristemente,

mas contente porém de minha sorte.

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53

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e tanta pena tenho merecida

em pago de sofrer tantas durezas,

provai, Senhora, em mim vossas cruezas,

que aqui tendes ua alma oferecida.

Nela experimental, se sois servida,

desprezos, disfavores e asperezas;

que mores sofrimentos e firmezas

sustentarei na guerra desta vida.

Mas contra vossos olhos quais serão?

Forçado é que tudo se lhe renda;

mas porei por escudo o coração.

Porque em tão dura e áspera contenda,

é bem que, pois não acho defensão,

com me meter nas lanças me defenda.

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54

a esta cantiga alheia:

Na fonte está Leanor

lavando a talha e chorando,

as amigas perguntando:

vistes lá o meu amor?

VOLTAS

Posto o pensamento nele,

porque a tudo o Amor a obriga,

cantava, mas a cantiga

eram suspiros por ele.

Nisto estava Leanor

o seu desejo enganando,

às amigas perguntando:

vistes lá o meu amor?

O rosto sobre üa mão,

os olhos no chão pregados,

que, do chorar já cansados,

algum descanso lhe dão.

Desta sorte Leanor

suspende de quando em quando

sua dor; e, em si tornando,

mais pesada sente a dor.

Não deita dos olhos água,

que não quer que a dor se abrande

Amor, porque em mágoa grande

seca as lágrimas a mágoa.

Que, despois de seu amor

soube novas, perguntando,

d'emproviso a vi chorando.

Olhai que extremos de dor!

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55

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empre a Razão vencida foi de Amor;

mas, porque assi o pedia o coração,

quis Amor ser vencido da Razão.

Ora que caso pode haver maior!

Novo modo de morte, e nova dor!

Estranheza de grande admiração,

que perde suas forças a afeição,

porque não perca a pena o seu rigor.

Pois nunca houve fraqueza no querer,

mas antes muito mais se esforça assim

um contrário com outro por vencer.

Mas a Razão, que a luta vence, enfim,

não creio que é razão; mas há de ser

inclinação que eu tenho contra mim.

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iversos dões reparte o Céu benino,

e quer que cada üa um só possua;

assi, ornou de casto peito a Lüa,

ornamento do assento cristalino.

De graça, a Mãe fermosa do Minino,

que nessa vista tem perdido a sua;

Palas, de discrição, que imite a tua;

do valor, Juno, só de império dino.

Mas junto agora o mesmo Céu derrama

em ti o mais que tinha, e foi o menos,

em respeito do Autor da natureza;

que, a seu pesar, te dão, fermosa Dama,

Diana, honestidade, e graça, Vénus,

Palas o aviso seu, Juno a nobreza.

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e vós me aparto, ó vida! Em tal mudança,

sinto vivo da morte o sentimento.

Não sei para que é ter contentamento,

se mais há de perder quem mais alcança.

Mas dou vos esta firme segurança

que, posto que me mate meu tormento,

pelas águas do eterno esquecimento

segura passará minha lembrança.

Antes sem vós meus olhos se entristeçam,

que com qualquer cous' outra se contentem;

antes os esqueçais, que vos esqueçam.

Antes nesta lembrança se atormentem,

que com esquecimento desmereçam

a glória que em sofrer tal pena sentem.

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Morte, que da vida o nó desata,

os nós, que dá o Amor, cortar quisera

na Ausência, que é contr' ele espada fera,

e co Tempo, que tudo desbarata.

Duas contrárias, que üa a outra mata,

a Morte contra o Amor ajunta e altera:

üa é Razão contra a Fortuna austera,

outra, contra a Razão, Fortuna ingrata.

Mas mostre a sua imperial potência

a Morte em apartar dum corpo a alma,

duas num corpo o Amor ajunte e una;

porque assi leve triunfante a palma,

Amor da Morte, apesar da Ausência,

do Tempo, da Razão e da Fortuna.

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uspiros inflamados, que cantais

a tristeza com que eu vivi tão ledo!

Eu mouro e não vos levo, porque hei medo

que ao passar do Lete vos percais.

Escritos para sempre já ficais

onde vos mostrarão todos co dedo

como exemplo de males; que eu concedo

que para aviso d'outros estejais.

Em quem, pois, virdes falsas esperanças

d'Amor e da Fortuna, cujos danos

alguns terão por bem aventuranças,

dizei lhe que os servistes muitos anos,

e que em Fortuna tudo são mudanças,

e que em Amor não há senão enganos.

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odo o animal da calma repousava,

só Liso o ardor dela não sentia;

que o repouso do fogo em que ardia

consistia na Ninfa que buscava.

Os montes parecia que abalava

o triste som das mágoas que dezia;

mas nada o duro peito comovia,

que na vontade d'outrem posto estava.

Cansado já de andar pela espessura,

no tronco d'üa faia, por lembrança,

escreveu estas palavras de tristeza:

«Nunca ponha ninguém sua esperança

em peito feminil, que, de natura,

somente em ser mudável tem firmeza».

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eguia aquele fogo, que o guiava,

Leandro, contra o mar e contra o vento;

as forças lhe faltavam já e o alento,

Amor lhas refazia e renovava.

Despois que viu que a alma lhe faltava,

não esmorece; mas, no pensamento,

(que a língua já não pode) seu intento

ao mar que lho cumprisse, encomendava.

Ó mar (dezia o moço só consigo),

já te não peço a vida; só queria

que a de Hero me salves; não me veja...

Este meu corpo morto, lá o desvia

daquela torre. Sê me nisto amigo,

pois no meu maior bem me houveste enveja!

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or sua Ninfa, Céfalo deixava

Aurora, que por ele se perdia,

posto que dá princípio ao claro dia,

posto que as roxas flores imitava.

Ele, que a bela Prócris tanto amava

que só por ela tudo enjeitaria,

deseja de atentar se lhe acharia

tão firme fé como nele achava.

Mudado o trajo, tece o duro engano:

outro se finge, preço põe diante,

quebra se a fé mudável, e consente.

Ó engenho sutil para seu dano!

Vede que manhas busca um cego amante

para que sempre seja descontente!

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entindo se tomada a bela esposa

de Céfalo, no crime consentido,

para os montes fugia do marido;

e não sei se de astuta, ou vergonhosa.

Porque ele, enfim, sofrendo a dor ciosa,

de amor cego e forçoso compelido,

após ela se vai como perdido,

já perdoando a culpa criminosa.

Deita se aos pés da Ninfa endurecida,

que do cioso engano está agravada;

já lhe pede perdão, já pede a vida.

Ó força de afeição desatinada!

Que da culpa contra ele cometida,

perdão pedia à parte que é culpada!

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s vestidos Elisa revolvia

que lh'Eneias deixara por memória:

doces despojos da passada glória,

doces, quando seu Fado o consentia.

Entr'eles a fermosa espada via

que instrumento foi da triste história;

e, como quem de si tinha a vitória,

falando só com ela, assi dezia:

—Fermosa e nova espada, se ficaste

só para executares os enganos

de quem te quis deixar, em minha vida,

Sabe que tu comigo t'enganaste;

que, para me tirar de tantos danos,

sobeja me a tristeza da partida.

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Ferido sem ter cura perecia

o forte e duro Télefo temido,

por aquele que n'água foi metido,

a quem ferro nenhum cortar podia.

Ao Apolíneo Oráculo pedia

conselho para ser restituído;

respondeu que tornasse a ser ferido

por quem o já ferira, e sararia.

Assi, Senhora, quer minha ventura

que, ferido de ver vos, claramente

com vos tornar a ver Amor me cura.

Mas é tão doce vossa fermosura,

que fico como hidrópico doente,

que co beber lhe cresce mor secura.

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iou se o coração, de muito isento,

de si cuidando mal, que tomaria

tão ilícito amor tal ousadia,

tal modo nunca visto de tormento.

Mas os olhos pintaram tão a tento

outros que visto tem na fantasia,

que a razão, temerosa do que via,

fugiu, deixando o campo ao pensamento.

Ó Hipólito casto, que, de jeito,

de Fedra, tua madrasta, foste amado,

que não sabia ter nenhum respeito:

em mim vingou o amor teu casto peito;

mas está desse agravo tão vingado,

que se arrepende já do que tem feito.

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raio cristalino s'estendia

pelo mundo, da Aurora marchetada,

quando Nise, pastora delicada,

donde a vida deixava, se partia.

Dos olhos, com que o Sol escurecia,

levando a vista em lágrimas banhada,

de si, do Fado e Tempo magoada,

pondo os olhos no Céu, assi dezia:

—Nasce, sereno Sol, puro e luzente;

resplandece, fermosa e roxa Aurora,

qualquer alma alegrando descontente;

que a minha, sabe tu que, desd'agora,

jamais na vida a podes ver contente,

nem tão triste nenhüa outra pastora.

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partava se Nise de Montano,

em cuja alma partindo se ficava;

que o pastor na memória a debuxava,

por poder sustentar se deste engano.

Pelas praias do Índico Oceano

sobre o curvo cajado s'encostava,

e os olhos pelas águas alongava,

que pouco se doíam de seu dano.

Pois com tamanha mágoa e saudade

(dezia) quis deixar me a que eu adoro,

por testemunhas tomo Céu e estrelas.

Mas se em vós, ondas, mora piedade,

levai também as lágrimas que choro,

pois assi me levais a causa delas!

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omava Daliana por vingança

da culpa do pastor que tanto amava,

casar com Gil vaqueiro; e em si vingava

o erro alheio e pérfida esquivança.

A discrição segura, a confiança,

as rosas que seu rosto debuxava,

o descontentamento lhas secava,

que tudo muda üa áspera mudança.

Gentil planta disposta em seca terra,

lindo fruito de dura mão colhido,

lembranças d'outro amor, e fé perjura,

tornaram verde prado em dura serra;

interesse enganoso, amor fingido,

fizeram desditosa a fermosura.

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uantas vezes do fuso s'esquecia

Daliana, banhando o lindo seio,

tantas vezes de um áspero receio

salteado, Laurénio a cor perdia.

Ela, que a Sílvio mais que a si queria,

para podê lo ver não tinha meio:

ora, como curara o mal alheio

quem o seu mal tão mal curar sabia?

Ele, que viu tão clara esta verdade,

com soluços, dezia (que a espessura

comovia, de mágoa, a piedade):

—Como pode a desordem da Natura

fazer tão diferentes na vontade

a quem fez tão conformes na ventura?

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omo fizeste, Pórcia, tal ferida?

Foi voluntária, ou foi por inocência?

—Mas foi fazer Amor experiência

se podia sofrer tirar me a vida.

—E com teu próprio sangue te convida

a não pores à vida resistência?

—Ando me acostumando à paciência,

porque o temor a morte não impida.

—Pois porque comes, logo, fogo ardente,

se a ferro te costumas?—Porque ordena

Amor que morra e pene juntamente.

E tens a dor do ferro por pequena?

—Si: que a dor costumada não se sente;

e eu não quero a morte sem a pena.

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m fermosa Leteia se confia,

por onde vaïdade tanta alcança,

que, tornada em soberba a confiança,

com os deuses celestes competia.

Porque não fosse avante esta ousadia

(que nascem muitos erros da tardança),

em efeito puseram a vingança,

que tamanha doudice merecia.

Mas Oleno, perdido por Leteia,

não lhe sofrendo Amor que suportasse

castigo duro tanta fermosura,

quis padecer em si a pena alheia;

mas, porque a morte Amor não apartasse,

ambos tornados são em pedra dura.

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áiades, vós, que os rios habitais

que os saudosos campos vão regando,

de meus olhos vereis estar manando

outros, que quase aos vossos são iguais.

Dríades, vós, que as setas atirais,

os fugitivos cervos derrubando,

outros olhos vereis que triunfando

derrubam corações, que valem mais.

Deixai as aljavas logo, e as águas frias,

e vinde, Ninfas minhas, se quereis

saber como de uns olhos nascem mágoas;

vereis como se passam em vão os dias;

mas não vireis em vão, que cá achareis

nos seus as setas, e nos meus as águas.

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um bosque que das Ninfas se habitava

Sílvia, Ninfa linda, andava um dia;

subida nüa árvore sombria,

as amarelas flores apanhava.

Cupido, que ali sempre costumava

a vir passar a sesta à sombra fria,

num ramo o arco e setas que trazia,

antes que adormecesse, pendurava.

A Ninfa, como idóneo tempo vira

para tamanha empresa, não dilata,

mas com as armas foge ao Moço esquivo.

As setas traz nos olhos, com que tira:

—Ó pastores! fugi, que a todos mata,

senão a mim, que de matar me vivo.

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al mostra dá de si vossa figura,

Sibela, clara luz da redondeza,

que as forças e o poder da natureza

com sua claridade mais apura.

Quem viu üa confiança tão segura,

tão singular esmalte da beleza,

que não padeça mais, se ter defesa

contra vossa gentil vista procura?

Eu, pois, por escusar essa esquivança,

a razão sujeitei ao pensamento,

que, rendida, os sentidos lhe entregaram.

Se vos ofende o meu atrevimento,

inda podeis tomar nova vingança

nas relíquias da vida, que escaparam.

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elos extremos raros que mostrou

em saber, Palas, Vénus em fermosa,

Diana em casta, Juno em animosa,

África, Europa e Asia as adorou.

Aquele saber grande que ajuntou

esprito e corpo em liga generosa,

esta mundana máquina lustrosa,

de só quatro Elementos fabricou.

Mas mor milagre fez a natureza

em vós, Senhoras, pondo em cada üa

o que por todas quatro repartiu.

A vós seu resplandor deu Sol e Lüa,

a vós com viva luz, graça e pureza,

Ar, Fogo, Terra e Água vos serviu.

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a metade do Céu subido ardia

o claro, almo Pastor, quando deixavam

o verde pasto as cabras, e buscavam

a frescura suave da água fria.

Co a folha da árvore sombria,

do raio ardente as aves s'emparavam;

o módulo cantar, de que cessavam,

só nas roucas cigarras se sentia;

quando Liso pastor, num campo verde

Natércia, crua Ninfa, só buscava

com mil suspiros tristes que derrama.

Porque te vás de quem por ti se perde,

para quem pouco te ama? (suspirava).

[E] o Eco lhe responde: Pouco te ama.

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á a saudosa Aurora destoucava

os seus cabelos d'ouro delicados,

e as flores, nos campos esmaltados,

do cristalino orvalho borrifava;

quando o fermoso gado se espalhava

de Sílvio e de Laurente pelos prados;

pastores ambos, e ambos apartados,

de quem o mesmo Amor não se apartava.

Com verdadeiras lágrimas, Laurente,

—Não sei (dizia) ó Ninfa delicada,

porque não morre já quem vive ausente,

pois a vida sem ti não presta nada?

Responde Sílvio:—Amor não o consente,

que ofende as esperanças da tornada.

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filho de Latona esclarecido,

que com seu raio alegra a humana gente,

o hórrido Piton, brava serpente,

matou, sendo das gentes tão temido.

Feriu com arco, e de arco foi ferido,

com ponta aguda d'ouro reluzente;

nas tessálicas praias, docemente,

pela Ninfa Peneia andou perdido.

Não lhe pôde valer, para seu dano,

ciência, diligências, nem respeito

de ser alto, celeste e soberano.

Se este nunca alcançou nem um engano

de quem era tão pouco em seu respeito,

eu que espero de um ser que é mais que humano?

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lma minha gentil, que te partiste

tão cedo desta vida descontente,

repousa lá no Céu eternamente,

e viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,

memória desta vida se consente,

não te esqueças daquele amor ardente

que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer te

algüa causa a dor que me ficou

da mágoa, sem remédio, de perder te,

roga a Deus, que teus anos encurtou,

que tão cedo de cá me leve a ver te,

quão cedo de meus olhos te levou.

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quela triste e leda madrugada,

cheia toda de mágoa e de piedade,

enquanto houver no mundo saudade

quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada

saía, dando ao mundo claridade,

viu apartar se de ua outra vontade,

que nunca poderá ver se apartada.

Ela só, viu as lágrimas em fio,

que, de uns e d'outros olhos derivadas,

s'acrescentaram em grande e largo rio.

Ela viu as palavras magoadas

que puderam tornar o fogo frio,

e dar descanso às almas condenadas.

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oces lembranças da passada glória,

que me tirou Fortuna roubadora,

deixai me repousar em paz ü'hora,

que comigo ganhais pouca vitória.

Impressa tenho n'alma larga história

deste passado bem que nunca fora;

ou fora, e não passara; mas já agora

em mim não pode haver mais que a memória.

Vivo em lembranças, mouro d'esquecido,

de quem sempre devera ser lembrado,

se lhe lembrara estado tão contente.

Oh! quem tornar pudera a ser nascido!

Soubera me lograr do bem passado,

se conhecer soubera o mal presente.

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mor, co a esperança já perdida,

teu soberano templo visitei;

por sinal do naufrágio que passei,

em lugar dos vestidos, pus a vida.

Que queres mais de mim, que destruída

me tens a glória toda que alcancei?

Não cuides de forçar me, que não sei

tornar a entrar onde não há saída.

Vês aqui alma, vida e esperança,

despojos doces de meu bem passado,

enquanto quis aquela que eu adoro:

nelas podes tomar de mim vingança;

e se inda não estás de mim vingado,

contenta te com as lágrimas que choro.

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ales, que contra mim vos conjurastes,

quanto há de durar tão duro intento?

Se dura porque dura meu tormento,

baste vos quanto já me atormentastes.

Mas se assi perfiais porque cuidastes

derrubar meu tão alto pensamento,

mais pode a causa dele, em que o sustento,

que vós, que dela mesma o ser tomastes.

E, pois vossa tenção, com minha morte,

há de acabar o mal destes amores,

dai já fim a um tormento tão comprido,

porque d'ambos contente seja a sorte:

vós, porque me acabastes, vencedores;

e eu, porque acabei de vós vencido.

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m prisões baixas fui um tempo atado,

vergonhoso castigo de meus erros;

inda agora arrojando levo os ferros

que a Morte, a meu pesar, tem já quebrado.

Sacrifiquei a vida a meu cuidado,

que Amor não quer cordeiros, nem bezerros;

vi mágoas, vi misérias, vi desterros:

parece me que estava assi ordenado.

Contentei me com pouco, conhecendo

que era o contentamento vergonhoso,

só por ver que cousa era viver ledo.

Mas minha estrela, que eu já'gora entendo,

a Morte cega, e o Caso duvidoso,

me fizeram de gostos haver medo.

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ara minha inimiga, em cuja mão

pôs meus contentamentos a ventura,

faltou te a ti na terra sepultura,

porque me falte a mim consolação.

Eternamente as águas lograrão

a tua peregrina fermosura;

mas, enquanto me a mim a vida dura,

sempre viva em minh'alma te acharão.

E se meus rudos versos podem tanto

que possam prometer te longa história

daquele amor tão puro e verdadeiro,

celebrada serás sempre em meu canto;

porque enquanto no mundo houver memória,

será minha escritura teu letreiro.

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oi já num tempo doce cousa amar,

enquanto m'enganava a esperança;

O coração, com esta confiança,

todo se desfazia em desejar.

Ó vão, caduco e débil esperar!

Como se desengana üa mudança!

Que, quanto é mor a bem aventurança,

tanto menos se crê que há de durar!

Quem já se viu contente e prosperado,

vendo se em breve tempo em pena tanta,

razão tem de viver bem magoado.

Porém quem tem o mundo exprimentado,

não o magoa a pena nem o espanta,

que mal se estranhará o costumado.

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ue poderei do mundo já querer,

que naquilo em que pus tamanho amor,

não vi senão `desgosto e desamor,

e morte, enfim, que mais não pode ser!

Pois vida me não farta de viver,

pois já sei que não mata grande dor,

se cousa há que mágoa dê maior,

eu a verei; que tudo posso ver.

A morte, a meu pesar, me assegurou

de quanto mal me vinha; já perdi

o que perder o medo me ensinou.

Na vida desamor somente vi,

na morte a grande dor que me ficou:

parece que para isto só nasci!

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ois meus olhos não cansam de chorar

tristezas, que não cansam de cansar me;

pois não abranda o fogo em que abrasar me

pôde quem eu jamais pude abrandar;

não canse o cego Amor de me guiar

a parte donde não saiba tornar me;

nem deixe o mundo todo de escutar me,

enquanto me a voz fraca não deixar.

E se nos montes, rios, ou em vales,

piedade mora, ou dentro mora Amor

em feras, aves, plantas, pedras, águas,

ouçam a longa história de meus males

e curem sua dor com minha dor;

que grandes mágoas podem curar mágoas.

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m mover d'olhos, brando e piadoso,

sem ver de quê; um riso brando e honesto,

quase forçado; um doce e humilde gesto,

de qualquer alegria duvidoso;

um despejo quieto e vergonhoso;

um repouso gravíssimo e modesto;

üa pura bondade, manifesto

indício da alma, limpo e gracioso;

um encolhido ousar; üa brandura;

um medo sem ter culpa; um ar sereno;

um longo e obediente sofrimento;

esta foi a celeste fermosura

da minha Circe, e o mágico veneno

que pôde transformar meu pensamento.

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ermosos olhos que na idade nossa

mostrais do Céu certissimos sinais,

se quereis conhecer quanto possais,

olhai me a mim, que sou feitura vossa.

Vereis que de viver me desapossa

aquele riso com que a vida dais;

vereis como de Amor não quero mais,

por mais que o tempo corra e o dano possa.

E se dentro nest'alma ver quiserdes,

como num claro espelho, ali vereis

também a vossa, angélica e serena.

Mas eu cuido que só por não me verdes,

ver vos em mim, Senhora, não quereis:

tanto gosto levais de minha pena!

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udam se os tempos, mudam se as vontades,

muda se o ser, muda se a confiança;

todo o mundo é composto de mudança,

tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,

diferentes em tudo da esperança;

do mal ficam as mágoas na lembrança,

e do bem (se algum houve), as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,

que já coberto foi de neve fria, e, enfim,

converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar se cada dia,

outra mudança faz de mor espanto,

que não se muda já como soía.

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onversação doméstica afeiçoa,

ora em forma de boa e sã vontade,

ora de üa amorosa piedade,

sem olhar qualidade de pessoa.

Se despois, porventura, vos magoa

com desamor e pouca lealdade,

logo vos faz mentira da verdade

o brando Amor, que tudo em si perdoa.

Não são isto que falo conjecturas,

que o pensamento julga na aparência,

por fazer delicadas escrituras.

Metido tenho a mão na consciência,

e não falo senão verdades puras

que me ensinou a viva experiência.

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espois que quis Amor que eu só passasse

quanto mal já por muitos repartiu,

entregou me à Fortuna, porque viu

que não tinha mais mal que em mim mostrasse.

Ela, porque do Amor se avantajasse

no tormento que o Céu me permitiu,

o que para ninguém se consentiu,

para mim só mandou que se inventasse.

Eis me aqui vou com vário som gritando,

copioso exemplário para a gente

que destes dous tiranos é sujeita,

desvarios em versos concertando.

Triste quem seu descanso tanto estreita,

que deste tão pequeno está contente!

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ndados fios d'ouro reluzente,

que, agora da mão bela recolhidos,

agora sobre as rosas estendidos,

fazeis que sua beleza se acrecente;

Olhos, que vos moveis tão docemente,

em mil divinos raios entendidos,

se de cá me levais alma e sentidos,

que fora, se de vós não fora ausente?

Honesto riso, que entre a mor fineza

de perlas e corais nasce e parece,

se n'alma em doces ecos não o ouvisse!

Se imaginando só tanta beleza

de si, em nova glória, a alma se esquece,

que fará quando a vir? Ah! quem a visse!

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em sei, Amor, que é certo o que receio;

mas tu, porque com isso mais te apuras,

de manhoso mo negas, e mo juras

no teu dourado arco; e eu to creio.

A mão tenho metida no teu seio,

e não vejo meus danos às escuras;

e tu contudo tanto me asseguras,

que me digo que minto, e que me enleio.

Não somente consinto neste engano,

mas inda to agradeço, e a mim me nego

tudo o que vejo e sinto de meu dano.

Oh! poderoso mal a que me entrego!

Que, no meio do justo desengano,

me possa inda cegar um Moço cego!

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om grandes esperanças já cantei,

com que os deuses no Olimpo conquistara;

despois vim a chorar porque cantara

e agora choro já porque chorei.

Se cuido nas passadas que já dei,

custa me esta lembrança só tão cara

que a dor de ver as mágoas que passara

tenho pola mor mágoa que passei.

Pois logo, se está claro que um tormento

dá causa que outro n'alma se acrescente,

já nunca posso ter contentamento.

Mas esta fantasia se me mente?

Oh! ocioso e cego pensamento!

Ainda eu imagino em ser contente?

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98

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quela que, de pura castidade,

de si mesma tomou cruel vingança

por üa breve e súbita mudança,

contrária a sua honra e qualidade

(venceu à fermosura a honestidade,

venceu no fim da vida a esperança

porque ficasse viva tal lembrança,

tal amor, tanta fé, tanta verdade!),

de si, da gente e do mundo esquecida,

feriu com duro ferro o brando peito,

banhando em sangue a força do tirano.

[Oh!] estranha ousadia ! estranho feito !

Que, dando breve morte ao corpo humano,

tenha sua memória larga vida!

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99

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o tempo que de Amor viver soía,

nem sempre andava ao remo ferrolhado;

antes agora livre, agora atado,

em várias flamas variamente ardia.

Que ardesse num só fogo, não queria

O Céu, porque tivesse exprimentado

que nem mudar as causas ao cuidado

mudança na ventura me faria.

E se algum pouco tempo andava isento,

foi como quem co peso descansou,

por tornar a cansar com mais alento.

Louvado seja Amor em meu tormento,

pois para passatempo seu tomou

este meu tão cansado sofrimento!

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100

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uando de minhas mágoas a comprida

maginação os olhos me adormece,

em sonhos aquela alma me aparece

que para mim foi sonho nesta vida.

Lá nüa soïdade, onde estendida

a vista pelo campo desfalece,

corro par'ela; e ela então parece

que mais de mim se alonga, compelida.

Brado: Não me fujais, sombra benina!

Ela (os olhos em mim cum brando pejo,

como quem diz que já não pode ser),

torna a fugir-me; e eu, gritando: Dina...

antes que diga mene, alardo, e vejo

que nem um breve engano posso ter.

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101

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h! minha Dinamene! Assi deixaste

quem não deixara nunca de querer-te?

Ah! Ninfa! Já não posso ver-te,

tão asinha esta vida desprezaste!

Como já para sempre te apartaste

de quem tão longe estava de perder-te?

Puderam estas ondas defender-te,

que não visses quem tanto magoaste?

Nem falar-te somente a dura morte

me deixou, que tão cedo o negro manto

em teus olhos deitado consentiste!

Ó mar, ó Céu, ó minha escura sorte!

Que pena sentirei, que valha tanto,

que inda tenho por pouco o viver triste?

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102

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uem fosse acompanhando juntamente

por esses verdes campos a avezinha

que, despois de perder um bem que tinha,

não sabe mais que cousa é ser contente!

[E] quem fosse apartando-se da gente,

ela, por companheira e por vizinha,

me ajudasse a chorar a pena minha,

eu a ela o pesar que tanto sente!

Ditosa ave! que, ao menos, se a Natura

a seu primeiro bem não dá segundo,

dá-lhe o ser triste a seu contentamento.

Mas triste quem de longe quis ventura,

que, para respirar, lhe falte o vento,

e, para tudo, enfim, lhe falte o mundo!

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103

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antando estava um dia bem seguro quando,

passando, Sílvio me dizia

(Sílvio, pastor antigo, que sabia

pelo canto das aves o futuro):

—Méris, quando quiser o fado escuro,

oprimir-te virão em um só dia

dous lobos; logo a voz e a melodia

te fugirão, e o som suave e puro.

Bem foi assi: porque um me degolou

quanto gado vacum pastava e tinha,

de que grandes soldadas esperava;

E outro por meu dano me matou

a cordeira gentil que eu tanto amava,

perpétua saudade da alma minha!

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104

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orrem turvas as águas deste rio,

que as do Céu e as do monte as enturbaram;

os campos florecidos se secaram,

intratável se fez o vale, e frio.

Passou o Verão, passou o ardente Estio,

üas cousas por outras se trocaram;

os fementidos Fados já deixaram

do mundo o regimento, ou desvario.

Tem o tempo sua ordem já sabida;

o mundo, não; mas anda tão confuso,

que parece que dele Deus se esquece.

Casos, opiniões, natura e uso

fazem que nos pareça desta vida

que não há nela mais que o que parece.

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ulga-me a gente toda por perdido,

vendo-me, tão entregue a meu cuidado,

andar sempre dos homens apartado,

e dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,

e quase que sobre ele ando dobrado,

tenho por baixo, rústico, enganado,

quem não é com meu mal engrandecido.

Vão revolvendo a terra, o mar e o vento,

busquem riquezas, honras a outra gente,

vencendo ferro, fogo, frio e calma;

que eu só em humilde estado me contento,

de trazer esculpido eternamente

vosso fermoso gesto dentro n'alma.

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céu, a terra, o vento sossegado...

As ondas, que se estendem pela areia...

Os peixes, que no mar o sono enfreia...

O nocturno silêncio repousado...

O pescador Aónio, que, deitado

onde co vento a água se meneia,

chorando, o nome amado em vão nomeia,

que não pode ser mais que nomeado:

Ondas (dezia), antes que Amor me mate,

torna-me a minha Ninfa, que tão cedo

me fizestes à morte estar sujeita.

Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;

move-se brandamente o arvoredo;

leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.

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ue me quereis, perpétuas saudades?

Com que esperança ainda me enganais?

Que o tempo que se vai não torna mais,

e se torna, não tornam as idades.

Razão é já, ó anos!, que vos vades,

porque estes tão ligeiros que passais,

nem todos para um gosto são iguais,

nem sempre são conformes as vontades.

Aquilo a que já quis é tão mudado

que quase é outra causa: porque os dias

têm o primeiro gosto já danado.

Esperanças de novas alegrias

não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,

que do contentamento são espias.

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rros meus, má fortuna, amor ardente

em minha perdição se conjuraram;

os erros e a fortuna sobejaram,

que para mim bastava o amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente

a grande dor das cousas que passaram,

que as magoadas iras me ensinaram

a nao querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;

dei causa que a Fortuna castigasse

as minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.

Oh! quem tanto pudesse que fartasse

este meu duro génio de vinganças!

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u cantei já, e agora vou chorando

o tempo que cantei tão confiado;

parece que no canto já passado

se estavam minhas lágrimas criando.

Cantei; mas se me alguém pergunta: —Quando?

—Não sei; que também fui nisso enganado.

É tão triste este meu presente estado

que o passado, por ledo, estou julgando.

Fizeram-me cantar, manhosamente,

contentamentos não, mas confianças;

cantava, mas já era ao som dos ferros.

De quem me queixarei, que tudo mente?

Mas eu que culpa ponho às esperanças

onde a Fortuna injusta é mais que os erros?

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a desesperação já repousava

o peito longamente magoado,

e, com seu dano eterno concertado,

já não temia, já não desejava;

quando üa sombra vã me assegurava

que algum bem me podia estar guardado

em tão fermosa imagem que o treslado

n'alma ficou, que nela se enlevava.

Que crédito que dá tão facilmente

o coração áquilo que deseja,

quando lhe esquece o fero seu destino!

Oh! deixem-me enganar, que eu sou

contente; que, posto que maior meu dano seja,

fica-me a glória já do que imagino.

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u vivia de lágrimas isento,

num engano tão doce e deleitoso

que em que outro amante fosse mais ditoso,

não valiam mil glórias um tormento.

Vendo-me possuir tal pensamento,

de nenhüa riqueza era envejoso;

vivia bem, de nada receoso,

com doce amor e doce sentimento.

Cobiçosa, a Fortuna me tirou

deste meu tão contente e alegre estado,

e passou-me este bem, que nunca fora:

em troco do qual bem só me deixou

lembranças, que me matam cada hora,

trazendo-me à memória o bem passado.

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ndo o triste pastor todo embebido

na sombra de seu doce pensamento,

tais queixas espalhava ao leve vento

cum brando suspirar da alma saído:

—A quem me queixarei, cego, perdido,

pois nas pedras não acho sentimento?

Com quem falo? A quem digo meu tormento

que onde mais chamo, sou menos ouvido?

Oh! bela Ninfa, porque não respondes?

Porque o olhar-me tanto me encareces?

Porque queres que sempre me querele?

Eu quanto mais te vejo, mais te escondes!

Quanto mais mal me vês, mais te endureces!

Assi que co mal cresce a causa dele.

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embranças que lembrais meu bem passado

para que sinta mais o mal presente,

deixai-me (se quereis) viver contente,

não me deixeis morrer em tal estado.

Mas se também de tudo está ordenado

viver (como se vê) tão descontente,

venha (se vier) o bem por acidente,

e dê a morte fim a meu cuidado.

Que muito milhor é perder a vida,

perdendo-se as lembranças da memória,

pois fazem tanto dano ao pensamento.

Assi que nada perde, quem perdida

a esperança traz de sua glória,

se esta vida há-de ser sempre em tormento.

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h! Fortuna cruel! Ah! duros Fados!

Quão asinha em meu dano vos mudastes!

Passou o tempo que me descansastes,

agora descansais com meus cuidados.

Deixastes-me sentir os bens passados,

para mor dor da dor que me ordenastes;

então nü'hora juntos mos levastes,

deixando em seu lugar males dobrados.

Ah! quanto milhor fora não vos ver,

gostos, que assi passais tão de corrida,

que fico duvidoso se vos vi:

sem vós já me não fica que perder,

se não se for esta cansada vida,

que por mor perda minha não perdi.

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h! imiga cruel, que apartamento

é este que fazeis da pátria terra?

Quem do paterno ninho vos desterra,

glória dos olhos, bem do pensamento?

Is tentar da fortuna o movimento

e dos ventos cruéis a dura guerra?

Ver brenhas d'água, e o mar feito em serra,

levantado de um vento e d'outro vento?

Mas já que vos partis, sem vos partirdes,

para convosco o Céu tanta ventura,

que seja mor que aquela que esperardes.

E só nesta verdade ide segura:

que ficam mais saudades com partirdes,

do que breves desejos de chegardes.

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queles claros olhos que chorando

ficavam quando deles me partia,

agora que farão? Quem mo diria?

Se porventura estarão em mim cuidando?

Se terão na memória, como ou quando

deles me vim tão longe de alegria?

Ou s'estarão aquele alegre dia

que torne a vê-los, n'alma figurando?

Se contarão as horas e os momentos?

Se acharão num momento muitos anos?

Se falarão co as aves e cos ventos?

Oh! bem-aventurados fingimentos,

que, nesta ausência, tão doces enganos

sabeis fazer aos tristes pensamentos!

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uando cuido no tempo que, contente,

vi as pérolas, neve, rosa e ouro,

como quem vê por sonhos um tesouro,

parece tenho tudo aqui presente.

Mas tanto que se passa este acidente,

e vejo o quão distante de vós mouro,

temo quanto imagino por agouro,

porque d'imaginar também me ausente.

Já foram dias em que por ventura

vos vi, Senhora (se, assi dizendo, posso

co coração seguro estar sem medo);

Agora, em tanto mal não mo assegura

a própria fantasia e nojo vosso:

eu não posso entender este segredo!

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uem vos levou de mim, saudoso estado,

que tanta sem-razão comigo usastes?

Quem foi, por quem tão presto me negastes,

esquecido de todo o bem passado?

Trocastes-me um descanso em um cuidado

tão duro, tão cruel, qual m'ordenastes;

a fé, que tínheis dado, me negastes,

quando mais nela estava confiado.

Vivia sem receio deste mal;

Fortuna, que tem tudo a sua mercê,

amor com desamor me revolveu.

Bem sei que neste caso nada val,

que quem naceu chorando, justo é

que pague com chorar o que perdeu.

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enhora já dest'alma, perdoai

de um vencido de Amor os desatinos,

e sejam vossos olhos tão beninos

com este puro amor, que d'alma sai.

A minha pura fé somente olhai,

e vede meus extremos se são finos;

e se de algüa pena forem dinos,

em mim, Senhora minha, vos vingai.

Não seja a dor que abrasa o triste peito

causa por onde pene o coração,

que tanto em firme amor vos é sujeito.

Guardai-vos do que alguns, Dama, dirão,

que, sendo raro em tudo vosso objeito,

possa morar em vós ingratidão.

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á nesta Babilónia, donde mana

matéria a quanto mal o mundo cria;

cá onde o puro Amor não tem valia,

que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

cá, onde o mal se afina, e o bem se dana,

e pode mais que a honra a tirania;

cá, onde a errada e cega Monarquia

cuida que um nome vão a desengana;

cá, neste labirinto, onde a nobreza

com esforço e saber pedindo vão

às portas da cobiça e da vileza;

cá neste escuro caos de confusão,

cumprindo o curso estou da natureza.

Vê se me esquecerei de ti, Sião!

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izei, Senhora, da Beleza ideia:

para fazerdes esse áureo crino,

onde fostes buscar esse ouro fino?

de que escondida mina ou de que veia?

Dos vossos olhos essa luz Febeia,

esse respeito, de um império dino?

Se o alcançastes com saber divino,

se com encantamentos de Medeia?

De que escondidas conchas escolhestes

as perlas preciosas orientais

que, falando, mostrais no doce riso?

Pois vos formastes tal, como quisestes,

vigiai-vos de vós, não vos vejais,

fugi das fontes: lembre-vos Narciso.

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oce contentamento já passado,

em que todo meu bem já consistia,

quem vos levou de minha companhia

e me deixou de vós tão apartado?

Quem cuidou que se visse neste estado

naquelas breves horas de alegria,

quando minha ventura consentia

que de enganos vivesse meu cuidado?

Fortuna minha foi, cruel e dura,

aquela que causou meu perdimento,

com a qual ninguém pode ter cautela.

Nem se engane nenhüa criatura,

que não pode nenhum impedimento

fugir do que [lhe] ordena sua estrela.

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oce sonho, suave e soberano,

se por mais longo tempo me durara!

Ah! quem de sonho tal nunca acordara,

pois havia de ver tal desengano!

Ah! deleitoso bem! ah! doce engano!

Se por mais largo espaço me enganara!

Se então a vida mísera acabara,

de alegria e prazer morrera ufano.

Ditoso, não estando em mim, pois tive,

dormindo, o que acordado ter quisera.

Olhai com que me paga meu destino!

Enfim, fora de mim, ditoso estive.

Em mentiras ter dita razão era,

pois sempre nas verdades fui mofino.

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nquanto Febo os montes acendia

do Céu com luminosa claridade,

por evitar do ócio a castidade

na caça o tempo Délia despendia.

Vénus, que então de furto descendia,

por cativar de Anquises a vontade,

vendo Diana em tanta honestidade,

quase zombando dela, lhe dizia:

- Tu vás com tuas redes na espessura

os fugitivos cervos enredando,

mas as minhas enredam o sentido.

—Melhor é (respondia a deusa pura)

nas redes leves cervos ir tomando

que tomar-te a ti nelas teu marido.

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ste amor que vos tenho, limpo e puro,

de pensamento vil nunca tocado,

em minha tenra idade começado,

tê-lo dentro nesta alma só procuro.

De haver nele mudança estou seguro,

sem temer nenhum caso ou duro Fado,

nem o supremo bem ou baixo estado,

nem o tempo presente nem futuro.

A bonina e a flor asinha passa;

tudo por terra o Inverno e Estio

deita, só para meu amor é sempre Maio.

Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa,

e que essa ingratidão tudo me enjeita,

traz este meu amor sempre em desmaio.

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ortuna em mim guardando seu direito

em verde derrubou minha alegria.

Oh! quanto se acabou naquele dia,

cuja triste lembrança arde em meu peito!

Quando contemplo tudo, bem suspeito

que a tal bem, tal descanso se devia,

por não dizer o mundo que podia

achar-se em seu engano bem perfeito.

Mas se a Fortuna o fez por descontar-me

tamanho gosto , em cujo sentimento

a memória não faz senão matar-me ,

que culpa pode dar-me o sofrimento,

se a causa que ele tem de atormentar-me,

eu tenho de sofrer o seu tormento?

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á não sinto, Senhora, os desenganas

com que minha afeição sempre tratastes,

nem ver o galardão que me negastes,

merecido por fé, há tantos anos.

A mágoa choro só, só choro os danos

de ver por quem, Senhora, me trocastes;

mas em tal caso vós só me vingastes

de vossa ingratidão, vossos enganos.

Dobrada glória dá qualquer vingança,

que o ofendido toma do culpado,

quando se satisfaz com cousa justa;

mas eu de vossos males e esquivança,

de que agora me vejo bem vingado,

não o quisera eu tanto à vossa custa.

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emória de meu bem, cortado em flores

por ordem de meus tristes e maus Fados,

deixai-me descansar com meus cuidados

nesta inquietação de meus amores.

Basta-me o mal presente, e os temores

dos sucessos que espero infortunados,

sem que venham, de novo, bens passados

afrontar meu repouso com suas dores.

Perdi nua hora quanto em termos

tão vagarosos e largos alcancei;

leixai-me, pois, lembranças desta glória.

Cumpre acabe a vida nestes ermos,

porque neles com meu mal acabarei

mil vidas, não ua só, dura memória!

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a ribeira do Eufrates assentado,

discorrendo me achei pela memória

aquele breve bem, aquela glória,

que em ti, doce Sião, tinha passado.

Da causa de meus males perguntado

me foi: Como não cantas a história

de teu passado bem, e da vitória

que sempre de teu mal hás alcançado?

Não sabes, que a quem canta se lhe esquece

o mal, inda que grave e rigoroso?

Canta, pois, e não chores dessa sorte.

Respondo com suspiros: Quando crece

a muita saudade, o piadoso

remédio é não cantar senso a morte.

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um tão alto lugar, de tanto preço,

este meu pensamento posto vejo,

que desfalece nele inda o desejo,

vendo quanto por mim o desmereço.

Quando esta tal baixesa em mim conheço,

acho que cuidar nele é grão despejo,

e que morrer por ele me é sobejo

e mor bem para mim, do que mereço.

O mais que natural merecimento

de quem me causa um mal tão duro e forte,

o faz que vá crecendo de hora em hora.

Mas eu não deixarei meu pensamento,

porque inda que este mal me causa a morte,

Un bel morir tutta la vita onora.

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dia em que eu nasci, moura e pereça,

não o queira jamais o tempo dar,

não torne mais ao mundo, e, se tornar,

eclipse nesse passo o sol padeça.

luz lhe falte, o sol se [lhe] escureça,

mostre o mundo sinais de se acabar,

nasçam-lhe monstros, sangue chova

o ar, a mãe ao próprio filho não conheça.

s pessoas pasmadas de ignorantes,

as lágrimas no rosto, a cor perdida,

cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,

que este dia deitou ao mundo a vida

mais desgraçada que jamais se viu!

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lhos fermosos, em quem quis Natura

mostrar do seu poder altos sinais,

se quiserdes saber quanto possais,

vede-me a mim, que sou vossa feitura.

Pintada em mim se vê vossa figura,

no que eu padeço retratada estais;

que, se eu passo tormentos desiguais,

muito mais pode vossa fermosura.

De mim não quero mais que o meu desejo:

ser vosso; e só de ser vosso me arreio,

porque o vosso penhor em mim se assele.

!Tão me lembro de mim quando vos vejo,

nem do mundo; e não erro, porque creio,

que, em lembrar-me de vós, cumpro com ele.

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tempo acaba o ano, o mês e a hora,

a força, a arte, a manha, a fortaleza;

o tempo acaba a fama e a riqueza,

o tempo o mesmo tempo de si chora.

tempo busca e acaba o onde mora

qualquer ingratidão, qualquer dureza;

mas neo pode acabar minha tristeza,

enquanto não quiserdes vós, Senhora.

O tempo o claro dia torna escuro,

e o mais ledo prazer em choro triste;

o tempo a tempestade em grã bonança.

Mas de abrandar o tempo estou seguro

o peito de diamante, onde consiste

a pena e o prazer desta esperança.

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osto me tem Fortuna em tal estado,

e tanto a seus pés me tem rendido!

Não tenho que perder já, de perdido,

não tenho que mudar já, de mudado.

Todo o bem para mim é acabado;

daqui dou o viver já por vivido;

que, aonde o mal é tão conhecido,

também o viver mais será escusado.

Se me basta querer, a morte quero,

que bem outra esperança não convém,

e curarei um mal com outro mal

E, pois do bem tão pouco bem espero,

já que o mel este só remédio tem,

não me culpem em querer remédio tal.

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uando se vir com água o fogo arder,

e misturar co dia a noite escura,

e a terra se vir naquela altura

em que se vem os Céus prevalecer;

o Amor por razão mandado ser,

e a todos ser igual nossa ventura,

com tal mudança, vossa formosura

então a poderei deixar de ver.

Porém não sendo vista esta mudança

no mundo (como claro está não ver-se),

não se espere de mim deixar de ver-vos.

Que basta estar em vós minha esperança,

o ganho de minha alma, e o perder-se,

para não deixar nunca de querer-vos.

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fermosura fresca serra,

e a sombra dos verdes castanheiros,

o manso caminhar destes ribeiros,

donde toda a tristeza se desterra;

o rouco som do mar, a estranha terra,

o esconder do sol pelos outeiros,

o recolher dos gados derradeiros,

das nuvens pelo ar a branda guerra;

enfim, tudo o que a rara natureza

com tanta variedade nos ofrece,

me está (se não te vejo) magoando.

Sem ti, tudo me enoja e me aborrece;

sem ti, perpetuamente estou passando

nas mores alegrias, mor tristeza.

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iana prateada, esclarecia

com a luz que do claro Febo ardente,

por ser de natureza transparente,

em si, como em espelho, reluzia.

Cem mil milhões de graças lhe influía,

quando me apareceu o excelente

raio de vosso aspecto, diferente

em graça e em amor do que soía.

Eu, vendo-me tão cheio de favores,

e tão propínquo a ser de todo vosso,

louvei a hora clara, e a noite escura,

Sois nela destes cor a meus amores;

donde colijo claro que não posso

de dia para vós já ter ventura.

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uando a suprema dor muito me aperta,

se digo que desejo esquecimento,

é força que se faz ao pensamento,

de que a vontade livre desconserta.

Assi, de erro tão grave me desperta

a luz do bem regido entendimento,

que mostra ser engano ou fingimento

dizer que em tal descanso mais se acerta.

Porque essa própria imagem, que na mente

me representa o bem de que careço,

faz-mo de um certo modo ser presente.

Ditosa é, logo, a pena que padeço,

pois que da causa dela em mim se sente

um bem que, inda sem ver-vos, reconheço.

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uando, Senhora, quis Amor que amasse

essa grã perfeição e gentileza,

logo deu por sentença que a crueza

em vosso peito amor acrescentasse.

Determinou que nada me apartasse,

nem desfavor cruel, nem aspereza;

mas que em minha raríssima firmeza

vossa isenção cruel se executasse.

E, pois tendes aqui oferecida e

sta alma vossa a vosso sacrifício,

acabai de fartar vossa vontade.

Não lhe alargueis, Senhora, mais a vida;

acabará morrendo em seu oficio,

sua fé defendendo e lealdade.

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140

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ue pode já fazer minha ventura

que seja para meu contentamento.,

Ou como fazer devo fundamento

de cousa que o não tem, nem é segura?

Que pena pode ser tão certa e dura

que possa ser maior que meu tormento?

Ou como receará meu pensamento

os males, se com eles mais se apura?

Como quem se costuma de pequeno

com peçonha criar por mão ciente,

da qual o uso já o tem seguro;

assi de acostumado co veneno,

o uso de sofrer meu mal presente

me faz não sentir já nada o futuro.

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141

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uem presumir, Senhora, de louvar-vos

com humano saber, e não divino,

ficará de tamanha culpa dino

quamanha ficais tendo em contemplar-vos.

Não pretenda ninguém de louvar dar-vos,

por mais que raro seja e peregrino:

que vossa fermosura eu imagino

que Deus a Ele só quis comparar-vos.

Ditosa esta alma vossa, que quisestes

em posse pôr de prenda tão subida,

como, Senhora, foi a que me destes.

Melhor a guardarei que a própria vida;

que, pois mercê tamanha me fizestes,

de mim será jamais nunca esquecida.

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142

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e de vosso fermoso e lindo gesto

nasceram lindas flores para os olhos,

que para o peito são duros abrolhos,

em mim se vê mui claro e manifesto:

pois vossa fermosura e vulto honesto

em os ver, de boninas vi mil molhos;

mas se meu coração tivera antolhos,

não vira em vós seu dano o mal funesto.

Um mal visto por bem, um bem tristonho,

que me traz elevado o pensamento

em mil, porém diversas, fantasias,

nas quais eu sempre ando, e sempre sonho;

e vós não cuidais mais que em meu tormento,

em que fundais as vossas alegrias.

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143

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empre, cruel Senhora, receei,

medindo vossa grã desconfiança,

que desse em desamor vossa tardança,

e que me perdesse eu, pois vos amei.

Perca-se, enfim, já tudo o que esperei,

pois noutro amor já tendes esperança.

Tão patente será vossa mudança,

quanto eu encobri sempre o que vos dei.

Dei-vos a alma, a vida e o sentido;

de tudo o que em mim há vos fiz s

enhora. Prometeis e negais o mesmo Amor.

Agora tal estou que, de perdido,

não sei por onde vou, mas algü'hora

vos dará tal lembrança grande dor.

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144

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ustenta meu viver üa esperança

derivada de um bem tão desejado

que, quando nela estou mais confiado,

mor dúvida me põe qualquer mudança.

E quando inda este bem na mor pujança

de seus gostos me tem mais enlevado,

me atormenta então ver eu que, alcançado

será por quem de vós não tem lembrança.

Assi, que nestas redes enlaçado,

a penas dou a vida , sustentando

üa nova matéria a meu cuidado .

Suspiros d'alma tristes arrancando,

dos silvos de ua pedra acompanhado,

estou matérias tristes lamentando.

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145

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encido está de Amor

o mais que pode ser

meu pensamento

vencida a vida,

sujeita a vos servir

oferecendo tudo

Contente deste bem,

ou hora em que se viu

mil vezes desejando

outra vez renovar

Com essa pretensão

a causa que me guia

tão estranha, tão doce,

Jurando não seguir

votando só por vós

ou ser no vosso amor

instituída,

a vosso intento.

louva o momento,

tão bem perdida;

a tal ferida,

seu perdimento.

está segura

nesta empresa,

honrosa e alta.

outra ventura,

rara firmeza,

achado em falta.

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146

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l vaso reluciente y cristalino,

de Ángeles agua clara y olorosa,

de blancas e da ornado y fresca rosa

ligado con cabellos de oro fino;

bien claro parecía el don divino

labrado por la mano artificiosa

de aquella blanca Ninfa, graciosa

más que el rubio lucero matutino.

Nel vaso vuestro cuerpo se afigura,

raxado de los blandos miembros bellos,

y en el agua vuestra ánima pura;

la seda es la blancura, e los cabellos

son las prisiones, y la ligadura

con que mi libertad fue asida dellos.

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147

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ues lágrimas tratáis, mis ojos tristes,

y en lágrimas pasáis la noche y día,

mirad si es llanto este que os envia

aquella por quien vos tantas vertistes

Sentid, mis ojos, bien esta que vistes,

y si ella lo es, oh gran ventura mia!

por muy bien empleadas las habría

mil cuentas que por esta sola distes.

Mas una cosa mucho deseada,

aunque se vea cierta, no es creída,

cuanto más esta, que me es enviada.

Pero digo que aunque sea fingida,

que basta que por lágrima sea dada,

porque sea por lágrima tenida.

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148

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e a Fortuna inquieta e mal olhada,

que a justa lei do Céu consigo infama,

a vida quieta, que ela mais desama,

me concedera, honesta e repousada;

pudera ser que a Musa, alevantada

com luz de mais ardente e viva flama.

fizera ao Tejo lá na pátria cama

adormecer co som da lira amada.

Porém, pois o destino trabalhoso,

que me escurece a Musa fraca e lassa,

louvor de tanto preço não sustenta;

a vossa de louvar-me pouco escassa,

outro sujeito busque valeroso,

tal qual em vós ao mundo se apresenta.

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149

[À morte de D. António de Noronha]

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m flor vos arrancou, de então crecida

(Ah! senhor dom António!), a dura sorte,

donde fazendo andava o braço forte

a fama dos Antigos esquecida.

üa só razão tenho conhecida

com que tamanha mágoa se conforte:

que, pois no mundo havia honrada morte,

que não podíeis ter mais larga a vida.

Se meus humildes versos podem tanto

que co desejo meu se iguale a arte,

especial matéria me sereis.

E, celebrado em triste e longo canto,

se morrestes nas mãos do fero Marte,

na memória das gentes vivereis.

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150

À sepultura de D. Fernando de Castro

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ebaixo desta pedra está metido,

das sanguinosas armas descansado,

o capitão ilustre, assinalado,

Dom Fernando de Castro esclarecido.

Por todo o Oriente tão temido,

e da enveja da fama tão cantado,

este, pois, só agora sepultado,

está aqui já em terra convertido.

Alegra-te, ó guerreira Lusitânia

por este Viriato que criaste,

e chora-o, perdido, eternamente.

Exemplo toma nisto de Dardânia;

que, se a Roma co ele aniquilaste,

nem por isso Cartago está contente.

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151

A D. Simão da Silveira, em resposta de outro seu,

pelos mesmos consoantes, mandando-lhe perguntar

quem fora o primeiro Poeta que fizera Sonetos

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e um tão felice engenho, produzido

de outro, que o claro Sol não viu maior,

é trazer cousas altas no sentido,

todas dinas de espanto e de louvor.

Museu foi antiquíssimo escritor,

filósofo e poeta conhecido,

discípulo do Músico amador

que co som teve o Inferno suspendido.

Este pôde abalar o monte mudo,

cantando aquele mal, que eu já passei,

do mancebo de Abido mal sisudo.

Agora contam já (segundo achei),

Passo, e o nosso Boscão, que disse tudo

dos segredos que move o cego Rei.

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152

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espois que viu Cibele o corpo humano

do fermoso Átis seu verde pinheiro,

em piedade o vão furar primeiro

convertido, chorou seu grave dano.

E, fazendo a sua dor ilustre engano,

a Júpiter pediu que o verdadeiro

preço da nova palma e do loureiro,

ao seu pinheiro desse, soberano.

Mais lhe concede o filho poderoso

que, as estrelas, subindo, tocar possa,

vendo os segredos lá do Céu superno.

Oh! ditoso Pinheiro! Oh! mais ditoso

quem se vir coroar da folha vossa,

cantando à vossa sombra verso eterno!

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153

Resposta do autor a um Soneto, pelos mesmos consoantes

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e tão divino acento e voz humana,

de tão doces palavras peregrinas,

bem sei que minhas obras não são dinas,

que o rudo engenho meu me desengana.

Mas de vossos escritos corre e mana

licor que vence as águas cabalinas;

e convosco do Tejo as flores finas

farão enveja à cópia mantuana.

E pois, a vós de si não sendo avaras,

as filhas de Mnemósine fermosa

partes dadas vos tem, ao mundo caras,

a minha Musa e a vossa tão famosa,

ambas posso chamar ao mundo raras:

a vossa d'alta, a minha d'envejosa.

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154

A o segundo conde de Redondo, D. João Coutinho

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os ilustres antigos que deixaram

tal nome, que igualou fama à memória,

ficou por luz do tempo a larga história

dos feitos em que mais se assinalaram.

Se se com cousas destes cotejaram

mil vossas, cada üa tão notória,

vencera a menor delas a mor glória

que eles em tantos anos alcançaram.

A glória sua foi; ninguém lha tome.

Seguindo cada um vários caminhos,

estátuas levantando no seu Templo.

Vós, honra portuguesa e dos Coutinhos,

ilustre Dom João, com melhor nome

a vós encheis de glória e a nós de exemplo.

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sforço grande, igual ao pensamento;

pensamentos em obras divulgados,

e não em peito timido encerrados

e desfeitos despois em chuva e vento;

animo da cobiça baixa isento,

dino por isso só de altos estados,

fero açoute dos nunca bem domados

povos do Malabar sanguinolento;

gentileza de membros corporais,

ornados de pudica continência,

obra por certo rara de natura:

estas virtudes e outras muitas mais,

dinas todas da homérica eloquência,

jazem debaixo desta sepultura

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156

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ão passes, caminhante! Quem me chama ?

—üa memória nova e nunca ouvida,

de um que trocou finita e humana vida,

por divina, infinita e clara fama.

Quem é que tão gentil louvor derrama?

—Quem derramar seu sangue não duvida

por seguir a bandeira esclarecida

de um capitão de Cristo, que mais ama.

Ditoso fim, ditoso sacrificio,

que a Deus se fez e ao mundo juntamente,

apregoando direi tão alta sorte.

Mais poderás contar a toda a gente,

que sempre deu sua vida claro indício

de vir a merecer tão santa morte.

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o mundo poucos anos, e cansados,

vivi, cheios de vil miséria dura;

foi-me tão cedo a luz do dia escura,

que não vi cinco lustros acabados.

Corri terras e mares apartados

buscando à vida algum remédio ou cura;

mas aquilo que, enfim, não quer ventura,

não o alcançam trabalhos arriscados.

Criou-me Portugal na verde e cara

pátria minha Alenquer; mas ar corruto

que neste meu terreno vaso tinha,

me fez manjar de peixes em ti, bruto

mar, que bates na Abássia fera e avara,

tão longe da ditosa pátria minha!

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ue levas, cruel Morte?- Um claro dia.

- A que horas o tomaste?- Amanhecendo.

- Entendes o que levas?- Não o entendo.

- Pois quem to faz levar?- Quem o entendia.

Seu corpo quem o goza?- A terra fria.

- Como ficou sua luz?- Anoitecendo.

- Lusitânia que diz?- Fica dizendo:

Enfim, não mereci Dona Maria.

Mataste quem a viu?- Já morto estava.

- Que diz o cru Amor?- Falar não ousa.

- E quem o faz calar?- Minha vontade.

Na corte que ficou?- Saudade brava.

- Que fica lá que ver?- Nenhüa cousa;

mas fica que chorar sua beldade.

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horai, Ninfas, os fados poderosos

daquela soberana fermosura!

Onde foram parar na sepultura

aqueles reais olhos graciosos?

Ó bens do mundo, falsos e enganosos!

Que mágoas para ouvir! Que tal figura

jaza sem resplandor na terra dura,

com tal rosto e cabelos tão fermosos!

Das outras que será, pois poder teve

a morte sobre cousa tanto bela

que ela eclipsava a luz do claro dia?

Mas o mundo não era dino dela,

por isso mais na terra não esteve;

ao Céu subiu, que já *se* lhe devia.

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161

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s reinos e os impérios poderosos

que em grandeza no mundo mais cresceram,

ou por valor de esforço floreceram

ou por varões nas letras espantosos.

Teve Grécia Temístocles famosos;

os Cipiões a Roma engrandeceram;

doze pares a França glória deram;

Cides a Espanha, e Laras belicosas.

Ao nosso Portugal (que agora vemos

tão diferente de seu ser primeiro),

os vossos deram honra e liberdade.

E em vós, grão sucessor e novo herdeiro

do braganção estado, há mil extremos

iguais ao sangue, e mores que a idade.

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162

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lustre o dino ramo dos Meneses,

aos quais o prudente e largo Céu

(que errar não sabe), em dote concedeu

rompesse os maométicos arneses;

desprezando a Fortuna e seus reveses,

ide para onde o Fado vos moveu;

erguei flamas no Mar alto Eritreu,

e sereis nova luz aos Portugueses.

Oprimi com tão firme e forte peito

o Pirata insolente, que se espante

e trema Taprobana e Gedrosia.

Dai nova causa à cor do Arabo estreito:

assi que o roxo mar, daqui em diante,

o seja só co sangue de Turquia!

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163

A D. Leonis Pereira

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ós, Ninfas da gangética espessura,

cantai suavemente, em vez sonora,

um grande Capitão, que a roxa Aurora

dos filhos defendeu da noite escura.

Ajuntou-se a caterva negra e dura,

que na Áurea Quersoneso afouta mora,

para lançar do caro ninho fora

aqueles que mais podem que a ventura.

Mas um forte Leão, com pouca gente,

a multidão tão fera como nécia

destruindo castiga e torna fraca.

Pois, ó Ninfas, cantai! que claramente

mais do que Leonidas fez em Grécia,

o nobre Leonis fez em Malaca.

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164

A D. Luís de Ataíde, Vizo-Rei

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ue vençais no Oriente tantos Reis,

que de novo nos deis da Índia o Estado,

que escureceis a fama que ganhado

tinham os que a ganharam a infiéis;

que do tempo tenhais vencido as leis,

que tudo, enfim, vençais co tempo armado,

mais é vencer na pátria, desarmado,

os monstros e as Quimeras que venceis.

E assi, sobre vencerdes tanto imigo,

e por armas fazer que, sem segundo,

vosso nome no mundo ouvido seja,

o que vos dá mais nome inda no mundo,

é vencerdes, Senhor, no Reino amigo,

tantas ingratidões, tão grande enveja!

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165

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ós outros, que buscais repouso certo

na vida, com diversos exercícios;

a quem, vendo do mundo os benefícios,

o regimento seu está encoberto;

dedicai, se quereis, ao desconcerto

novas hontas e cegos sacrifícios;

que, por castigo igual de antigos vícios,

quer Deus que andem as cousas por acerto.

Não caiu neste modo de castigo

quem pôs culpa à Fortuna, quem sòmente

crê que acontecimentos há no mundo.

A grande experiência é grão perigo;

mas o que a Deus é justo e evidente

parece injusto aos homens e profundo.

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166

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erdade, Amor, Razão, Merecimento,

qualquer alma farão segura e forte;

porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte,

têm do confuso mundo o regimento.

Efeitos mil revolve o pensamento

e nao sa ~e a que causa se reporte;

mas sabe que o que é mais que vida e morte,

que não o alcança humano entendimento.

Doctos varões darão razões subidas,

mas são experiências mais provadas,

e por isso é melhor ter muito visto.

Cousas há i que passam sem ser criadas

e cousas criadas há sem ser passadas,

mas o melhor de tudo é crer em Cristo.

[pic]Índice Geral [pic]

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1

Canção

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ermosa e gentil Dama, quando vejo

a testa de ouro e neve, o lindo aspeito,

a boca graciosa, o riso honesto,

o colo de cristal, o branco peito,

de meu não quero mais que meu desejo,

nem mais de vós que ver tão lindo gesto.

Ali me manifesto

por vosso a Deus e ao mundo; ali me inflamo

nas lágrimas que choro,

e de mim, que vos amo,

em ver que soube amar-vos, me namoro;

e fico por mim só perdido, de arte

que hei ciúmes de mim por vossa parte.

Se porventura vivo descontente

por fraqueza d'esprito, padecendo

a doce pena que entender não sei,

fujo de mim e acolho-me, correndo,

à vossa vista; e fico tão contente

que zombo dos tormentos que passei.

De quem me queixarei

se vós me dais a vida deste jeito

nos males que padeço,

senão de meu sujeito,

que não cabe com bem de tanto preço?

Mas inda isso de mim cuidar não posso,

de estar muito soberbo com ser vosso.

Se, por algum acerto, Amor vos erra

por parte do desejo, cometendo

algum nefando e torpe desatino,

se ainda mais que ver, enfim, pretendo,

fraquezas são do corpo, que é de terra,

mas não do pensamento, que é divino.

Se tão alto imagino que de vista

me perco (peco nisto),

desculpa-me o que vejo;

que se, enfim, resisto

contra tão atrevido e vão desejo,

faço-me forte em vossa vista pura,

e armo-me de vossa fermosura.

Das delicadas sobrancelhas pretas

os arcos com que fere, Amor tomou,

e fez a linda corda dos cabelos;

e porque de vós tudo lhe quadrou,

dos raios desses olhos fez as setas

com que fere quem alça os seus, a vê-los.

Olhos que são tão belos

dão armas de vantagem ao Amor,

com que as almas destrui;

porém, se é grande a dor,

co a alteza do mal a restitui;

e as armas com que mata são de sorte

que ainda lhe ficais devendo a morte.

Lágrimas e suspiros, pensamentos,

quem deles se queixar, fermosa Dama,

mimoso está do mal que por vós sente.

Que maior bem deseja quem vos ama

que estar desabafando seus tormentos,

chorando, imaginando docomente?

Quem vive descontente,

não há-de dar alívio a seu desgosto,

porque se lhe agradeça;

mas com alegre rosto

sofra seus males, para que os mereça;

que quem do mal se queixa, que padece,

fá-lo porque esta glória não conhece.

De modo que, se cai o pensamento

em algüa fraqueza, de contente,

é porque este segredo não conheço;

assi que com razões, não tão somente

desculpo ao Amor do meu tormento,

mas ainda a culpa sua lhe agradeço.

Por esta fé mereço

a graça, que esses olhos acompanha,

o bem do doce riso;

mas, porém, não se ganha

cum paraíso outro paraíso.

E assi, de enleada, a esperança

se satisfaz co bem que não alcança.

Se com razões escuso meu remédio,

sabe, Canção, que porque não vejo,

engano com palavras o desejo.

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[pic]Índice[pic]

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2

Canção

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instabilidade da Fortuna,

os enganos suaves de Amor cego,

(suaves, se duraram longamente),

direi, por dar à vida algum sossego;

que, pois a grave pena me importuna,

importune meu canto a toda a gente.

E se o passado bem co mal presente

me endurece a voz no peito frio,

o grande desvario

dará de minha pena sinal certo,

que um erro em tantos erros é concerto.

E, pois nesta verdade me confio

(se verdade se achar no mal que digo),

aiba o mundo de Amor o desconcerto,

ue já co a Razão se fez amigo,

só por não deixar culpa sem castigo.

Já Amor fez leis, sem ter comigo algüa;

já se tornou, de cego, arrazoado,

só por usar comigo sem-razões.

E, se em algüa cousa o tenho errado,

com siso, grande dor não vi nenhüa,

nem ele deu sem erros afeições.

Mas, por usar de suas isenções,

buscou fingidas causas por matar-me;

que, para derrubar-me

no abismo infernal de meu tormento,

não foi soberbo nunca o pensamento,

nem pretende mais alto alevantar-me

daquilo que ele quis; e se ele ordena

que eu pague seu ousado atrevimento,

saiba que o mesmo Amor que me condena

me fez cair na culpa e mais na pena.

Os olhos que eu adoro, aquele dia

que desceram ao baixo pensamento,

n'alma os aposentei suavemente;

e pretendendo mais, como avarento,

o coração lhe dei por iguaria,

que a meu mandado tinha obediente.

Porém como ante si lhe foi presente

que entenderam o fim de meu desejo,

ou por outro despejo, que a língua

descobriu por desvario,

de sede morto estou posto num rio,

onde de meu serviço o fruto vejo;

mas logo se alça se a colhê-lo venho,

e foge-me a água, se beber porfio;

assi que em fome e sede me mantenho:

não tem Tântalo a pena que eu sustenho.

Despois que aquela em quem minh'alma vive

quis alcançar o baixo atrevimento,

debaixo deste engano a alcancei:

a nuvem do contino pensamento

ma afigurou nos braços, e assi a tive,

sonhando o que acordado desejei.

Porque a meu desejo me gabei

de alcançar um bem de tanto preço,

além do que padeço,

atado em üa roda estou penando,

que em mil mudanças me anda rodeando

onde, se a algum bem subo, logo deço,

e assi ganho e perco a confiança;

e assi me tem atado ua vingança,

como Ixião, tão firme na mudança.

Quando a vista suave e inumana

meu humano desejo, de atrevido,

cometeu, sem saber o que fazia

([que de sua beleza foi nacido}

o cego Moço, que, co a seta insana,

o pecado vingou desta ousadia),

e afora este mal que eu merecia,

me deu outra maneira de tormento:

que nunca o pensamento,

que sempre voa düa a outra parte,

destas entranhas tristes bem se farte,

imaginando sobre o famulento,

quanto mais come, mais está crecendo,

porque de atormentar-me não se aparte;

assi que para a pena estou vivendo,

sou outro novo Ticio, e não me entendo.

De vontades alheias, que roubava,

e que enganosamente recolhia

em meu fingido peito, me mantinha.

De maneira o engano lhe fingia,

que despois que a meu mando as sojugava,

com amor as matava, que eu não tinha.

Porém, logo o castigo que convinha

o vingativo Amor me fez sentir,

fazendo-me subir

ao monte da aspereza que em vós vejo,

co pesado penedo do desejo,

que do cume do bem me vai cair;

torno a subi-lo ao desejado assento,

torna a cair-me; embalde, enfim, pelejo.

Não te espantes, Sísifo, deste alento,

que as costas o subi do sofrimento.

Dest'arte o sumo bem se me oferece

ao faminto desejo, porque sinta

a perda de perdê-lo mais penosa.

Como o avaro a quem o sonho pinta

achar tesouro grande, onde enriquece

e farta sua sede cobiçosa.

e acordando com fúria pressurosa

vai cavar o lugar onde sonhava,

mas tudo o que buscava

lhe converte em carvão a desventura;

ali sua cobiça mais se apura,

por lhe faltar aquilo que esperava:

dest'arte Amor me faz perder o siso.

Porque aqueles que estão na noite escura,

nunca sentirão tanto o triste abiso,

se ignorarem o bem do Paraíso.

Canção, nô mais, que já não sei que digo;

mas porque a dor me seja menos forte,

diga o pregão a causa desta morte.

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Índice

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3

Canção

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á a roxa manhã clara

do Oriente as portas vem abrindo,

dos montes descobrindo

a negra escuridão da luz avara.

O Sol, que nunca pára,

de sua alegre vista saudoso,

trás ela, pressuroso,

nos cavalos cansados do trabalho, q

ue respiram nas ervas fresco orvalho,

se estende, claro, alegre e luminoso.

Os pássaros, voando

de raminho em raminho modulando,

com ua suave e doce melodia

o claro dia estão manifestando.

A manhã bela e amena,

seu rosto descobrindo, a espessura

se cobre de verdura,

branda, suave, angélica, serena.

Ó deleitosa pena,

ó efeito de Amor tão preeminente

que permite e consente

que onde quer que me ache, e onde esteja,

o seráfico gesto sempre veja,

por quem de viver triste sou contente!

Mas tu, Aurora pura,

de tanto bem dá graças à ventura,

pois as foi pôr em ti tão diferentes,

que representes tanta fermosura.

A luz suave e leda

a meus olhos me mostra por quem mouro,

e os cabelos de ouro

não igual' aos que vi, mas arremeda:

esta é a luz que arreda

a negra escuridão do sentimento

ao doce pensamento;

o orvalho das flores delicadas

são nos meus olhos lágrimas cansadas,

que eu choro co prazer de meu tormento;

os pássaros que cantam

os meus espritos são, que a voz levantam,

manifestando o gesto peregrino

com tão divino som que o mundo espantam.

Assi como acontece

a quem a cara vida está perdendo,

que, enquanto vai morrendo,

algüa visão santa lhe aparece;

a mim, em quem falece

a vida, que sois vós, minha Senhora, a

esta alma que em vós mora

(enquanto da prisão se está apartando)

vos estais juntamente apresentando

em forma da fermosa e roxa Aurora.

Ó ditosa partida!

Ó glória soberana, alta e subida!

Se mo não impedir o meu desejo;

porque o que vejo, enfim, me torna a vida.

Porém a Natureza,

que nesta vista pura se mantinha,

me falta tão asinha,

quão asinha o sol falta à redondeza.

Se houverdes que é fraqueza

morrer em tão penoso e triste estado,

Amor será culpado,

ou vós, onde ele vive tão isento,

que causastes tão longo apartamento,

porque perdesse a vida co cuidado.

Que se viver não posso

(um homem sou só, de carne e osso),

esta vida que perco, Amor ma deu;

que não sou meu: se mouro, o dano é vosso.

Canção de cisne, feita n'hora extrema:

na dura pedra fria

da memória te deixo, em companhia

do letreiro de minha sepultura;

que a sombra escura já me impede o dia.

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4

Canção

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ão as serenas águas

do Mondego descendo

mansamente, que até o mar não param;

por onde minhas mágoas

pouco a pouco crecendo,

para nunca acabar se começaram.

Ali se ajuntaram neste lugar ameno,

aonde agora mouro, testa de nove e ouro,

riso brando, suave, olhar sereno,

um gesto delicado,

que sempre n'alma m'estará pintado.

Nesta florida terra,

leda, fresca e serena,

ledo e contente para mim vivia,

em paz com minha guerra,

contente com a pena

que de tão belos olhos procedia.

Um dia noutro dia

o esperar m'enganava;

longo tempo passei,

co a vida folguei, só

porque em bem tamanho me empregava.

Mas que me presta já,

que tão fermosos olhos não os há?

Ó quem me ali dissera

que de amor tão profundo

o fim pudesse ver ind'algüa hora!

Ó quem cuidar pudera

que houvesse aí no mundo

apartar-m'eu de vós, minha Senhora,

para que desde agora

perdesse a esperança,

e o vão pensamento,

desfeito em um momento,

sem me poder ficar mais que a lembrança,

que sempre estará firme

até o derradeiro despedir-me.

Mas a mor alegria

que daqui levar posso,

com a qual defender-me triste espero,

é que nunca sentia

no tempo que fui vosso

quererdes-me vós quanto vos eu quero;

porque o tormento fero

de vosso apartamento

não vos dará tal pena

como a que me condena:

que mais sentirei vosso sentimento,

que o que minh'alma sente.

Moura eu, Senhora, e vós ficai contente!

Canção, tu estarás

aqui acompanhando

estes campos e estas claras águas,

e por mim ficarás chorando

e suspirando,

e ao mundo mostrando tantas mágoas,

que de tão larga história

minhas lágrimas fiquem por memória.

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5

Canção

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e este meu pensamento,

como é doce e suave,

de alma pudesse vir gritando fora,

mostrando seu tormento

cruel, e grave,

diante de vós só, minha Senhora:

pudera ser que agora

o vosso peito duro

tornara manso e brando.

E eu que sempre ando

pássaro solitário, humilde, escuro,

tornado um cisne puro,

brando e sonoro pelo ar voando,

com canto manifesto

pintara meu tormento e vosso gesto.

Pintara os olhos belos

que trazem nas mininas

o Minino que os seus neles cegou;

e os dourados cabelos

em tranças d'ouro finas

a quem o Sol seus raios abaixou;

a testa que ordenou

atura tão formosa;

o bem proporcionado

nariz, lindo, afilado,

que a cada parte tem a fresca rosa;

a boca graciosa,

que querê-la louvar é escusado;

enfim, é um tesouro:

os dentes, perlas; as palavras, ouro.

Vira-se claramente,

ó Dama delicada,

que em vós se esmerou mais a Natureza;

e eu, de gente em gente,

trouxera trasladada

em meu tormento vossa gentileza.

Somente a aspereza

de vossa condição,

Senhora, não dissera,

porque se não soubera

que em vós podia haver algum senão.

E se alguém, com razão,

—Porque morres? dissera, respondera:

—Mouro porque é tão bela

que inda não sou para morrer por ela.

E se pola ventura,

Dama, vos ofendesse,

escrevendo de vós o que não sento,

e vossa fermosura

tão baixo não descesse

que a alcançasse um baixo entendimento,

seria o fundamento

daquilo que cantasse todo de puro amor,

porque vosso louvor

em figura de mágoas se mostrasse.

E onde se julgasse a causa pelo efeito,

minha dor diria ali sem medo:

quem me sentir, verá de quem procedo.

Então amostraria

os olhos saudosos,

o suspirar que a alma traz consigo;

a fingida alegria,

os passos vagarosos,

o falar, o esquecer-me do que digo;

um pelejar comigo,

e logo desculpar-me;

um recear, ousando;

andar meu bem buscando,

e de poder achá-lo acovardar-me;

enfim, averiguar-me

que o fim de tudo quanto estou falando

são lágrimas e amores;

são vossas isenções e minhas dores.

Mas quem terá, Senhora,

palavras com que iguale

com vossa fermosura minha pena;

que, em doce voz, de fora

aquela glória fale

que dentro na minh'alma Amor ordena?

Não pode tão pequena

força de engenho humano

com carga tão pesada,

se não for ajudada

dum piedoso olhar, dum doce engano;

que, fazendo-me o dano

tão deleitoso, e a dor tão moderada,

que, enfim, se convertesse

nos gostos dos louvores que escrevesse.

Canção, não digas mais; e se teus versos

à pena vêm pequenos,

não queiram de ti mais, que dirás menos.

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6

Canção

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om força desusada

aquenta o fogo eterno

üa ilha lá nas partes do Oriente,

de estranhos habitada,

aonde o duro Inverno

os campos reverdece alegremente.

A lusitana gente

por armas sanguinosas,

tem dela senhorio.

Cercada está dum rio

de marítimas águas saudosas;

das ervas que aqui nascem,

os gados juntamente e os olhos pascem.

Aqui minha ventura

quis que üa grã parte

da vida, que não tinha, se passasse,

para que a sepultura

nas mãos do fero Marte

de sangue e de lembranças matizasse.

Se Amor determinasse

que, a troco desta vida,

de mim qualquer memória

ficasse, como história

que de uns fermosos olhos fosse lida,

a vida e alegria

por tão doce memória trocaria.

Mas este fingimento,

por minha dura sorte,

com falsas esperanças me convida.

Não cuide o pensamento

que pode achar na morte

o que não pôde achar tão longa vida.

Está já tão perdida

a minha confiança

que, de desesperado

em ver meu triste estado,

também da morte perco a esperança.

Mas oh! que se algum dia

desesperar pudesse, viveria.

De quanto tenho visto

já 'gora não m'espanto,

que até desesperar se me defende.

Outrem foi causa disto,

que eu nunca pude tanto

que causasse este fogo que me encende.

Se cuidam que me ofende

temor de esquecimento,

oxalá meu perigo

me fora tão amigo

que algum temor deixara ao pensamento!

Quem viu tamanho enleio

que houvesse ai esperança sem receio?

Quem tem que perder possa

se pode recear.

Mas triste quem não pode já perder!

Senhora, a culpa é vossa,

que para me matar

bastará ü'hora só de vos não ver.

Puseste-me em poder

de falsas esperanças;

e, do que mais me espanto:

que nunca vali tanto

que vivesse também com esquivanças.

Valia tão pequena

não pode merecer tão doce pena.

Houve-se Amor comigo

tão brando e pouco irado,

quanto agora em meus males se conhece;

que não há mor castigo

para quem tem errado q

ue negar-lhe o castigo que merece.

E bem como acontece

que assi como ao doente

da cura despedido,

o médico sabido

tudo quanto deseja lhe consente,

assi me consentia

esperança, desejo e ousadia.

E agora venho a dar

conta do bem passado

a esta triste vida e longa ausência.

Quem pode imaginar

que pode haver pecado

que mereça tão grave penitência?

Olhai que é consciência,

por tão pequeno erro,

Senhora, tanta pena!

Não vedes que é onzena?

Mas se tão longo e mísero desterro

vos dá contentamento,

nunca se acabe nele meu tormento.

Rio fermoso e claro,

e vós, ó arvoredos,

que os justos vencedores coroais,

e ao cultor avaro,

continuamente ledos,

dum tronco só diversos frutos dais;

assi nunca sintais

do tempo injúria algüa,

que em vós achem abrigo

as mágoas que aqui digo,

enquanto der o Sol virtude à Lüa;

porque de gente em gente

saibam que já não mata a vida ausente.

Canção, neste desterro viverás,

Voz nua e descoberta,

até que o tempo em Eco te converta.

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7

Canção

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anda-me Amor que cante docemente

o que ele já em minh'alma tem impresso

com pressuposto de desabafar-me;

e porque com meu mal seja contente,

diz que ser de tão lindos olhos preso,

contá-lo bastaria a contentar-me.

Este excelente modo de enganar-me

tomara eu só de Amor por interesse,

se não se arrependesse

co a pena o engenho escurecendo.

Porém a mais me atrevo,

em virtude do gesto de qu'escrevo;

e se é mais o que canto que o qu'entendo,

invoco o lindo aspeito,

que pode mais que Amor em meu defeito.

Sem conhecer Amor viver soía,

seu arco e seus enganos desprezando,

quando vivendo deles me mantinha.

O Amor enganoso, que fingia

mil vontades alheias enganando,

me fazia zombar de quem o tinha.

No Touro entrava Febo, e Progne vinha;

o corno de Aquelôo Flora entornava,

quando o Amor soltava

oS fios d'ouro, as tranças enerespadas,

ao doce vento esquivas,

dos olhos rutilando chamas

vivas, e as rosas entre a nove semeadas,

co riso tão galante

que um peito desfizera de diamante.

Um não sei quê, suave, respirando,

causava um admirado e novo espanto,

que as cousas insensíveis o sentiam.

E as gárrulas aves levantando

vozes desordenadas em seu canto,

como em meu desejo se entendiam.

As fontes cristalinas não corriam,

inflamadas na linda vista pura;

florescia a verdura que, andando,

cos divinos pés tocava;

os ramos se abaixavam,

tendo enveja das ervas que pisavam

(ou porque tudo ante ela se abaixava).

Não houve coisa, enfim,

que não pasmasse dela, e eu de mim.

Porque quando vi dar entendimento

às cousas que o não tinham, o temor

me fez cuidar que efeito em mim faria.

Conheci-me não ter conhecimento;

e nisto só o tive, porque Amor

mo deixou, porque visse o que podia.

Tanta vingança Amor de mim queria

que mudava a humana natureza:

os montes e a dureza

deles, em mim, por troca, traspassava.

O que gentil partido!

Trocar o ser do monte sem sentido,

pelo que num juízo humano estava!

Olhai que doce engano:

tirar comum proveito de meu dano!

Assi que, indo perdendo o sentimento

a parte racional, me entristecia

vê-la a um apetite sometida;

mas dentro n'alma o fim do pensamento

por tão sublime causa me dezia

que era razão ser vencida.

Assi que, quando a via ser perdida,

a mesma perdição a restaurava;

e em mansa paz estava

cada um com seu contrário num sujeito.

Ó grão concerto este!

Quem será que não julgue por celeste

a causa donde vem tamanho efeito

que faz num coração

que venha o apetite a ser razão?

Aqui senti de Amor a mor fineza,

como foi ver sentir o insensível,

e o ver a mim de mim mesmo perder-me;

enfim, senti negar-se a natureza;

por onde cri que tudo era possível

aos lindos olhos seus, senão querer-me.

Despois que já senti desfalecer-me,

em lugar do sentido que perdia,

não sei que m'escrevia

dentro n'alma co as letras da memória,

o mais deste processo

co claro gesto juntamente impresso

que foi a causa de tão longa história.

Se bem a declarei,

eu não a escrevo, d'alma a trasladei.

Canção, se quem te ler

não crer dos olhos lindos o que dizes,

pelo que em si se esconde,

os sentidos humanos, lhe responde,

não podem dos divinos ser juízes,

[sendo um pensamento

que a falta supra a fé do entendimento].

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Índice

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8

Canção

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omei a triste pena

já de desesperado

de vos lembrar as muitas que padeço,

com ver que me condena

a ficar eu culpado

o mal que me tratais e o que mereço.

Confesso que conheço

que, em parte, a causa dei

[a] o mal em que me vejo,

pois sempre meu desejo

a tão largas promessas entreguei;

mas não tive suspeita

que seguísseis tenção tão imperfeita.

Se em vosso esquecimento

tão envolto estou

como os sinais demonstram, que mostrais;

vivo neste tormento,

lembranças mais não dou

que as de razão tomar queirais:

olhai que me tratais

assi de dia em dia

com vossas esquivanças;

e as vossas esperanças,

de que, vãmente, eu me enriquecia,

renovam a memória;

pois com tê-la de vós, só tenho glória.

E se isto conhecêsseis

ser verdade pura

como ouro de Arábia reluzente,

inda que não quisésseis,

a condição tão dura

mudáreis noutra muito diferente.

E eu, como inocente

que estou neste caso,

isto em mãos pusera

de quem sentença dera

que ficasse o direito justo e raso,

se não arreceara

que a vós por mim, e a mim por vós matara.

Em vós escrita vi

vossa grande dureza,

e n'alma escrita está que de vós vive;

não que acabasse ali

sua grande firmeza

o triste desengano que então tive;

porque antes que a dor prive

de todos meus sentidos,

ao grande tormento

acode o entendimento

com dous fortes soldados, guarnecidos

de rica pedraria,

que ficam sendo minha luz e guia.

Destes acompanhado,

estou posto sem medo

a tudo o que o fatal destino ordene;

pode ser que, cansado,

ou seja tarde, ou cedo,

com pena de penar-me, me despene.

E quando me condene

(que isto é o que espero)

inda a maiores dores,

perdidos os temores,

por mais que venha, não direi: não quero.

Contudo estou tão forte

que nem me mudará a mesma morte.

Canção, se já não queres

ver tanta crueldade,

lá vás onde verás minha verdade.

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Índice

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9

Canção

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unto de um seco, fero e estéril monte,

inútil e despido, calvo, informe,

da natureza em tudo aborrecido;

onde nem ave voa, ou fera dorme,

nem rio claro corre, ou ferve fonte,

nem verde ramo faz doce ruído;

cujo nome, do vulgo introduzido

é felix, por antífrase, infelice;

o qual a Natureza

situou junto à parte

onde um braço de mar alto reparte

Abássia, da arábica aspereza,

onde fundada já foi Berenice,

ficando a parte donde

o sol que nele ferve se lhe esconde;

nele aparece o Cabo com que a costa

africana, que vem do Austro correndo,

limite faz, Arómata chamado

(Arómata outro tempo, que, volvendo

os céus, a ruda língua mal composta,

dos próprios outro nome lhe tem dado).

Aqui, no mar, que quer apressurado

entrar pela garganta deste braço,

me trouxe um tempo e teve

minha fera ventura.

Aqui, nesta remota, áspera e dura

parte do mundo, quis que a vida breve

também de si deixasse um breve espaço,

porque ficasse a vida

pelo mundo em pedaços repartida.

Aqui me achei gastando uns tristes dias,

tristes, forçados, maus e solitários,

trabalhosos, de dor e d'ira cheios,

não tendo tão somente por contrários

a vida, o sol ardente e águas frias,

os ares grossos, férvidos e feios,

mas os meus pensamentos, que são meios

para enganar a própria natureza,

também vi contra mi

trazendo-me à memória

algüa já passada e breve glória,

que eu já no mundo vi, quando vivi,

por me dobrar dos males a aspereza,

por me mostrar que havia

no mundo muitas horas de alegria.

Aqui estiv'eu co estes pensamentos

gastando o tempo e a vida; os quais tão alto

me subiam nas asas, que cala

(e vede se seria leve o salto!)

de sonhados e vãos contentamentos

em desesperação de ver um dia.

Aqui o imaginar se convertia

num súbito chorar, e nuns suspiros

que rompiam os ares.

Aqui, a alma cativa,

chagada toda, estava em carne viva,

de dores rodeada e de pesares,

desamparada e descoberta aos tiros

da soberba Fortuna;

soberba, inexorável e importuna.

Não tinha parte donde se deitasse,

nem esperança algüa onde a cabeça

um pouco reclinasse, por descanso.

Todo lhe he dor e causa que padeça,

mas que pereça não, porque passasse

o que quis o Destino nunca manso.

Oh! que este irado mar, gritando, amanso!

Estes ventos da voz importunados,

parece que se enfreiam!

Somente o Céu severo,

as Estrelas e o Fado sempre fero,

com meu perpétuo dano se recreiam,

mostrando-se potentes e indignados

contra um corpo terreno,

bicho da terra vil e tão pequeno.

Se de tantos trabalhos só tirasse

saber inda por certo que algu'hora

lembrava a uns claros olhos que já vi;

e se esta triste voz, rompendo fora,

as orelhas angélicas tocasse

daquela em cujo riso já vivi;

a qual, tornada um pouco sobre si,

revolvendo na mente pressurosa

os tempos já passados

de meus doces errores,

de meus suaves males e furores,

por ela padecidos e buscados,

tornada (inda que tarde) piadosa,

um pouco lhe pesasse

e consigo por dura se julgasse;

isto só que soubesse, me seria

descanso para a vida que me fica;

co isto afagaria o sofrimento.

Ah! Senhora, Senhora, que tão rica

estais, que cá tão longe, de alegria,

me sustentais cum doce fingimento!

Em vos afigurando o pensamento,

foge todo o trabalho e toda a pena.

Só com vossas lembranças

me acho seguro e forte

contra o rosto feroz da fera Morte,

e logo se me ajuntam esperanças

com que a fronte, tornada mais serena,

torna os tormentos graves

em saudades brandas e suaves.

Aqui co elas fico, perguntando

aos ventos amorosos, que respiram

da parte donde estais, por vós, Senhora;

às aves que ali voam, se vos viram,

que fazíeis, que estáveis praticando,

onde, como, com quem, que dia e que hora.

Ali a vida cansada, que melhora,

toma novos espritos , com que vença

a Fortuna e Trabalho,

só por tornar a vervos ,

só por ir a servir-vos e querer-vos.

Diz-me o Tempo, que a tudo dará talho;

mas o Desejo ardente, que detença

nunca sofreu, sem tento

m'abre as chagas de novo ao sofrimento.

Assi vivo; e se alguém te perguntasse,

Canção, como não mouro,

podes-lhe responder que porque mouro.

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10

Canção

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inde cá, meu tão certo secretário

dos queixumes que sempre ando fazendo,

papel, com que a pena desafogo!

As sem-razões digamos que, vivendo,

me faz o inexorável e contrário

Destino, surdo a lágrimas e a rogo.

Deitemos água pouca em muito fogo;

acenda-se com gritos um tormento

que a todas as memórias seja estranho.

Digamos mal tamanho

a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,

a quem já muitas vezes o contei,

tanto debalde como o conto agora;

mas, já que para errores fui nascido,

vir este a ser um deles não duvido.

Que, pois já de acertar estou tão fora,

não me culpem também, se nisto errei.

Sequer este refúgio só terei:

falar e errar sem culpa, livremente.

Triste quem de tão pouco está contente!

Já me desenganei que de queixar-me

não se alcança remédio; mas, quem pena,

forçado lhe é gritar, se a dor é grande.

Gritarei; mas é débil e pequena

a voz para poder desabafar-me,

porque nem com gritar a dor se abrande.

Quem me dará sequer que fora mande

lágrimas e suspiros infinitos

iguais ao mal que dentro n'alma mora?

Mas quem pode algu'hora

medir o mal com lágrimas ou gritos?

Enfim, direi aquilo que me ensinam

a ira, a mágoa, e delas a lembrança,

que é outra dor por si, mais dura e firme.

Chegai, desesperados, para ouvir-me,

e fujam os que vivem de esperança

ou aqueles que nela se imaginam,

porque Amor e Fortuna determinam

de lhe darem poder para entenderem,

à medida dos males que tiverem.

{Quando vim da materna sepultura

de novo ao mundo, logo me fizeram

Estrelas infelices obrigado;

com ter livre alvedrio, mo não deram,

que eu conheci mil vezes na ventura

o milhor, e pior segui, forçado.

E, para que o tormento conformado

me dessem com a idade, quando abrisse

inda minino, os olhos, brandamente,

mandam que, diligente,

um Minino sem olhos me ferisse.

As lágrimas da infância já manavam

com üa saudade namorada;

o som dos gritos, que no berço dava,

já como de suspiros me soava.

Co a idade e Fado estava concertado;

porque quando, por caso, me embalavam,

se versos de Amor tristes me cantavam,

logo m'adormecia a natureza,

que tão conforme estava co a tristeza}

Foi minha ama ua fera, que o destino

não quis que mulher fosse a que tivesse

tal nome para mim; nem a haveria.

Assi criado fui, porque bebesse

o veneno amoroso, de minino,

que na maior idade beberia,

e, por costume, não me mataria.

Logo então vi a imagem e semelhança

daquela humana fera tão fermosa,

suave e venenosa,

que me criou aos peitos da esperança;

de que eu vi despois o original,

que de todos os grandes desatinos

faz a culpa soberba e soberana.

Parece-me que tinha forma humana,

mas cintilava espíritos divinos.

Um meneio e presença tinha tal

que se vangloriava todo o mal

na vista dela; a sombra, co a viveza,

excedia o poder da Natureza.

Que género tão novo de tormento

teve Amor, que não fosse, não somente

provado em mim, mas todo executado?

Implacáveis durezas, que o fervente

desejo, que dá força ao pensamento,

tinham de seu propósito abalado,

e de se ver, corrido e injuriado; a

qui, sombras fantásticas, trazidas

de algüas temerárias esperanças;

as bem-aventuranças

nelas também pintadas e fingidas;

mas a dor do desprezo recebido,

que a fantasia me desatinava,

estes enganos punha em desconcerto;

aqui, o adevinhar e o ter por certo

que era verdade quanto adevinhava,

e logo o desdizer-me, de corrido;

dar às cousas que via outro sentido,

e para tudo, enfim, buscar razões;

mas eram muitas mais as sem-razões.

Não sei como sabia estar roubando

cos raios as entranhas, que fugiam

por ela, pelos olhos sutilmente!

Pouco a pouco invencíveis me saiam,

bem como do véu húmido exalando

está o sutil humor o Sol ardente.

Enfim, o gesto puro e transparente,

para quem fica baixo e sem valia

este nome de belo e de fermoso;

o doce e piadoso

mover de olhos, que as almas suspendia

foram as ervas mágicas, que o Céu

me fez beber; as quais, por longos anos,

noutro ser me tiveram transformado,

e tão contente de me ver trocado

que as mágoas enganava cos enganos;

e diante dos olhos punha o véu

que me encobrisse o mal, que assi creceu,

como quem com afagos se criava

daquele para quem crecido estava].

Pois quem pode pintar a vida ausente, c

om um descontentar-me quanto via,

e aquele estar tão longe donde estava,

o falar, sem saber o que dezia,

andar, sem ver por onde, e juntamente

suspirar sem saber que suspirava?

Pois quando aquele mal me atormentava

e aquela dor que das tartáreas águas

saiu ao mundo, e mais que todas dói,

que tantas vezes sói

duas iras tornar em brandas mágoas;

agora, co furor da mágoa irado,

querer e não querer deixar de amar,

e mudar noutra parte por vingança

o desejo privado de esperança,

que tão mal se podia já mudar;

agora, a saudade do passado

tormento, puro, doce e magoado,

fazia converter estes furores

em magoadas lágrimas de amores.

Que desculpas comigo que buscava

quando o suave Amor me não sofria

culpa na cousa amada, e tão amada!

enfim, eram remédios que fingia

o medo do tormento que ensinava

a vida a sustentar-se, de enganada.

Nisto ua parte dela foi passada,

na qual se tive algum contentamento

breve, imperfeito, tímido, indecente,

não foi senão semente

de longo e amaríssimo tormento.

Este curso contino de tristeza,

estes passos tão vãmente espalhados,

me foram apagando o ardente gosto,

que tão de siso n'alma tinha posto,

daqueles pensamentos namorados

em que eu criei a tenta natureza,

que do longo costume da aspereza,

contra quem força humana não resiste,

se converteu no gosto de ser triste.

Dest'arte a vida noutra fui trocando;

eu não, mas o destino fero, irado,

que eu ainda assi por outra não trocara.

Fez-me deixar o pátrio ninho amado,

passando o longo mar, que ameaçando

tantas vezes me esteve a vida cara.

Agora, exprimentando a fúria rara

de Marte, que cos olhos quis que logo

visse e tocasse o acerbo fruto seu

(e neste escudo meu

a pintura verão do infesto fogo);

agora, peregrino vago e errante,

vendo nações, linguages e costumes,

Céus vários, qualidades diferentes,

só por seguir com passos diligentes

a ti, Fortuna injusta, que consumes

as idades, levando-lhe diante

üa esperança em vista de diamante,

mas quando das mãos cai se conhece

que é frágil vidro aquilo que aparece.

A piadade humana me faltava,

a gente amiga já contrária via,

no primeiro perigo; e no segundo,

terra em que pôr os pés me falecia,

ar para respirar se me negava,

e faltavam-me, enfim, o tempo e o mundo.

Que segredo tão árduo e tão profundo:

nascer para viver, e para a vida

faltar-me quanto o mundo tem para ela!

E não poder perdê-la,

estando tantas vezes já perdida!

Enfim, não houve transe de fortuna,

nem perigos, nem casos duvidosos,

injustiças daqueles, que o confuso

regimento do mundo, antigo abuso,

faz sobre os outros homens poderosos,

que eu não passasse, atado à grã coluna

do sofrimento meu, que a importuna

perseguição de males em pedaços

mil vezes fez, à força de seus braços.

Não conto tantos males como aquele

que, despois da tormenta procelosa,

os casos dela conta em porto ledo;

que ainda agora a Fortuna flutuosa

a tamanhas misérias me compele,

que de dar um só passo tenho medo.

Já de mal que me venha não me arredo,

nem bem que me faleça já pretendo,

que para mim não val astúcia humana;

de força soberana,

la Providência, enfim, divina pendo.

Isto que cuido e vejo, às vezes tomo

para consolação de tantos danos.

Mas a fraqueza humana, quando lança

os olhos no que corre, e não alcança

senão memória dos passados anos,

as águas que então bebo, e o pão que como,

lágrimas tristes são, que eu nunca domo

senão com fabricar na fantasia

fantásticas pinturas de alegria.

Que se possível fosse, que tornasse

o tempo para trás, como a memória,

pelos vestígios da primeira idade,

e de novo tecendo a antiga história

de meus doces errores, me levasse

pelas flores que vi da mocidade;

e a lembrança da longa saudade

então fosse maior contentamento,

vendo a conversação leda e suave,

onde üa e outra chave esteve

de meu novo pensamento,

os campos, as passadas, os sinais,

a fermosura, os olhos, a brandura,

a graça, a mansidão, a cortesia,

a sincera amizade, que desvia

toda a baixa tenção, terrena, impura,

como a qual outra algüa não vi mais...

Ah! vês memórias, onde me levais

o fraco coração, que ainda não posso

domar este tão vão desejo vosso?

Nô mais, Canção, nô mais; que irei falando,

sem o sentir, mil anos. E se acaso

te culparem de larga e de pesada,

não pode ser (lhe dize) limitada

a água do mar em tão pequeno vaso.

Nem eu delicadezas vou cantando

co gosto do louvor, mas explicando

puras verdades já por mim passadas.

Oxalá foram fábulas sonhadas!

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Índice

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11

Elegia

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Poeta Simónides, falando

co capitão Temístocles, um dia,

em cusas de ciência praticando,

ü a arte singular lhe prometia,

que então compunha, com que lhe ensinasse

a se lembrar de tudo o que fazia;

onde tão sutis regras lhe mostrasse

que nunca lhe passasse da memória

em nenhum tempo as cousas que passasse.

Bem merecia, certo, fama e glória

quem dava regra contra o esquecimento

que enterra em si qualquer antiga história.

Mas o capitão claro, cujo intento

bem diferente estava, porque havia

as passadas lembranças por tormento;

ilustre Simónides! (dezia)

Pois tanto em teu engenho te confias

que mostras à memória nova via,

e me desses üa arte que em meus dias

me não lembrasse nada do passado,

oh! quanto milhor obra me farias!

Se este excelente dito ponderado

fosse por quem se visse estar ausente,

em longas esperanças degradado,

ah! como bradaria justamente:

Simónides, inventa novas artes;

não meças o passado co presente!

Que, se é forçado andar por várias partes

buscando à vida algum descanso honesto,

que tu, Fortuna injusta, mal repartes;

se o duro trabalho é manifesto

que por grave que seja, há-de passar-se

com animoso esprito e ledo gesto;

de que serve às pessoas alembrar-se

do que se passou já, pois tudo passa,

senão de entristecer-se e magoar-se?

Se noutro corpo üa alma se traspassa,

não, como quis Pitágoras, na morte

mas como manda Amor na vida escassa;

e se este Amor no mundo está de sorte

que na virtude só dum lindo objecto

tem um corpo sem alma, vivo e forte;

onde este objecto falta, que é defecto

tamanho para a vida, que já nela

me está chamando à pena a dura Alecto;

porque me não criara minha estrela

selvático no mundo, e habitante

na dura Cítia, ou na aspereza dela,

ou no Cáucaso horrendo? Fraco infante,

criado ao peito d'algüa tigre hircana,

homem fora formado de diamante,

porque a cerviz ferina e inumana

não sometera ao jugo e dura lei

daquele que dá vida quando engana.

Ou, em pago das águas qu'estilei,

as que do mar passei foram de Lete, p

ara que me esquecera o que passei.

Que o bem que a esperança vã promete,

ou a morte o estorva, ou a mudança,

que é mal que ua alma em lágrimas derrete.

Já, Senhor, cairá como a lembrança,

no mal, do bem passado é triste e dura,

pois nasce aonde morre a esperança.

E se quiser saber como se apura

nua alma saudosa, não se enfade

de ler tão longa e mísera escritura.

Soltava Eolo a rédea e liberdade

ao manso Favónio brandamente,

e eu já tinha solta a saudade.

Neptuno tinha posto o seu tridente;

a proa a branca escuma dividia,

co a gente marítima contente.

O coro das Nereidas nos seguia,

os ventos, namorada Galateia

consigo, sossegados, os movia.

Das argênteas conchinhas, Panopeia

andava pelo mar fazendo molhos,

Melanto, Dinamene, com Ligeia.

Eu, trazendo lembranças por antolhos,

trazia os olhos na água sossegada,

e a água sem sossego nos meus olhos.

A bem-aventurança já passada

diante mim tinha tão presente

como se não mudasse o tempo nada.

E com o gesto imoto e descontente,

cum suspiro profundo, e mal ouvido,

por não mostrar meu mal a toda a gente,

dezia: Ó claras Ninfas! Se o sentido

em puro amor tivestes, e inda agora

da memória o não tendes esquecido;

se, porventura, fordes algüa hora

aonde entra o grão Tejo a dar tributo

a Tétis, que vós tendes por Senhora;

ou por verdes o prado verde enxuto,

ou por colherdes ouro rutilante,

das tágicas areias rico fruto;

nelas em verso heróico e elegante,

escrevei cüa concha o que em mim vistes:

pode ser que algum peito se quebrante.

E contando de mim memórias tristes,

os pastores do Tejo, que me ouviam,

ouçam de vós as mágoas que me ouvistes.

Elas, que já no gesto me entendiam,

nos meneios das ondas me mostravam

que em quanto lhe pedia consentiam.

Estas lembranças, que me acompanhavam

pola tranquilidade da bonança,

nem na tormenta grave me deixavam.

Porque, chegado ao Cabo da Esperança,

começo da saudade que renova,

lembrando a longa e áspera mudança;

debaixo estando já da Estrela nova,

que no novo Hemisfério resplandece,

dando do segundo axe certa prova;

eis a noite com nuvens escurece,

do ar supitamente foge o dia,

e o largo oceano se embravece.

A máquina do Mundo parecia

que em tormenta se vinha desfazendo,

em serras todo o mar se convertia.

Lutando Bóreas fero e Noto horrendo,

sonoras tempestades levantavam,

das naus as velas côncavas rompendo.

As cordas, ao ruído, associavam,

os marinheiros, já desesperados,

com gritos para o Céu o ar coalhavam.

Os raios por Vulcano fabricados

vibrava o fero e áspero Tonante,

tremendo os Pólos ambos, de assombrados!

Ali Amor mostrando-se possante

e que por nenhum modo não fugia,

mas quanto mais trabalho, mais constante;

vendo a morte diante, em mim dezia:

Se algüa hora, Senhora, vos lembrasse,

nada do que passei me lembraria.

Enfim, nunca houve cousa que mudasse

o firme Amor do intrínseco daquele

em cujo peito üa vez de siso entrasse.

üa cousa, Senhor, por certo assele;

que nunca Amor se afina, nem se apura,

enquanto está presente a causa dele.

Dest'arte me chegou minha ventura

a esta desejada e longa terra,

de todo o pobre honrado sepultura.

Vi quanta vaïdade em nós se encerra,

e dos próprios quão pouca; contra quem

foi logo necessário termos guerra.

Que üa ilha que o rei de Porcá tem,

que o rei da Pimenta lhe tomara,

fomos tomar-lha, e sucedeu-nos bem.

Com üa armada grossa, que ajuntara

o vizo-rei de Goa, nos partimos

com toda a gente d'armas que se achara,

e com pouco trabalho destruímos

a gente no curvo arco exercitada;

com mortes, com incêndios, os punimos.

Era a ilha com águas alagada,

de modo que se andava em almadias;

enfim, outra Veneza trasladada.

Nela nos detivemos sós dous dias,

que foram para alguns os derradeiros,

que passaram de Estige as águas frias.

Que estes são os remédios verdadeiros

que para a vida estão aparelhados

aos que a querem ter por cavaleiros.

Oh, lavradores bem-aventurados!

Se conhecessem seu contentamento,

como vivem no campo sossegados!

Dá-lhes a justa terra o mantimento,

dá-lhes a fonte clara a água pura,

mungem suas ovelhas cento a cento.

Não vêm o mar irado, a noite escura,

por ir buscar a pedra do Oriente;

não temem o furor da guerra dura.

Vive um com suas árvores contente,

sem lhe quebrar o sono sossegado

o cuidado do ouro reluzente.

Se lhe falta o vestido perfumado,

e da fermosa cor assíria tinto,

e dos torçais atálicos lavrado;

se não tem as delicias de Corinto,

e se de Pário os mármores lhe faltam,

o piropo, a esmeralda, e o jacinto;

se suas casas d'ouro não se esmaltam,

esmalta-se-lhe o campo de mil flores,

onde os cabritos seus, comendo, saltam.

Ali amostra o campo várias cores,

vêm-se os ramos pender co fruto ameno,

ali se afina o canto dos pastores:

ali cantara Títiro e Sileno.

Enfim, por estas partes caminhou

a sã justiça para o Céu sereno.

Ditoso seja aquele que alcançou

poder viver na doce companhia

das mansas ovelhinhas que criou!

Este, bem facilmente alcançaria

as causas naturais de toda a cousa:

como se gera a chuva e neve fria;

os trabalhos do Sol, que não repousa;

e porque nos dá a Lua a luz alheia,

se tolher-nos de Febo os raios ousa;

e como tão depressa o Céu rodeia;

e como um só, os outros traz consigo;

e se é benina ou dura Citereia.

Bem mal pode entender isto que digo

quem há-de andar seguindo o fero Marte,

que traz os olhos sempre em seu perigo.

Porém seja, Senhor, de qualquer arte,

que, posto que a Fortuna possa tanto,

que tão longe de todo o bem me aparte,

não poderá apartar meu duro canto

desta obrigação sua, enquanto a morte

me não entrega ao duro Radamanto,

—se para tristes há tão leda sorte.

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Índice

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12

Elegia

D. António de Noronha,

estando o Autor na India

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quela que de amor descomedido

pelo fermoso moço se perdeu

que só por si de amores foi perdido,

despois que a deusa em pedra a converteu

de seu humano gesto verdadeiro,

a última vez só lhe concedeu.

assi meu mal do próprio ser primeiro

outra cousa nenhüa me consente

que este canto que escrevo derradeiro.

E se algüa pouca vida, estando ausente,

me deixa Amor, é porque o pensamento

sinta a perda do bem de estar presente.

Senhor, se vos espanta o sentimento

que tenho em tanto mal, para escrevê-lo

furto este breve tempo a meu tormento.

Porque quem tem poder para sofrê-lo,

sem se acabar a vida co cuidado,

também terá poder para dize-lo.

Nem eu escrevo mal tão costumado,

mas n'alma minha, triste e saudosa,

a saudade escreve, e eu traslado.

Ando gastando a vida trabalhosa,

espalhando a continua saudade

ao longo de ua praia saudoso.

Vejo do mar a instabilidade,

como com seu ruído impetuoso

retumba na maior concavidade.

E com sua branca escuma, furioso,

na terra, a seu pesar, lhe está tomando

lugar onde se estenda, cavernoso.

Ela, como mais fraca, lhe está dando

as côncavas entranhas, onde esteja

suas salgadas ondas espalhando.

A todas estas cousas tenho enveja

tamanha, que não sei determinar-me,

por mais determinado que me veja.

Se quero em tanto mal desesperar-me,

não posso, porque Amor e Saudade,

nem licença me dão para matar-me.

As vezes cuido em mim se a novidade

e estranheza das cousas, co a mudança

se poderão mudar üa vontade.

E com isto afiguro na lembrança

a nova terra, o novo trato humano,

a estrangeira gente e estranha usança.

Subo-me ao monte que Hércules tebano

do altíssimo Calpe dividiu,

dando caminho ao mar Mediterrano.

Dali estou tenteando aonde viu

o pomar das Hespéridas, matando

a serpe que a seu passo resistiu.

Em outra parte estou afigurando

o poderoso Anteu que, derrubado,

mais força se lhe estava acrescentando;

mas do hercúleo braço sojugado, n

o ar deixou a vida, não podendo

da madre terra já ser ajudado.

Nem com isto, enfim, que estou dizendo,

nem com as armas tão continuadas,

de lembranças passadas me defendo.

Todas as cousas vejo remudadas,

porque o tempo ligeiro não consente

que estejam de firmeza acompanhadas.

Vi já que a Primavera, de contente,

de mil cores alegres revestia

o monte, o rio, o campo alegremente.

Vi já das altas aves a harmonia,

que até aos montes duros convidava

a um modo suave de alegria.

Vi já que tudo, enfim, me contentava,

e que, de muito cheio de firmeza,

um mal por mil prazeres não trocava.

Tal me tem a mudança e estranheza

que, se vou pelos campos, a verdura,

parece que se seca, de tristeza.

Mas isto é já costume da ventura;

que os olhos que vivem descontentes,

descontente o prazer se lhe afigura.

Ó graves e insofríveis acidentes

de Fortuna e de Amor que a penitência

tão grave dais aos peitos inocentes!

Não basta exprimentar-me a paciência,

com temores e falsas esperanças,

sem que também me atente o mel de ausência?

Trazeis um brando animo em mudanças,

para que nunca possa ser mudado

de lágrimas, suspiros e lembranças.

E se estiver ao mal acostumado,

também no mal não consentis firmeza,

para que nunca viva descansado.

Vivia eu sossegado na tristeza,

e ali não me faltava um brando engano,

que tirasse os desejos da fraqueza.

E vendo-me enganado estar ufano,

deu à roda Fortuna, e deu comigo

onde de novo choro o novo dano.

Já deve de bastar o que aqui digo

para dar a entender o mais que calo,

a quem já viu tão áspero perigo.

E se nos bravos peitos faz abalo

um peito magoado e descontente,

que obriga a quem o ouve a consolá-lo;

não quero mais senso que largamente,

Senhor, me mandeis novas dessa terra:

ao menos poderei viver contente.

Porque se o duro Fado me desterra,

tanto tempo do bem que o fraco esprito

desampare a prisão onde se encerra,

ao som das negras águas de Cocito,

ao pé dos carregados arvoredos

cantarei o que na alma tenho escrito.

E, por entre esses hórridos penedos,

a quem negou Natura o claro dia,

entre tormentos ásperos e medos,

com a trémula voz, cansada e fria,

celebrarei o gesto claro e puro

que nunca perderei da fantasia.

E o músico de Trácia, já seguro

de perder sua Eurídice, tangendo

me ajudará, ferindo o ar escuro.

As namoradas sombras, revolvendo

memórias do passado, me ouvirão;

e com seu choro, o rio irá crescendo.

Em Salmoneu as penas faltarão,

e das filhas de Belo, juntamente,

de lágrimas os vasos se encherão.

Que se o amor não se perde em vida ausente,

menos se perderá por morte escura;

porque, enfim, a alma vive eternamente,

e amor é afeito d'alma, e sempre dura.

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Índice

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13

Elegia

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sulmonense Ovídio, desterrado

na aspereza do Ponto, imaginando

ver-se de seus parentes apartado;

sua cara mulher desamparando,

seus doces filhos, seu contentamento,

de sua pátria os olhos apartando;

não podendo encobrir o sentimento,

aos montes e às águas se queixava

de seu escuro e triste nacimento.

O curso das estrelas contemplava,

e como por sua ordem discorria

o céu, o ar e a terra adonde estava.

Os peixes pelo mar nadando via,

as feras pelo monte, procedendo

como seu natural lhes permitia.

De suas fontes via estar nascendo

os saudosos rios de cristal,

a sua natureza obedecendo.

Assi só, de seu próprio natural

apartado, se via em terra estranha,

a cuja triste dor não acha igual.

Só sua doce Musa o acompanha,

nos versas saudosos que escrevia,

e lágrimas com que ali o campo banha.

Dest'arte me afigura a fantasia a vida

com que vivo, desterrado do bem

que noutro tempo possuia.

Ali contemplo o gosto já passado,

que nunca passará pola memória

de quem o tem na mente debuxado.

Ali vejo a caduca e débil glória

desenganar meu erro, co a mudança

que faz a frágil vida transitória.

Ali me representa esta lembrança

quão pouca culpa tenho; e me entristece

ver sem razão a pena que me alcança.

Que a pena que com causa se padece,

a causa tira o sentimento dela;

mas muito dói a que se não merece.

Quando a roxa manhã, formosa

e bela, abre as portas ao sol, e cai o orvalho,

e torna a seus queixumes filomela;

este cuidado que co sono atalho

em sonhos me parece; que o que a gente

para descanso tem, me dá trabalho.

E despois de acordado, cegamente

(ou, por milhor dizer, desacordado,

que pouco acordo tem um descontente)

dali me vou com passo carregado,

a um outeiro erguido, e ali me assento,

soltando a rédea toda a meu cuidado.

Despois de farto já de meu tormento,

dali estendo os olhos saudosos

à parte aonde tenho o pensamento.

Não vejo senão montes pedregosos;

e os campos sem graça e secos vejo

que já floridos vira e graciosos.

Vejo o puro, suave e brando Tejo,

com as côncovas barcas, que, nadando,

vão pondo em doce efeito seu desejo.

as co brando vento navegando, o

utras cos leves remos, brandamente

as cristalinas águas apartando.

Dali falo co a água, que não sente

com cujo sentimento a alma sai

em lágrimas desfeita claramente.

Ó fugitivas ondas, esperai!

que, pois me não levais em companhia

ao menos estas lágrimas levai,

até que venha aquele alegre dia

que eu vá onde vós is, contente e ledo.

Mas tanto tempo quem o passaria?

Não pode tanto bem chegar tão cedo,

porque primeiro a vida acabará

que se acabe tão áspero degredo.

Mas esta triste morte que virá,

se em tão contrário estado me acabasse,

a alma impaciente adonde irá?

Que, se às portas tartáreas chegasse,

temo que tanto mal pola memória

nem ao passar de Lete lhe passasse.

Que, se a Tântalo e Tício for notória

a pena com que vai que a atormenta,

a pena que lá tem terão por glória.

Esta imaginação me acrescenta

mil mágoas no sentido, porque a vida

de imaginações tristes se sustenta.

Que, pois de todo vive consumido,

porque o mal que possui se resuma,

imagina na glória possuida,

até que a noite eterna me consuma,

ou veja aquele dia desejado,

em que Fortuna faça o que costuma;

—se nela há i mudar um triste estado.

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Índice

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14

Elegia

( CAPÍTULO )

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quele mover d'olhos excelente,

aquele vivo espírito inflamado

do cristalino rosto transparente;

aquele gesto imoto e repousado,

que estando n'alma propriamente escrito,

não pode ser em verso trasladado;

aquele parecer que é infinito

para se compreender de engenho humano,

o qual ofendo em quanto tenho dito,

me inflama o coração dum doce engano,

m'enleva e engrandece a fantasia,

que não vi maior glória que meu dano.

Oh bem-aventurado seja o dia

em que tomei tão doce pensamento,

que de todos os outros me desvia!

E bem-aventurado o sofrimento

que soube ser capaz de tanta pena,

vendo que o foi da causa o entendimento!

Faça-me, quem me mata, o mel que ordena;

trate-me com enganos, desamores;

que então me salva, quando me condena.

E se de tão suaves disfavores

penando vive üa alma consumida,

oh! que doce penar! que doces dores!

E se üa condição endurecida

também me nega a morte por meu dano,

oh! que doce morrer! que doce vida!

E se me mostra um gesto brando e humano,

como que de meu mal culpada se acha,

oh! que doce mentir! que doce engano!

E se em querer-lhe tanto ponho tacha,

mostrando refrear o pensamento,

oh! que doce fingir! que doce cacha!

Assi que ponho já no sofrimento

a parte principal de minha glória,

tomando por milhor todo o tormento.

Se sinto tanto bem só na memória

de vos ver, linda Dama, vencedora,

que quero eu mais que ser vossa a vitória?

Se tanto vossa vista mais namora

quanto eu sou menos para merecer-vos,

que quero eu mais que ter-vos por Senhora ?

Se procede este bem de conhecer-vos

e consiste o vencerem ser vencido,

que quero eu mais, Senhora, que querer-vos?

Se em meu proveito faz qualquer partido,

só; na vista duns olhos tão serenos,

que quero eu mais ganhar que ser perdido?

Se meus baixos espritos de pequenos,

ainda não merecem seu tormento,

que quero eu mais, que o mais não seja menos?

A causa, enfi, m'esforça o sofrimento,

porque, apesar do mal, que me resiste,

de todos os trabalhos me contento;

que a razão faz a pena alegre ou triste.

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Índice

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15

Elegia

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e quando contemplamos as secretas

Causas, por que o mundo se sustenta,

o revolver dos céus e dos planetas;

e se quando à memória se apresent a

este curso do Sol, que é tão medido

que um ponto só não mingua nem se aumenta;

aquele efeito, tarde conhecido,

da Lua, em ser mudável tão constant e

que minguar e crecer é seu partido;

aquela natureza tão possant e

dos Céus, que tão conforme se contrários

caminham, sem parar um breve instante ;

aqueles movimentos ordinários,

a que responde o tempo, que não mente,

cos efei os da Terra necessáros;

se quando, enfim, revolve sutilmen te

tantas cousas a leve fantasia,

sagaz, escrutadora e diligente;

vê bem, se da razão se não desvia,

o altíssimo Ser, puro e divino,

que tudo pode, manda, move e cria ;

sem fim e sem começo: um ser contino;

um Padre grande, a quem tudo é possível,

por mais árduo que seja ao homem indino;

um saber infinito, incompreensível;

üa verdade que nas cousas anda,

que mora no visível e no invisível.

Esta Potência, enfim, que tudo manda,

esta Causa das causas, revestida

foi desta nossa carne miseranda.

Do amor e da justiça compelida,

polos erros da gente, em mãos da gente

(como se Deus não fosse!) perde a vida.

Ó cristão descuidado e negligente

pondera isto, que digo, repousado,

não passes por aqui tão levemente.

Não, que aquele Deus alto incriado,

Senhor das cousas todas, que fundou

o Céu, a Terra, o fogo e o mar irado,

não do confuso Caos, como cuidou

a falsa teologia e povo escuro,

que nesta só verdade tanto errou;

não dos átomos falsos de Epicuro;

não do largo Oceano, como Tales,

mas só do pensamento casto e puro.

Olha, animal humano, quanto vales,

que por ti este grande Deus padece,

novo modo de morte, novos males.

Olha que o Sol no Olimpo se escurece,

não por oposição doutro planeta,

mas só porque virtude lhe falece.

Não vês que a grande máquina inquieta

do mundo se desfaz toda em tristeza,

e não por natural causa secreta?

Não vês como se perde a natureza?

O ar se turba? o mar, batendo, geme,

desfazendo das pedras a dureza?

Não vês que os montes caem? a terra treme?

E que até na remota e grande Atenas,

o sábio Dionísio sente e teme?

O sumo Deus! tu mesmo te condenas

pelo mal em que eu só sou tão culpado,

a Amanhas afrontas, tantas penas.

Por mim, Senhor, no mundo reputado

por falso e por quebrantados da lei

a fama de ti se põe do meu pecado.

Eu, Senhor, sou ladrão; tu, justo Rei;

eu, só furtei; tu, com ladrões padeces;

a pena a-ti se dá do que eu pequei.

Eu, servo sem valor; tu, sumo preço,

em preço vil te pões, por me tirares

do cativeiro eterno, que mereço.

Eu, por perder-te; e tu, por me ganhares,

te dás aos homens baixos, que te vendem,

só para os homens presos resgatares.

A ti, que as almas soltas, a ti prendem;

a ti, sumo Juiz, ante juízes te acusam,

polo error dos que te ofendem.

Chamem-te malfeitor, não contradizes;

sendo tu dos Profetas a certeza,

dizem que quem te fere profetizes.

Rim-se de ti; tu choras a crueza

que sobre eles virá. A gente dura,

por quem tu vens ao mundo, te despreza.

O teu rosto, de cuja fermosura

se veste o Céu e o Sol resplandecente,

diante de que muda está a Natura,

com cruas bofetadas da vil gente,

de precioso sangue está banhado,

cuspido, arrepelado cruelmente.

Aquele corpo tenro e delicado,

sobre todos os Santos sacrossanto,

de açoutes rigorosos flagelado;

despois, coberto mal de um pobre manto,

que se pegava às carnes magoadas,

para dobrar-lhe as dores outro tanto.

Magoavam-no as chagas não curadas,

um tormento causando-lhe, excessivo,

ao despir pelas mãos cruéis e iradas.

As santíssimas barbas de Deus vivo,

de resplandor ornadas lhe arrancavam,

para desempenhar Adão cativo.

Com cordas pelas ruas o levavam,

levando sobre os ombros o trofeu

das vitórias que as almas alcançavam.

O tu que passas, homem Cireneu,

ajuda um pouco este Homem verdadeiro,

que agora como humano enfraqueceu!

Olha que o corpo, aflito do marteiro

e dos longos jejuns debilitado,

não pode já co peso do madeiro.

Oh não enfraqueçais, Deus encarnado!

Essas quedas, que tanto vos magoam,

suportai, Cavaleiro sublimado!

Que aquelas altas vozes que lá soam,

Padres são que estão no Limbo escuro,

que já de louro e palma vos coroam.

Todos vos bradam, que subais ao muro

da cidade infernal, e que arvoreis

em cima essa bandeira, mui seguro.

Oh Santos Padres, não vos apresseis,

que muito mais a Deus que a vós custaram

essas duras prisões em que jazeis!

quelas mãos, que o mundo edificaram,

aqueles pés, que pisam as estrelas,

com duríssimos pregos se encravaram.

Mas qual será a pessoa que as querelas

da angustiada Virgem contemplasse

que não se mova à dor e à mágoa delas?

E que dos olhos seus não estilasse

tanta cópia de lágrimas ardentes

que carreiras no rosto assinalasse?

Oh quem lhe vira os olhos refulgentes

desfazendo-se em lágrimas, regando

aquelas belas faces excelentes!

Quem a vira cos gritos ir tocando

as estrelas, a quem responde o Céu,

cos acentos dos Anjos retumbando!

Quem vira quando o claro rosto ergueu

a ver o Filho, que na Cruz pendia,

donde a nossa saúde descendeu!

Que mágoas tão chorosas que diria!

Que palavras tão míseras e tristes

para o Céu, para a gente espalharia!

Pois que seria, Virgem, quando vistes

com fel nojoso e com vinagre amaro

matar a sede ao Filho que paristes?

Não era este o licor suave e claro

que, para o confortar, então daríeis

a quem vos era, mais que a vida, caro.

Como, Virgem Senhora, não corríeis

a dar as tetas puras ao Cordeiro

que padecer na Cruz com sede víeis?

Não só era esse, Senhora, o verdadeiro

poto, que vosso Filho desejava

morrendo polo mundo num madeiro;

mas [era] a salvação, que ali ganhava

para o mísero Adão, que ali bebia

na fonte, que do peito lhe manava.

Pois, ó pura e Santíssima Maria,

que, enfim, sentistes esta magoa, quanto

a gravidade dela o requeria;

dessa Fonte sagrada e peito santo

me alcançai üa gata, com que lave

a culpa, que me agrava e pesa tanto.

Do licor salutífero e suave

me abrangei, com que mate a sede dura

deste mundo tão cego, torpe e grave.

Assi, Senhora, toda a criatura

que vive e viverá, que não conhece

a Lei do vosso Filho, santa e pura;

o falsíssimo herege, que carece

da graça, e com danado e falso esprito

perturba a Santa Igreja, que florece;

O povo pertinaz, no antigo rito,

que só o desterro seu, que tanto dura,

lhe diz que é pena igual ao seu delito;

o torpe Ismaelita, que mistura

as leis, e com preceitos viciosos

na terra estende a seita falsa, impura;

os idólatras maus, supersticiosos,

vários de opiniões e de costume,

levados de conceitos fabulosos;

as mais remotas gentes, onde o lume

da nossa fé não chega, nem que tenham

religião algüa se presume;

assi todos, enfim, Senhora, venham

confessar um só Deus crucificado,

e por nenhum respeito se detenham.

Mas de todos o vicio já passado,

o Seu nome co vosso, neste dia

seja por todo mundo celebrado

E respondam os Céus: JESUS, MARIA.

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Índice

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16

Elegia

À morte de D. Miguel de Meneses,

filho de D. Henrique de Meneses,

governador da casa do Cível, que

morreu na Índia

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ue novas tristes são, que novo dano,

que mal inopinado incerto dano,

tingindo de temor o vulto humano?

Que vejo as praias húmidas de Goa

ferver de gente atónita e torvada

do rumor que de boca em boca soa.

É morto D. Miguel (ah! crua espada!)

e parte da lustrosa companhia

que se embarcou na alegre e triste armada;

de espingarda ardente e lança fria

passado pelo torpe e inico braço

que nossas altas famas injuria.

Não lhe valeu rodela ou peito de aço,

nem animo de Avós altos herdado,

com que se defendeu tamanho espaço;

não ter-se em derredor todo cercado

de corpos de inimigos, que exalavam

a negra alma do corpo traspassado;

não com palavras fortes, que voavam

a animar os incertos companheiros,

que fortes caem e tímidos viravam.

Mas já postos nos termos derradeiros,

passados por mil partes e cortados

os membros, só do nobre esforço inteiros,

os olhos, de furor acompanhados,

que inda na morte as vidas amedrontam

dos fracos inimigos espantados,

postos no Céu, parece que apresentam

a pura alma à suprema Eternidade,

por quem os Céus e Terra se sustentam.

E, pedindo dos erros que na idade

verde e quase inocente já fazia,

perdão à pia e justa Majestade,

as rosas apartou da nove fria;

e, como flama fraca, a quem falece

seu húmido licor, de que vivia,

nas mãos do Coro Angélico, que dece,

se entrega; e vai gozar da vida eterna

que com tão justa morte se merece.

Vai-te, alma, em paz à glória sempiterna!

Vai, que quem pela Lei santa e divina

morre, a dá a Deus, que os Céus governa.

Quando pela razão devida e dina

do Rei, da Pátria, e honra dos passados

sacrificar a vida nos ensina,

nos assentos de estrelas esmaltados

lhe dá lugar a altíssima Clemência

entre os heróis à glória destinados.

Mas, ah! quem sofrerá perpétua ausência

e tão caro Senhor, tão fido amigo!

Quem porá contra mágoas resistência?

Aquele animo grande, que do antigo

de seus maiores era alto retrato,

desprezador de todo o vil perigo;

misturado com doce e brando trato

cos iguais Juntamente' e cos menores

a todos amoroso, a todos grato;

aquele esprito nobre, onde maiores

esperanças cresciam, se o tão duro

caso, as não cortara em novas flores;

em verde idade, siso já maduro,

alegre riso, ledo e aberto peito, e

m repousado espírito seguro;

não soberbo e por arte contrafeito,

mas todo puro e, enfim, da natureza

mais para o Céu que para a terra feito;

também do corpo a humana gentileza

o bem talhado gesto, que mostrava

forças iguais e manhas com destreza;

a cor, que o fresco rosto matizava,

as rosas, flores novas de alegria,

com que o Verão as faces adornava;

tudo os fios da Morte, que desvia

dos propósitos nossos e salteia,

cortaram cruamente, quando abria.

Deixa pois tu, fermosa Citereia,

do gentil filho e neto de Ciniras

o pranto pela morte horrenda e feia.

E tu, dourado Apolo, que suspiras

pelo crespo Hiacinto, moço caro,

por quem a clara luz ao mundo tiras;

vinde e chorai um moço ao mundo raro,

não de ferino dente vulnerado,

nem de animal algum que haja reparo,

mas só do fero imigo traspassado;

que, sem dúvida incerta ou pio medo,

a vida pôs nas mãos de Marte irado.

Está tu também, moço Idálio, quedo,

deixa de dar o venenoso mel a beber

pelos olhos triste e ledo,

que já os fermosos olhos de Miguel

cobertos são do negro e escuro manto

da lei geral, a todos mais cruel.

E vós, filhas de Téspis, que do canto

podeis bem mitigar a lei imensa

dos irmãos generosos e alto pranto,

não consintais que façam larga ofensa

à grande integridade, que, se devem,

não são águas do dano recompensa.

Que já, diante, os olhos me descrevem,

quando as bocas da fama voadora

ao pátrio e claro Tejo as novas levem,

a profunda tristeza, que em üa hora

tal posse tomará dos altos peitos,

que a razão quase quase deite fora.

Ali, de dor, os corações sujeitos

pesadas lhe serão consolações

e pesados exemplos e respeitos.

Pequena é certo a dor, que com razões

se pôde refrear, nem com memória

de outros antigos e integros varões.

Mas porém se igualais a vida à glória,

meu grande Dom Filipe, e pretendeis d

eixar de vossas obras larga história,

eu não vos admoesto, que estreiteis

o coração na estóica disciplina,

onde livre de efeitos vos mostreis,

que mal natura nossa determina

medo, esperanças, dores e alegria,

como o Cínico velho nos ensina.

lmanidade estúpida (diria

o sulmonense canto) e vil rudeza

é não sentir afeitos, que a alma cria.

Porém, se não sentir nada é bruteza,

e se paixão de vida se consente,

também o sentir muito é já fraqueza.

Se dói a opinião do mal presente,

e medo e opinião do mal futuro,

são, enfim, tudo opiniões da gente.

O verdadeiro sábio está seguro

de leves alegrias e de espanto de dor,

que turba da alma o licor puro.

Inda antes que aconteça o riso e o pranto

os tem já no sentido meditados,

livre está de alvoroço e de quebranto.

E como de alta torre vê cuidados

humanos vãos, e aquela indiferença

de ambições e cobiças e Recados;

todo caso acha nele só presença,

que, como as febres são da carne humana,

assi os afeitos d'alma são doença.

Se esta doutrina credes, que é profana,

ponde os olhos na nossa, que é divina,

e sobre todas santa e soberana.

Vereis Arão, que não se contamina

sobre os montes seus, que defendida

a dor lhe foi da santa disciplina.

Não chega a ver parentes, que da vida

partidos são, que n'alma a Deus agrada

que nenhüa aflição do mundo impida.

Nós somos geração a Deus dicada

sacerdotal, que em tempo nenhum deve

do gentílico culto ser tocada.

Se dos antigos Padres já se escreve,

que, chorando, aos mortos enterraram

com dor e pranto público, e não leve,

era porque ainda as portas não quebraram

do Céu sereno aquelas mãos cravadas

que os antigos contágios alimparam.

E também por ornar as sempre usadas

pompas do funeral enterramento

com públicas exéquias costumadas.

Esta alta fortaleza e sofrimento

como a forte Varão vos é devido,

e como lei do santo documento.

Bem conheço que o corpo assi perdido,

que do sepulcro nobre aqui carece

será de aves ou feras consumido.

Mortos os Espartanos valerosos,

da fera multidão fazendo estremos

tais epitáfios tinham gloriosos:

Dirás, hóspede, tu, que aqui jazemos

passado do inimigo fero, enqnanto

às santas leis da Pátria obedecemos.

Fugindo os Persas vão com frio espanto,

mas acham as mulheres no caminho

amostrando-lhe o ventre sem ter manto:

—Pois fugis do perigo, que é vizinho,

fracos! vinde esconder-vos (lhe diziam)

outra vez no materno, escuro ninho.

Vedes quais com mais glória ficariam

se aqueles que enfim morreram pelo Estado,

se os outros, que as mulheres injuriam.

Mas tu, claro Miguel! que já acordado

deste sonho tão breve, estás naquela

torre do Céu, seguro e repousado,

onde, com Deus unida a forte e bela

alma, com teus maiores reluzindo,

por cada chaga tens üa clara estrela;

os pés o cristalino Céu medindo,

pisando essas lucíferas Esferas,

já da terrena os olhos encobrindo;

agora um curso e outro consideras,

agora a vaidade dos mortais,

que tu tam bem passaras, se viveras.

Mais a pena cantara, a poder mais.

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Índice

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17

Elegia

Dom Leonis Pereira sobre o livro

e Peão de Magalhães lhe of ereceu do

descobrimento da terra de Santa Cruz

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espois que Magalhães teve tecida

a breve história sua, que ilustrasse

a terra Santa Cruz, pouco sabida,

imaginando a quem a dedicasse,

ou com cujo favor defenderia seu livro,

de algum zoilo que ladrasse;

tendo nisto ocupada a fantasia,

lhe sobreveio um sono repousado,

antes que o Sol abrisse o claro dia.

Em sonhos lhe aparece, todo armado,

Marte, brandindo a lança furiosa,

com que fez, quem o viu, todo enfiado,

dizendo, em vez pesada e temerosa:

Não é justo que a outrem se ofereça

nenhüa obra que possa ser famosa,

senão a quem por armas resplandeça

no mundo todo com tal nome e fama

que louvor imortal sempre mereça.

Isto assi dito, Apolo, que da flama

celeste guia os carros, de outra parte

se lhe apresenta, e por seu nome o chama,

dizendo:—Magalhães, posto que Marte

com seu terror te espante, todavia

comigo deves só aconselhar-te.

Um Varão, sapiente, em quem Talia

pôs seus tesouros e eu minha ciência,

defender tuas obras poderia.

E justo que a escritura na prudência

ache só defensão, porque a dureza

das armas é contrária da eloquência.

Assi disse; e, tocando com destreza

a cítara dourada, começou

de mitigar de Marte a fortaleza.

Mas Mercúrio, que sempre costumou

a despartir porfias duvidosas,

co caduceu na mão, que sempre usou,

determina compor as perigosas

Opiniões aos deuses inimigos,

com razões boas, justas e amorosas;

e disse:—Bem sabemos dos antigos

heróis e dos modernos, que provaram

de Belona os gravíssimos perigos,

que também muitas vezes ajuntaram

às armas eloquência, porque as Musas

mil capitães na guerra acompanharam.

Nunca Alexandre ou César, nas confusas

guerras deixaram o estudo em breve espaço,

nem armas da ciência são escusas.

Nüa mão livros, noutra ferro e aço,

a üa rege e ensina, a outra fere;

mais co saber se vence que co braço.

Pois, logo, Varão grande, se requere,

que com teus dões, Apolo, ilustre seja,

e de ti, Marte, palma e glória espere.

Este vos darei eu, em quem se veja

saber e esforço no sereno peito,

que é Dom Leonis, que faz ao mundo enveja.

Deste as Irmãs em vendo o bom sujeito,

todas nove nos braços o tomaram,

criando-o co seu leite no seu leito.

As artes e ciência lhe ensinaram,

inclinação divina lhe influiram,

as virtudes morais, que o logo ornaram.

Daqui os exercícios o seguiram,

das armas no Oriente, onde primeiro

um soldado gentil instituiram.

Ali tais provas fez de cavaleiro,

que de cristão magnânimo e seguro,

a si mesmo venceu por derradeiro.

Despois, já capitão forte e maduro,

governando toda Áurea Quersoneso,

lhe defendeu co braço o débil muro;

porque vindo a cercá-la todo o peso

do poder dos Achéns, que se sustenta

do sangue alheio, em fúria todo aceso;

este só, que a ti, Marte, representa,

o castigou de sorte, que o vencido

de ter quem fique vivo se contenta.

Pois tanto que o grão Reino defendido

deixou segunda vez com maior glória,

para o ir governar foi elegido.

E não perdendo ainda da memória,

os amigos, 0 seu governo brando,

os imigos, o dano da vitória;

uns, com amor intrínseco, esperando

estão por ele, e os outros, congelados,

o vão, com temor frio, receando.

Pois vede se serão desbaratados

de todo por seu braço, se tornasse,

e dos mares da Índia degradados;

porque é justo que nunca lhe negasse

o conselho de Olimpo alto e subido

favor e ajuda, com que pelejasse.

Pois aqui certo está bem dirigido

de Magalhães o livro, este só deve

de ser de vós, ó deuses, escolhido.

isto Mercúrio disse, e logo em breve

se conformaram nisto Apolo e Marte,

e voou juntamente o sono leve.

Acorda Magalhães, e já se parte

a vos oferecer, Senhor famoso,

tudo o que nele pôs ciência e arte.

Tem claro estilo, engenho curioso

para poder de vós ser recebido,

com mão benina de animo amoroso.

Porque só de não ser favorecido

um claro esprito, fica baixo e escuro:

pois seja ele convosco defendido

como o foi de Malaca o fraco muro.

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1.

Ode

À Lüa

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etém um pouco, Musa, o largo pranto

que Amor te abre do peito;

e vestida de rico e ledo manto,

dêmos honra e respeito

àquela cujo objeito

todo o mundo alumia,

e quando escuro está é mais que o dia.

Ó Délia, que, apesar da névoa grossa,

cos teus raios de prata

a escura noite fazes, que não possa

encontrar o que trata,

e o que nalma retrata,

Amor por teu divino

rosto, por que endoudeço e desatino:

Tu, que de fermosíssimas estrelas

coroas e rodeias

teus cabelos d'argento e faces belas,

e os campos fermoseias

co as rosas que semeias,

co as boninas que gera

o teu celeste amor na Primavera:

Pois, Délia, dos teus céus vendo estás quantos

furtos de puridades,

suspiros, mágoas, ais, músicas, prantos,

as amantes vontades,

üas por saudades,

outras por crus indícios,

fazem das próprias vidas sacrifícios;

vejo teu Endimião por estes montes,

suspenso o Céu, olhando,

e o teu nome, cos olhos feitos fontes,

embalde e em vão chamando,

pedindo e suspirando,

mercês à tua beldade

sem em ti achar üa hora piedade.

Por ti feito pastor de branco armento,

as selvas solitárias

acompanhado só do pensamento,

conversa as alimárias,

de todo amor contrárias,

mas não como ti duras,

onde lamenta e chora desventuras.

Por ti guarda o sitio fresco d'Ílio

suas sombras fermosas;

para ti, Erimanto e o lindo Epilio

as mais purpúreas rosas;

e as drogas cheirosas

deste nosso Oriente

também Arábia Felix eminente.

De que pantera, tigre, ou leopardo

as ásperas entranhas

não temeram o agudo e fero dardo,

quando pelas montanhas

mui remotas e estranhas

ligeira atravessavas,

tão fermosa que Amor de amor matavas?

Das castas virgens sempre os altos gritos,

clara Lucina, ouviste,

renovando lhe a força e os espritos;

mas os daquele triste

já nunca consentiste

ouvi los um momento,

para ser menos grave seu tormento.

Não fujas de mim assi, nem assi te escondas

dum tão fiel amante!

Olha como suspiram estas ondas,

e como o velho Atlante

o seu colo arrogante

move piadosamente,

ouvindo a minha voz fraca e doente.

Triste de mim, que o pior é queixar-me,

pois minhas queixas digo

a quem já ergue as mãos para matar-me,

como a crue imigo;

mas eu meu fado sigo,

que a isto me destina

e isto só pretende e só me ensina.

Quantos dias há que o Céu me desengana,

e eu sempre porfio

cada vez mais na minha teima insana!

Tendo livre alvedrio,

não fujo o desvario;

e este, que em mim vejo,

para esperança minha e meu desejo.

Oh! quanto milhor fora que dormissem

um sono perenal

estes meus olhos tristes, e não vissem

a causa de seu mal

fugir, a tempo tal,

mais que dantes, por teima,

mais cruel que ussa fera, mais que ema.

Ai de mim, que me abraso em fogo vivo,

com mil mortes ao lado,

e, quando mouro mais, então mais vivo!

Porque assi me há ordenado

meu infelice estado

que, quando mais me convida

a morte, para a morte tenha vida.

Minha secreta amiga, mansa noite,

estas rosas (porquanto

ouviste meus queixumes) ora dou te

este fresco adianto,

húmido ainda do pranto

e lágrimas da esposa

do cioso Titã, branca e fermosa.

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2.

Ode

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ão suave, tão fresca e tão fermosa,

nunca no Céu saiu

a Aurora no princípio do Verão,

às flores dando a graça costumada,

como a fermosa, mansa fera, quando

um pensamento vivo me inspirou,

por quem me desconheço.

Bonina pudibunda ou fresca rosa

nunca no campo abriu,

quando os raios do Sol no Touro estão,

de cores diferentes esmaltada,

como esta flor, que, os olhos inclinando,

o sofrimento triste costumou

à pena que padeço.

Ligeira, bela Ninfa, linda, irosa,

não creio que seguiu

Sátiro, cujo brando coração

d'amores comovesse fera irada,

que assi fosse fugindo e desprezando

este tormento, onde Amor mostrou

tão próspero começo.

Nunca, enfim, cousa bela e rigorosa

Natura produziu

que iguale àquela forma e condição,

que as dores em que vivo estima em nada.

Mas com tão doce gesto, irado e brando

o sentimento e a vida me enlevou,

que a pena lhe agradeço.

Bem cuidei de exaltar em verso ou prosa

aquilo que a alma viu

antre a doce dureza e mansidão,

primores de beleza desusada;

mas, quando quis voar ao Céu, cantando,

entendimento e engenho me cegou

luz de tão alto preço.

Naquela alta pureza deleitosa

que ao mundo se encobriu

e nos olhos angélicos, que são

senhores desta vida destinada,

e naqueles cabelos, que, soltando

ao manso vento, a vida me enredou,

me alegro e entristeço.

Saudade e suspeita perigosa,

que Amor constituiu

por castigo daqueles que se vão;

temores, penas d'alma desprezada,

fera esquivança, que me vai tirando

o mantimento que me sustentou,

a tudo me ofereço.

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Índice

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3.

Ode

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e de meu pensamento

tanta razão tivera de agravar me

quanta de meu tormento

a tenho de queixar me,

puderas, triste lira, consolar me.

E minha voz cansada,

que noutro tempo foi alegre e pura,

não fora assi tornada,

[com tanta desventura],

tão rouca, tão pesada, nem tão dura.

E ser como soía,

pudera levantar vossos louvores;

vós, minha Hierarquia,

ouvíreis meus amores,

que exemplo são ao mundo, já, de dores.

Alegres meus cuidados,

contentes dias, horas e momentos,

oh! quão bem alembrados

sois de meus pensamentos,

reinando agora em mim, duros tormentos!

Ai, gostos fugitivos,

ai, glória já acabada e consumida,

cruéis males esquivos,

que me deixais a vida

quão cheia de pesar, quão destruída!

Mas como não é morta

a triste vida já, que tanto dura?

Como não abre a porta

a tanta desventura,

que em vão co seu poder, o tempo cura?

Mas, para padecê la,

se esforça meu sujeito e convalece;

que, só para dizê la,

a força me falece,

e de todo me cansa e m'enfraquece.

Oh! bem afortunado,

tu, que alcançaste com lira toante,

Orfeu, ser escutado

do fero Radamante,

e cos teus olhos ver a doce amante!

As infernais figuras

moveste com teu canto docemente;

as três Fúrias escuras,

implacáveis à gente,

quietas se tornaram, de repente.

Ficou como pasmado

todo o Estígio reino co teu canto;

e, quási descansado

de seu eterno pranto

cessou de alçar Sisifo o grave canto.

A ordem se mudava

das penas que ordenava ali Plutão,

em descanso tornava

a roda de Ixião,

e em glória quantas penas ali são.

Pelo qual, admirada

a Rainha infernal e comovida,

te deu a desejada

esposa que, perdida,

de tantos dias já tivera a vida.

Pois minha desventura

como já não abranda üa alma humana

que é contra mim mais dura

e mui mais desumana

que o furor de Calírroë profana!

Ó crua, esquiva e fera,

duro peito, cruel, impedernido,

de algüa tigre fera,

da Hircânia nacido

ou dantre as duras rochas produzido!

Mas que digo, coitado,

e de quem fio em vão minhas querelas?

Só vós (ó do salgado,

húmido reino), belas

e claras Ninfas, condoei vos delas.

E, de ouro guarnecidas,

vossas louras cabeças levantando

sôbol' água erguidas,

as tranças gotejando,

sai alegres todas ver qual ando.

Saí em companhia

cantando e colhendo as lindas flores,

vereis minha agonia,

ouvireis meus amores,

assentareis meus prantos, meus clamores.

Vereis o mais perdido

e mais mofino corpo que é gerado;

que está já convertido

em choro, e neste estado

somente vive nele o seu cuidado.

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Índice

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4.

Ode

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ermosa fera humana,

em cujo coração soberbo e rudo

a força soberana

do vingativo Amor, que vence tudo,

as pontas amoladas

de quantas setas tinha, tem quebradas;

amada Circe minha

(posto que minha não, contudo amada),

a quem um bem que tinha

da doce liberdade desejada

pouco a pouco entreguei,

e, se mais tenho, inda entregarei:

Pois natureza irosa

da razão te deu partes tão contrárias

que, sendo tão fermosa,

folgues de te queimar em flamas várias,

sem arder em nenhüa

mais que enquanto alumia o mundo a Lua;

pois triunfando vás

com diversos despojos de perdidos,

que tu privando estás

de razão, de juízo e de sentidos,

e quási a todos dando

aquele bem que a todos vás negando;

pois tanto te contenta

ver o nocturno moço, em ferro envolto,

debaixo da tormenta

de Júpiter, em água e vento solto,

a porta que, impedido

lhe tem seu bem, de mágoa adormecido;

porque não tens receio

que tantas inocências e esquivanças

a deusa que põe freio

a soberbas e doudas esperanças

castigue com rigor,

e contra si se acenda o fero Amor?

Olha a fermosa Flora;

de despojos de mil suspiros rica,

pelo capitão chora

que lá em Tessália, enfim, vencido fica,

e foi sublime tanto

que altares lhe deu Roma e nome santo.

Olha em Lesbo aquela

no seu psalteiro insigne conhecida;

dos muitos que por ela

se perderam, perdeu a cara vida

na rocha que se inflama

com ser remédio estremo de quem ama.

Pelo moço escolhido,

onde mais se mostravam as três Graças;

que Vénus escondido

para si teve um tempo antr'as alfaças,

pagou co a morte fria

a má vida que a muitos já daria.

E, vendo-se deixada

daquele por quem tanto já deixara,

se foi desesperada

precipitar da infame rocha cara;

que o mal de mal querida

sabe que vida lhe é perder a vida.

—Tomai-me, bravos mares;

tomai-me vós, pois outrem me deixou!

E assi, dos altos ares

pendendo, com furor se arremessou.

Acude tu, suave,

acude, poderosa e divina ave!

Toma nas asas tuas,

Minino pio, Elisa; sem perigo,

antes que nessas cruas

águas caindo, apague o fogo antigo.

E digno amor tamanho

de viver e ser tido por estranho?

Não; que é razão que seja

para as lobas isentas, que amor vendem,

exemplo onde se veja

que também ficam presas as que prendem.

Assi deu por sentença

Némesis, que Amor quis que tudo vença.

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5.

Ode

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unca manhã suave,

estendendo seus raios pelo mundo,

despois de noite grave,

tempestuosa, negra, em mar profundo,

alegrou tanto nau, que já no fundo

se viu em mares grossos,

como a luz clara a mim dos olhos vossos.

Aquela fermosura

que só no virar deles resplandece,

com que a sombra escura

clara se faz, e o campo reverdece,

quando meu pensamento se entristece,

ela e sua viveza

me desfazem a nuvem da tristeza.

O meu peito, onde estais,

é, para tanto bem, pequeno vaso;

quando acaso virais

os olhos, que de mim não fazem caso,

todo, gentil Senhora, então me abraso

na luz que me consume

bem como a borboleta faz no lume.

Se mil almas tivera

que a tão fermosos olhos entregara,

todas quantas tivera

polas pestanas deles pendurara;

e, enlevadas na vista pura e clara,

(posto que disso indinas),

se andaram sempre vendo nas mininas.

E vós, que descuidada

agora vivereis de tais querelas,

de almas minhas cercada

não pudésseis tirar os olhos delas;

não pode ser que, vendo a vossa antr'elas,

a dor que lhe mostrassem,

tantas üa alma só não abrandassem.

as pois o peito ardente

üa só pode ter, fermosa Dama,

basta que esta somente,

como se fossem duas mil, vos ama,

para que a dor de sua ardente flama

convosco tanto possa

que não queirais ver cinza üa alma vossa.

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6.

Ode

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ode um desejo imenso

arder no peito tanto

que à branda e à viva alma o fogo intenso

lhe gaste as nódoas do terreno manto,

e purifique em tanta alteza o esprito

com olhos imortais

que faz que leia mais do que vê escrito.

Que a flama que se acende

alto tanto alumia

que, se o nobre desejo ao bem se estende

que nunca viu, e sente claro dia;

e lá vê do que busca o natural,

a graça, a viva cor,

noutra espécie milhor, que a corporal.

Pois vós, ó claro exemplo

de viva fermosura,

que de tão longe cá noto e contemplo

na alma, que este desejo sobe e apura;

não creais que não vejo aquela imagem

que as gentes nunca vêm,

se de humanos não têm muita ventagem.

Que, se os olhos ausentes

não vêm a compassada

proporção, que das cores excelentes

de pureza e vergonha é variada;

da qual a Poesia, que cantou

até aqui só pinturas,

com mortais fermosuras igualou;

se não vêm os cabelos

que o vulgo chama de ouro,

e se não vêm os claros olhos belos,

de quem cantam que são do Sol tesouro;

e se não vêm do rosto as excelências,

a quem dirão que deve

rosa, cristal e neve as aparências;

vêm logo a graça pura

a luz alta e severa

que é raio da divina fermosura

que na alma imprime e fora reverbera,

assi como cristal do Sol ferido,

que por fora derrama

a recebida flama, esclarecido.

E vêm a gravidade

com a viva alegria,

que misturada tem, de qualidade

que üa da outra nunca se desvia;

nem deixa üa de ser arreceada

por leda e por suave,

nem outra, por ser grave, muito amada.

E vêm do honesto siso

os altos resplandores, temperados

co doce e ledo riso,

a cujo abrir abrem no campo as flores;

as palavras discretas e suaves,

das quais o movimento

fará deter o vento e as altas aves;

dos olhos o virar

(que torna tudo raso),

do qual não sabe o engenho divisar

se foi por artifício, ou feito a caso;

da presença os meneios e a postura,

o andar e o mover se,

donde pode aprender se a fermosura.

Asuele não sei quê,

que espira não sei como,

que, invisível saindo, a vista o vê,

mas para o compreender não acha tomo;

o qual toda a toscana poesia,

que mais Febo restaura,

em Beatriz nem em Laura nunca via;

em vós a nossa idade,

Senhora, o pode ver,

se engenho e ciência e habilidade,

igual à fermosura vossa der,

como eu vi no meu longo apartamento,

qual em ausência a vejo.

Tais asas dá o desejo ao pensamento!

Pois se o desejo afina

üa alma acesa tanto

que por vós use as partes da divina,

por vós levantarei não visto canto,

que o Bétis me onça, e o Tibre me levante;

que o nosso claro Tejo

envolto um pouco vejo e dissonante.

O campo não o esmaltam

flores, mas só abrolhos

o fazem feio; e cuido que lhe faltam

ouvidos para mim, para vós olhos.

Mas faça o que quiser o vil costume;

que o sol, que em vós está,

na escuridão dará mais claro lume.

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Índice

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7.

Ode

A D. Manuel de Portugal

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quem darão de Pindo as moradoras,

tão doutas como belas,

florescentes capelas

do triunfante louro ou mirto verde,

da gloriosa palma, que não perde

a presunção sublime,

nem por força do peso algum se oprime?

A quem trarão na fralda [delicada]

rosas a roxa Clóris,

conchas a branca Dóris;

estas, flores do mar, da terra aquelas,

argênteas, ruivas, brancas e amarelas,

com danças e coreias

de fermosas Nereidas e Napeias?

A quem farão os hinos, odes, cantos,

em Tebas Anflon,

em Lesbos Arion,

senão a vós, por quem restituída

se vê da Poesia já perdida

a honra e glória igual,

Senhor Dom Manuel de Portugal?

Imitando os espritos já passados,

gentis, altos, reais,

honra benina dais

a meu tão baixo quão zeloso engenho.

Por Mecenas a vós celebro e tenho;

e sacro o nome vosso

farei, se algüa cousa em verso posso.

O rudo canto meu, que ressuscita

as honras sepultadas,

as palmas já passadas

dos belicosos nossos Lusitanos,

para tesouro dos futuros anos,

convosco se defende

da lei leteia, à qual tudo se rende.

Na vossa árvore, ornada de honra e glória,

achou tronco excelente

a hera florecente

para a minha até aqui, de baixa estima;

na qual, para trepar, se encosta e arrima;

e nelas subireis

tão alto quanto aos ramos estendeis.

Sempre foram engenhos peregrinos

da Fortuna envejados;

que, quanto levantados

por um braço nas asas são da Fama,

tanto por outro a sorte, que os desama,

co peso e gravidade

os oprime da vil necessidade.

Mas altos corações, dinos de império,

que vencem a Fortuna,

foram sempre coluna

da ciência gentil: Octaviano,

Cipião, Alexandre e Graciano,

que vemos imortais;

e vós, que nosso século dourais.

Pois, logo, enquanto a cítara sonora

se estimar pelo mundo,

com som douto e jucundo,

e enquanto produzir o Tejo e o Douro

peitos de Marte e Febo crespo e louro,

tereis glória imortal,

Senhor Dom Manuel de Portugal.

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Índice

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8.

Ode

A D. Francisco Coutinho,

Conde de Redondo, vice rei

da Índia

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quele único exemplo

de fortaleza heróica e ousadia,

que mereceu, no templo

da Fama eterna, ter perpétuo dia;

o grão filho de Tétis, que dez anos

flagelo foi dos míseros Troianos;

não menos ensinado

foi nas ervas e médica polícia

que destro e costumado

no soberbo exercício da milícia:

assi que as mãos que a tantos morte deram,

também a muitos vida dar puderam.

E não se desprezou,

aquele fero e indómito mancebo,

das artes que ensinou

para o lânguido corpo o intonso Febo;

que, se o temido Heitor matar podia,

também chagas mortais curar sabia.

Tais artes aprendeu

do semíviro mestre e douto velho,

onde tanto creceu

em virtude, ciência e em conselho,

que Télefo, por ele vulnerado,

só dele pôde ser despois curado

Pois a vós, ó excelente

e ilustríssimo Conde, do Céu dado

para fazer presente

de altos heróis o século passado;

em quem bem trasladada está a memória

de vossos ascendentes, honra e glória:

Posto que o pensamento

ocupado tenhais na guerra infesta,

ou co sanguinolento

Taprobano, ou Achém, que o mar molesta,

ou co Cambaio, oculto imigo nosso,

que qualquer deles teme o nome vosso;

favorecer a antiga

ciência, que já aniquiles estimou;

olhai que vos obriga

verdes que em vosso tempo rebentou

o fruto daquela horta, onde florecem

plantas novas, que os doutos` não conhecem.

Olhai que, em vossos anos,

üa horta produze várias ervas

nos campos indianos,

as quais aquelas doutas e protervas

Medeia e Circe nunca conheceram,

posto que a lei da Mágica excederam.

E vede carregado

d'anos, e trás a vária experiência,

um velho que, ensinado

das gangéticas Musas na ciência

Podalíria sutil e arte silvestre,

vence o velho Quiron, de Aquiles mestre;

o qual está pedindo

vosso favor e ajuda ao grão volume

que, impresso à luz saindo,

dará da Medicina um vivo lume,

e descobrir nos há segredos certos,

a todos os antigos encobertos.

Assi que não podeis

negar (como vos pede) benina aura:

que, se muito valeis

na sanguinosa guerra turca e maura,

ajudai quem ajuda contra a morte;

e sereis semelhante ao Grego forte.

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Índice

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9.

Ode

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ogem as neves frias

dos altos montes, quando reverdecem

as árvores sombrias;

as verdes ervas crecem,

e o prado ameno de mil cores tecem.

Zéfiro brando espira;

suas setas Amor afia agora;

Progne triste suspira

e Filomela chora;

o Céu da fresca terra se namora.

Vai Vénus citareia

cos coros das Ninfas rodeada;

a linda Panopeia,

despida e delicada,

com as duas irmãs acompanhada.

Enquanto as oficinas

dos Cíclopes Vulcano está queimando,

vão colhendo boninas

as Ninfas, e cantando,

a terra co ligeiro pé tocando.

Dece do duro monte

Diana, já cansada da espessura,

buscando a clara fonte,

onde, por sorte dura,

perdeu Actéon a natural figura.

Assi se vai passando

a verde Primavera e seco Estio;

trás ele vem chegando

despois o Inverno frio,

que também passará por certo fio.

Ir se há embranquecendo

com a frígida neve o seco monte;

e Júpiter, chovendo,

turbará a clara fonte;

temerá o marinheiro o Orionte.

Porque, enfim, tudo passa;

não sabe o tempo ter firmeza em nada;

e nossa vida escassa

foge tão apressada

que quando se começa é acabada.

Que foram dos Troianos

Hector temido, Eneias piadoso?

Consumiram te os anos,

ó Creso tão famoso,

sem te valer teu ouro precioso.

Todo o contentamento

crias que estava no tesouro ufano?

Ó falso pensamento!

Que, à custa do teu dano,

do douto Sólon creste o desengano!

O bem que aqui se alcança

não dura por possante, nem por forte;

que a bem aventurança,

durável de outra sorte,

se há de alcançar na vida para a morte.

Porque, enfim, nada basta

contra o terríbel fim da noite eterna;

nem pode a deusa casta

tornar à luz superna

Hipólito da escura noite averna.

Nem Teseu esforçado,

com manha, nem com força rigorosa,

livrar pode o ousado

Pirítoo da espantosa

prisão leteia, escura e tenebrosa.

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Índice

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10.

Ode

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quele moço fero

na Peletrónia cova doutrinado

do Centauro severo;

cujo peito esforçado

com tutanos de tigres foi criado;

na água fatal, minino,

o lava a mãe, pressaga do futuro,

para que ferro fino

não passe o peito duro

que de si mesmo a si se tem por muro.

A carne lhe endurece,

que ser não possa d'armas ofendida.

Cega! que não conhece

que pode haver ferida

n'alma, que menos dói perder a vida.

Que, aonde o braço irado

dos Troianos passava arnês e escudo,

ali se viu passado

daquele ferro agudo

do Minino que em todos pode tudo.

Ali se viu cativo

da cativa gentil, que serve e adora;

ali se viu que, vivo,

em vivo fogo mora,

porque de seu senhor se vê senhora.

Já toma a branda lira

na mão que a dura Pélias meneara;

ali canta e suspira,

não como lhe ensinara

o velho, mas o Moço que o cegara.

Pois, logo, quem culpado

será, se, de pequeno, oferecido

foi logo a seu cuidado,

no berço instituído

a não poder deixar de ser ferido?

Quem, logo fraco infante,

doutro mais poderoso foi sujeito,

que para cego amante

foi de princípio feito,

com lágrimas banhando o brando peito?

Se agora foi ferido

da penetrante seta e força de erva,

e se Amor é servido

que sirva à linda serva,

para que minha estrela me reserva?

O gesto bem-talhado,

o airoso meneio e a postura,

o rosto delicado,

que na vista afigura

que se ensina por arte a fermosura,

como pode deixar

de cativar quem tenha entendimento?

Que, a quem não penetrar

um doce gesto, atento,

não lhe é nenhum louvor viver isento.

Que aqueles cujos peitos

ornou d'altas ciências o destino,

esses foram sujeitos

ao cego e vão Minino,

arrebatados do furor divino.

O Rei famoso hebreio,

que, mais que todos soube, mais amou;

tanto, que a Deus alheio

falso sacrificou.

Se muito soube e teve, muito errou.

E o grão Sábio que ensina,

passeando, os segredos da Sofia,

à baixa concubina

do vil eunuco Hermia

ergueu aras, que aos deuses só devia.

Aras ergue a quem ama

o Filósofo insigne namorado.

Dói se a perpétua Fama

e grita que, culpado,

de lesa divindade é acusado.

Já foge donde habita;

já paga a culpa enorme com o desterro,

mas, oh! grande desdita!

Bem mostra tamanho erro

que doutos corações não são de ferro.

Antes na altiva mente,

no sutil sangue e engenho mais perfeito,

há mais conveniente

e conforme sujeito

onde se imprima o brando e doce afeito.

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Índice

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11.

Ode

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aquele tempo brando

em que se vê do mundo a fermosura,

que Tétis descansando

de seu trabalho está, fermosa e pura,

cansava o Amor o peito

do mancebo Peleu de um duro afeito.

Com ímpeto forçoso

lhe tinha fugido a bela Ninfa

quando, no tempo aquoso,

Noto ligeiro move a clara linfa,

serras no mar erguendo,

que as altas vão da terra desfazendo.

Esperava o mancebo,

com a dor que o seu peito n'alma sente,

um dos dias que Febo

o mundo todo abrasa em fogo ardente,

soltando as tranças d'ouro

em que Clície de amor faz seu tesouro.

Era o mês que Apolo

entre os irmãos celestes passa o tempo;

o vento enfreia Eolo,

para que o deleitoso passatempo

seja quieto e mudo;

que a tudo Amor obriga, e vence tudo.

O luminoso dia

os amorosos corpos despertava

na cega idolatria,

que o peito mais contenta e mais agrava;

onde o cego Minino

se faz crer dos humanos que é contino.

Quando a fermosa Ninfa

com todo ajuntamento venerando,

na pura e clara linfa

o cristalino corpo está lavando;

o qual, nas águas vendo,

nele, alegre de o ver, se está revendo:

O peito diamantino

em cuja branca teta Amor se cria;

o gesto peregrino,

cuja presença torna a noite, dia;

a graciosa boca,

que Amor a seus amores mais provoca;

os rubins graciosos;

e pérolas que escondem entre as rosas

os jardins deleitosos,

que o Céu plantou em faces tão fermosas;

o transparente colo,

que ciúmes a Dafne faz de Apolo;

O sutil movimento

dos olhos, cuja vista o Amor cegou;

o qual, com seu tormento,

nunca mais de tais olhos se apartou,

mas antes de contino

nas mininas o trazem por minino;

os fios espalhados

d'Amor que aos mais dos peitos faz cobiça,

onde Amor enredados

os corações humanos traz e atiça,

com férvido desejo

por onde ele começa a ser sobejo.

O mancebo Peleu,

que de Neptuno estava aconselhado,

vendo na terra o Céu

em tão bela figura tresladado,

mudo um pouco ficou,

porque logo Amor a fala lhe tirou.

Enfim, querendo ver

quem tanto mal de longe lhe fazia,

a vista foi perder,

porque, de puro amor, Amor não via;

ficando cego e mudo

contra as forças do Amor, que pode tudo.

Agora se aparelha

para a batalha; agora arremetendo;

agora se aconselha;

agora vai; agora está tremendo;

quando já de Cupido

com nova seta o peito viu ferido.

Remete o moço logo

para onde estava a chaga sem sossego,

e co sobejo fogo,

quanto mais perto estava, então mais cego

se via; e cum suspiro

na fermosa donzela emprega o tiro.

Vingado assi Peleu,

naceu deste amoroso ajuntamento

o forte Larisseu,

destruição do frígio pensamento;

que, por não ser ferido,

foi nas ondas estígias sumergido.

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Índice

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12.

Ode

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á calma nos deixou

sem flores as ribeiras graciosas;

já de todo secou

os cravos, lírios e as purpúreas rosas;

fogem da calma grave os passarinhos

para o sombrio emparo de seus ninhos.

Meneia os altos freixos

a branda viração, de quando em quando,

e dentre vários seixos,

o liquido cristal sai murmurando;

as gatas, que das alvas pedras saltam,

o prado, como pérolas, esmaltam.

Da caça já cansada,

busca a casta Titónia a espessura,

onde, à sombra deitada,

logre o doce repouso da verdura,

e sobre o seu cabelo crespo e louro

deixe cair o bosque o seu tesouro.

O Céu desimpedido

mostra o eterno lume das estrelas;

e de flores vestido,

üas vermelhas, outras amarelas,

se mostra alegre o bosque, alegre o monte,

o rio, o arvoredo, o prado, a fonte.

Porque como o minino

que a Júpiter pela águia foi levado,

no cerco cristalino

foi do amador de Clície visitado,

o bosque chorará, chorará a fonte,

o rio, o arvoredo, o prado, o monte.

O mar, que agora, brando,

é das lindas Nereidas cortado,

se irá alevantando

todo, em crespas escumas empolado;

o soberbo furar do negro vento f

fará por toda a parte movimento.

Lei é da Natureza

mudar se desta sorte o tempo leve,

suceder à beleza

da Primavera o fruto; à calma, a nove;

e tornar outra vez, por certo fio,

Outono, Inverno, Primavera, Estio.

Tudo, enfim, faz mudança,

quanto o claro Sol vê, quanto alumia;

nem se acha segurança

em tudo quanto alegra o belo dia;

mudam se as condições, muda se a idade,

a bonança, os estados e a vontade.

Só a minha inimiga

a dura condição nunca mudou,

para que o mundo diga

que, nela, lei tão certa se quebrou;

só ela em me não ver sempre está firme,

ou por fugir d'Amor, ou por fugir me.

Mas já sofrível fora

só ela em me matar, mostrar firmeza,

se não achara agora

também em mim mudada a natureza;

pois sempre o coração tenho turbado,

sempre d'escuras nuvens rodeado.

Sempre exprimento os fios

que em contino receio Amor me manda;

sempre os dous caudais rios

que em meus olhos abriu, quem nos seus anda,

correm, sem chegar nunca o Verão brando,

que tamanha aspereza vá mudando.

O Sol sereno e puro

que no fermoso rostro resplandece,

envolto em manto escuro

do triste esquecimento, não parece,

deixando em triste noite a triste vida,

que nunca é de luz nova socorrida.

Porém seja o que for:

mude se por meu dano, a Natureza;

perca a constância Amor;

a Fortuna inconstante ache firmeza;

e tudo se conjure contra mi,

mas eu firme estarei no que emprendi.

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Índice

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13.

Ode

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ão crua Ninfa, nem tão fugitiva,

com lindo pé pisou

verde erva, nem colheu as brancas flores,

soltando seus cabelos d'ouro fino

ao vento que em doces nós os olhos ata,

nem tão linda, discreta e tão fermosa

como esta minha imiga.

Aquilo que em pessoa que hoje viva

no mundo não se achou,

quis nela a Natureza, seus primores

mostrando, que se achasse de contino:

castidade e beleza; ua me mata,

a outra, de suave e deleitosa,

me faz doce a fadiga.

Mas esta bela fera, tão esquiva,

que o prazer me roubou,

quis-me pagar seus únicos louvores,

cantando eu num estilo dela indino;

porque, se de louvor tão alto trata,

não sei eu tão baixo verso e prosa

que escreva nem que diga.

Aquela luz que a do Sol claro priva,

e a minha me cegou;

aquele mover de olhos, minhas dores

causando no olhar manso e divino;

o doce rir, que esta alma desbarata,

[me] faz a sua pena desejosa

e de seu mal amiga.

De belos olhos veio a flama viva

que n'alma se ateou

com a lenha de vossos disfavores,

queimando dentro o coração mofino,

cujo fim, por mor dano, se dilata

co a esperança falsa e duvidosa

que forçado é que siga.

[Mas], minha ou vossa, vendo-se cativa

quem Deus livre criou,

se aqueixa desses olhos roubadores,

culpando ao claro raio peregrino;

mas logo a luz suave, que a resgata,

de vossa linda vista graciosa

a faz que se desliga.

Nenhüa que no mundo humana viva,

que o Criador formou

por milagre maior entre os maiores,

formou um feito de tal Feitor dino;

Deus não quer que sejais, Senhora, ingrata,

mas que ajudeis ua alma desditosa

que em vos servir periga:

a sofrer esta pena rigorosa

vosso valor me obriga.

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Índice

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14.

Oitava

A Dom António de Noronha

sobre o desconcerto do mundo

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uem pode ser no mundo tão quieto,

ou quem terá tão livre o pensamento,

quem tão exprimentado e tão discreto, t

tão fora, enfim, de humano entendimento

que, ou com público efeito, ou com secreto,

lhe não revolva e espante o sentimento,

deixando lhe o juízo quási incerto,

ver e notar do mundo o desconcerto?

Quem há que veja aquele que vivia

de latrocínios, mortes e adultérios,

que ao juízo das gentes merecia

perpétua pena, imensos vitupérios,

se a Fortuna em contrário o leva e guia,

mostrando, enfim, que tudo são mistérios,

em alteza d'estados triunfante,

que, por livre que seja, não se espante?

Quem há que veja aquele que tão clara

teve a vida que em tudo por perfeito

o próprio Momo às gentes o julgara,

ainda que lhe vira aberto o peito,

se a má Fortuna, ao bem somente avara,

o reprime e lhe nega seu direito,

que lhe não fique o peito congelado,

por mais e mais que seja exprimentado?

Demócrito dos deuses proferia

que eram só dous: a Pena e Beneficio.

Segredo algum será da fantasia

de que eu achar não posso claro indicio;

que, se ambos vêm por não cuidada

via a quem os não merece, é grande vicio

em deuses sem justiça e sem razão.

Mas Demócrito o disse, e Paulo não.

Dir me heis que, se este estranho desconcerto

novamente ao mundo se mostrasse,

que, por livre que fosse e mui experto,

não era de espantar se me espantasse;

mas que se já de Sócrates foi certo

que nenhum grande caso lhe mudasse

o vulto, ou de prudente, ou de constante,

que tome exemplo dele, e não me espante.

Parece a razão boa; mas eu digo

qu'é este uso da Fortuna tão danado

que, quanto mais usado e mais antigo,

tanto é mais estranhado e blasfemado.

Porque se o Céu, das gentes tão amigo,

não dá à Fortuna tempo limitado,

não é para causar mui grande espanto

que mal tão mal olhado dure tanto.

Outro espanto maior aqui me enleia:

que, conquanto Fortuna tão profana

com estes desconcertos senhoreia,

a nenhüa pessoa desengana.

Não há ninguém que assente nem que creia

este discurso vão da vida humana,

por mais que filosofe, nem que entenda,

que algum pouco do mundo não pretenda.

Diógenes pisava de Platão,

com seus sórdidos pés, o rico estrado,

mostrando outra mais alta presunção

em desprezar o fausto tão prezado.

—Diógenes, não vês que extremos

são esses que segues de mais alto estado

que, se de desprezar te prezas muito,

já pretendes do mundo fama e fruito?

Deixo agora reis grandes, cujo estudo

é fartar esta sede cobiçosa

de querer dominar e mandar tudo,

com fama larga e pampa sumptuosa.

Deixo aqueles que tomam por escudo

de seus vícios e vida vergonhosa

a nobreza dos seus antecessores,

e não cuidam de si que são piores.

Deixo aquele a quem o sono esperta

do grão favor do rei que serve e adora,

que se mantém desta aura falsa, incerta,

que dos corações tanto é senhora.

Deixo aqueles que estão co a boca aberta,

por se encher de tesouros, de hora em hora,

doentes desta falsa hidropesia

que, quanto mais alcança, mais queria.

Deixo outras obras vãs de vulgo errado,

a quem não há ninguém que contradiga,

nem doutra cousa algüa é sojugado

que d'üa opinião e usança antiga.

Mas pergunto ora a César esforçado,

ou a Platão divino, que me diga,

este das muitas terras em que andou,

estoutro, de vencê las, que alcançou?

César dirá: Sou dino de memória;

vencendo vários povos esforçados

fui Monarca do mundo; e larga história

ficará dos meus feitos sublimados.

E verdade; mas esse mando e glória

lograste o muito tempo? Os conjurados

Bruto e Cássio o dirão que, se venceste,

enfim, enfim, às mãos dos teus morreste.

Dirá Platão: Por ver o Etna e o Nilo

Fui a Sicília, ao Egipto e a outras partes,

só por ver e escrever em alto estilo

da natural ciência em muitas artes.

—O tempo é breve e queres consumi lo,

Platão, todo em trabalhos; e repartes

tão mal de teu estudo as breves horas

que, enfim, do falso Febo o filho adoras?

Pois quando deste mundo está apartada,

a alma, da prisão terreste e escura

está em tamanhas cousas ocupada

que da Fama que fica, nada cura.

Pois se o corpo terreno sinta nada,

o Cínico o dirá se porventura

no campo, onde deitado morto estava,

de si os cães e as aves enxotava.

Quem tão baixa tivesse a fantasia

que nunca em mores cousas a metesse

que em só levar seu gado à fonte fria

e mugir lhe o leite que bebesse!

Quão bem aventurado que seria!

Que, por mais que Fortuna revolvesse,

nunca em si sentiria maior pena

que pesar lhe da vida ser pequena.

Veria erguer do sol a roxa face,

veria correr sempre a clara fonte,

sem imaginar a água donde nace,

nem quem a luz esconde no horizonte.

Tangendo a frauta donde o gado pace,

conheceria as ervas do alto monte;

em Deus creria, simples e quieto,

sem mais especular nenhum secreto.

De um certo Trasilau se lê e escreve,

entre as cousas da velha antiguidade,

que perdido um grão tempo o siso

teve por causa düa grande infirmidade;

e enquanto, de si fora, doudo esteve,

tinha por teima e cria por verdade,

que eram suas as naus que navegavam,

quantas no porto Píreo ancoravam.

Por um senhor mui grande se teria

(além da vida alegre que passava),

pois nas que se perdiam não perdia,

e das que vinham salvas se alegrava.

Não tardou muito tempo quando, um dia,

um Crito, seu irmão, que ausente estava,

à terra chega; e vendo o irmão perdido,

do fraternal amor foi comovido.

Aos médicos o entrega, e com aviso

o faz estar à cura refusada.

Triste, que por tornar lhe o caro siso

lhe tira a doce vida descansada!

As ervas apolíneas, de improviso,

o tornam à saúde atrás passada.

Sesudo, Trasilau ao caro irmão

agradece a vontade, a obra não.

Porque, despois de ver se no perigo

dos trabalhos que o siso lhe obrigava,

e despois de não ver o estado antigo

que a vã opinião lhe apresentava,

Ó inimigo irmão, com cor d'amigo!

Para que me tiraste (suspirava)

da mais quieta vida e livre em tudo

que nunca pode ter nenhum sesudo?

Por que rei, por que duque me trocara?

Por que senhor de grande fortaleza?

Que me dava que o mundo se acabara,

ou que a ordem mudasse a natureza?

Agora é me pesada a vida cara;

sei que cousa é trabalho e que tristeza.

Torna me a meu estado, que eu te aviso

que na doudice so consiste o siso.

Vedes aqui, Senhor, mui claramente,

como Fortuna em todos tem poder,

senão só no que menos sabe e sente,

em quem nenhum desejo pode haver.

Este só pode rir da cega gente;

neste não pode nada acontecer;

nem estará suspenso na balança

do temor mau, da pérfida esperança.

Mas se o sereno Céu me concedera

qualquer quieto, humilde e doce estado,

onde com minhas Musas só vivera,

sem ver me em terra alheia degradado;

e ali outrem ninguém me conhecera,

nem eu conhecera outrem mais honrado,

senão a vós, também como eu contente,

que bem sei que o seríeis facilmente;

E ao longo düa clara e pura fonte,

que, em borbulhas nacendo, convidasse

ao doce passarinho que nos conte

quem da cara consorte o apartasse;

despois, cobrindo a neve o verde monte,

ao gasalhado o frio nos levasse,

avivando o juízo ao doce estudo,

mais certo manjar d'alma, enfim, que tudo;

cantara nos aquele que tão claro

o fez o fogo da árvore febeia,

a qual ele, em estilo grande e raro

louvando, o cristalino rio enfreia;

tangera nos na frauta Sannazaro,

Ora nos montes, ora pela aldeia;

passara celebrando o Tejo ufano

o brando e doce Lasso castelhano.

E connosco também se achara aquela

cuja lembrança e cujo claro gesto

n'alma somente vejo (porque nela

está em essência, puro e manifesto,

por alta influição de minha estrela),

mitigando o firme peito honesto,

entretecendo rosas nos cabelos,

de que tomasse a luz o Sol em vê los;

ali, enquanto as flores acolhesse,

ou pelo Inverno ao fogo acomodado,

quanto de mim sentira nos dissesse,

de puro amor o peito salteado:

não pedira eu então que Amor me desse

de Trasilau o insano e doudo estado,

mas que então me dobrasse o entendimento,

por ter de tanto bem conhecimento.

Mas... para onde me leva a fantasia?

Porque imagino em bem aventuranças

se tão longe a Fortuna me desvia

qu'inda me não consente as esperanças?

Se um novo pensamento Amor me cria

onde o lugar, o tempo, as esquivanças

do bem me fazem tão desamparado

que não pode ser mais que imaginado?

Fortuna, enfim, co Amor se conjurou

contra mim, porque mais me magoasse:

Amor a um vão desejo me obrigou,

só para que a Fortuna mo negasse.

A este estado o tempo me achegou,

e nele quis que a vida se acabasse;

se há em mim acabar se, que eu não creio;

que até da muita vida me receio.

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Índice

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15.

Oitava

A Dom Constantino, Vizo Rei da Índia

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omo nos vossos ombros tão constantes,

Príncipe ilustre e raro, sustenteis

tantos negócios árduos e importantes

dinos do largo Império que regeis;

como sempre nas armas rutilantes

vestido, o mar e a terra segureis

do pirata insolente, e do tirano

jugo do potentíssimo Otomano;

e como, com virtude necessária,

mal entendida do juízo alheio,

a desordem do vulgo temerária

na santa paz ponhais o duro freio;

se com minha escritura longa e vária

vos ocupasse o tempo, certo creio

que com ridiculosa fantasia

contra o comum proveito pecaria.

E não menos seria reputado

por doce adulador, sagaz e agudo,

que contra meu tão baixo e triste estado

busco favor em vós, que podeis tudo:

se, contra a opinião do vulgo errado,

vos celebrasse em verso humilde e rudo,

dirão que com lisonja ajuda peço

contra a miséria injusta que padeço.

Porém, porque a virtude pode tanto

no livre arbítrio (como disse bem

a Dario rei, o moço sábio e santo

que foi reedificar Hierusalém),

esta me obriga que, em humilde canto,

contra a tenção que a plebe ignara tem,

vos faça claro o que vos não alcança,

e não de prémio algum vil esperança.

Rómulo, Baco e outros que alcançaram

nomes de semideuses soberanos,

enquanto pelo mundo exercitaram

altos feitos e quási mais que humanos,

com justíssima causa se queixaram

que não lhe responderam os mundanos

favores do rumor, justos e iguais,

a seus merecimentos imortais.

Aquele que nos braços poderosos

irou a vida ao tingitano Anteu,

a quem os seus trabalhos tão famosos

fizeram cidadão do alto Céu,

achou que a má tenção dos envejosos

não se doma senão despois que o véu

se rompe corporal; porque na vida

ninguém alcança a glória merecida.

Pois, logo, se varões tão excelentes

foram do baixo vulgo molestados,

o vitupério vil das rudes gentes

é louvor dos reais e sulimados.

Quem no lume dos vossos ascendentes

poderá pôr os olhos que, abalados l

lhe não fiquem da luz, vendo os maiores

vossos passados, Reis e Emperadores?

Quem verá aquele pai da pátria sua,

açoute do soberbo Castelhano,

que o duro jugo, só, co a espada nua

removeu do pescoço lusitano,

que não diga: Ó grão Nuno! a eterna tua

memória causará (se não me engano),

que qualquer teu menor tanto se estime

que nunca possas ser senão sublime!

Nisto não falo mais, porque conheço

que da matéria se me abaixa o engenho.

Mas, pois que a dizer tudo me ofereço,

que dias há que no desejo o tenho,

sendo vós de tão alto e ilustre preço

a vida fostes pôr num fraco lenho,

por largo mar e undosa tempestade

só por servir a régia Majestade.

E despois de tomar a rédea dura

na mão, do povo indómito que estava

costumado à largueza e à soltura

do pesado governo que acabava;

quem não terá por santa e justa cura,

qual do vosso conceito se esperava,

a tão desenfreada infirmidade

aplicar lhe contrária qualidade?

Não é muito, Senhor, se o moderado

governo se blasfema e se desama;

porque o povo a larguezas acostumado

à lei serena e justa dura chama.

Pois o zelo, em virtude só fundado,

de salvar almas da tartárea flama,

co a água salutífera de Cristo,

poderá porventura ser malquisto?

Quem quisesse negar tão grã verdade

qual é o seu efeito santo e pio,

negue também ao Sol a claridade,

e certifique mais que o fogo é frio.

Que o sucesso é contrário da vontade;

as obras, que são boas, e o desvio,

está nas mãos dos homens cometê las,

e nas de Deus está o sucesso delas.

Sei eu e sabem todos: os futuros

verão por vós o Estado acrecentado;

serão memória vossa os fortes muros

do cambaico Damão bem sustentado;

da ruína mortal serão seguros,

tendo todo o alicerce seu fundado

sobre órfãs emparadas com maridos,

e pagos os serviços bem devidos.

Camanha infâmia ao Príncipe é perder se

ponto do Estado seu, que inteiro herdou,

por tão célebre glória pode ter se

se acrecentado e próspero o deixou.

Nunca consentiu Roma ennobrecer se

com triunfo ninguém, se não ganhou

província que o Império acrecentasse,

por maiores vitórias que alcançasse.

Pode tomar o vosso nome dino

Damão, por honra sua clara e pura,

como já do primeiro Constantino

tomou Bizâncio aquele que inda dura.

E tu, rei, que no reino neptunino,

lá no seio gangético, a Natura

te aposentou, de seres inimigo

deste Estado, não ficas sem castigo.

Bem viste contra ti nadantes naves

cortar a espumosa água, navegando;

ouviste o som das tubas, não suaves,

mas com temor horrífero soando;

sentiste os golpes ásperos e graves

do braço lusitano, nunca brando;

não sofreste o grão brado penetrante,

que os trovões imitava do Tonante.

Mas antes, dando as costas e a vitória

à bragancês ventura, não corrido,

deste bem a entender camanha glória

é de tal vencedor seres vencido.

Quem fez obras tão dinas de memória,

sempre será famoso e conhecido

onde os juízos altos se estimarem,

que estes só têm poder de fama darem.

Não vos temais, Senhor, do povo ignaro

e ingrato, a quem tanto fez por ele;

mas sabei que é sinal de serdes claro

serdes agora tão malquisto dele.

Temístocles, da pátria sua emparo,

o forte, liberal Címon, e aquele

que leis ao povo deu de Esparta antigo,

testemunhas serão disto que digo.

Pois ao justo Aristides um robusto,

votando no ostracismo costumado,

lhe disse claro assi: Porque era justo

desejava que fosse desterrado.

Paquitas, por fugir do povo injusto,

calunioso, dando no Senado

conta de Lesbos, que ele já mandara,

se tirou com sua espada a vida cara.

Demóstenes, deitado das tormentas

populares, a Palas foi dizendo:

—De que três monstros grandes te contentas:

do drago e macho, e do vil povo horrendo!

Que glórias imortais houve, que isentas

do veneno vulgar fossem vivendo?

Pois mil exemplos deixo de Romanos,

e vós também sais um dos Lusitanos.

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Índice

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16.

Oitava

Sobre a seta que o Santo Padre

mandou a el Rei Dom Sebastião

no ano do Senhor de 1575

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ui alto Rei, a quem os Céus em sorte

deram o nome augusto e sublimado

daquele cavaleiro que, na morte,

por Cristo foi de setas mil passado;

pois dele o fiel peito, casto e forte,

co nome imperial tendes tomado,

tomai também a seta veneranda

que a vós o sucessor de Pedro manda.

Já por sorte do Céu, que o consentiu,

tendes o braço seu, relíquia cara

defensor contra o gládio que feriu

o povo que David contar mandara.

No qual, pois tudo em vós se permitiu,

presságio temos e esperança clara

que sereis braço forte e soberano

contra o soberbo gládio mauritano.

E o que este presságio agora encerra

nos faz ter por mais certo e verdadeiro

a seta que vos dá quem é na terra

das relíquias celestes despenseiro:

que as vossas setas são, na justa guerra,

agudas, e entrarão por derradeiro

(caindo a vossos pés povo sem lei),

nos peitos que inimigos são do Rei.

Quando vossas bandeiras despregava

Albuquerque fortíssimo, com glória,

polas praias da Pérsia, e alcançava

de nações tão remotas a vitória;

as setas embebidas que tirava

o arco armusiano, é larga história

que no ar, Deus querendo, se viravam,

pregando se nos peitos que as tiravam.

O querido de Deus, por quem peleja

o ar também e o vento conjurado,

ao atambor acode, por que veja

que quem a Deus ama é de Deus amado;

os contrários, revéis à madre Igreja,

atroarão co tom do Céu irado,

que assi deu já favor maior que humano

a Josué hebreu, e Teodósio hispano.

Pois se as setas tiradas da inimiga

corda, contra si só nocivas são,

que farão, Rei, as vossas que têm liga

co a que já tocou Sebastião?

Tinta vem do seu sangue com que obriga

a levantar a Deus o coração,

crendo que as que vós atirareis

no sangue sarraceno as tingireis.

Ascânio (se trazer me é concedido,

entre santos exemplos, um profano)

rei do largo Império conhecido

romano, e só relíquia do troiano,

vingou, com seta e animo e atrevido,

as soberbas palavras de Numano;

e logo foi dali remunerado,

com louvores de Apolo celebrado.

Assi vós, Rei, que fostes segurança

de nossa liberdade, e que nos dais

de grandes bens certíssima esperança;

nos costumes e aspeito que mostrais

concebemos segura confiança

que Deus, a quem servis e venerais,

vos fará vingador dos seus revéis,

e os prémios vos dará que mereceis.

Estes humildes versas, que pregão

são destes vossos Reinos, com verdade,

recebei com humilde e leda mão,

pois é devido a reis benignidade.

Tenham (se não merecem galardão)

favor, sequer, da régia Majestade;

assi tenhais, de quem já tendes tanto,

com o nome e relíquia, favor santo.

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Índice

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17.

Oitava

Petição feita ao regedor de uma nobre moça

presa no Limoeiro da cidade de Lisboa,

por se dizer que fizera adultério a seu marido

que era na Índia

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sprito valoroso, cujo estado

o alto Deus prospere e acrescente,

regendo o fiel Reino descansado,

com vida felicíssima, e contente:

a vós, em quem o humil necessitado

acha sempre favor e amor ardente,

peço queirais ouvir que, na verdade,

zelo e amor de Deus me persuade.

Não vos seja posado o atrever me

a querer emprender sujeito alheio,

porque fizeram lágrimas mover me

vir ante vós, ousado e sem receio.

E se por tal quiserdes conhecer me,

servindo vos de mim por algum meio,

o nome, o braço, a Musa e quanto posso,

há já muito, Senhor, que tudo é vosso.

Quem vos isto oferece, dirá quanto

desejo, muito há, ser vos aceito

porque com vosso zelo, o favor santo,

faça meu rude verso algum proveito;

que, cobrindo me vós com vosso manto,

a eu ser nobre tendo algum respeito,

sei que posso ganhar o que não tenho,

pois me não faltam forças nem engenho.

Porem isto, Senhor, deixando a parte,

que razão é devida a que me guia,

a vós tenho com força, engenho e arte

por influxo do Céu, que a vós me envia;

a vós a quem tem dado Apolo e Marte

de seus tesouros parte e melhoria,

venho cantar, com vez rouca e chorosa,

por üa encarcerada desditosa.

A vós venho, Senhor, na confiança

do vosso nome pondo meu sentido,

que quem em vós confia, tudo alcança,

sendo cousa de que Deus é servido;

e pois Ele vos deu justa balança

para pesar justiça e dar ouvido,

ouvi a petição da miserável,

com quem Fortuna foi tão pouco afável.

Ouvi da pobre Dona Catarina

o grande desemparo inopinado

a quem nenhum remédio determina

ou permite seu duro e cruel Fado;

que, se na tenra idade foi mofina,

a vida entregando ao vão cuidado,

haja nisso castigo com brandura,

porque o medo a fará viver segura.

Haja, Senhor, cuidar que é moça pobre;

que pobreza não tem nenhum respeito,

e mais não tendo idade que lhe sobre

para saber fugir do que é malfeito;

haja também cuidar que é sangue nobre

e ao jugo da Igreja inda sujeito,

e que pode nacer de tal processo

um grande e cruelíssimo sucesso.

Certo que, com razão urgente e clara,

tem algüa razão a infelice;

que se ninguém recolhe nem ampara

a triste, órfã na flor da meninice,

a Fortuna cruel, em tudo avara,

para lhe acarretar triste velhice,

lhe entrega a honra e pura castidade

nas mãos de üa cruel necessidade.

Bem sei que de ter culpa não carece,

só por não ser do sangue seu lembrada,

mas dê se lhe o castigo que merece,

e não para tão longe desterrada;

que se para lá for, bem se conhece,

quão vilmente será vituperada,

dando motivo ao rude marinheiro

que seja incontinente carniceiro.

Vede, Senhor, o risco a que se obriga

a desditosa e frágil mocidade,

se honra não vai buscar ou parte amiga

que lhe defenda sua honestidade.

Não queirais, não, Senhor, que o mundo diga:

Ah! que grande rigor e crueldade!

Como já vai dizendo e murmurando

sua grande ignorância desculpando.

Eu certo não duvido que o piloto,

o mestre, o marinheiro, o capitão,

usem do costumado vicio roto

com todas as que em seus poderes vão;

dai me vós, Senhor, um que estê remoto

de tal delito, nesta ocasião,

e eu direi ser falso o que vos digo,

tomando sobre mim todo o castigo.

Já não há i João posto em deserto,

que seja ao Céu, por casto, tão aceito,

nem há quem não cometa desconcerto,

nessa torpeza bruta e vil sujeito;

já não há i Hierónimo tão certo

que, com pedra na mão, ferindo o peito,

da carne estimulado, assi lhe diga:

—Não te chegues a mim, carne inimiga!

A culpa é dos parentes descuidados,

que, vendo a sem amparo e sem abrigo,

em tempo que os mais ricos e esforçados,

temendo a Deus, fugiam a seu castigo,

uns para seus jardins determinados,

outros por onde o Céu lhe fosse amigo,

deixaram tão só nesta cidade,

batalhando co a vil necessidade.

Pois quem houvera aí que não caíra

vendo se em tal extremo, em tal miséria?

Qual Artemisa aqui não consentira?

Qual romana Semprónia, ou qual Valéria?

E qual Lucrécia fora que isto vira,

que não rendera o jugo à vil matéria?

Qual tebana Timóquia, ou linda Sara,

ou qual mulher de Ulisses se negara?

Qual fora a que se vira em tão infesta

batalha, turbulenta e espantosa,

exercitando a morte rija e mesta

seu duro ofício, brava e rigorosa;

que Ninfa houvera aí, que deusa Vesta

em virginal estado poderosa,

que não rendera a tudo o casto nome,

por não morrer nas mãos da dura fome?

Ah! valeroso esprito, caso é isto

para se dar perdão à fraca ovelha;

não seja o perdão seu, seja de Cristo,

pois ele a perdoar nos aconselha.

Assi nos altos Céus sejais benquisto,

e vos incline Deus atenta orelha;

que vos lembre, Senhor, seu desemparo,

pois sais dos pobres pai e amigo claro.

Por isso olhai, Senhor, a quanto importa

cortar ocasiões com fio agudo,

porque, não se cortando, abre se a porta

do lascivo desejo ao nauta rudo.

E se, como vos digo, esta se corta,

olhando bem as leis do claro estudo,

será grandeza vossa mui subida,

dessa real prosápia produzida.

Olhai que tem, Senhor, üa minina

do ausente consorte e filha sua,

muito desemparada e pequenina,

fora do natural, despida e nua.

Sede vós, Senhor, água da Piscina;

a vosso zelo tudo se atribua;

que, movendo vos ele, não duvido

que tudo a ela seja concedido.

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Índice

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18.

Sextina

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oge-me pouco a pouco a curta vida

(se por caso é verdade que inda vivo);

vai-se-me o breve tempo d'ante os olhos;

choro pelo passado e, quando falo,

se me passam os dias passo e passo,

vai se me, enfim, a idade e fica a pena.

Que maneira tão áspera de pena!

Que nunca üa hora viu tão longa vida

em que possa do mal mover se um passo.

Que mais me monta ser morto que vivo?

Para que choro, enfim? Para que falo,

se lograr me não pude de meus olhos?

Ó fermosos, gentis e claros olhos,

cuia ausência me move a tanta pena

quanta se não comprende enquanto falo!

Se, no fim de tão longa e curta vida,

de vós m'inda inflamasse o raio vivo,

por bem teria tudo quanto passo.

Mas bem sei, que primeiro o extremo passo

me há de vir a cerrar os tristes olhos

que Amor me mostre aqueles por que vivo.

Testemunhas serão a tinta e pena,

que escreveram de tão molesta vida

o menos que passei, e o mais que falo.

Oh! que não sei que escrevo, nem que falo!

Que se de um pensamento n'outro passo,

vejo tão triste género de vida

que, se lhe não valerem tantos olhos,

não posso imaginar qual seja a pena

que traslade esta pena com que vivo.

N'alma tenho confino um fogo vivo,

que, se não respirasse no que falo,

estaria já feita cinza a pena;

mas, sobre a maior dor que sofro e passo,

me temperam as lágrimas dos olhos

com que, fugindo, não se acaba a vida.

Morrendo estou na vida, e em morte vivo;

vejo sem Olhos, e sem língua falo;

e juntamente passo glória e pena.

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1

À morte de D. António de Noronha, que morreu

em África, e à morte de dom João, Príncipe de

Portugal, pai del Rei D. Sebastião

UMBRANO e FRONDÉLIO, pastores

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UMBRANO

ue grande variedade vão fazendo,

Frondélio amigo, as horas apressadas!

Como se vão as cousas convertendo

em outras cousas várias e inspiradas!

Um dia a outro dia vai trazendo

por suas mesmas horas já ordenadas;

mas quão conformes são na quantidade,

tão diferentes são na qualidade.

Eu vi já deste campo as várias flores

às estrelas do céu fazendo enveja;

vi andar adornados os pastores

de quanto polo mundo se deseja;

e vi co campo competir nas cores

os trajos, de obra tanta e tão sobeja,

que, se a rica matéria não faltava,

a obra, de mais rica, sobejava.

E vi perder seu preço às brancas rosas

e quási escurecer se o claro dia

diante duas mostras perigosas,

que Vénus, mais que nunca, engrandecia;

enfim, vi as pastoras tão fermosas,

que o Amor de si mesmo se temia;

mas mais temia o pensamento, falto

de não ser para ter temor tão alto.

Agora tudo está tão diferente

que move os corações a grande espanto;

e parece que Júpiter potente

se enfada já do mundo durar tanto.

O Tejo corre turvo e descontente,

as aves deixam seu suave canto,

e o gado, em ver que a erva lhe falece,

mais que de a não comer, nos emagrece.

FRONDÉLIO

Umbrano irmão, decreto é da Natura,

inviolável, fixo e sempiterno,

que a todo o bem suceda desventura

e não haja prazer que seja eterno:

ao claro dia segue a noite escura,

ao Verão suave, o duro Inverno,

e se há i quem saiba ter firmeza,

é somente esta lei de natureza.

Toda alegria grande e sumptuosa

a porta abrindo, vem ao triste estado;

se üa hora vejo alegre e deleitosa,

temendo estou do mal aparelhado.

Não vês que mora a serpe venenosa

entre as flores do fresco e verde prado?

Não te engane nenhum contentamento;

que mais instável é que o pensamento.

E praza a Deus que o triste e duro Fado

de tamanhos desastres se contente;

que sempre um grande mal inopinado

é mais do que o espera a incauta gente;

que vejo este carvalho que, queimado

tão gravemente foi do raio ardente.

Não seja ora prodígio que declare

que o bárbaro cultor meus campos are.

UMBRANO

Enquanto do seguro azambujeiro

nos pastores de Luso houver cajados,

e o valor antigo que primeiro

os fez no mundo tão assinalados,

não temas tu, Frondélio companheiro,

que em nenhum tempo sejam sojugados,

nem que a cerviz indómita obedeça

a outro jugo algum que se ofereça.

E posto que a soberba se levante

do inimigo, a torto e a direito,

não creias tu que a força repugnante

do fero e nunca já vencido peito

que, desde quem possui o monte Atlante

até onde bebe o Hidaspe tem sujeito,

o possa nunca ser de força alheia,

enquanto o Sol a Terra e o Céu rodeia.

FRONDÉLIO

Umbrano, a temerária segurança

que em força ou em razão não se assegura,

é falsa e vã; que a grande confiança

não é sempre ajudada da ventura.

Que, lá junto das aras da esperança

Némesis moderada, justa e dura,

um freio lhe está pondo e lei terrível

que os limites não passe do possível.

E se atentas bem os grandes danos

que se nos vão mostrando cada dia,

porás freio também a esses enganos

que te está afigurando a ousadia.

Tu não vês como os lobos Tingitanos,

apartados de toda a covardia,

matam os cães, dos gados guardadores,

e não somente os cães, mas os pastores?

E o grande curral, seguro e forte,

do alto monte Atlas, não ouviste

que com sanguinolenta e fera morte

despovoado foi por caso triste?

Ó caso desastrado, ó dura sorte,

contra quem força humana não resiste!

Que ali também da vida foi privado

Tiónio meu, ainda em flor cortado!

UMBRANO

De lágrimas me banha todo o peito

desse caso terrível a memória,

quando vejo quão sábio e quão perfeito

e quão merecedor de longa história

era esse teu pastor que, sem direito,

deu às Parcas a vida transitória.

Mas não há i quem d'erva o gado farte,

nem do juvenil sangue o fero Marte!

Porém, se te não for muito pesado,

(Já que esta triste morte me lembraste),

cantarás desse caso desastrado

aqueles brandos versos que cantaste

quando ontem, recolhendo o manso gado,

de nós outros pastores te apartaste;

que eu também, que as ovelhas recolhia,

não te podia ouvir como queria.

FRONDÉLIO

Como qués que renove ao pensamento

tamanho mal, tamanha desventura?

Porque espalhar suspiros vãos ao vento,

para os que tristes são, é falsa cura.

Mas pois também te move o sentimento

da morte de Tiónio, triste e escura,

eu porei teu desejo em doce efeito,

se a dor me não congela a vez no peito.

UMBRANO

Canta, agora, pastor, que o gado pace

entre as húmidas ervas, sossegado;

e lá nas altas serras, onde nace

o sacro Tejo, à sombra recostado,

com seus olhos no chão, a mão na face,

está para te ouvir aparelhado;

e em silêncio triste estão as Ninfas,

dos olhos estilando claras linfas.

O prado, as flores brancas e vermelhas

está suavemente apresentando;

as doces e solícitas abelhas

com um brando sussurro vão voando;

as mansas e pacíficas ovelhas,

de comer esquecidas, inclinando

as cabeças estão ao som divino

que faz, passando, o Tejo cristalino.

O vento dantre as árvores respira,

fazendo companhia ao claro rio;

nas sombras, a ave gárrula suspira,

suas mágoas espalhando ao vento frio.

Toca, Frondélio, toca a doce lira;

que, daquele verde álamo sombrio,

a branda filomela, entristecida,

ao saudoso canto te convida.

canta FRONDÉLIO:

Aquele dia as águas não gostaram

as mimosas ovelhas; e os cordeiros

o campo encheram d'amorosos gritos.

Não se dependuraram dos salgueiros

as cabras, de tristeza; mas negaram

o pasto a si, e o leite a os cabritos.

Prodígios infinitos

mostrava aquele dia,

quando a Parca queria

principio dar ao fero caso triste.

E tu também (ó corvo) o descobriste,

quando da mão direita em voz escura,

voando, repetiste

a tirânica lei da morte dura.

Tiónio meu, o Tejo cristalino

e as árvores que tu já desamparaste,

choram o mal de tua ausência eterna.

Não sei porque tão cedo nos deixaste!

Não foi consentimento do Destino,

por quem o mar e a terra se governa.

E a noite sempiterna,

que tu tão cedo viste,

cruel, acerba e triste,

sequer de tua idade não te dera

que lograras a fresca Primavera?

Não usara connosco tal crueza,

que nem nos montes fera

nem pastor há no campo sem tristeza.

Os Faunos, certa guarda dos pastores,

já não seguem as Ninfas na espessura,

nem as Ninfas aos cervos dão trabalho.

Tudo, como vês, é cheio de tristura:

às abelhas o campo nega as flores,

e às flores a aurora nega o orvalho.

Eu que, cantando, espalho

tristezas todo o dia,

a frauta que soía

mover as altas árvores, tangendo,

se me vai de tristeza enrouquecendo,

que tudo vejo triste neste monte;

e tu também, correndo,

manas envolta e triste, ó clara fonte!

As Tágides no rio e na aspereza

do monte as Oreadas, conhecendo

quem te obrigou ao duro e fero Marte,

como geral sentença vão dizendo

que não pode no mundo haver tristeza

em cuja causa Amor não tenha parte.

Porque assi, desta arte,

nos olhos saudosos,

nos passos vagarosos,

no rosto, que o Amor e a fantasia

da pálida viola lhe tingia,

a todos de si dava sinal certo

do fogo que trazia,

que nunca soube Amor ser incoberto.

Já diante dos olhos lhe voavam

imagens e fantásticas pinturas,

exercícios do falso pensamento;

e pelas solitárias espessuras,

entre os penedos sós que não falavam,

falava e descobria seu tormento.

Num longo esquecimento

de si todo embebido,

andava tão perdido

que, quando algum pastor lhe perguntava

a causa da tristesa que mostrava,

como quem para penas só vivia,

sorrindo, lhe tornava:

se não vivesse triste, morreria.

Mas como este tormento o assinalou,

e tanto no seu rosto se mostrasse,

entendido mui bem do pai sesudo,

porque do pensamento lho tirasse,

longe da causa dele o apartou;

porque, enfim, longa ausência acaba tudo.

Mas, ó falso Marte rudo,

das vidas cobiçoso!

Que, aonde o generoso

peito ressuscitava em tanta glória

de seus antecessores a memória,

ali, fero e cruel, lhe destruíste,

por injusta vitória,

primeiro que o cuidado, a vida triste,

Parece me, Tiónio, que te vejo

por tingires a lança cobiçoso

naquele infido sangue Mauritano,

no Hispano ginete, belicoso,

que ardendo também vinha no desejo

de derrubar por terra o Tingitano.

Ó confiado engano !

O encurtada vida!

Que a virtude, oprimida

da multidão forçosa do inimigo,

não pôde defender se do perigo,

porque assi o destino o permitiu,

e assi levou consigo

o mais gentil pastor que o Tejo viu.

Qual o mancebo Euríalo, enredado

entre o poder dos Rútulos, fartando

as iras da soberba e dura guerra,

do cristalino rosto a cor mudando,

cujo purpúreo sangue derramado

pelas alvas espaldas, tinge a serra;

que, como flor que a terra

lhe nega o mantimento,

porque o tempo avarento

também o largo humor lhe tem negado,

o colo inclina, lânguido e cansado:

tal te pinto, Tiónio, dando o esprito

a Quem to tinha dado;

Que Este é somente eterno e infinito.

Da boca congelada a alma pura

co nome juntamente da inimiga

e excelente Marfida derramava.

E tu, gentil Senhora, não te obriga

a pranto sempiterno a morte dura

de quem por ti somente a vida amava?

Por ti, aos ecos dava

acentos numerosos;

por ti, aos belicosos

exercícios se deu do fero Marte.

E tu, ingrata, o amor já noutra parte

porás, como acontece ò fraco intento;

que, enfim, enfim, destarte

se muda o feminino pensamento.

Pastores deste vale ameno e frio,

que de Tiónio o caso desastrado,

quereis nas altas serras que se cante,

um túmulo, de flores adornado

lhe edificai ao longo deste rio,

que a vela enfreie ao duro navegante;

e o lasso caminhante,

vendo tamanha mágoa,

arrase os olhos d'água,

lendo na pedra dura o verso escrito,

que diga assi: Memória sou que grito

para dar testemunho em toda parte

do mais gentil esprito

que tiraram do mundo Amor e Marte.

UMBRANO

Qual o quieto sono a os cansados,

debaixo d'algüa árvore sombria,

ou qual aos sequiosos e encalmados

o vento respirante e a fonte fria,

tais me foram teus versos delicados,

teu numeroso canto e melodia;

e ainda agora o tom suave e brando

os ouvidos me fica adormentando.

Enquanto os peixes húmidos tiverem

as areosas covas deste rio

e, correndo, estas águas conhecerem

do largo mar o antigo senhorio;

e enquanto estas ervinhas pasto derem

às petulantes cabras, eu te fio

que em virtude dos versos que cantaste

sempre viva o pastor que tanto amaste.

Mas já que pouco a pouco o Sol nos falta,

e dos montes as sombras se acrecentam,

de flores mil o claro céu s'esmalta,

que tão ledas aos olhos se apresentam;

levemos pelo pé desta serra alta

os gados, que já 'gora se contentam

do que comido têm, Frondélio amigo;

anda, que até o outeiro irei contigo.

FRONDÉLIO

Antes por este vale, amigo Umbrano,

se te aprouver, levemos as ovelhas;

que se eu por acerto não m'engano,

daqui me soa um eco nas orelhas;

o doce acento não parece humano.

E se tu, neste caso, me aconselhas,

eu quero ver daqui que cousa seja;

que o tom m'espanta, e a voz me faz enveja.

UMBRANO

Contigo vou, que quanto mais me achego

mais gentil me parece a voz que ouviste,

peregrina, excelente; e não te nego

que me faz cá no peito a alma triste.

Vês como tem os ventos em sossego?

Nenhum rumor da serra lhe resiste;

nenhum pássaro voa, mas parece

que do canto vencido, lhe obedece.

Porém, irmão, milhor me parecia

que não fôssemos lá, que estorvaremos;

mas, subidos nesta árvore sombria,

todo o vale daqui descobriremos.

Os surrões e cajados, todavia,

neste comprido tronco penduremos;

para subir fica homem mais ligeiro.

Deixa me tu, Frondélio, ir primeiro.

[FRONDÉLIO]

Espera, assi, dar te ei de pé, se queres;

subirás sem trabalho e sem ruído;

e despois que subido lá estiveres,

dar me ás a mão de cima, que é partido.

Mas primeiro me dize, se puderes

ver, donde nace o canto nunca ouvido,

quem lança o doce acento delicado.

Fala, que já te vejo estar pasmado.

UMBRANO

Cousas não costumadas na espessura,

que nunca vi, Frondélio, vejo agora;

fermosas Ninfas vejo na verdura,

cujo divino gesto o Céu namora.

üa, de desusada fermosura,

que das outras parece ser senhora,

sobre um triste sepulcro, não cessando,

está perlas dos olhos distilando.

De todas estas altas semideias,

que em torno estão do corpo sepultado,

üa regando as húmidas areias

de flores tem o túmulo adornado;

outras queimando lágrimas Sabeias,

enchem o ar de cheiro sublimado;

outras, em ricos panos, mais avante,

envolvem brandamente um novo infante.

üa, que dantre as outras se apartou,

com gritos que a montanha entristeceram

diz que, despois que a morte a flor cortou

que as estrelas somente mereceram,

que este penhor caríssimo ficou

daquele a cujo império obedeceram

Douro, Mondego, Tejo e Guadiana,

té o remoto mar da Taprobana.

Diz mais que, se encontrar este minino

a noite intempestiva, amanhecendo,

que o Tejo agora claro e cristalino

tornará a fera Alecto em vulto horrendo.

Mas se for conservado do Destino,

que as estrelas beninas prometendo

lhe estão o largo pasto d'Ampelusa,

co monte que em mau ponto viu Medusa.

Este prodígio grande a Ninfa bela

com abundantes lágrimas recita;

mas qual eclipsada clara estrela

que entre as outras o Céu primeiro habita,

tal coberta de negro vejo aquela

a quem só n'alma toca a grã desdita.

Dá cá, Frondélio, a mão; sobe a ver

tudo o mais que eu, de dor, não sei dizer.

FRONDÉLIO

Ó triste morte, esquiva e mal olhada,

que a tantas fermosuras injurias!

Daquela deusa, bela e delicada,

sequer algum respeito ter devias.

Esta é, por certo, Aónia, filha amada

daquele grão Pastor que, em nossos dias,

Danúbio enfreia e manda o claro Ibero,

e espanta o morador do Euxino fero.

Morreu lhe o excelente e poderoso

(que a isso está sujeita a vida humana)

doce Aónio, d'Aónia caro esposo.

Ah! lei dos Fados, áspera e tirana!

Mas o som peregrino e piadoso

com que a formosa Ninfa a dor engana,

escuta um pouco, nota e vê, Umbrano,

quão bem que soa o verso castelhano.

AÓNIA

Alma y primero amor del alma mía,

espiritu dichoso, em cuya vida

la mia estuvo en cuanto Dios queria!

Sombra gentil, de su prisión salida,

que del mundo á la patria te volviste,

donde fuiste engendrada y procedida!

Recibe allá este sacrificio triste

que te ofrecen los ojos que te vieron,

si la memória dellos no perdiste.

Que, pues los altos ciclos permitieron

que no te acompañase en tal jornada,

y para ornarse solo a ti quisieron;

nunca permitirán que acompañada

de mi no sea esta memoria tuya,

que está de tus despojos adornada.

Ni dejarán, por más que el tiempo huya,

de estar en mi con sempiterno lento,

hasta que vida y alma se destrua.

Mas tu, gentil Espírita, entretanto

que toros campos y flores vás pisando,

y toras zampoñas oyes, y otro canto,

ahora embevecido estés mirando

allá en el Empireo aquella Idea

que el mundo enfrena y rige con su mando:

ahora te possuya Citerea

en su tercero asiento, ó porque amaste,

ó porque nueva amante allá te sea:

ahora el Sol te admire, si miraste

cómo vá por los signos, encendido,

las tierras alumbrando que dejaste;

si en ver estos milagros no has perdido

la memoria de mi, ó fué en tu mano

no pasar por las aguas del olvido,

vuelve un poco los ojos á este llano,

verás una que á ti, con triste lloro

sobre este mármol sordo llama en vano.

Pero si entraren en los signos de oro

lágrimas y gemidos amorosos,

que muevan el supremo y santo Coro,

la lumbre de tus ojos tan hermosos

yo la veré muy presto; y podré verte,

que, à pesar de los hados enojosos,

también para los tristes hubo muerte.

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2

ALMENO e AGRÁRIO, pastores

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o longo do sereno

Tejo, suave e brando,

num vale d'altas árvores sombrio,

estava o triste Almeno

suspiros espalhando

ao vento e doces lágrimas ao rio.

No derradeiro fio

o tinha a esperança

que, com doces enganos,

lhe sustentara a vida tantos anos

nua amorosa e branda confiança;

que, quem tanto queria

parece que não erra, se confia.

A noite escura dava

repouso a os cansados

animais, esquecidos da verdura;

o vale triste estava

cuns ramos carregados

que faziam a noite mais escura.

Mostrava a espessura

um temeroso espanto;

as roucas rãs soavam

num charco d'água negra, e ajudavam

do pássaro nocturno o triste canto;

o Tejo, com som grave,

corria mais medonho que suave.

Como toda a tristeza

no silêncio consiste,

parecia que o vale estava mudo;

e, com esta graveza,

estava tudo triste.

Porém o triste Almeno mais que tudo;

tomando por escudo

de sua doce pena,

para poder sofrê la,

estar imaginando a causa dela,

que em tanto mal, é cura bem pequena.

Maior é o tormento

que toma por alívio um pensamento.

Ao rio se queixava,

com lágrimas em fio,

com que creciam as ondas outro tanto.

Seu doce canto dava

tristes águas ao rio,

e o rio triste som ao doce canto.

Co cansado pranto,

que as águas refreava,

responde o vale umbroso.

Da mansa voz o acento temeroso

na outra parte do rio retumbava,

quando, da fantasia,

o silêncio rompendo, assi dizia:

[ALMENO]

Corre suave e brando

com tuas claras águas,

saídas de meus olhos, doce Tejo,

fé de meus males dando,

para que minhas mágoas

sejam castigo igual de meu desejo;

que, pois em mim não vejo

remédio, nem o espero,.

e a morte se despreza

de me matar, deixando me à crueza

daquela por quem meu tormento quero,

saiba o mundo meu dano,

porque se desengane em meu engano.

Já que minha ventura,

ou quem me a causa ordena,

quer por paga da dor tome sofrê la,

será mais certa cura

para tamanha pena

desesperar de haver já cura nela.

Porque, se minha estrela,

causou tal esquivança,

consinta meu cuidado

que me farte de ser desesperado,

para desenganar minha esperança,

que para isso naci,

para viver na morte, e ela em mi.

Não cesse meu tormento

de fazer seu ofício,

que aqui tem üa alma ao jugo atada;

nem falte o sofrimento,

porque parece vício

para tão doce mal faltar me nada.

Ó Ninfa delicada,

honra da natureza!

Como pode isto ser,

que de tão peregrino parecer

pudesse proceder tanta crueza?

Não vem de nenhum jeito

de causa divinal contrário efeito.

Pois como pena tanta

é contra a causa dela?

Fora é do natural minha tristeza.

Mas a mim que me espanta?

Não basta, ó Ninfa bela,

que podes perverter a Natureza?

Não é a gentileza

de teu gesto celeste

fora do natural?

Não pode a natureza fazer tal;

tu mesma, bela Ninfa, te fizeste;

porém porque tomaste

tão dura condição, se te formaste?

Por ti, o alegre prado

me é pesado e duro;

abrolhos me parecem suas flores.

Por ti, do manso gado,

como de mim, não curo,

por não fazer ofensa a teus amores.

Os jogos dos pastores,

as lutas entre a rama,

nada me faz contente;

e sou já do que fui tão diferente

que quando por meu nome alguém me chama,

pasmo, quando conheço,

que inda comigo mesmo me pareço.

O gado que apacento

são n'alma meus cuidados;

e as flores que no campo sempre vejo,

são no meu pensamento

teus olhos debuxados,

com que estou enganando meu desejo.

As águas frias do Tejo

de doces se tornaram

ardentes e salgadas,

despois que minhas lágrimas cansadas

com seu puro licor se misturaram,

como quando mistura

Hípanis co Exampeu su' água pura.

Se aí no mundo houvesse

ouvires me algüa hora

assentada na praia deste rio,

e de arte te dissesse

o mal que passo agora

que pudesse mover te o peito frio!

Ó quanto desvario

que estou afigurando!

Já agora meu tormento

não pode pedir mais ò pensamento

que este fantasiar que, imaginando,

a vida me reserva.

Querer mais de meu mal, será soberba.

Já a esmaltada Aurora

descobre o negro manto

da sombra , que as montanhas encobria.

Descansa, frauta, agora,

que meu cansado canto

não merece que veja o claro dia.

Não canse a fantasia

de estar em si pintando

o gesto delicado,

enquanto traz ao pasto o manso gado

este pastor que lá só vem falando.

Calar me ei somente,

que meu mal nem ouvir se me consente.

AGRÁRIO

Fermosa manhã clara e deleitosa,

que como fresca rosa na verdura,

te mostras bela e pura, marchetando

as Ninfas, espalhando seus cabelos

nos verdes montes belos; tu só fazes,

quando a sombra desfazes, triste e escura,

fermosa a espessura e fresca a fonte,

fermoso o alto monte e o rochedo,

fermoso o arvoredo e deleitoso,

enfim, tudo fermoso. Co teu rosto

d'ouro e rosas composto e claridade

trazes a saudade ao pensamento,

mostrando num momento o roxo dia,

co a doce harmonia nos cantares

dos pássaros a pares, que, voando,

seu pasto andam buscando nos raminhos,

para os amados ninhos, que mantêm.

Ó grande e sumo bem de Natureza!

Estranha sutileza de pintora,

que matiza nu' hora, de mil cores,

o céu, a terra, as flores, monte e prado!

O tempo já passado! quão presente

te vejo abertamente na vontade!

Quamanha saudade tenho agora

do tempo que a pastora minha amava,

e de quanto prezava minha dor!

Então tinha o amor maior poder,

então num só querer nos igualava,

porque, quando um chamava a quem queria,

o eco respondia da afeição

no brando coração da doce imiga.

Nesta amorosa liga concertavam

os tempos, que passavam com prazeres.

Mostrava a fiava Ceres polas eiras

das brancas sementeiras ledo fruto,

pagando seu tributo as lavradores;

e enchia a os pastares todo o prado

Pales, do manso gado guardadora.

Zéfiro e a fresca Flora passeando,

os campos esmaltando de boninas;

nas águas cristalinas triste estava

Narciso, que inda olhava n'água pura

sua linda figura delicada;

mas Eco, namorada de seu gesto,

com pranto manifesto, seu tormento

no derradeiro acento lamentava.

Ali também se achava o sangue tinto

do purpúreo Jacinto, e o destroço

de Adónis, lindo moço, morte feia,

da bela Citareia tão chorada;

toda a terra esmaltada destas rosas.

Ali as Ninfas fermosas pelos prados,

os Faunos namorados após elas,

mostrando lhe capelas de mil cores,

que faziam das flores que colhiam;

as Ninfas lhe fugiam amedrentadas,

as fraldas levantadas, pelos montes.

A fresca água das fontes espalhar se,

Vertuno transformar se ali se via;

Pomona que trazia os doces fruitos;

ali pastores muitos, que tangiam

as gaitas que traziam, e, cantando,

estavam enganando suas penas,

tomando das Sirenas o exercício.

Ouvia se Salício lamentar se,

da mudança queixar se crua e feia,

da dura Galateia tão fermosa;

e da morte envejosa Nemoroso

ao monte cavernoso se querela,

que sua Elisa bela em pouco espaço

cortara inda em agraço a dura sorte.

O imatura morte, que a ninguém

de quantos vida têm, nunca perdoas!

Mas tu, Tempo, que voas apressado,

um deleitoso estado quão asinha

nesta vida mesquinha transfiguras

em mil desventuras, e a lembrança

nos deixas por herança do que levas!

Assi que se nos cevas com prazeres,

é para nos comeres no milhor.

Cada vez em pior te vás mudando;

quanto vens inventando, que hoje aprovas,

logo amanhã reprovas com instancia!

O estranha inconstância e tão profana

de toda a cousa humana inferior,

a quem o cego errar sempre anda anexo!

Mas eu de que me queixo? ou que digo?

Vive o tempo comigo, ou ele tem

culpa no mal que vem da cega gente?

Porventura ele sente, ou ele entende

aquilo que defende o ser divino?

Ele usa de cantina seu ofício,

que já por exercício lhe é devido:

dá nos fruto colhido na sazão

do fermoso Verão; e, no Inverno,

com seu humor eterno congelado,

do vapor levantado, co a quentura

do Sol, a terra dura lhe dá alento,

para que o mantimento produzindo

estê sempre cumprindo seu costume;

assi que, não consume de si nada,

nem muda da passada vida um dedo,

antes sempre está quedo no devido,

porque este é seu partido e sua usança;

nele esta mudança é mais firmeza.

Mas quem a lei despreza e pouco estima

de Quem de lá de cima está movendo

o Céu sublime e horrendo, o mundo puro,

este muda o seguro e firme estado

do tempo, não mudado da verdade.

Não foi naquela idade de ouro claro

o firme tempo caro e excelente?

Vivia então a gente moderada;

sem ser a terra arada, dava pão;

sem ser cavado, o chão as frutas dava;

nem chuva desejava, nem quentura;

supria então Natura o necessário.

Pois quem foi tão contrário a esta vida?

Saturno que, perdida a luz serena,

causou que em dura pena desterrado

fosse do Céu deitado, onde vivia,

porque os filhos comia, que gerava.

Por isso se mudava o tempo igual

em mais baixo metal, e assi decendo

nos veio assi trazendo a este estado.

Mas eu, desatinado, adonde vou?

Para onde me levou a fantasia?

Que estou gastando o dia em vãs palavras?

Quero ora minhas cabras ir levando

ao manso Tejo brando, porque achar

no mundo que emendar, não é de agora;

basta que a vida fora dele tenho;

com meu gado me avenho, e estou contente.

Porém, se me não mente a vista, eu vejo

nesta praia do Tejo estar deitado

Almeno, que, enlevado em pensamentos,

as horas e momentos vai gastando:

par' ele vou chegando, só por ver

se poderei fazer que o mal que sente

um pouco se lhe ausente da memória.

ALMENO, sonhando

Ó doce pensamento, ó doce glória!

São estes porventura os olhos belos

que tem de meus sentidos a vitória?

São estas, Ninfa, as tranças dos cabelos

que fazem de seu preço o ouro alheio,

e a mim, de mim mesmo, só com vê los?

E esta a alva coluna, o lindo esteio,

sustentador das obras mais que humanas,

que eu nos braços tenho, e não no creio?

Ah! falso pensamento, que me enganas!

Fazes me pôr a boca onde não devo,

com palavras de doudo, e quási insanas!

Como alçar te tão alto assi me atrevo?

Tais asas dou tas eu, ou tu mas dás?

Levas me tu a mim, ou eu te levo?

Não poderei eu ir onde tu vás?

Porém, pois ir não posso onde tu fores,

quando fores, não tornes onde estás.

AGRÁRIO

O que triste sucesso foi de amores

o que a este pastor aconteceu,

segundo ouvi contar a outros pastores!

Que tanto por seu dano se perdeu,

que o longo imaginar em seu tormento

em desatino Amor lho converteu.

Õ forçoso vigor do pensamento,

que pode noutra cousa estar mudando

a forma, a vida, o siso, o entendimento!

Está se um triste amante transformando

na vontade daquela que tanto ama,

de si sua própria essência transportando.

E nenhüa outra cousa mais desama

que a si, se vê que em si há algum sentido

que deste fogo insano não se inflama.

Almeno, que aqui está tão infiuído

no fantástico sonho, que o cuidado

lhe traz sempre ante os olhos esculpido,

está se lhe pintando, de enlevado,

que tem já da fantástica pastora

o peito diamantino mitigado.

Em este doce engano estava agora f

alando como em sonhos; mas achando

ser vento o que sonhava, grita e chora.

Destarte andavam sonhos enganando

o pastor sonolento, que a Diana andava

entre as ovelhas celebrando;

destarte a nuvem falsa em forma humana,

o vão pai dos Centauros enganava,

(que Amor, quando contenta, sempre engana);

como a este que consigo só falava,

cuidando que falava de enlevado,

com quem lhe o pensamento figurava.

Não pode quem quer muito ser culpado

em nenhum erro, quando vem a ser

o amor em doudice transformado.

Não é Amor amor, se não vier

com doudices, desonras, dissensões,

pares, guerras, prazer e desprazer,

perigos, línguas más, murmurações,

ciúmes, arruídos, competências,

temores, mortes, nojos, perdições.

Estas são verdadeiras experiências

de quem põe o desejo onde não deve,

de quem engana alheias inocências.

Mas isto tem Amor, que não se escreve

senão onde é ilícito e custoso;

e onde é mor o perigo mais se atreve.

Passava alegre tempo, deleitoso,

o Troiano pastor, enquanto andava

sem ter alto desejo e perigoso.

Seus furiosos touros coroava,

e nos álamos altos escrevia

teu nome, Enone, quando a ti só amava.

Creciam os altos álamos, crecia

o amor que te tinha; sem perigo

e sem temor contente te servia.

Mas despois que deixou entrar consigo

ilícito desejo e pensamento,

de sua quietação tão inimigo,

a toda a pátria pôs em detrimento,

com morte de parentes e de irmãos,

com cru incêndio e grande perdimento.

Nisto fenecem pensamentos vãos,

tristes serviços mal galardoados,

cuja glória se passa dantre as mãos.

Lágrimas e suspiros arrancados

d'alma, todos se pagam com enganos,

e oxalá fossem muitos enganados.

Andam com seu tormento tão ufanos,

gastando na doçura de um cuidado

após üa esperança, tantos anos.

E tal há tão perdido namorado,

tão contente co pouco, que daria

por um só mover d'olhos, todo o gado.

E em todo o povoado e companhia,

sendo ausentes de si, estão presentes

com quem lhe pinta a fantasia.

Cum certo não sei quê andam contentes,

e logo um nada os torna a o contrário,

de todo o ser humano diferentes.

Ó tirânico Amor, ó caso vário,

que obrigas um querer que sempre seja

de si contino e áspero adversário!

E outr'hora nenhüa alegre esteja,

senão quando do seu despojo amado

sua imiga estar triunfando veja!

Quero falar com este, que enredado

nesta cegueira está sem nenhum tento.

Acorda já, pastor desacordado!

ALMENO

Oh! porque me tiraste um pensamento

que agora estava os olhos debuxando,

de quem aos meus foi doce mantimento?

AGRÁRIO

Nessa imaginação estás gastando

o tempo e a vida, Almeno? Õ perda grande!

Não vês quão mal os dias vás passando?

ALMENO

Fermosos olhos, ande a gente e ande,

que nunca vos ireis desta alma minha,

por mais que o tempo corra e a morte o mande.

AGRÁRIO

Quem poderá cuidar que tão asinha

se perca o curso assi do siso humano,

que corre por direita e justa linha?

Que sejas tão perdido por teu dano,

Almeno irmão, não é por certo aviso,

mas mui grande doudice e grande engano

ALMENO

Ó Agrário, que vendo o doce riso,

e o rosto tão fermoso como esquivo,

o menos que perdi foi todo o siso.

E não entendo, dês que fui cativo,

outra cousa de mim, senão que mouro;

nem isto entendo bem, pois inda vivo.

A sombra deste umbroso e verde louro

passo a vida, ora em lágrimas cansadas,

ora em louvares dos cabelos d'ouro.

Se perguntares porque são choradas,

ou porque tanta pena me consume,

revolvendo memórias magoadas:

dês que perdi da vista o claro lume,

e perdi a esperança e a causa dela,

não choro por razão, mas por costume.

Não se pode co Fado ter cautela;

nem pode haver nenhum contentamento

que não seja trocado em dura estrela

Que bem livre vivia e bem isento,

sem nunca ser ao jugo sometido

de nenhum amoroso pensamento!

Lembra me, Agrário amigo, que o sentido

tão fora de amor tinha, que me ria

de quem por ele via andar perdido.

De, várias cores sempre me vestia,

e boninas a fronte coroava,

nenhum pastor cantando me vencia.

A barba então nas faces me apontava;

na luta, no correr e em qualquer manha

sempre a palma antre todos alcançava.

Da minha idade tenra, em tudo estranha,

vendo, como acontece, afeiçoadas

muitas Ninfas do rio e da montanha,

com palavras mimosas e forjadas

da solta liberdade e livre peito,

as trazia contentes e enganadas.

Mas não querendo Amor que, deste jeito,

dos corações andasse triunfando

em quem ele criou tão puro afeito,

pouco e pouco me foi de mim levando,

dissimuladamente às mãos de quem

tod' esta injúria agora está vingando.

AGRÁRIO

Deste teu caso, Almeno, eu sei mui bem

o princípio e o fim, que Nemoroso

contado tudo isso, e mais, me tem.

Mas quero te dizer: se o enganoso

Amor é costumado a desconcertos

que nunca amando fez pastor ditoso,

já que nele estes casos são tão certos,

porque os estranhas tanto, que de mágoa

te choram as montanhas e os desertos?

Vejo te estar gastando em viva frágoa,

e juntamente em lágrimas vencendo,

a grã Sicília em fogo, o Nilo em água.

Vejo que as tuas cabras não querendo

gostar as verdes ervas, se emmagrecem,

as tetas aos cabritos cncolhendo.

Os campos que co tempo reverdecem,

os olhos alegrando descontentes,

em te vendo, parece que entristecem.

Todos os teus amigos e parentes,

que lá da serra vêm por consolar te,

sentindo n'alma a pena que tu sentes,

se querem de teus males apartar te.

Deixando a casa e gado vás fugindo

como Cervo ferido, a outra parte.

Não vês que Amor, as vidas consumindo,

vive só de vontades enlevadas no falso

parecer dum gesto lindo?

Nem as ervas das águas desejadas

se fartam; nem de flores, as abelhas;

nem este amor, de lágrimas cansadas.

Quantas vezes, perdido entr'as ovelhas,

chorou Febo de Dafne as esquivanças,

regando as flores brancas e vermelhas?

Quantas vezes as ásperas mudanças

o namorado Galo tem chorado

de quem o tinha envolto em esperanças?

Estava o triste amante recostado,

chorando ao pé dum freixo o triste caso

que o falso Amor lhe tinha destinado;

por ele o sacro Pindo e o grão Parnaso

na fonte de Aganipe distilando,

o faziam de lágrimas um vaso.

Vinha o intonso Apolo ali culpando

a sobeja tristeza perigosa

com ásperas palavras reprovando:

—Galo, porque endoudeces? que a fermosa

Ninfa que tanto amaste, descobrindo

por falsa a fé que dava, e mentirosa,

pelas Alpinas noves vai seguindo

outro amor, outro bem, outro desejo,

como inimiga, enfim, de ti fugindo.

Mas o mísero amante, que o sobejo

mal empregado amor lhe defendia

ter de tamanha fé vergonha ou pejo,

da falsífica Ninfa não sentia

senão que o frio do gelado Reno

os delicados pés lhe ofenderia.

Ora se tu vês claro, amigo Almeno,

que de Amor os desastres são de sorte

que para matar basta o mais pequeno,

porque não pões um freio a mal tão forte

que em estado te põe que, sendo vivo,

já não se entende em ti vida nem morte?

ALMENO

Agrário, se do gesto fugitivo

por acaso da fortuna desastrado,

algü' hora deixar de ser cativo;

ou sendo para as Ursas degradado,

aonde Bóreas tem o Oceano

co frios Hiperbóreos congelado;

ou onde o filho de Climene insano,

mudando a cor das gentes totalmente,

as terras apartou do trato humano;

ou se por qualquer outro acidente,

deixar este cuidado tão ditoso,

por quem sou de ser triste tão contente:

este rio, que passa deleitoso,

tornando por detrás, irá negando

à natureza o curso pressuroso;

as feras pelo mar irão buscando

seu pasto e andar se ão pola espessura

das ervas os delfins apacentando.

Ora, se tu vês n'alma, quão segura

tenho esta fé e amor, para que insistes

nesse conselho e prática tão dura?

Se de tua perfia não desistes,

vai repastar teu gado a outra parte;

que é dura a companhia para os tristes.

üa só cousa quero encomendar te,

para repouso algum de meu engano,

antes que o tempo, enfim, de mim te aparte:

que, se esta fera que anda em trajo humano

vires pola montanha andar vagando,

de meu despojo rica e de meu dano,

com os espritos vivos inflamando

o ar, o monte e a serra, que consigo

continuamente leva namorando;

se queres contentar me como amigo,

passando, lhe dirás:—Gentil pastora,

não há no mundo vicio sem castigo.

Tornada em duro mármore não fora

a fera Anaxarete, se amoroso mostrara

o rosto angélico algu' hora.

Foi bem justo o castigo rigoroso;

porém quem te ama, Ninfa, não queria

noda tão feia em gesto tão fermoso.

AGRÁRIO

Tudo farei, Almeno, e mais faria

por te ver algu' hora descansado,

se se acabam os trabalhos algum dia.

Mas bem vês como Febo, já empinado,

me manda que da calma iníqua e crua

recolha em algum vale o manso gado.

Tu, nessa fantasia falsa tua,

para engano maior de teu perigo

não queres companhia senão a sua.

Vou me daqui e fique Deus contigo;

e ficarás milhor acompanhado.

ALMENO

Ele, contigo vá, como comigo

me fica acompanhando meu cuidado.

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Índice

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3

De ALMENO e BELISA

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assado já algum tempo que os amores

d'Almeno, por seu mal, eram passados,

porque nunca Amor cumpre o que promete,

e antre uns verdes ulmeiros apartados,

regando pelo campo as brancas flores,

em lágrimas cansadas se derrete;

quando a linda pastora, que compete

co monte em aspereza,

co prado em gentileza,

por quem o triste Almeno endoudecia,

pela praia do Tejo discorria

a lavar a beatilha e o trançado;

já o sol consentia

que saísse da sombra o manso gado.

E acordado já do pensamento

que tão desacordado o sempre teve,

viu por acerto o bem que incerto tinha.

E, porque onde Amor a mais se atreve,

ali mais enfraquece o entendimento,

não lhe soube dizer o que convinha.

Como homem que à aprazada briga vinha,

a quem de fora engana

a confiança humana,

e despois, vendo o rosto a quem resiste,

treme, teme o perigo, e não insiste;

já se arrepende, a audácia lhe falece:

destarte o pastor triste

ousa, arreceia, esforça e enfraquece.

E tendo assi atónito o sentido,

cometeu com furor desatinado,

e tirou da fraqueza o coração.

Cometimento faz desesperado,

que üa só salvação tem um perdido:

perder toda a esperança à salvação.

As mágoas, que passaram, se dirão;

mas as que ela dizia,

lembrando lhe que via

as águas murmurar do Tejo amenas,

remeto a vós, ó Tágides Camenas,

que, de mágoa, não posso dizer tanto,

porque em tamanhas penas

me cansa a pena e a dor me imped' o canto.

BELISA

Que alegre campo e praia deleitosa!

E quão saudosa faz esta espessura

a fermosura angélica e serena

da tarde amena! E quão saudosamente

a sesta ardente abranda, suspirando,

de quando em quando, o vento alegre e frio!

No fundo rio os mudos peixes saltam;

no ar se esmaltam os céus d'ouro e verde,

e Febo perde a força da quentura.

Pola espessura levam passeando

o gado brando, ao som das sanfoninas,

pisando as finas e fermosas flores,

os guardadores, que, cantando, o gesto

fermoso e honesto das pastoras que amam,

ao ar derramam mil suspiros vãos.

Um louva as mãos, e outro os olhos belos,

outro os cabelos d'ouro, em som suave;

a amorosa ave leva o contraponto.

Mas oh! que conto, e que saudosa história

que na memória aqui se me oferece!

Se não me esquece, já neste lugar

ouvi soar nos vales algum dia,

e respondia o Eco o nome em vão

num coração, Belisa retumbando.

Estou cuidando como o tempo passa,

e quão escassa é toda alegre vida,

e quão comprida, quando é triste e dura.

Nesta espessura longo tempo amei;

se me enganei com quem do peito amava,

não me pesava de ser enganada.

Fui salteada, enfim, de um pensamento,

que um movimento tinha casto e são.

Conversação foi fonte deste engano

que, por meu dano, entrou com falsa cor.

Porque o amor na Ninfa que é segura

entra em figura de vontade honesta.

Mas que me presta, agora, dar desculpa?

Se aí houve culpa, pô la o firme amor

só, num pastor, que nunca o Sol nem Lüa

ou serra algüa, desd'o Ibero ao Indo,

viram outro tão lindo e tão manhoso.

Neste amoroso estado e fé que tinha

cá n'alma minha tão secretamente,

vivi contente, amando e encobrindo.

Ele, fingindo mentirosos danos,

que são enganos que não custam nada,

tendo alcançada já no entendimento

a fé e intento meu só nele posto

(que logo o rosto mostra os corações,

e as afeições cos olhos se praticam,

que mais publicam muito que palavras),

com suas cabras sempre a parte vinha

onde eu mantinha os olhos e o desejo.

Tu, manso Tejo, e tu, florido prado,

do mais passado, enfim, que aqui não digo,

sereis, me obrigo, testemunho certo,

que descoberto vos foi tudo e claro.

Ó Tempo avaro! Ó sorte nunca igual!

Camanho mal quereis à humana gente!

Porque um contente estado assi trocastes?

Vós me tirastes do meu peito isento

o pensamento honesto e repousado,

já dedicado ao coro de Diana;

vós nüa ufana vida me pusestes,

e ali quisestes que gozasse o dano

do doce engano que se chama amor,

com cujo errar passava o tempo ledo.

E vós tão cedo me tirais um bem

que Amor já tem impresso n'alma minha

despois que a tinha envolta em esperanças,

e com lembranças tristes me deixais?

Mal me pagais a fé que sempre tive.

Mas assi vive quem sem dita nace.

Mas já que a face alegre o Sol esconde,

e não responde alguém a tantas mágoas

se não as águas quedos olhos saem;

as sombras caem , e vão-se as alimárias,

das ervas várias fartas , seu caminho;

buscando o ninho os pássros sem dono

já pelo sono esquecem o comer;

quero esquecer também tão doce história,

pois é memória que traz mor cuidado.

Isto é passado; e, sem e deu paixão,

os dias vão gastando o mal e o bem,

e não convém querer me magoar

do que emendar não posso já com mágoas.

Nas claras águas deste rio brando,

que vão regando o campo matizado,

este trançado lavar quero enfim;

que já de mim m'esqueço co a lembrança

desta mudança, que esquecer não sei.

Inda que eu mudarei a opinião,

que, enfim, homens são, a que o esquecimento

depressa faz mudar o pensamento.

ALMENO

Se a vista não m'engana a fantasia,

(como já m'enganou mil vezes, quando

minha ventura enganos me sofria),

parece me que vejo estar lavando

üa Ninfa um véu no claro Tejo,

que se m'está Belisa afigurando.

Não pode ser verdade isto que vejo;

que facilmente aos olhos se afigura

aquilo que se pinta no desejo.

Ó acontecimento que a ventura

me dá para mor dano! Esta é, certo,

que não é doutrem tanta fermosura.

Se poderei falar lhe de mais perto?

Mas fugir me á; não pode ser; que o rio

par'acolá não tem caminho aberto.

Ó temor grande, ó grande desvario,

que a voz me impide, e a língua negligente

destarte está tornando o peito frio!

De quanto me sobeja estando ausente,

que para lhe falar, sempre imagino,

tudo me falta agora em estar presente.

Ó aspeito suave e peregrino!

Pois como! tão asinha assi se esquece

üa fé verdadeira, um amor fino?

BELISA

Ó altas semideias! Pois padece

em vosso rio a honra delicada

de quem tamanha força não merece,

ou seja por vós, Ninfas, reservada,

ou nalgüa árvore alta ou pedra dura

seja por vós asinha transformada.

ALMENO

Ah! Ninfa! Não te mudes a figura;

nem vós, deusas, queirais que eu seja parte

de se mudar tamanha fermosura.

Porque a quem falta a voz para falar te,

e a quem falece a língua e ousadia

também faltarão mãos para tocar te.

BELISA

Que me queres, Almeno, ou que porfia

foi a tua, tão áspera, comigo?

Minha vontade não to merecia.

Se com o amor o fazes, eu te digo

que o amor que tanto mal me faz em tudo

não pode ser amor, mas inimigo.

Não és tu de saber tão falto e rudo

que tão sem siso amasses como amaste.

ALMENO

Onde viste tu, Ninfa, amor sesudo?

Porque te não alembra que folgaste

com meus tormentos tristes, e algu' hora

com teus fermosos olhos me olhaste?

Como te esquece já, gentil pastora,

que folgavas de ler nos freixos verdes

o que de ti escrevia cada hora?

Como tão presto assi a memória perdes

do amor que mostravas, que eu não digo,

se vós, ó altos montes, não disserdes?

Porque te não alembras do perigo

a que, só por me ouvir, te aventuravas,

buscando horas de sesta, horas d'abrigo?

Co a maçã de discórdia me tiravas:

que Vénus que a ganhou por fermosura,

tu, como mais fermosa, lha ganhavas.

E, escondendo te entre a espessura,

ias fugindo como vergonhosa

da namorada e doce travessura.

Não era esta a maçã d'ouro fermosa

com que encoberta assi de astúcia tanta

Cidipe se enganou, de cobiçosa;

nem a que o curso teve de Atalanta;

mas era aquela que com que Galateia

o pastor cativou, como ele canta.

Se más tenções puseram nódoa feia

em nosso firme amor, de enveja pura,

porque pagarei eu a culpa alheia?

Quem desta fé, quem deste amor não cura,

nunca teve sujeito o coração; que o firme

amor co a alma eterna dura.

BELISA

Mal conheces, Almeno, üa afeição;

que, se eu desse amor tenho esquecimento,

meus olhos magoados to dirão.

Mas teu sobejo e livre atrevimento

e teu pouco segredo, descuidando,

foi causa deste longo apartamento.

Vês as ninfas do Tejo que, mudando,

me vão já, pouco a pouco, o claro gesto

noutra forma mais dura traspassando?

Um só segredo meu te manifesto:

que te quis muito, enquanto Deus queria,

mas de pura afeição e amor honesto.

E, pois teu mau cuidado e ousadia

causou tão dura e áspera mudança,

folgo que muitas vezes to dizia.

Fica te embora, e perde a confiança

que mais me não verás, como já viste,

que assi se desengana üa esperança.

ALMENO

Duro apartamento! O vida triste!

O nunca acontecida desventura!

Pois como, Ninfa, assi te despediste?

Assi se há de ir tornando sem ter cura

nessa silvestre e áspera rudeza

tão branda e excelente fermosura?

Tua nunca entendida gentileza

e teus membros assi se transformaram

negando se lhe a própria natureza?

Destarte teus cabelos se tornaram,

deixando já seu preço ao ouro fino

em folhas, que a cor tem do que negaram?

Se este consentimento foi divino,

consinta me também que perca a vida,

antes que a mais me obrigue o desatino.

Que se a Fortuna dura embravecida

tanto em meu tormento se desmede,

não viva mais üa alma tão perdida.

E vós, feras do monte, pois vos pede

minha pena o remédio derradeiro,

fartai já de meu sangue vossa sede.

E vós, pastores rudos deste outeiro,

por que a todos, enfim, se manifeste

que cousa é amor puro e verdadeiro,

ao pé deste funéreo acipreste

me fareis um sepulcro sem arreio

de boninas que o prado ameno veste.

Com desusadas músicas de Orfeio

que me vós cantareis; e, desta sorte,

não haverei enveja ao Mausoleio.

E porque minha cinza se conforte,

em vossos metros doces e suaves

as exéquias fareis de minha morte.

Ali responderão as altas aves,

não módulas no canto, nem lascivas,

mas de dor ora roucas, ora graves.

Não correrão as águas fugitivas

alegres por aqui, mas saudosas,

que pareçam que vêm dos olhos vivas.

Nacerão pelas praias deleitosas

os ásperos abrolhos em lugar

dos roxos lírios, das pudicas rosas.

Não trarão as ovelhas a pastar

d'arredor do sepulcro os guardadores,

que não comerão nada, de posar.

Virão os Faunos, guarda dos pastores,

—se morri por amores, perguntando;

responderão os ecos:—Por amores.

E para os que aqui forem caminhando,

um epitáfio triste se lerá

que esteja minha morte declarando;

no tronco düa árvore estará

nüa ruda cortiça pendurado

escrito cüa fouce, assi dirá:

AImeno fui, pastor de manso gado,

enquanto consentiu minha ventura,

de Ninfas e pastoras celebrado.

Se algü' hora, por dita, na espessura

se perder o amor e a afeição,

tirem a pedra desta sepultura

e em figura de cinza os acharão.

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Índice

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4

A üa Dama

FRONDOSO e DURIANO, pastores

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antando por um vale docemente,

deciam dous pastores, quando Febo

no reino de Neptuno se escondia.

De idade, cada um era mancebo,

mas velho no cuidado, e descontente

do que lhe ele causava parecia.

O que cada um dizia,

lamentando seu mal, seu duro Fado,

não sou eu tão ousado

que o ouse a cantar sem vossa ajuda;

porque, se a minha ruda

frauta, deste favor vosso for dina,

posso escusar a fonte Cabalina.

Em vós tenho Helicon, tenho Pegaso;

em vós tenho Calíope, em vós Talia,

e as outras sete irmãs do fero Marte;

em vós perde Minerva sua valia;

em vós estão os sonos de Parnaso;

das Piérides em vós se encerra a arte.

Co a mais pequena parte,

Senhora, que me deis da ajuda vossa,

podeis fazer que eu possa

escurecer ao Sol resplandecente;

podeis fazer que a gente

em mim do grão poder vosso se espante

e que vossos louvores sempre cante.

Podeis fazer que creça de hora em hora

o nome Lusitano, e faça enveja

a Esmirna, que de Homero se engrandece.

Podeis fazer também que o mundo veja

soar na ruda frauta o que a sonora

cítara Mantuana só merece.

Já agora me parece

que podem começar os meus pastores

tratar de seus amores;

porque inda que presentes não estejam

as que eles ver desejam,

mudança do lugar, menos de estado,

não muda um coração de seu cuidado.

lá deixava dos montes a altura

e nas salgadas ondas se escondia

o Sol, quando Frondoso e Duriano,

ao longo de um ribeiro que corria

pola mais fresca parte da verdura,

claro, suave e manso, todo o ano,

lamentando seu dano,

vinha já recolhendo o manso gado.

E um estando calado,

enquanto um pouco o outro se queixava;

após ele, tornava

a dizer de seu mal o que sentia;

e, enquanto ele falava, o outro ouvia.

Vinham se assi queixando a os penedos,

aos silvestres montes e aspereza,

que quási de seus males se doíam.

Ali, as pedras perdiam sua dureza;

ali, os correntes rios estar quedos

prontos a suas queixas, pareciam;

e só as que podiam

estes males curar, que elas causavam,

o ouvido lhe negavam

por perderem de todo a esperança;

mas eles, que mudança

de amor com tantos males não faziam, f

alando inda com elas lhe deziam:

FRONDOSO

Isto é o que aquela verdadeira

fé, com que te amei sempre, merecia,

sem nunca te deixar um só momento?

Como, cruel Belisa, te esquecia

um mal cuja esperança derradeira

em ti So tinha posto seu assento?

Não vias meu tormento?

Não vias tu a fé com que te amava?

Porque não te abrandava

este amor que me tu mal pagaste?

Mas, pois já me deixaste

co a esperança de ti toda perdida,

perca, quem te perdeu, também a vida.

DURIANO

Se os males que por ti tenho sofrido

(ó Silvana, em meus males tão constante!)

quiseras que algu' hora te dissera,

ainda que de duro diamante

fora teu cruel peito endurecido,

creio que a piedade te movera.

Já 'gora em branda cera

os montes são tornados e os penedos;

e os rios que estão quedos,

sentiram meus suspiros, minhas queixas.

Tu só, cruel, me deixas,

que és, mais que montes e penedos, dura,

e fugitiva mais que a água pura.

FRONDOSO

Onde está aquela fala, que soía,

só com seu doce tom, que me chegava,

a avivar me os espíritos cansados?

Onde está o olhar brando, que cegava

o sol resplandecente ao meio dia?

Onde estão os cabelos delicados,

que ao vento espalhados

O ouro escureciam, e a mim matavam?

E a quantos os olhavam

causavam também novos acidentes?

Porque, cruel, consentes,

que goze outro a glória a mim devida?

Perca, quem te perdeu, também a vida.

DURIANO

Não vejo bem já que a meu mal espere,

senão se é esperar que morte dura

enfim me venha dar tua saudade.

Vejo faltar me a tua fermosura;

a vontade me diz que desespere,

contradiz me a razão esta vontade.

Diz que nüa beldade

em quem mostrou o cabo a natureza,

não há tanta crueza

que um tão firme amor desprezar queira

e üa fé verdadeira;

mas tu, que de razão nunca curaste,

porque era dar me a vida. ma tiraste.

FRONDOSO

A quem, Belisa ingrata, te entregaste?

A quem deste, cruel, a fermosura,

que só a meu tormento se devia?

Porque üa fé deixaste, firme e pura?

Porque sem respeito me trocaste

por quem só nem olhar te merecia?

E o bem que te queria,

que nunca perderei senão por morte,

não é de maior sorte

que quanto a cega gente estima e preza?

Só a tua crueza

foi nisto contra mim endurecida:

perca, quem te perdeu, também a vida.

DURIANO

Levaste me meu bem num só momento;

levaste me com ele, juntamente,

de cobrá lo jamais a confiança;

deixaste me, em lugar dele, somente

üa contínua dor, e um tormento,

um mal de que não pode haver mudança.

Tu, que eras a esperança

dos males que me tu, cruel, causaste,

de todo te trocaste,

com Amor conjurada em minha morte.

Porém, se minha sorte

consente que por ti seja causada,

morte não foi mais bem aventurada.

FRONDOSO

Não naceste de algüa pedra dura;

não te gerou algüa tigre Hircana;

não foi tua criação entre a rudeza

a quem, cruel, saíste desumana?

No Céu formada foi tua fermosura,

onde a mesma brandura é natureza;

esta tua dureza

donde teve princípio, ou o tomaste?

Porque, dura, enjeitaste

um verdadeiro amor que tu bem vias,

üa fé, que conhecias,

por outra de ti nunca conhecida?

Perca, quem te perdeu, também a vida.

DURIANO

Vai se co seu pastor o manso gado,

porque de amor entende aquela parte

que a bruta natureza lhe ensina.

O rústico leão sem nenhüa arte,

do instinto natural só ensinado,

aonde sente amor, ali se inclina.

E tu, que de divina

não tens menos que Vénus e Cupido,

porque sequer co ouvido

um amor verdadeiro não socorres?

Ou porque te não corres

que te vença o leão em piedade,

e Vénus não te vence na beldade?

FRONDOSO

A mim não me faltava o que se preza

entre os celestes deuses, que formaram

a tua mais que humana fermosura;

em mim os voluntários céus faltaram;

em mim se perverteu a natureza

düa cruel, fermosa criatura.

Mas, pois, Belisa dura,

que do mais alto Céu a nós vieste,

e em peito celeste

um tal contrário pôde aposentar te,

não é contrário achar se

tamanha fé tão mal agradecida.

Perca, quem te perdeu, também a vida.

DURIANO

Por ti, a noite escura me contenta;

por ti, o claro dia me avorrece;

abrolhos para mi são frescas flores;

a doce filomela m' entristece;

todo o contentamento me atormenta

com a contemplação de teus amores;

as festas dos pastores,

que podem alegrar toda a tristeza.

Em mi tua crueza

faz que o mal cada hora vá dobrando.

Õ cruel! Até quando

Durará em ti um tal aborrecimento?

E a vida, em mi, que sofre tal tormento?

FRONDOSO

Fugiste de um amor tão conhecido,

fugiste de üa fé tão clara e firme,

e seguiste a quem nunca conheceste,

não por fugir de Amor, mas por fugir me;

que bem vias que tinha merecido

o amor que tu a outrem concedeste.

A mim não me fizeste

nenhüa sem razão, que bem conheço

que tanto não mereço;

fizeste a àquele bem, firme e sincero,

que sabes que te quero,

em lhe tirar a glória merecida.

Perca, quem te perdeu, também a vida.

DURIANO

Crece cad' hora em mim mais o cuidado,

e vejo que em ti crece juntamente

cad' hora mais de mim o esquecimento.

Ó Silvana cruel! Porque consente

o teu feminil peito delicado

esquecer lhe um tão áspero tormento?

Tal avorrecimento

merece um capital teu inimigo;

não eu, que só contigo

estou contente, e nada mais desejo

se algu' hora te vejo.

Tu és um só bem meu, üa só glória,

que nunca se me aparta da memória.

FRONDOSO

Olhos que viram já tua fermosura;

vida que só de ver te se sustinha;

vontade, que em ti era transformada;

üa alma que a tua em si só tinha,

tão unida consigo, quanto a pura

alma co débil corpo está liada;

e agora apartada

te vê de si com tal apartamento,

qual será seu tormento?

Qual será aquele mal que tem presente?

Maior é que o que sente

D triste corpo na última partida.

Perca, quem te perdeu, também a vida.

DURIANO

Regendo noutro tempo o manso gado,

tangendo minha frauta nestes vales,

passava a doce vida alegremente.

Não sentia o tormento destes males;

menos sentia o mal deste cuidado,

que tudo então em mim era contente.

Agora, não somente

desta vida suave me apartaste,

mas outra me deixaste

que ao duro mal que sinto cá no peito

me tem já tão afeito

que sinto já por glória minha pena;

por natureza, o mal que me condena.

FRONDOSO

Juntamente viver compridos anos

os Fados te concedam, que quiseram

ajuntar te com tal contentamento.

Pois para ti os bens todos naceram,

tormentos para mim, males e danos,

logra tu só teu bem; eu, meu tormento.

Nenhum apartamento,

Belisa, me fará deixar de amar te;

porque em nenhüa parte

poderás nunca estar sem mim u' hora.

Consente, pois, agora

que, em pago desta fé tão conhecida,

perca, quem te perdeu, também a vida.

DURIANO

Veja te eu, crua, amar quem te desame,

porque saibas que cousa é ser amada

de quem tu avorreces e desprezas.

Veja te eu ser ainda desprezada

de quem tu mais desejas que te ame,

porque sintas em ti tuas cruezas,

sintas tuas durezas,

e quanto pode o seu cruel efeito

num coração sujeito.

Porque, em sentindo o mal que eu sinto agora,

espero que algu' hora

faça o teu próprio mel de mim lembrar te,

já que não pôde o meu nunca abrandar te.

FRONDOSO

Mil anos de tormento me parece

cada hora que sem ti e sem esperança

vivo de poder mais tornar a ver te.

Sustenta me esta vida tua lembrança;

a vida sobre tudo me entristece;

a vida antes perdera, que perder te.

Mas eu, se, por querer te

um bem que em ti só tem seu firme assento,

padeço tal tormento,

que inda espera de ti quem te desame,

ou ao menos te ame

com algum falso amor ou fé fingida?

Perca, quem te perdeu, também a vida.

DURIANO

Então, cruel, verás se te merece

com tamanho desprezo ser tratada

üa alma, que de amar te só se preza.

Mas como podes tu ser desprezada,

se o menos que em ti fora, se parece,

abrandar pode montes e aspereza?

Porque se a natureza

em ti o remate pôs da fermosura,

qual será a pedra dura

que a teu valor resista brandamente?

Quanto mais fraca gente,

que ao humano parecer não se defende,

e a mesma Vénus deusa ao teu se rende?

FRONDOSO

E pois fé verdadeira, amor perfeito,

tormento desigual e vida triste,

junta com um contino sofrimento

e um mal, em que todo o mal consiste,

não puderam mover teu duro peito

e amostrares sequer contentamento

de veres meu tormento,

mas antes isto tudo desprezaste,

e a outrem te entregaste,

por não me ficar nada em que esperasse,

senão quando acabasse

a vida, que a meu mal é tão comprida,

perca, quem te perdeu, também a vida.

DURIANO

Longo curso de tempo, e apartado

lugar, a um coração que está entregue

não podem apartar de seu intento.

Porque foges, cruel, a quem te segue?

Não vês que teu fugir é escusado,

que sem mim nunca estás um só momento?

Nenhum apartamento

(inda que a alma do corpo se aparte),

poderá ausentar te

desta alma triste, que, continuamente,

em si te tem presente.

Torna, cruel; não fujas a quem te ama:

vem dar a morte ou vida a quem te chama.

A noite escura, triste e tenebrosa,

que já tinha escondido o negro manto,

de escuridade a terra toda enchendo

fez pôr a estes pastores fim ao canto,

que ao longo da ribeira deleitosa

vinham seu manso gado recolhendo.

Se aquilo que eu pretendo

deste trabalho haver, que é todo vosso,

Senhora, alcançar posso,

não será muito haver também a glória

e o lauro da vitória,

que Virgílio procura e haver pretende,

pois o mesmo Virgílio a vós se rende.

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Índice

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5

A D. António de Noronha

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quem darei queixumes namorados

do meu pastor queixoso namorado,

a branda voz, suspiros magoados,

a causa porque n'alma é magoado?

De quem serão seus males consolados?

Quem lhe fará devido gasalhado?

Só vós, Senhor famoso e excelente,

especial em graças entre a gente.

Por partes mil lançando a fantasia,

busquei na terra estrela que guiasse

meus rudos versos: em cuja companhia

a santa piedade sempre andasse,

luzente e clara, como a luz do dia,

que o rudo engenho meu me alumiasse;

em vossas perfeições, grão Senhor, vejo,

cumprido inda além o meu desejo.

vós se dêm, a quem junto se há dado

brandura, mansidão, engenho e arte,

dum esprito divino acompanhado,

dos sobre-humanos um em toda a parte.

Em vós as graças todas se hão juntado;

de vós em outras partes se reparte;

sois claro raio, sois ardente chama,

glória e louvor do tempo, asas da fama.

Enquanto aparelho um novo esprito,

e voz de cisne tal que o mundo espante,

com que de vós, Senhor, em alto grito

louvares mil em toda a parte cante,

ouvi o canto agreste em tronco escrito,

entre vacas e gado petulante;

que, quando tempo for, em milhor modo

por vós me ouvirá o mundo todo.

As vos querelas, brandas e amorosas,

sejam de vós tratadas brandamente;

verdades d'alma pouco venturosas,

saídas com suspiro vivo e ardente,

que em vossas mãos se entregam valerosas,

para despois viverem entre a gente,

chorando sempre a antiga crueldade,

e os corações moverem a piedade.

Já declinava o Sol contra o Oriente,

e o mais do dia já era passado,

quando o pastor, co grave mal que sente,

por dar alívio em parte a seu cuidado,

se queixa da pastara docemente,

cuidando de ninguém ser escutado.

Eu, que o ouvi dua árvore, escrevia

as mágoas que cantou; e assi dezia:

-Ou tu do monte Píndaso és nascida,

ou mármor te pariu, formosa e dura:

que não pode ser seja concebida

dureza tal de humana criatura;

ou és quiçais em pedra convertida,

e tens de natureza tal ventura;

porém não fez em ti boa impressão,

tornar-te só de mármor o coração.

Já esta minha voz rouca e chorosa

a gente mais remota moveria,

e se tocasse a veia lacrimosa

os tigres em Hircania amansaria.

Se não foras cruel, quanto fermosa,

meu longo suspirar te abrandaria;

mas suspirar por ti, mas bem-querer-te,

que fazem, senão mais endurecer-te?

Se deixaras vencer a crueldade

de tua tão perfeita fermosura,

um pouco viras bem minha vontade,

e viras esta fé tão limpa e pura,

porventura que houveras piedade

e tivera eu quiçais milhor ventura.

Mas nunca achei milhor tua beleza,

se não com ver-se em ti tua dureza

Já um peito abrandara que não sente

meu duro e grave mal, segundo é forte;

se decera ao Inferno fero e ardente,

movera a piedade a mesma morte.

Se ua gota de água brandamente

abranda um penedo duro e forte,

como lágrimas tantas não farão

um pequeno sinal num coração?

Na testa tenho üa fonte viva d'água,

que por meus olhos tristes se derrama;

no peito está de fogo ua viva frágoa,

que tudo em si converte e tudo inflama;

Amor, ao derredor, por maior mágoa,

voando, mais acende a ardente chama.

E se qués ver se ardentes são seus tiros,

olha se são ardentes meus suspiros.

Quando rumor algum grande se sente,

que se acende fogo em casa, ou torre,

de pura compaixão vai toda a gente

gritando: «Água ao fogo!» e cada um corre.

Assi anda meu peito em chama ardente,

e co a água dos olhos se socorre;

que quem me abrasa outra água me defende,

porque com esta o fogo mais se acende.

Quando o Sol sai lá no Oriente

o seu antigo curso começando,

fermoso, intenso, puro e refulgente,

o monte, campo, mar, tudo alegrando;

quando de nós se esconde no Ponente,

e noutras terras sai, alumiando;

sempre, enquanto dá ao mundo giro,

por ti meus olhos choram e eu suspiro.

Caminha o dia todo o caminhante,

vem, acabado, a noite em que descansa;

trabalha na tormenta o mareante,

goza o dia sereno e de bonança;

recobra o ano fértil e abundante

na terra o lavrador, se nela cansa:

mas eu, de meu trabalho e mal tão forte,

tormento espero, enfim, e crua morte.

Co' ouvir meu mal, as rosas matutinas,

de dó de mim, se cerram e emmurchecem;

co meu suspiro ardente, as cores finas

perdem o cravo, o lírio, e não florecem.

Co a roxa aurora, as pálidas baninas,

em vez de se alegrarem, se entristecem;

deixa seu canto Progne e Filomena;

que mais lhe dói que a sua a minha pena.

Responde o monte côncavo a meus ais,

e tu, como áspide, cerras-lhe o ouvido;

as árvores do campo, os animais,

mostram sentir meu mal sem ser sentido;

e a ti, as minhas dores desiguais

não movem esse peito endurecido;

por mais e mais que chamo, não respondes,

e quanto mais te busco, mais te escondes.

Naquela parte adonde costumavas

apacentar teus olhos e teu gado,

ali, onde mil vezes me mostravas

ser eu de ti o pasto desejado,

mil vezes te busquei por ver se davas

ainda algum descanso a meu cuidado.

No campo em vão te busco, e busco o monte,

qual o ferido cervo busca a fonte.

Este lugar de ti desamparado,

com cujas sombras frias já folgaste,

agora triste e escuro é já tornado;

que todo o bem contigo nos levaste.

Tu eras nosso sol mais desejado;

não temos luz despois que nos deixaste.

Torna, meu claro sol! Vem já, meu bem!

Qual é o Josué que te detém?

Despois que deste vale te apartaste,

não pace o branco gado, com secura;

secou-se o campo dês que lhe negaste

dos teus foemosos olhos a luz pura;

secou-se a fonte donde já te olhaste,

quando milhor que agora, áspera e dura;

nega, sem ti, a terra dando gritos,

pasto às cabras e leite a os cabritos.

Sem ti, doce cruel minha inimiga,

a clara luz escura me parece;

este ribeiro, quando Amor me obriga,

com meu chorar por ti contino crece.

Não há fera que a fome não persiga,

nem o campo sem ti já não florece;

cegos estão meus olhos, já não vêm,

pois que não podem ver meu claro bem.

O campo, como de antes, não se esmalta

de boninas azuis, brancas, vermelhas;

não chave ao pasto já, que há d'água falta;

as mansas e pacíficas ovelhas

sem ti perecem e o Céu também lhes falta;

não acham flor as melífluas abelhas;

com lágrimas que manam dos meus olhos

produze a terra já ásperos abrolhos

Torna pois já, pastora, a este prado,

e restituirás esta alegria;

alegrarás o monte, o campo, o gado,

alegrarás também a fonte fria.

Torna, vem já, meu sol tão desejado,

faze esta noite escura em claro dia;

e alegra já esta magoada vida,

toda em tua ausência consumida.

Vem, como quando o raio eminente

do nosso horizonte que, escondido,

deixa um certo temor à mortal gente,

que causa ver o Orbe escurecido;

e quando torna a vir, claro e luzente,

alegra o mundo todo entristecido;

assi é para mim tua luz pura

claro sol, e, ausente, noite escura.

Tu, esquecida já do bem passado

e do primeiro amor que me mostraste,

teu coração de mim tens apartado,

e o lugar também desamparaste.

Não te quero eu a ti mais que a meu gado?

Não sou eu mesmo aquele que tu amaste?

Pois onde merecia tão grão desvio?

Ouve-me, pois me vês já morto e frio.

Bem vês que por Amor se move tudo,

e não há quem de Amor se veja isento;

o animal mais simples, baixo e rudo,

o de mais levantado pensamento,

até debaixo d'água o peixe mudo,

lá tem d'Amor também seu movimento;

a ave, que no ar cantando voa,

também por outra ave se afeiçoa.

A música do leve passarinho,

que sem concerto algum solta e derrama,

saltando de raminho em raminho,

cantando com amor suspira e chama,

té achar no amado e doce ninho

aquele a quem busca e a quem ama,

descansa do trabalho que tomara

tendo só seu descanso em quem achara.

A fera que é mais fera, e o leão

sempre acha outro leão, e outra fera,

em que possa empregar üa afeição

que lhe a conversação no peito gera;

também sabe sentir sua paixão,

também suspira, morre e desespera,

acena, salta, brada, ferve e geme;

e, não temendo nada, Amor só teme.

O cervo que, escondido e emboscado,

temendo o cobiçoso caçador,

está na selva, monte, bosque ou prado,

ali onde está e vive, vive amor.

D'amor e de temor acompanhado,

com justa causa, amor tem e temor:

temor, de quem ali feri-lo vinha;

e amor, a quem já ferido o tinha.

Se o animal insensível, que não sente,

também sente d'Amor a frecha dura,

porque te não abranda o fogo ardente,

que procede de tua fermosura?

Porque escondes a luz do Sol à gente,

que nesses olhos trazes, bela e pura?

Mais bela, mais suave e mais fermosa

que o lirio, o jasmim, o cravo, a rosa.

Pode ser, se me viras, que sentiras

ver desfazer um peito em triste pranto;

e bem pouco fizeras, se me viras,

já que eu só por te ver, suspiro tanto.

As mágoas e suspiros que me ouviras

te puderam mover a grande espanto,

a dor, a piedade, o sentimento,

e mais, que para mais é meu tormento.

Os pensamentos vãos, que o vento leve,

o suspirar em vão também ao vento,

o esperar a calma, a chuva, a neve,

e não te poder ver um só momento,

tormento é que somente a ti se deve.

E se pode inda haver maior tormento,

quem te viu e se vê de si ausente,

muito mais passará mais levemente.

Faz mossa a pedra dura em sua dureza

co a água que lhe toca brandamente;

abranda o ferro forte a fortaleza,

se lhe toca também o fogo ardente;

só em ti não conheço a natureza,

que a ser de pedra, ferro ou de serpente,

já teu peito cruel fora desfeito

do fogo e das lágrimas que deito.

Quando a formosa Aurora mostra a fronte,

alegra toda a terra, vendo o dia;

quando Febo aparece no horizonte,

manifesta também grande alegria;

contente come o gado ao pé do monte,

alegre vai beber à fonte fria.

Tudo contente está, alegre tudo;

eu só, só pensativo, triste e mudo.

Se da alma e do corpo tens a palma,

e do corpo sem alma não tens dó,

há dó do corpo só, que está sem alma,

pois sem alma não vive o corpo só.

Na chama, no ardor, no fogo e calma,

na afeição, no querer eu sou um só;

não acharás vontade mais cativa;

nem outra como a tua tão esquiva.

Se te apartas por não ouvir meu rogo,

onde estiveres te hei-de importunar;

posto que vá por água, ferro ou fogo,

contigo em toda a parte m'hás-de achar;

que a chama que me abrasa é de tal fogo

que, enquanto eu vivo for, há-de durar,

e o nó que me tem preso é de tal sorte

que não se há-de soltar em vida ou morte.

Neste meu coração sempre estarás

enquanto a alma estiver com ele unida;

meu spírito também possuirás,

despois que a alma do corpo for partida.

Por mais e mais que faças, não farás

que não te ame nesta e na outra vida.

Impossível será que, eternamente,

estês de mim ausente, estando ausente.

Cá me acompanhará tua memória,

se o rio que se diz do esquecimento,

da minha não borrar tão longa história,

tão grave mal, tão duro apartamento.

Até que eu te veja entrar na glória

vivirei num contino sentimento;

[e] inda então será (se isto ser possa)

servir esta alma minha lá a vossa.

Aqui, com grave dor, com triste acento,

deu o triste pastor fim a seu canto;

co rosto baixo, e alto o pensamento,

seus olhos começaram novo pranto;

mil vezes fez parar no ar o vento,

e apiadou no Céu o coro santo;

as circunstantes selvas se abaixaram

de dó das tristes mágoas que escutaram.

Com üa mão na face, e encostado,

em sua dor tão enlevado estava

que, como em grave sono sepultado,

não viu o Sol que já no mar entrava.

Berrando anda em roda o mesmo gado,

que o seguro curral já desejava;

nas covas as raposas, e em seus ninhos

se recolhem os simples passarinhos.

Já sobre um seco ramo estava posto

o mocho co funesto e triste pranto;

a cujo sem o pastor ergueu o rosto

e viu a terra envolta em negro manto.

Quebrando então o fio a seu gosto,

mas não quebrando o fio a seu pranto,

para milhor cuidar em seu cuidado,

levou para os currais o manso gado.

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Índice

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6

Ao Duque de Aveiro

ALIEUTO, pescador; AGRÁRIO, pastor

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rústica contenda desusada

entre as Musas dos bosques, das areias,

de seus rudos cultores modulada,

a cujo som, atónitas e alheias,

do monte as brancas vacas estiveram

e do rio as saxátiles lampreias,

desejo de cantar; que se moveram

os troncos e as avenas dos pastores,

e os silvestres brutos suspenderam.

Não menos o cantar dos pescadores

as ondas amansou do alto pego,

e fez ouvir os mudos nadadores.

E se, por sustentar se, o Moço cego

nos trabalhos agrestes a alma inflama,

o que é mais próprio no ócio e no sossego,

mais maravilhas dando a voz da fama,

no mesmo mar undoso e vento frio

brasas roxas acende a roxa flama.

Vós, ó ramo de um tronco alto e sombrio,

cuja frondente coma já cobriu

de Luso todo o gado e senhorio,

e cujo são madeiro já saiu

a lançar a forçosa e larga rede

no mais remoto mar que o mundo viu;

e vós, cujo valor tão alto excede

que, cantá-lo em voz alta e divina

a fonte de Parnaso move a sede;

ouvi da minha humilde sanfonina

a harmonia que vós alevantais

tanto, que de vós mesmo a fazeis dina.

E se, agora que afábil me escutais,

não o ouvirdes cantar com alta tuba

o que vos deve o mundo que dourais;

se os Reis avós vossos , que de Juba

os reinos devas taram, não ouvis

que nas asas do verso excelso suba;

se não sabem as frauta s pastoris

pintar de Toro os campos , semeados

de armas, corpo s fortes e gentis,

por um moço animoso sustentados

contra o indómito pai de toda Espanha,

contra a Fortuna vã e injustos Fados;

um moço, cujo esforço, animo e manha

fez decer do Olimpo o duro Marte

e dar lhe a quinta esfera , que acompanha;

se não sabem cantar a menos parte

do sapiente peito e grão conselho

que pôde, ó Reino ilustre, descansar te ;

peito que o douto Apolo fez, vermelho,

deixar o sacro Monte, e as Nove irmãs

diz que a ele se afeite m, como a espelho:

saberão só cantar as suas vãs

contendas de Alieuto vil e Agrário,

um de escamas coberto, outro de lãs.

Vereis , Duque sereno , o estilo vário ,

a nós novo, mas noutro mar cantado,

de um, que só foi das Musas secretário:

o pescador Sincero, que amansado

tem o pego de Pócrita co canto

pelas sonora s ondas compassado.

Deste seguindo o som, que pode tanto,

e misturando o antigo Mantuano,

façamos novo estilo, novo espanto.

Partira se do monte Agrário insano

para onde a força só do pensamento

lhe encaminhava o lasso peso humano.

Embebido num longo esquecimento

de si, do seu gado e pobre fato,

após dum doce sonho e fingimento,

rompendo as silvas hórridas do mato,

vai por cima de outeiros e penedos,

fugindo, enfim, de todo humano trato.

Ante os seus olhos leva os olhos ledos

da branca Dinamene, que enverdece,

só co meneio, os vales e rochedos.

Ora se ri consigo, quando tece

na fantasia algum prazer fingido;

ora fala, ora mudo se entristece.

Qual a tenra novilha que corrido

tem montanhas fragosas e espessuras

por buscar o cornígero marido,

e, cansada, nas húmidas verduras

cair se deixa, ao longo do ribeiro,

já quando as sombras vêm descendo escuras,

e nem co a noite ao vale seu primeiro

se lembra de tornar, como soía,

perdida pelo bruto companheiro:

tal Agrário chegado, enfim, se via

onde o grão pego horríssono suspira

nua praia arenosa, húmida e fria.

Tanto que ao mar estranho os olhos vira,

tornando em si, de longe ouviu tocar se

de douta mão não vista e nova lira.

Fê lo o som desusado desviar se

para onde mais soava, desejando

de ouvir e conversar, e de provar se.

Não tinha muito espaço andado, quando

nüa concavidade de um penedo

que, pouco e pouco, fora o mar cavando,

topou cum pescador que, pronto e quedo,

nua pedra assentado, brandamente

tangendo, fazia o mar sereno e ledo.

Mancebo era de idade florecente,

pescador grande do alto, conhecido

pelo nome de toda a húmida gente.

Alieuto se chama, que perdido

era pela fermosa Lemnoria,

Ninfa que tem o mar ennobrecido.

Por ela as redes lança noite e dia,

por ela as ondas túmidas desprezas;

por ela sofre o Sol e a chuva fria.

Co seu nome mil vezes a braveza

dos ventos feros amansou co verso,

que remove das rochas a dureza.

E agora em som de voz suave e terso,

está seu nome aos ecos ensinando

por estilo do agreste som diverso.

Do qual Agrário atónito, aflouxando

da fantasia um pouco seu cuidado,

suspenso esteve, os números notando.

Mas Alieuto, vendo se estorvado

pelo pastor da música divina,

alevantando o rosto sossegado,

lhe diz assi:—Vaqueiro da campina,

que vens buscar às arenosas praias,

onde a bela Anfitrite só domina?

Que razão há, pastor , porque te saias

para o nosso escame o e vil terreno

dos mui floridos mirtos e altas faias?

Que se agora o mar vês brando e sereno,

e estenderem se as ondas pela areia,

amansadas das águas com que peno,

verás logo o como desenfreia

Eolo o vento pelo mar undoso,

de sorte que Neptuno o arreceia.

Responde Agrário:—O músico e amoroso

pescador! eu não venho a ver o lago

bravo, quieto, ou o vento brando e iroso;

mas o meu pensamento, com que apago

as flamas ao desejo, me trazia

sem ouvir e sem ver, suspenso e vago,

até que a tua angélica harmonia

me acordou, vendo o som com que aqui cantas

a tua perigosa Lemnoria.

Mas, se de ver me cá no mar te espantas,

eu me espanto também do estilo novo

com que as ondas horríssonas quebrantos.

O qual, posto que certo louvo e aprovo,

desejo de provar contra o silvestre

antigo pastoril, que eu mal renovo.

E tu, que no tocar pareces mestre,

podes julgar se há clara diferença

entre o novo marítimo e o campestre.

—Não há (disse Alieuto) em mim detença;

mas antes alvoroço, inda que veja

que essa tua confiança só me vença.

Mas, porque saibas que nenhüa enveja

os pescadores têm aos pastores,

no som que pelo mundo se deseja,

toma a lira na mão, que os moradores

do vítreo fundo vejo já juntar se

para ouvir nossos rústicos amores.

E bem vês pela praia apresentar se

nas conchas vária cor à vista humana,

e o mar vir por antr' elas e tornar se.

Sossegada do vento a fúria insana,

encrespa brandamente o ameno rio

que seu licor aqui mistura e dana.

Este penedo côncavo e sombrio,

que de cangrejos vês estar coberto,

nos dá abrigo do Sol, quieto e frio.

Tudo nos mostra, enfim, repouso certo,

e nos convida ao canto, com que os mudos

peixes saem ouvindo ao ar aberto.

Assi se desafiam estes rudos

poetas, nos ofícios discrepantes,

nos engenhos, porém, sutis e agudos.

E já mil companheiros circunstantes

estavam para ouvir, e aparelhavam

ao vencedor os prémios semelhantes.

Quando já as liras súbito tocavam

Agrário começava, e da harmonia

os pescadores todos se admiravam;

e destarte Alieuto respondia:

AGRÁRIO

Vós, semícapros deuses do alto monte,

Faunos longevos, Sátiros, Silvanos;

e vós, deusas do bosque e clara fonte,

ou dos troncos que vivem largos anos,

se tendes pronta um pouco a sacra fonte

a nossos versos rústicos e humanos,

ou me dai já a coroa de loureiro,

ou penda a minha lira dum pinheiro.

ALIEUTO

Vós, húmidas deidades deste pego,

Tritões cerúleos, Próteo, com Palemo;

e vós, Nereidas do sal em que navego,

por que[m] do vento as fúrias pouco temo;

se às vossas ricas aras nunca nego

o congro nadador na pá do remo,

não consintais que a música marinha

vencida seja aqui da lira minha.

AGRÁRIO

Pastor se fez um tempo o Moço louro,

que do Sol as carretas move e guia;

ouviu o rio Anfriso a lira d'ouro

que o sacro inventor ali tangia.

Io foi vaca; Júpiter foi touro;

mansas ovelhas junto da água fria

guardou o fermoso Adónis; e tornado

em bezerro Neptuno foi já achado.

ALIEUTO

Pescador já foi Glauco, o qual agora

deus é do mar; e Próteo focas guarda.

Naceu no pego a deusa, que é senhora

do amoroso prazer, que sempre tarda. S

e foi bezerro o deus que mar adora

também já foi Delfim; e quem rês guarda

verá que os moços pescadores eram

que o escuro enigma a o Vate deram.

AGRÁRIO

Fermosa Dinamene, se dos ninhos

os implumes penhores já furtei

à doce filomela, e dos murtinhos

para ti, fera! as flores apanhei;

e se os crespos madronhos nos raminhos

a ti, com tanto gosto, apresentei,

porque não dás a Agrário desditoso

um só revolver d'olhos piadoso?

ALIEUTO

Para quem trago eu d'água em vaso cavo,

os curvos camarões vivos saltando?

Para quem as conchinhas ruivas cavo

na praia os brancos búzios apanhando?

Para quem, de margulho, no mar bravo,

os ramos de coral venho arrancando,

senão para a fermosa Lemnoria

que cum só riso a vida me daria?

AGRÁRIO

Quem viu já o desgrenhado e crespo Inverno

d'altas nuvens vestido, hórrido e feio,

ennegrecendo a vista o Céu superno,

quando arranca os troncos o rio cheio;

raios, chuvas, trovões, um triste inferno,

mostra ao mundo um pálido receio;

tal é o amor cioso a quem suspeita

que outrem de seus trabalhos se aproveita.

ALIEUTO

Se alguém viu pelo alto o sibilante

furor, deitando flamas e bramidos,

quando as pasmosas serras traz diante,

hórrido aos olhos, hórrido aos ouvidos,

a braços derrubando o já nutante

mundo, cos Elementos destruídos,

assi me representa a fantasia

a desesperação de ver um dia.

AGRÁRIO

Minh'alva Dinamene, a Primavera,

que os campos deleitosos pinta e veste,

e, rindo se, üa cor aos olhos gera

com que na terra vêm o arco celeste;

o cheiro, rosas, flores, a verde hera,

com toda a fermosura amena, agreste,

não é para meus olhos tão fermosa

como a tua, que abate o lírio e rosa.

ALIEUTO

As conchinhas da praia que apresentam

a cor das nuvens, quando nace o dia;

o canto das Sirenas, que adormentam;

a tinta que no múrice se cria;

navegar pelas águas que se assentam

co brando bafo quando a sesta é fria,

não podem, Ninfa minha, assi aprazer me

como ver te üa hora alegre ver me.

AGRÁRIO

A deusa que na Líbica alagoa

em forma virginal apareceu,

cujo nome tomou, que tanto soa,

os olhos belos tem da cor do céu,

garços os tem; mas üa que a coroa

das fermosas do campo mereceu,

da cor do campo os mostra, graciosos

quem diz que não são estes os fermosos?

ALIEUTO

Perdoem me as deidades; mas tu, diva,

que no liquido mármol és gerada,

a luz dos olhos teus, celeste e viva,

tens por vício amoroso atravessada;

nós pelos lhe chamamos; mas quem priva

do dia o lume, baixa e sossegada,

traz a dos seus nos meus, que o não nego;

e com tudo isso inda assi estou cego.

Assi cantavam ambos os cultores

do monte e praia, quando os atalharam

a um, pastares; a outro, pescadores;

e quaisquer a seu vate coroaram

de capelas idóneas e fermosas,

que as Ninfas lhe teceram e ordenaram;

a Agrário, de murtinhos e de rosas;

a Alieuto, de um fio de torcidos

búzios e conchas ruivas e lustrosas.

Estavam n'água os peixes embebidos,

co as cabeças fora e quási em terra,

os músicos delfins estavam perdidos.

julgavam os pastores que na serra

o cume e preço está do antigo canto;

que quem o nega contra as Musas erra.

Dizem os pescadores que outro tanto

tem da sonora frauta quanto teve

o campo pastoril de antigo Manto.

Mas já o pastor de Admeto o carro leve

molhava n'água amara, e competia

a recolher a roxa tarde e breve;

foi fim da contenda o fim do dia.

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Índice

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7

lntitulada dos Faunos, dirigida

a Dom António de Noronha

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s doces cantilenas que cantavam

os semícapros deuses, amadores

das Napeias, que os montes habitavam,

cantando escreverei; que, se os amores

aos silvestres deuses maltrataram,

já ficam desculpados os pastares.

Vós, senhor Dom António, aonde acharam

o claro Apolo e Marte um ser perfeito,

em que suas altas mentes assinaram,

e meu engenho é rudo e imperfeito,

bem sabe onde se salva, pois pretende

levantar co a causa o baixo efeito.

Em vós minha fraqueza se defende;

em vós instila a fonte de Pegaso

o que meu canto pelo mundo estende.

Vedes que altas Musas do Parnaso

cantando vos estão na doce lira,

tomando me das mãos tão alto caso.

Vedes o louro Apolo, que me tira

de louvar vossa estirpe, e escurece

o que em vosso louvor meu canto aspira.

Ou por me haver enveja me falece,

ou por não ver soar na frauta ruda

o que a sonora cítara merece.

Pois sei vos, Senhor, dizer que a língua muda

enquanto Progne triste o sentimento

da corrompida irmã co pranto ajuda,

enquanto Galateia ao manso vento

solta os cabelos louros da cabeça,

e Títiro nas sombras faz assento;

enquanto flor aos campos não faleça

(se não recebeis isto por afronta),

fará que o Douro e o Ganges vos conheça.

E já que a língua nisto fica pronta,

consenti que a minha Égloga se conte

enquanto Apolo as vossas cousas conta.

No cume do Parnaso, duro monte

de silvestre arvoredo rodeado,

nace üa cristalina e clara fonte,

donde um manso ribeiro derivado,

por cima d'alvas pedras, mansamente

vai correndo, suave e sossegado.

D murmurar das ondas excelente

os pássaros excita que, cantando,

fazem o monte verde mais contente.

Tão claras vão as águas caminhando

que, no fundo, as pedrinhas delicadas

se pode, üa e üa, estar contando.

Não se verão ao redor pisadas

de fera ou de pastor que ali chegasse,

porque do espesso monte são vedadas.

Erva se não verá que ali criasse o

monte ameno, triste ou venenosa,

se não que lá no centro as igualasse

o roxo lírio a par da branca rosa,

a cecém branca e a flor que dos amantes

a cor tem magoada e saudosa;

ali se vêm os mirtos circunstantes

que a cristalina Vénus encobriram

da companhia dos Faunos petulantes.

Hortelã, manjarona, ali respiram,

onde nem frio Inverno, ou quente Estio,

as murcharam jamais, ou secas viram.

Destarte vai seguindo o curso o rio,

o monte inabitado, e o deserto,

sempre com verdes árvores sombrio.

Aqui üa linda Ninfa por acerto

perdida da fragueira companhia,

a quem este alto monte era encoberto,

cansada já da caça vindo um dia,

quis descansar à sombra da floresta,

e tirar nas mãos alvas da água fria.

E vendo a novidade manifesta

do sítio, e como as árvores co vento

as calmas defendiam da alta sesta;

das aves o lascivo movimento,

que, em seus módulos versos ocupadas,

as asas dão ao doce pensamento;

tendo notado tudo, já passadas

as horas da grã sesta se tornou

a buscar as irmãs, no centro, amadas.

Despois que largamente lhes contou

do não visto lugar que perto estava

que tanto por estremo a namorou,

que ao outro dia fossem lhes rogava

a lavar se naquela fonte amena,

que tão fermosas águas distilava.

Já tinha dado um giro a luz serena

do grão pastor de Admeto, e já nacia

aos ditosos amantes nova pena,

quando as fermosas Ninfas a porfia

para o lugar do monte caminhavam,

rompendo a manhã roxa, alegre e fria.

De üa os cabelos louros se espalhavam

pelo fermoso colo, sem concerto,

com dous mil nós suaves se enlaçavam;

outra, levando o colo descoberto,

por mais despejo em tranças os atara,

havendo por pesado o desconcerto.

Dinamene e Efire, a quem topara

nüas Febo num rio, e encobriram

seus delicados corpos n'água clara;

Sirinx e Nise que das mãos fugiram

do Tegeu Pan, Amanta e Elisa,

destras nos arcos, mais que quantas tiram;

a linda Daliana, com Belisa,

ambas vindas do Tejo, que como elas

nenhüa tão fermosa as ervas pisa;

todas estas angélicas donzelas

pelo viçoso monte alegres iam,

quais no Céu largo as nítidas estrelas

Mas dous silvestres deuses, que traziam

o pensamento em duas ocupado,

a quem de longe mais que a si queriam,

não lhe ficava monte, vale ou prado,

nem árvore, por onde quer que andavam,

que não soubesse deles seu cuidado.

Quantas vezes os rios que passavam

detiveram seu curso, ouvindo os danos

que até os duros montes magoavam.

Quantas vezes amor de tantos anos

abrandara qualquer vontade isenta,

se, em Ninfas, corações houvesse humanos!

Mas quem de seu cuidado se contenta,

ofereça de longe a paciência,

que Amor de alegres mágoas se sustenta.

Que o moço Idálio quis nesta ciência

que se compadecessem dous contrários,

diga o quem tiver dele experiência.

Indo os deuses, enfim, por montes vários,

exercitando os olhos saudosos,

ao cristalino rio tributários,

toparam dos pés alvos e mimosos

as pisadas na terra conhecidas,

as quais foram seguindo, pressurosos.

Mas encontrando as Ninfas que, despidas,

na clara fonte estavam, não cuidando

que de alguém fossem vistas ou sentidas,

deixaram se estar quedos, contemplando

as feições nunca vistas, de maneira

que vissem sem ser vistos, espreitando.

Porém a espessa mata, mensageira

da futura cilada, co rugido

dos raminhos düa áspera aveleira,

mostrando a um dos deuses escondido,

todas tamanha grita alevantaram

como se fosse o monte destruído.

E logo assi despidas se lançaram

pela espessura, tão ligeiramente

que mais então que os ventos avoaram.

Qual o bando das pombas quando sente

a fermosa águia, cuja vista pura

não obedece ao Sol resplandecente,

empresta lhe o temor da morte dura

nas asas nova força, e, não parando,

cortam o ar e rompem a espessura;

destarte vão as Ninfas que, deixando

de seu despojo os ramos carregados,

nuas por entre as silvas vão voando.

Mas os amantes, já desesperados,

que, para as alcançar, enfim se viam

nada dos pés caprinos ajudados,

com amorosos brados as seguiam.

Um só (que o outro ainda não tomava

fôlego algum, da pressa que traziam)

mas despois, descansado, se queixava:

PRIMEIRO SÁTIRO

—Ah! Ninfas fugitivas,

que, só por não usar humanidade,

Os perigos dos matos não temeis!

Para que sois esquivas?

Que inda de nós não peço piedade,

mas dessas alvas carnes que ofendeis.

Ah! Ninfas, não vereis

que Eurídice fugindo dessa sorte

fugiu do amante, e não da fera morte?

Também assi Epérie foi mordida

da bíbora escondida.

Olhai que toda a Ninfa na erva verde

que a condição não perde, perde a vida.

Que tigre, ou que leão,

que peçonhenta fera venenosa,

ou que inimigo, enfim, vos vai seguindo?

Dum brando coração

que, preso dessa vista rigorosa,

de si para vós foge, andais fugindo?

Olhai que, em gesto lindo,

não se consente peito tão disforme,

se não quereis que tudo se conforme.

Posto que belas n'água vos vejais,

à fonte não creiais,

que vos traz enganada sua vingança

desta nossa esperança, que enganais.

Mas ah! que não consinto

que nem palavra minha vos ofenda,

posto que me desculpa a mágoa pura.

Ninfas, digo que minto;

que não pode haver nunca quem pretenda

de desfazer em vossa fermosura.

Se amor de tanta dura

por tanto mal tão pouco bem merece,

não estranheis minh'alma, que endoudece;

que se fala doudices de improviso,

sem tento nem aviso,

queira Deus que dureza tão crecida

que me não tire a vida, além do siso.

Cousas grandes e estranhas

tem pelo mundo feito e faz Natura,

que, a quem vos não viu, Ninfas, muito espantam

Nas Líbicas montanhas

os crocodilos feros, de pintura

tão singular, que só co a vista encantam,

a sua voz levantam

tão própria e natural à voz humana

que, a quem a ouve, facilmente engana.

E vós, ó gentes feras, cujo aspeito

o mundo tem sujeito,

tendes de natureza juntamente

a vista e voz de gente, e fero o peito.

Das amorosas leis

com que liga natura os corações

andais fugindo, ó Ninfas, na espessura?

Como não vos correis

que haja em vós tão duras condições

que possam mais que a próvida Natura?

Se vossa fermosura

é sobrenatural, não é forçado

que assi tenha também o peito irado;

mas antes ao Amor, em cuja mão

os corações estão,

por vossa gentileza tão fermosa

lhe deveis amorosa condição.

Amor é um brando afeito

que Deus no mundo pôs e a Natureza

para aumentar as cousas que criou.

De Amor está sujeito

tudo quanto pssui a redondeza;

Nada sem este afeito se gerou.

Por ele conservou

a causa principal o mundo amado,

donde o pai famulento foi deitado.

As cousas ele as ata e as conforma;

com o mundo reforma

a matéria. Quem há que não o veja?

Quanto meu mal deseja, sempre forma.

Entre as ervas dos prados

não há machos e fêmeas conhecidas

e junto üa da outra permanece?

Não estão carregados

os ulmeiros das vides retorcidas,

onde o cacho enforcado amadurece?

Não vedes que padece

tanta tristeza a rola pela morte

de sua amada e única consorte?

Pois lá no Olimpo, a quantos cativou

Cupido e maltratou?

Milhor que eu o dirá a sutil donzela

que lá na sua tela o dibuxou.

Ah! caso grande e grave!

Ah, peitos de diamante fabricados,

e das leis absolutas naturais!

Aquele amor suave,

aquele poder alto, que, forçados,

os deuses obedecem desprezais?

Pois quero que saibais

que contra o fero Amor nunca houve escudo:

o seu costume é vingança em tudo.

Eu vos verei deitar em um momento,

suspiros mil ao vento,

lágrimas, tristes prantos, nova dor,

por quem tenha outro amor no pensamento.

Mais quisera dizer

o desditoso amante, que ajudado

se via então da mágoa e da tristeza;

mas foi lho defender

o outro companheiro, como irado

com tão disforme e áspera dureza.

Aquilo que a rudeza.

e a ciência agreste lhe ensinara

imaginando como que acordara

d'algum sonho arrancando d'alma um grito.

O mais que ali foi dito,

vós, montes, o direis, e vós, penedos;

que em vossos arvoredos anda escrito.

SÁTIRO SEGUNDO

Nem vós nascidas sois de gente humana,

nem foi humano o leite que mamastes,

mas d'algüa disforme fera Hircana;

lá no Cáucaso monte vos criastes,

daqui tomastes a aspereza insana;

daqui o frio peito congelastes.

Sois Esfinges nos gestos naturais,

que o rosto só de humanas amostrais.

Se vós fostes criadas na espessura,

onde não houve cousa que se achasse,

animal, erva verde, ou pedra dura,

que em seu tempo passado não amasse,

nem a quem a afeição suave e pura

nessa presente forma não mudasse;

porque não deixareis também memória

de vós, em namorada e longa história?

Olhai como, na Arcádia, soterrando

o namorado Alfeu sua água clara

lá na ardente Sicília, vai buscando

por debaixo do mar a Ninfa cara.

Assi mesmo vereis passar nadando

Ácis, que Galateia tanto amara,

por onde do Ciclope a grande mágoa

converteu do mancebo o sangue em água.

Virai os olhos, Ninfas, à Ericina

espessura; vereis ali tornar se

Egéria em fonte clara e cristalina,

pela morte de Numa, destilar se.

Olhai que a triste Bíblis vos ensina

com perder se de todo e transformar se

em lágrimas que, enfim, puderam tanto

que acrecentaram sempre o verde manto.

[E] se entre as claras águas houve amores,

Os penedos também foram perdidos.

Olhai os dons conformes amadores,

no monte Ida em pedra convertidos:

Leteia, por cair em vãos errores,

de sua fermosura procedidos;

Oleno, porque a culpa em si tomava,

por não ver castigar quem tanto amava.

Tomai exemplo e vede em Cipro aquela

por quem Ífis no laço pôs a vida.

Também vereis em pedra a Ninfa bela

cuja voz foi por Juno consumida;

e, se queixar se quer de sua estrela,

a voz extrema só lhe é concedida.

E tu também, ó Dafne, que trouxeste

primeiro ao monte o doce verso agreste.

Tamanho amor tinha a branda amiga,

que em inimiga, enfim, se foi tornando;

porque outra Ninfa estranha o sojiga,

suas mágicas ervas vai buscando.

Olhai a crua dor a quanto obriga,

por vingar sua ira, transformando s

e foi em pedra. Ó dura confusão!

Despois lhe pesaria; mas em vão.

Olhai, Ninfas, as árvores alçadas,

a cuja sombra andais colhendo flores,

como em seu tempo foram namoradas,

que inda agora o tronco sente as dores.

Vereis também, se fordes alembradas,

como a cor das amoras é de amores;

em sangue dos amantes na verdura

testemunha é de Tisbe a sepultura.

E lá pela odorífera Sabeia

não vedes que, de lágrimas daquela

que com seu pai se ajunta e se recreia,

Arábia se enriquece e vive dela?

Vede mais a verde árvore Peneia,

que foi já noutro tempo Ninfa bela,

e Ciparisso, angélico mancebo,

ambos verdes com lágrimas de Febo.

Está o moço de Frígia delicado

no mais alto arvoredo convertido,

que tantas vezes fere o vento, irado;

galardão de seus erros merecido,

que, da alta Berecíntia sendo amado,

por üa Ninfa baixa foi perdido;

e a deusa a quem perdeu do pensamento

quis que também perdesse o entendimento.

O súbito furor lhe afigurava

que o monte, as casas e árvores caíam;

já dos pudicos membros se privava,

que a deusa e a fúria grande o constrangiam.

Já no indino monte se lançava;

de sua morte as feras se doíam,

destarte perdeu Átis na espessura,

despois de tantas perdas, a figura.

Lembre vos quando as gentes celebravam

em Grécia as grandes festas de Lieu,

onde as fermosas Ninfas se juntavam

e os sacros moradores do Liceu.

Todos em doce sono se ocupavam

pelo monte despois que anoiteceu;

mas o deus do Helesponto não dormia,

que um novo amor o sono lhe impedia.

Mas ela, enfim, os braços estendendo,

em ramos se lhe foram transformando;

em raízes os pés se vão torcendo,

e o nome Loto só lhe vai ficando.

Vede, Napeias, este caso horrendo,

que vos está de longe ameaçando.

Que assi também aquela a quem seguia

o sacro Pan, a forma só perdia.

E que direi de Fílis, que, perdida

da saudosa dor em que vivia,

com desesperação, enfim, trazida

do comprido esperar de dia em dia,

por desatar do corpo a triste vida

atava ao colo a cinta que trazia,

mas o tronco sem folha pelo monte

Ródope abraça o lento Demofonte.

Nas boninas também vereis Jacinto,

por quem Febo de si se queixa em vão,

vereis o monte Idálio em sangue tinto,

do neto de seu pai, da mãe irmão.

Chora Vénus a dor do moço extinto,

maldiz o Céu e a Terra com razão;

a Terra, porque logo não se abriu;

o Céu, porque tal morte permitiu.

E tu, constante Clície, a quem falece

a fé de teus amores enganosos,

no louro amante, que de ti se esquece,

se esquecem os teus olhos saudosos.

Nenhum alegre estado permanece,

que são do mundo os gostos mentirosos;

e tu, ó clara luz, por quem suspiras;

ainda agora em erva a folha viras.

Trago vos estas cousas à lembrança,

porque se estranhe mais vossa crueza

com ver que a criação e longa usança

vos não perverte e muda a natureza.

Dou estas lágrimas minhas em fiança

que em tudo quanto está na redondeza

cousa há de Amor isenta, se atentais,

enquanto a vós não virdes, não vejais

Já vos disse que de Amor sempre tiveram

as cousas insensíveis pena e glória.

Vede as sensíveis como se perderam;

e dir vos ei das aves larga história.

Que as penas que em sua alma se sofreram

nas asas lhe ficaram por memória.

E aquele alívio e leve movimento

lhe ficou só por dor do pensamento.

O doce rouxinol e a andorinha,

de onde elas se foram transformando,

senão do puro amor que o Trácio tinha

que, em poupa, inda a amada anda chamando?

Chama sem culpa a mísera avezinha

que, nas areias de Fásis habitando,

do rio toma o nome; e assi se vai

chamando à mãe cruel, e mouro o pai.

Vede a que enjeitou Palas por falar

(que dos amores é maior defeito),

e aquela que sucede em seu lugar,

ambas aves; de Amor usado efeito;

üa, porque fugia ao deus do mar;

outra, porque temera o pátrio leito.

E Cila, que a seu pai pôs em perigo,

só por ser muito amiga do inimigo.

A ele lhe ficaram ainda as cores

da púrpura Real, que ter soía;

Ésaco, que seguindo seus amores

o trouxe a ver tão cedo o extremo dia:

ou vede os dous tão firmes amadores

que Amor aves tornou na praia fria.

Do rei dos ventos era genro o triste,

mas contra o Fado, enfim, nada resiste.

Estava a triste Alcíone esperando

com longos olhos o marido ausente,

mas os irados ventos assoprando,

nas águas o afogaram tristemente.

Em sonhos se lhe está representando;

que o coração pressago nunca mente;

só do bem as suspeitas mentirão,

que as do mal futuro, certas são.

o pranto os olhos seus a triste ensaia;

buscando o mar com eles, ia e vinha,

quando o corpo sem alma achou na praia.

Sem alma o corpo achou, que n' alma tinha!

Nereidas do Egeio, consolai a,

pois este triste ofício vos convinha!

Consolai a; saí das vossas águas,

se consolação há em grandes mágoas.

Mas, oh! néscio de mi, que estou falando

das avezinhas mansas e amorosas?

Se também teve Amor poder e mando

entre as feras monteses venenosas.

O leão e a leoa, como ou quando

tais formas alcançaram temerosas?

Sabe o da deusa Dindimene o templo,

e a que o deu a Adónis por exemplo.

Quem fosse a mansa vaca, di lo ia;

mas o grão Nilo o diga, que a adora.

Que forma tem a Ursa, saber se ia

do Pólo Boreal, onde ela mora.

O caso de Acteon, também, diria

em cervo transformado; e milhor fora

que dos olhos perdera a vista escura

que escolher nos seus galgos sepultura.

(Daqui se tiraram duas oitavas)

Tudo isto Acteon viu na fonte clara,

onde a si de improviso em cervo viu;

que quem assi destarte ali o topara,

que se mudasse em cervo permitiu.

Mas, como o triste amante em si notara

a desusada forma, se partiu.

Os seus, que o não conhecem, o vão chamando;

e, estando ali presente, o vão buscando.

Cos olhos e co gesto lhes falava,

que a voz humana já mudada tinha.

Qualquer deles por ele então chamava,

e a multidão dos cães contra ele vinha.

Que viesse ver um cervo, lhe gritava:

—Acteon, aonde estás? Acude asinha!

Que tardar tanto é este (lhe dizia)?

— É este, é este, o eco respondia.

Quantas cousas em vão estou falando,

ó esquivas Napeias! sem que veja

o peito de diamante um pouco brando d

e quem meu dano tanto só deseja.

Pois por mais que de mim andeis tirando,

e por mais longa, enfim, que a vida seja,

nunca em mim se verá tamanha dor

que Amor a não converta em mais amor.

Aqui, ó Ninfas minhas, vos pintei

todo de amores um jardim suave;

das aves, pedras, águas vos contei,

sem me ficar bonina, fera ou ave.

Se o amor dos peitos que deixei,

que dos contentamentos tem a chave,

por dita em tempo algum determinasse

que de tão longos danos vos pesasse,

quanto mais devagar vos contaria

de minha larga história, e não alheia?

E com quanta mais água regaria,

de contente, que o rio a branca areia?

Entre os contentamentos me seria

este um não cuidado, e grande ideia;

e vós, gostando deste estado ufano,

zombareis então de vosso engano.

Mas com quem falo, ou que estou gritando,

pois não há nos penedos sentimento?

Ao vento estou palavras espalhando;

a quem as digo, corre mais que o vento.

A voz e a vida, a dor me estão tirando,

e não me tira o tempo o pensamento.

Direi, enfim, as duras esquivanças

que só na morte tenho as esperanças.

Aqui, o triste Sátiro acabou,

com soluços que a alma lhe arrancavam.

E os montes insensíveis, que abalou,

nas últimas repostas o ajudavam,

quando Febo nas águas se encerrou

cos animais que o mundo alumiavam,

e co luzente gado apareceu

a celeste pastora pelo Céu.

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Índice

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8

PISCATÓRIA

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rde por Galateia branca e loura

Sereno, pescador pobre, forçado,

d'üa estrela cruel, que à míngua moura.

Os outros pescadores têm lançado

no Tejo as redes; ele só fazia

este queixume ao vento descuidado:

—Quando virá, fermosa Ninfa, o dia

em que te possa dar a conta estreita

desta doudice triste e vã porfia?

Não vês que me foge a alma e que me enjeita,

buscando num só riso da tua boca,

nos teus olhos azuis, mansa colheita?

Se a esse espírito algüa mágoa toca,

se de Amor fica nele üa pegada,

que te vai, Galateia, nesta troca?

Dar te ei minha alma; lá ma tens roubada;

não ta demandarei; dá me por ela

üa só volta d'olhos descuidada.

Se muito te parece, e minha estrela

não consentir ventura tão ditosa,

dou te as asas do Amor perdidas nela.

Que mais te posso dar, Ninfa fermosa,

inda que o mar d'aljôfar me cubrira

toda esta praia leda e graciosa?

Amansam ondas, quebra o vento a ira;

minha tormenta triste não sossega;

arde o peito em vão, em vão suspira.

Ao romper d'alva anda a névoa cega

sobre os montes d'Arrábida viçosos,

enquanto a eles a luz do Sol não chega.

Eu vejo aparecer outros fermosos

raios, que a graça e cor ao Céu roubaram,

ficam meus olhos cegos mais saudosos.

Quantas vezes as ondas se encresparam

com meus suspiros! Quantas com meu pranto

se pararam com mágoa e me escutaram!

Se, na força da dor, a voz levanto,

e ao som do remo que a água vai ferindo

por alta Lua meu cuidado canto,

os maviosos delfins me estão ouvindo;

a noite, sossegada; o mar, calado.

Só, Galateia, foges e vás rindo.

Estranhas, porventura, o mar cercado

da fraca rede, a barca ao vento solta

e um pobre pescador aqui lançado?

Antes que dê no céu o Sol üa volta

se pode melhorar minha ventura,

como acontece aos outros, n'água envolta.

Igual preço não é da fermosura

areia d'ouro, que o rico Tejo espraia,

mas um amor que para sempre dura.

Vejam teus olhos, bela Ninfa, a praia,

verás teu nome na mimosa areia.

Nunca sobre ele o mar com fúria saia!

Que até 'gora nem vento e ar salteia!

Três dias há que escrito aqui o deixou

Amor, guardando o a toda a força alheia.

Ele com suas mãos mesmo ajudou

escolher estas conchas que, guardando,

üa a üa para ti só ajuntou.

Um ramo te colhi de coral brando;

antes que o ar lhe desse, parecia

o que eu de tua boca estou cuidando.

Ditoso se o soubesse inda algum dia!

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1.

Elegia

DIVINO, ALMO PASTOR, DÉLIO DOURADO

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ti, Senhor, a quem as sacras Musas

nutrem e cibam de poção divina,

não as da fonte Délia Cabalina,

que são Medeias, Circes e Medusas,

mas aquelas em cujo peito, infusas,

as leis estão, que as leis da Graça ensina,

beninas no amor e na doutrina

e não soberbas, cegas e confusas;

este pequeno parto, produzido

de meu saber e fraco entendimento,

üa vontade grande te oferece.

Se for de ti notado de atrevido,

daqui peço perdão do atrevimento,

o qual esta vontade te merece.

Divino, almo Pastor, Délio dourado,

a quem de Anfriso já viram os prados

guardar fermoso, rico e branco gado;

aos quais adormentavas, enlevados

no doce som da lira, e alternando

com versos e cantares namorados,

e às Ninfas e pastores ensinando

o caminho de Cipro e dos amores,

as ondas, feras e aves enlevando!

Ó fermosura e honra dos pastores,

que de um a outro pólo do horizonte

a natureza pintas de mil cores!

Ó pai das nove Irmãs, Senhor da fonte

a quem as ondas cedem de Leteu,

posta no mais excelso e sacro monte!

Por que causa, me dize, almo Timbreu,

o céu resplandecente hoje cobriste

de tão mal assombrado e negro véu?

Se lembranças te fazem, Febo, triste,

de Dafne, para ti tão fera e crua, a

quem com tal vontade já seguiste;

também te lembrará como por tua

causa foi transformada em verde rama,

por não se ver da roupa casta nua.

Por onde aquela dor e aquela chama,

no insensato corpo difundida,

nenhum vigor nem força já derrama.

Pois tu, da praia Hespéria esclarecida

adonde Tétis, Xanto e Galateia

a teus cavalos vem tirar a brida;

e a fermosa Clio e Panopeia,

com Dóris, sobre as ondas levantadas,

te vem receber com boa estreia,

ainda está aquém duas jornadas,

e no outro hemisfério a noute escura

tem as nocturnas sombras encerradas.

Se acaso a caída e má ventura

de Fáëton te lembra, cuja morte

te deu sempre jamais tanta tristura,

o não teres tu culpa te conforte,

que o moço, de soberbo, não podia

cair em menos miserável sorte.

Mas vós, castas Irmãs, que noute e dia

canteis em versos Élegos o choro,

com o cândido Cisne em companhia;

unidas todas, a vicenda, em coro,

um padre consolai tão descontente,

em módulo cantar doce e canoro.

Se a dor que manifesta e mostra à gente

desta causa procede, mais parece

que outra pena maior é a que sente.

Pois a prenhada terra brota e crece,

de mil flores enchendo os verdes prados,

e tarda bem o tempo que anoutece;

Eolo nas montanhas encerrados

os cruéis ventos tem mais furiosos,

de mil prisões de ferro carregados.

Só Zéfiro Favónio, de amorosos

espritos cheio, brandamente aspira

por estes vales verdes e fermosos.

Naís fermosa por Amor suspira

e Flora, em companhia da Alvorada,

que, agora, o seu veneno tem mais ira

pois tu, no Touro, fazes a morada

(deixando Aquário e Piscis), de meu brio,

com Vénus entre os cornos assentada,

o qual meteu Europa no mar frio.

Assim que, bem olhado e bem sentido,

triunfas no Inverno e seco Estio.

Se mortal rogo foi jamais ouvido,

Délio imortal, de ti; se nalgüa hora

à piedade foste comovido,

dize me por que causa o mundo chora,

mostrando tais sinais e tal tristura,

escondendo a rosada e fresca Aurora

que, segundo os segredos na natura

nos mostram claramente os elementos,

o mundo não será de muita dura.

Vejo o furar do mar e bravos ventos;

as estrelas e signos e planetas

de seus lugares fora e firmamentos;

vejo coriscos, raios e cometas,

relâmpagos, trovões mui acendidos

sair por diferentes e altas metas;

e nos mais altos montes e subidos

de Pélio, Emo, Ossa, Pindo, Atlante,

os robustos carvalhos destruídos.

Quer porventura algum novo gigante

subir por estes ao firmamento

e derrubar a Júpiter possante?

O qual, movido de soberbo intento,

qual os de Flegra pune os já passados,

em pago de tamanho atrevimento?

Os eixos dos dous orbes, ordenados

a sustentar a máquina mundana,

parecem já desfeitos e quebrados.

Ó mente baixa de matéria humana,

cega no bem e vista na maldade,

que tão soberba vás e tão ufana,

que vás buscando a fonte da verdade,

e cegaste a mentira de maneira

que não vês palmo já de claridade!

Põe os olhos da fé pura e sincera

nas altas cimas do Calvário monte,

por donde irás à glória verdadeira:

verás a cristalina e clara fonte

da vida pura posta em um madeiro,

por te livrar da barca de Aqueronte.

Õ verdadeira Luz, justo Cordeiro,

Jesus benino, manso e piadoso,

Filho do Padre eterno e verdadeiro!

Que causa te moveu, Rei poderoso,

tão escondida lá na mente eterna, a

padeceres fim tão desonroso,

e deixar a mais alta e mais superna

cadeira e vida pela mais escura

de quantas a mortal fama govema?

Se te moveu, Senhor, esta feitura,

a morte condenada eternamente

por a lei quebrantada de Natura,

lembre quão malvada e má semente

é esta a quem te dás crucificado,

que sempre te tem pago ingratamente.

Õ mundo ingrato, cego, descuidado,

cheio de falsidades enganosas,

em pecados e vícios ocupado,

que não derramas lágrimas chorosas

em tanta quantidade que pareça

mostrar siquer entranhas amorosas!

Tu, mar, que não levantas a cabeça

por tomar a cobrir o que cobriste,

para que tudo acabe e que pereça!

Vós, ventos, a quem nada enfim resiste,

que não transtornais tudo em desconcerto!

Tu, dura terra, porque não te abriste!

Vós, plantas, feras e aves do deserto,

que não chorais, pois chora a Natureza,

vendo se posta em um tamanho aperto!

Vós, altos Céus, de lá da mor alteza,

bem sei quanto sentis a Divindade

em tal miséria posta e tal baixeza,

pois vedes o Senhor da Majestade,

que vos criou de nada, submetido,

por amor puro, aos pés da humanidade.

Senhor! Que amor foi este tão crecido

que tão dobradas forças faz singelas,

lá de tão alto, baixo e abatido?

Ó preciosas chagas roxas, belas,

luminárias da noute tenebrosa,

de toda luz privada das estrelas!

Õ Cruz bendita, cara, preciosa!

Contempla bem o passo que te deram,

ó coroa de espinhos amargosa!

Vós, santos cravos, quando vos meteram

à força de martelo, logo à hora

as serpentes e dragos se esconderam.

O coração, a alma que não chora,

vendo te, Redentor, com tantas dores,

em pedra viva de diamante mora.

Que não contemplais isto, pecadores,

e derramais mil lágrimas no dia,

vendo o Senhor tão triste dos Senhores?

Tu, Virgem pura, Santa Ave Maria,

cheia de Graça, Esposa, Filha e Madre,

mais fermosa que o Sol ao meio dia,

que vás buscando ao Esposo, Filho e Padre,

qual cordeira perdida da manada,

sem guarda de pastor, nem cão que ladre;

vai, Rainha dos Anjos mui amada,

e preciosa pedra adamantina,

de perfeições e graças esmaltada;

vai, estrela do mar; vai, luz divina,

escolhida do Céu; vai, cordeirinha,

branca açucena e rosa matutina;

vai, caminho da glória, vai, pombinha

sem fel; bendita entre as mulheres;

vai, mãe da Lei da Graça, vai asinha

a o monte Calvário, se ver queres

ao teu precioso Filho antes de morto.

Desconsolada vai, vai, não esperes!

A o qual acharás bem sem conforto,

posto na Cruz, por partes mil chagado,

por nos dar sossegado e manso porto.

Escarnecido, só, desamparado

antre dous malfeitores condenados,

de fariseus e armas rodeado.

Ó duros corações desatinados,

cegos, malditos, torpes, de má casta,

lobos no sangue justo encarniçados!

Dizei: que tigre hircano, ou que cerasta,

que aspe, basilisco, ou que dipsarta,

das quais a quente Líbia é cheia e basta;

que Trácia, Grécia, Colcos, Cítia, Esparta,

ou que bárbara gente, crua e fera,

de trágicos insultos nunca farta,

humana não deixara e não perdera

a crueldade toda, se te vira,

Jesus benino, posto na Cruz vera!

Mas vós, cruéis, perversos, cheios de ira,

com grita e escárnio, riso tudo misto,

estais asidos todos na mentira,

dizendo em alta vez:—Se tu és Cristo,

dece te dessa Cruz em que estais posto!

Não bastando os milagres que haveis visto.

E tu, Senhor, metido em tal desgosto,

estás sofrendo penas tão estranhas

com humilde, sereno e manso rosto.

Õ algozes ingratos, de más manhas,

de troncos e penedos produzidos

nas mais altas e ásperas montanhas!

Que não vos humilhais, dizei, perdidos,

e não pedis perdão do que vos toca,

que, segundo é meu Deus, sereis ouvidos?

Pois Ele, com humilde rogo, invoca

ao Padre por vós, beninamente,

deitando o fel e sangue pela boca,

dizendo:—Padre meu Omnipotente,

pedir te quero, antes que me acabem,

que tudo isto perdoeis a esta gente,

pois o que fazem, certo, não no sabem!

Ó palavras altíssimas, celestes,

nas quais secretos e mistérios cabem!

Mas vós, malditos, como não soubestes

senão idolatrar como gentios,

nenhüa cousa destas conhecestes,

que sempre caminhastes por desvios,

deixando a Lei de Deus sagrada e pura,

desterrados por montes, selvas, rios.

Quem cuidará, Senhor, na tua brandura,

misericórdia grande, e piedade

que excede ser e ordem de Natura,

por mais duro que seja na maldade,

que não derrame sempre, noite e dia,

lágrimas, qual um rio, em quantidade?

Leitor que lendo vás esta Elegia!

Quero te perguntar, de amor vencido,

se contemplaste lá na fantasia

algüa vez, acaso, no sentido,

vendo raiar o Sol na mor altura,

de rubicundos raios acendido;

e, despois que se põe, a fermosura

de diversas estrelas espalhadas,

quando Hécate cobre a terra dura;

e as ondas do mar bravo salgadas,

tão sujeitas num ser sem se espalharem,

nem de rios ou chuva acrecentadas,

os quais, cursando sempre sem faltarem,

digo de muitos que há ai que são famosos,

que correm sempre, sem jamais pararem;

se ao ver os campos verdes deleitosos,

qual famoso pavão, feras e aves

nos apartados bosques mais sombrosos;

as quais, com cantos doces e suaves,

saúdam a manhã, mui prazenteiras,

com passos ora agudos, ora graves;

se ao ver os ritos, vidas e maneiras

tão diversos que há ai por nosso dano

nas apartadas gentes estrangeiras;

se ao ver tanta mudança num só ano,

escuro, claro, chuva, frio e calma,

e tudo para prol do bem humano,

contemplaste lá dentro na tua alma,

porventura, algum dia separado

da pesada, mortal, terreste salma,

em tantas criaturas que há criado

o criador do mundo, Padre Eterno,

no alto Céu com os olhos enlevado;

e neste pensamento tão superno,

com tão ligeiras asas desprezando

a trabalhosa vida deste inferno?

Pois olha, pecador, que vás nadando

nas procelosas ondas deste mundo,

nos mistérios divinos contemplando,

e verás o mais alto, sem segundo,

posto na vera Cruz, no Monte santo,

por te livrar do lago mui profundo;

não aquele que lá te punha espanto,

fabricado na mente que sempre erra,

coberto de mortal e cego manto,

mas o próprio que fez o Céu e a Terra,

e tantas maravilhas que cá vemos,

afora as outras que consigo encerra.

Dizei, dizei, mortais, que lhe daremos,

por mais que o amemos ou sirvamos,

que a mais pequena parte lhe paguemos?

Este domingo atrás nos alegrámos,

Senhor, com festas, danças e alegrias,

dando te capas e olorosos ramos;

e agora, por cumprir as profecias

pelos Profetas santos declaradas,

te vemos morto dentro em cinco dias,

com as carnes feridas e chagadas,

de mil açoutes cheio, arrepelado

de couces, empurrões e bofetadas.

Estás, Jesus benino, qual no prado

o lírio branco fica decomposto,

do homicida ferro derrubado;

ou qual o Sol se mostra antes de posto,

de cores tristes, ou qual branca rosa

de frio trespassado ou mês de Agosto;

ou qual o cisne na ribeira umbrosa,

que, pressago do fim, brando enternece

a circunstante selva em voz melosa.

Senhor, com cuidar isto se entristece

a minha alma de modo, e meu sentido,

que do seu próprio alento desfalece.

Contemplo te, meu Deus, na Cruz subido,

e vejo te com os olhos verdadeiros

cercado de mil anjos e servido;

os quais, voando leves e ligeiros,

qual enxame de abelhas, pressurosos

trabalham por curar os teus marteiros;

uns cobrem com unguentos olorosos,

e outros com vasos de poção divina,

os teus sagrados membros preciosos;

outro com água pura e cristalina

está lavando as chagas, e outros prestes

acodem com toalha rica e fina;

outros parecem entre todos estes

com cálices do Novo Testamento,

tomando as gatas de licor celestes;

outros, batendo as asas sempre ao vento,

parece que trabalham quanto podem

por te tornar a dar vital alento;

outros de novo pelo ar acodem,

e outros, feitos bizarros soldados,

com espadas na mão, postos em ordem,

querem ir cometer, mui denodados,

aquela gente torpe, endiabrada!

Mas tu, Senhor, os tens só refreados,

vendo quão pouco ganham na jornada,

porque, se tu quiseras, de um aceno

só, Pedra os destruíra sem espada.

Recebe, Pão de vida, este pequeno

sacrifício de mim, à sombra escrito

dum alto freixo deste vale ameno.

E dá me tanta graça e tanto espirito,

para que sempre louve, qual espero,

o teu saber profundo e infinito.

Tomara ser Virgílio ou ser Homero,

somente no saber, que foi divino,

(que ser o que eles foram não no quero),

para poder cantar, ó Rei benino,

em puro choro as chagas que te vejo,

a dor das quais provoca a desatino;

mas, já que ver não posso este desejo,

o qual tomara só para louvar te,

meu Deus, de dar te pouco não me pejo,

porque eu para dar mais sou pouca parte.

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2.

Endechas

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ai o bem fugindo,

crece o mel cos anos,

vão se descobrindo

co tempo os enganos.

Amor e alegria

menos tempo dura.

Triste de quem fia

nos bens da ventura!

Bem sem fundamento

tem certa mudança,

certo sentimento

na dor da lembrança.

Quem vive contente,

viva receoso: mal

que se não sente,

é mais perigoso.

Quem males sentiu,

saiba já temer;

e pelo que viu

julgue o que há de ser.

Alegre vivia,

triste vivo agora;

chora a alma de dia,

e de noite chora.

Confesso os enganos

do meu pensamento:

bem de tantos anos

foi se num momento.

Meus olhos, que vistes?

Pois vos atrevestes,

Chorai, olhos tristes,

o bem que perdestes.

A luz do sol pura

só a vós se negue;

seja a noite escura

nunca a manhã chegue.

O campo floreça,

murmurem as águas,

tudo me entristeça,

creçam minhas mágoas.

Quisera mostrar

o mal que padeço;

não lhe dá lugar

quem lhe deu começo.

Em tristes cuidados

passo a triste vida;

cuidados cansados,

vida aborrecida!

Nunca pude crer

o que agora creio:

cegou me o prazer

do mal que me veio.

Ah, ventura minha,

como me negaste!

Um só bem que tinha

porque mo roubaste?

Triste fantesia,

quanta cousa guarda!

Quem já visse o dia

que tanto lhe tarda!

Meus olhos, que vistes?

Pois vos atrevestes,

Chorai, olhos tristes,

o bem que perdestes.

A luz do sol pura

só a vós se negue;

seja a noite escura

nunca a manhã chegue.

O campo floreça,

murmurem as águas,

tudo me entristeça,

creçam minhas mágoas.

Quisera mostrar

o mal que padeço;

não lhe dá lugar

quem lhe deu começo.

Em tristes cuidados

passo a triste vida;

cuidados cansados,

vida aborrecida!

Nunca pude crer

o que agora creio:

cegou me o prazer

do mel que me veio.

Ah, ventura minha,

como me negaste!

Um só bem que tinha

porque mo roubaste?

Triste fantesia,

quanta cousa guarda!

Quem já visse o dia

que tanto lhe tarda!

Nesta idade cega

nada permanece;

o que ainda não chega

já desaparece.

Qualquer esperança

foge como o vento:

tudo faz mudança,

salvo meu tormento

Amor cego e triste,

quem o tem, padece:

mal quem lhe resiste!

Mal quem lhe obedece!

No meu mal esquivo

sei como Amor trata:

e, pois nele vivo,

nenhum amor mata.

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Índice

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3.

Elegia

A PAIXAM DE CHRISTO

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e quando contemplamos as secretas

causas por quem o mundo se sustenta

o revolver do sol e dos planetas

se quando ao pensamento, se apresenta

este curso do sol que he taõ medido

que hum ponto só naõ mingua nem se augmenta

Aquelle efeito seu desconheçido

da lua em ser mudavel taõ constante

que minguar e crecer he seu partido

Aquella natureza tam possante

dos Ceos que taõ conformes e contrarios

caminham sem cessar hum breve instante

Aquelles movimentos ordinarios

a que responde o tempo que naõ mente

cos effeitos da terra neçessarios

Se quando em fim revolve sutilmente

tantas cousas a leve fantasia

sagaz escrutadora diligente

ve bem se da razaõ se naõ desvia

que ha hi secreto sprito divino

que tudo pode manda move e cria

sem começo sem cabo hum ser contino

hum poder grande a que tudo he possivel

que duvidou Diagoras indigno

Hum saber infinito incomprehensivel

hua virtude que nas cousas anda

que mora no visivel, e invisivel

Esta virtude emfim que tudo manda

Esta causa das causas revestida

em carne humana fraca e miseranda.

Do amor e da justiça compelida

pellos erros da gente em maus da gente

como se mortal fosse perde a vida.

Ó christam descuidado e negligente

pondera isto que digo repousado

nam passes por aqui taõ facilmente.

Digo que aquelle eterno increado

Senhor das cousas todas que fundou

o Ceo, fogo, ar, terra, ho mar irado

nam do confuso chaos como cuidou.

A falsa Theologia, e povo escuro

que em verdade tam claro tanto errou

nam dos atomos falsos de Epicuro

nem do largo oceano como Thales

mas só com pensamento sancto e puro.

Olha animal humano quanto vales

que oje por ti este Deus grande padeçe

novo modo de morte e novos males.

Olha que o sol no Olimpo se escureçe

naõ por opposiçaõ d'outro Planeta

mas só por que a virtude lhe faleçe.

Nam ves que a grande machina inquieta

do mundo, se desfaz toda em tristeza

e naõ por natural causa secreta.

Nam ves como se perde a natureza

o ar se rompe, ho mar batendo, geme

desfazendo das pedras a dureza?

Nam ves que os montes caem a terra treme

nam ves o mal que la na antiga Athenas

o sabia Dionisio sente e teme.

Ó sumo Deus tu mesmo te condenas

pello mal em que eu só sou tam culpado

a tamanhas deshonrras tantas penas.

Por mi Senhor no mundo es reputado

por falso, por quebrantador da lei

a infamia a ti se põe do meu peccado.

Eu Senhor sou ladraõ, tu sumo Rei

eu só furtei, tu com ladroeis padeces

a pena a Ti se dá do que eu pequei.

Eu contra ti que á morte te ofereces

e tu por mi que ao fogo me ofereço

eu mortal vivo, e tu imortal feneçes.

Eu servo sem valor, tu sumo preço

em preço vil te poens por me tirares

do cativeiro eterno que mereço.

Eu por perderte e tu por me ganhares

Te dás aos homens baixos que te vendem

so pera homens presos resgatares.

A Ti que as almas soltas, a ti prendem

A Ti vivo juiz entre os juizes

Te accusaõ peito errar dos que te offendem.

Chamaõ Te mal feitor, nem contradizes

sendo Tu dos prophetas a certeza

dizem que quem Te fere prophetizes.

Rinse de Ti, Tu choras a crueza

que sobr'elles virá, a gente dura

por quem Tu ves ao mundo te despreza

o Teu rosto de cuja fermosura

se veste o Ceo e o sol resplandeçente

diante de quem muda está a natura.

Com cruas bofetadas de vil gente

do precioso sangue esta banhado

cospido e repellado duramente.

Aquelle corpo magro e delicado

sobre todos os sanctos sacro e sancto

de açoutes rigorosos flagelado.

Depois cuberto mal de hum pobre manto

que se apegava as chagas naõ curadas

para dobrar as dores outro tanto.

Despido pellas mãos crueis hiradas

tornavaõse a banhar em sangue vivo

as carnes tantas vezes magoadas.

com fel odioso e com vinagre amaro

matar a sede ao Filho que paristes?

Nam era esse o licor suave e claro

que Vos para esforçar entaõ darieis

a quem Vos era mais que a vida charo?

Como Virgem Senhora nam corrieis

a dar as vossas tetas ao cordeiro

que padeçer na crux com sede vieis?

Nam era esse Senhora o verdadeiro

peito que vosso filho desejava

morrendo pello mundo no madeiro.

Mas era a salvação que entaõ buscava

para o misero Adam que ahi bebia

Pois ó pura e santissima Maria

se esta dor vos sentistes tanto,

quanto a gravidade della o requeria.

Desta fonte sagrada e peito sancto

me alcançai hua gota com que lave

a culpa que me agrava e peza tanto.

Do licor salutifero e suave me abrangei

com que mate a sede dura

com que este mundo sigo torpe e grave.

Assi Senhora toda a criatura

que vive e viverá que naõ conheçe

a lei de Vosso Filho sancta e pura.

O falsissimo herege que careçe

de graça, condenado o falso sprito

perturba a sancta Igreja que floreçe.

O povo pertinaz no antigo rito

que seu o desterro que tanto dura

lhe diz que he pena igual de seu delicto.

O torpe Ismaelita que mistura

as leis, e com preçeitos viciosos

na terra a seita estende falsa e escura.

Os Idolatras superstiçiosos.

varios de opinioens e de costumes

levados de preçeitos fabulosos.

As mais remotas gentes onde o lume

de nossa fé nam chega, nem que tenhaõ

religiaõ algua se presume.

Assi todos enfim Senhora venham

confessar hum so Deus crucificado,

e por nenhum engano se detenhaõ.

Mas confessando o erro ja passado

o seu nome co Vosso noite e dia

será por todo o mundo celebrado

E responderaõ os Ceos Jesus Maria.

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Auto chamado dos ENFATRIÕES

feito por Luís de Camões, em o qual entram as figuras seguintes:

Enfatrião, Almena, sua mulher, Sósia, seu moço, Brómia, sua criada, Belferrão, patrão, Aurélio, primo dela, com seu moço, Júpiter e Mercúrio, e entra logo Almena, saudosa do marido, que é na guerra, e diz:

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h! senhor Anfatrião,

onde está todo meu bem,

pois meus olhos vos não vêm,

falarei co coração,

que dentro n'alma vos tem.

Ausentes duas vontades,

qual corre mores perigos,

qual sofre mais crueldades,

se vós antre os inimigos,

se eu antre as saudades?

Que a ventura, que vos traz

tão longe da vossa terra,

tantos desconcertos faz,

que se vos levou à guerra,

não me quis leixar em paz.

Brómia, quem, com vida ter,

da vida já desespera

que lhe poderás dizer?

Brómia:

Que nunca se viu prazer,

senão quando não se espera.

E, portanto, não devia

de ter triste a fantesia

porque Vossa Mercê crea,

que o prazer sempre saltea

quem dele mais desconfia.

Eu tenho no coração,

do senhor Anfatrião

venha hoje algüa nova:

não receba alteração,

que a verdadeira afeição

na longa ausência se prova.

Almena:

Dizei logo a Feliseo

que chegue muito apressado

ao cais, e busque meio

de saber algum recado

do porto Pérsico veio:

e mais lhe haveis de dizer,

(isto vos dou por oficio)

d'algüa nova saber,

enquanto eu vou fazer

a os deuses sacrificio.

Vai se Almena e diz, Brómia:

Saüdades de minha ama,

chorinhos e devações,

sacrifícios e orações,

me hão de lançar nüa cama,

certamente.

Nós, mulheres de semente,

somos sedenho tão tosco

que, com qualquer vento que vente,

queremos forçadamente

que os deuses vivam connosco.

Quero Feliseo chamar,

e dizer lhe aonde há de ir.

Mas ele, como me vir,

logo há de querer rinchar,

de travesso.

Eu, que de zombar não cesso,

por ficar com ele em salvo,

lanço lhe um e outro remesso;

aos seus furto lhe o alvo;

e então ele fica avesso.

Porque o milhor destas danças,

com uns vendiços assi,

é trazê los por aqui

ó cheiro das esperanças.

Por viver

há os homem de trazer

nos amores assi mornos,

só pera ter que fazer;

e despois, ao remeter,

lançar lhe a capa nos cornos.

Petisco, se estais à mão,

chegai cá. Vem como um gamo:

bem sei que não chamo em vão.

Vem Feliseo:

Chamais me? também vos chamo;

porém eu ouço, e vós não,

Senhora, que me matais!

Se vós já nunca me ouvis,

ou me ouvis, e vos calais,

dizei: porque me chamais,

se me vós a mim fugis?

Brómia:

Eu vos fujo?

Feliseo:

Fugis, digo,

de dar a meus males cabo.

Brómia:

Sabei que desse perigo

não fujo como de imigo,

fujo como do diabo.

Feliseo:

Dai ao demo essa tenção,

usai antes de cortês,

caí vós nesta razão

Brómia:

Do perigo fogem os pés,

do diabo o coração.

Feliseo:

Dizeis me que nessa briga

do meu coração fugis.

Brómia:

Ainda qu'eu isso diga...

Feliseo:

Ah minha doce inimiga!

Bem sinto que me sentis.

Mas pera que me chamais?

Brómia:

Manda vos minha senhora

que chegueis daqui ao cais,

e algüas novas saibais

d'Enfatrião nessa hora.

Feliseo:

Quem as não sabe de si,

d'outrem como as saberá?

Brómia:

Não nas sabeis vós de mi?

Feliseo:

Má trama venha por ti,

dona feiticeira má!

Porque não me olhas direito,

cadela, que assi me cortas?

Brómia:

Porque vos quero dar portas;

que s'eu olhar d'outro jeito,

trarei cem mil vidas mortas.

Feliseo:

E pois pera que me andais

enganando há cem mil anos?

Brómia:

Dou vos vida com enganos.

Feliseo:

Nesses enganinhos tais

acho cruéis desenganas.

Brómia:

Quant' a esses vos quero eu dar:

vós cuidais que estais na sela?

Pois podeis vos decer dela,

que eu nunca vos pude olhar.

Feliseo:

Jogais comigo à panela?

Tendes me há tanto cativo,

e desenganais me agora?

Tudo isso é o que privo.

Assi que é isso, Senhora,

«dô che lo morto, dô che lo vivo»

Se me vós desenganais

no cabo de tantos anos,

direi, se licença dais,

dais me vida com enganos,

desenganos, já chegais.

Mas se isso havia de ser,

dizei, má desconhecida,

desterro de meu viver,

que vos custava dizer

amor, vai buscar tua vida?

Brómia:

Zombais? Falais me coprinhas?

Feliseo:

Rir vos heis, se vem à mão;

copras não, mas isto são

ansias y passiones minhas

dos bofes e coração.

Brómia:

Is vos fazendo duns sengos...

Feliseo:

Pardóneme Dios si peco.

Brómia:

Nesses dentinhos framengos

conheço que sois um peco

de todos quatro avoengos.

Feliseo:

Tudo vos levo em capelo,

á qu'estais tanto em agraço.

Porém, falando singelo,

a furto desse mau zelo,

quereis me dar um abraço?

Brómia:

Para digo que não posso

usar convosco de feto: tomai o.

Feliseo:

Já o não quero,

porque esse abraço vosso,

sabei que é engano mero.

Brómia:

Oh! vós seis duns sensabores...

Abraços pedis assim?

S'eu remango dum chapim...

Feliseo:

Tudo isso são favores:

zombai, vingai vos de mim.

Brómia:

Vós, de furioso touro

as garrochas não sentis.

Feliseo:

Vedes, com isso sou mouro:

quando cuido que sois ouro,

acho vos toda ceitis.

Brómia:

Enfim, sanha de vilão

vos fez perder um bom dia.

Feliseo:

Já agora o eu tomaria;

quereis mo dar?

Brómia:

Agora não.

Cocei vos eu todavia.

Feliseo:

Pois, Senhora, a quem vos ama

sois tão desarrazoada,

quero tomar outra dama;

que não digam os d'Alfama

que não tenho namorada.

Brómia:

Leixai me.

Feliseo:

Vós me deixai.

Brómia:

Deixai me.

Feliseo:

Zombais de mi?

Brómia:

Deixai me. Pois me enjeitais,

eu me ausentarei daqui

onde me mais não vejais.

Feliseo:

Boa está a zombaria!

Brómia:

Não são essas minhas manhas.

Feliseo:

Porém is vos todavia?

Brómia:

«Voyme a tierras estrañas

adó ventura me guia.»

Vai se Brómia e diz Feliseo:

Fantesias de donzelas,

não há quem como eu as quebre,

porque certo cuidam elas,

que com palavrinhas belas

vos vendem gato por lebre.

Esta tem la pera si

qu'eu sou por ela finado;

e crê que zomba de mim

e eu digo lhe que sim,

sou por ela esperdiçado.

Preza se de üas seguras;

e eu não quero mais Frandes

dou lhe trela às travessuras,

porque destas coçaduras

se fazem as chagas grandes.

Qu' estas, que andam sempre à vela

estas vos digo eu que coço,

porque de firmes na sela,

crêm que falsam a costela,

e ficam pelo pescoço.

Que quando estas damas tais

me cacham, então recacho.

Mas disto agora nô mais.

Quero me ir daqui ao cais

ver se algüas novas acho.

Vai se Feliseo e vem Júpiter

e Mercúrio e diz Júpiter:

Ó grande e alto destino,

ó potência tão profana,

que a seta d'um minino

faça que meu ser divino

se perca por cousa humana!

Que me aproveitam céus,

onde minha essência mora

com tanto poder, se agora

a quem me adora por deus,

sirvo eu como senhora?

O que estranhar afeição

que em baxa cousa vai pôr

a vontade e o coração,

sabe tão pouco d'amor,

quão pouco amor da razão.

Mas que remédio hei de ter

contra mulher tão terríbel

que se não pode vencer?

Mercúrio:

Alto Senhor, a teu poder

o difícil lhe é possível

Júpiter:

Tu não vês qu' esta mulher

se preza de virtuosa?

Mercúrio:

Senhor, tudo pode ser;

que pera quem muito quer,

sempre afeição é manhosa.

eu marido está ausente l

na guerra, longe daqui;

tu, que és Júpiter potente,

amarás sua forma em ti,

que o farás mui facilmente.

E eu me transformarei

na de Sósia, criado seu;

e ao arraial me irei,

onde logo saberei

como se a batalha deu.

E assi poderás entrar,

em lugar de seu marido,

pera que sejas crido,

poderás também contar

quanto eu lá tiver sabido.

Júpiter:

Quem arde em tamanho fogo

tira lhe a virtude a cor

de sutil e sabedor;

e quem fora está do jogo

enxerga o lanço milhor.

Mas tu, que dos sabedores

tanto avante sempre estás,

se deus és dos mercadores,

sê lo hás dos amadores,

pois tal remédio me dás.

Ponha se logo em efeito,

que não sofre dilação

quem o fogo tem no peito;

e tu vai logo direito

onde anda Enfatrião.

Vão e vêem Feliseo e Calisto e diz, Feliseo:

Adó bueno por aqui,

tão longe do acostumado?

Calisto

Mais longe vou eu de mi,

d’ir perto de meu cuidado.

Feliseo:

No andar vos conheci.

Calisto

E vós onde vos lançais,

com vossa contemplação?

Feliseo:

Eu chego daqui ao cais

a saber d' Enfatrião:

não sei se vou por de mais.

Calisto

Porque por de mais dizeis?

Feliseo:

Porque nada ali há certo.

Calisto

Novas lá não nas busqueis,

que aqui as tendes mais perto.

Feliseo:

Pois dai mas, se as sabeis.

Calisto

:

Um navio é já chegado

à barra, que vem de lá;

traz d'Anfatrião recado,

diz que o deva embarcado

pera se vir para cá.

Tem vencido aquele Rei,

e diz, segundo lhe ouvi,

que esta noute será aqui.

Feliseo:

Essas novas levarei

[a] Almena, que torne em si,

porque ela tem maior guerra

cos temores de perdê lo,

que ele co Rei dessa terra.

Calisto

:

Onde amor lançar o selo,

nenhüa cousa o desterra.

Porque inda que o pensamento

vos fique, Senhor, em calma,

por morte ou apartamento,

sempre vos lá ficam n' alma

as pegadas do tormento.

Feliseo:

Isso é um segredo mero,

a que Amor nos obriga:

por isso em caso tão fero,

Senhor, nunca ninguém diga,

já lho quis, e não lho quero.

Eu quis bem a üa mulher,

que vós conhecestes bem,

e, com muito lhe querer,

casou se.

Calisto

Oh! e com quem,

que ainda o não posso crer?

Feliseo:

Com um mercador, que veio

agora do Egipto, rico.

Calisto

:

Isso traz água no bico.

Esse homem é parvo, ou feio?

Feliseo:

Pois vedes? Disso me pico.

E em pago desta treição,

afora outros mil descontos

que traz consigo afeição,

sempre os sinais destes pontos

trarei no meu coração.

Calisto

Viste la mais?

Feliseo:

Senhor, vi,

Na genelinha da grade;

passei, e disse lhe assi:

casada sem piedade,

porque não na haveis de mi?

Calisto

Que vos disse?

Feliseo:

Lá no centro

lhe enxerguei pouca alegria,

e como quem lhe doía,

metendo se pera dentro,

disse: já pasó folia.

Calisto

Ah má sem conhecimento!

quem lhe desse mil chofradas!

Feliseo:

Senhor, como são casadas,

casam se co esquecimento

das cousas que são passadas.

Calisto

Lembranças de vos deixar

picar vos hão como tojos.

Feliseo:

Senhor, haveis d'assentar

que onde Amor vos quere matar

sempre allá miran ojos.

Um mote, Senhor, lhe mandei

um dia, estando com febre,

só da paxão que tomei.

Calisto

Pois vejamos quem tem lebre

Feliseo:

Senhor, eu vo lo direi:

Mote:

«Vós por outrem, e eu por vós;

vós contente, eu penado;

vós casada, eu cansado

polos santos de minha dona!»

Calisto

Senhor, vós só [o] fizestes?

Feliseo:

Si, que ninguém me ajudou.

Calisto

Se vós só o compusestes,

rede, que estremo dissestes.

Nunca Orlando tal falou.

Senhor, fizestes lhe pé?

Feliseo:

Senhor, si; todo um ano...

Vós zombais, se não m' engano?

Calisto:

Não, mas dou vos minha fé

que nunca vi tão bom pano.

Feliseo:

Ora olhe vossa mercê.

Volta:

«Olhai em quão fundos vaus

por vossa causa me afogo,

que outro me ganha o jogo,

e eu, triste, pago os paus.

Olhos travessos e maus,

inda eu veja o meu cuidado

por esse vosso trocado!»

Calisto:

Nô mais, qu' isso me degola.

Senhor, eu haja perdão:

Fezestes esse rifão

em algum jogo de bola?

E foi lhe ele ter à mão?

Feliseo:

Digo vos que o viu e lho leu

um mocinho d’ escola.

Calisto:

Está isso assi do céu.

Sabe ele jogar a bola?

Feliseo:

Não

Calisto:

Pois não vos entendeu.

Ora eu já cheguei a ler

Petrarca, e crede de mi

que nunca tal cousa vi.

Onde mora o bom saber,

logo dá sinal de si.

Onde «casada» pusestes,

dizei, porque não dissestes

«La que yo vi por mi mal»?

Feliseo:

Renunciava o metal,

que em refrõezinhos como estes,

há se de pôr tal com tal.

Que a trova trigo tremês

há de ser toda d'um pano;

que parece muito ingrês

num pelote português

todo um quarto castelhano.

Ouvi outra também minha,

que fiz a certa tenção,

crara, leve, bonitinha,

de feição que esta trovinha

é trovinha de feição.

Como eu um dia me visse

morto, e a mão na candeia,

e ela não me acudisse,

fiz lhe esta, porque sentisse

que dava os fios à teia.

E o propósito é

andar e u um dia só;

e pera que houvesse dó

de mim e de minha fé,

lamentei lhe como Jó.

Calisto:

Andastes, Senhor, mui bem.

Feliseo:

Ora, Senhor, atentai,

e vede o saibo que tem;

se é pera a ver alguém.

Calisto:

Ora dizei.

Feliseo:

Ei la vai:

Trova:

«Coração de carne crua,

vê lo teu amor aqui,

que, esmorecido por ti,

jaz no meio desta rua?»

Calisto:

Na rua, Senhor, jazia?

E era em tempo de lama?

Feliseo:

Senhor, quem fala a quem ama

de si mesmo se não fia:

haveis de mentir à dama.

Calisto:

Volta disso?

Feliseo:

Singular,

senão que é muito sentida;

far vos há, Senhor, chorar.

Calisto:

Oh! diga, por sua vida!

Feliseo:

Farei o que me mandar.

Volta:

«Porque não hás dele mágoa,

ó dura mais que ninguém,

que anda o triste, que não tem

quem lhe dê üa vez d'água?

Não lhe negues teu querer,

pois te não custa dinheiro;

que, enfim, por derradeiro,

a terra te há de comer.»

Calisto:

Tal trova nunca se viu.

Agorentaste la já?

Feliseo:

Senhor, não; ainda está

como a sua mãe pariu;

e não está muito má.

Calisto:

E trova que tem por seis;

não na posso mais gabar.

Mas, pois, tal coisa fazeis,

Senhor, não me ensinareis

donde vem tão bem trovar?

Feliseo:

Não é a cousa tão pequena,

como, Senhor, a fizestes,

essa que agora dissestes;

mas porém vou dar [a] Almena

estas novas que me destes.

Despois, Senhor, nos veremos;

ficai roendo esse osso.

Calisto:

O roer, Senhor, é vosso.

Feliseo:

Pois eu, por mais que zombemos,

hei de ser vosso e revosso.

Calisto:

Oh!... Escusai vos d'estremos,

que isso, Senhor, me atarraca.

Mas nós nos encontraremos,

e sobre isso envidaremos

dous reales mais de saca.

Vão se ambos e vem Júpiter e Mercúrio

transformados, Júpiter na forma

de Enfatrião, Mercúrio na de Sósia

escravo, e diz, Júpiter:

Mercúrio, pois sou mudado

nesta forma natural,

olha e nota com cuidado,

se está em mi o pintado

aparente co real.

Mercúrio:

Quem tão próprio se transforma,

tenho por opinião,

que na tal transformação

lhe prestou natura a forma,

com que fez Anfatrião.

Júpiter:

Pois tu no gesto e na cor

estás Sósia, escravo seu.

Mercúrio:

Muito mais farás, Senhor.

Júpiter:

Não no faz senão o amor,

que nisto pode mais qu'eu.

Mercúrio:

Já, Senhor, te fiz menção

como deu Anfatrião

e el rei Terela a morte;

que, na guerra igual, a sorte

pode mais que o coração.

E despois de ser tomada

toda a cidade, com glória

d'Anfatrião bem ganhada,

como em sinal de vitória,

esta copa lhe foi dada.

Por ela bebia el Rei,

enquanto a vida queria;

e eu, porque te cumpria,

a seu escravo a furtei,

que nüa caixa a trazia.

Esta poderás levar

a Almena, por lhe mostrar

verdadeiro, o que é fingido;

e desta arte serás crido,

sem mais outro ardil buscar

Júpiter:

Pois tudo tens ordenado

por tão nova e sutil arte,

como me vires entrado,

irás dar este recado

a Febo, de minha parte.

Que faça mais devagar

seu curso neste hemisfério,

que o que sói acostumar;

que esta noite hei de ordenar

um caso de alto mistério.

E à Esfera mais alta

mandarás que fixa esteja,

porque a noute maior seja;

porque sempre o tempo falta,

onde alegria é sobeja.

E terás tamanho tento,

que, como isto se ordenar,

venhas aqui vigiar,

porque meu contentamento

ninguém mo possa estrovar.

Mercúrio:

Seja feito sem debate

tudo como te convém.

Júpiter:

Pois não parece ninguém,

como homem de casa bate,

e muda a fala também.

Bate Mercúrio à porta

Mercúrio:

O, de la casa, en buena hora,

¿Darme han de cenar aquí?

Brómia:

Sósia parece que ouvi

Alvíssaras, minha Senhora,

que na fala o conheci.

Entra Almena e Brómia:

Almena:

Zombais, Brómia, porventura?

Brómia:

Senhora, não zombo, não.

Almena:

Vejo eu Anfatrião,

ou a vista me afegura

o qu' está no coração.

Júpiter:

Olhos, diante dos quais

desejei mais este dia

que nenhüa outra alegria,

Senhora, nunca creais

que lhe minta a fantesia.

Almena:

Oh presença mais querida

que quantas formou Amor!

Isto é verdade, Senhor?

Acabe se aqui a vida,

por não ver prazer maior.

Júpiter:

Pois esta hora de vos ver

alcançar, Senhora, pude,

pera mais contente ser,

conforme co este prazer

novas de vossa saúde.

Almena:

A vida foi pesada e crua

à saúde qu' eu sostinha;

que, enquanto, Senhor, a tinha,

temer perigo na sua,

me fez descuidar da minha.

Mercúrio:

Y pues, mi señora Almena,

pese al demónio malvado,

¿no dirá a un su criado,

vengaes Sosea norabuena?

Almena:

Sejais, Sósia, bem chegado.

Brómia:

Bem mal cri eu que pudesse

ver te, Sósia, hoje aqui.

Mercúrio:

Pues también yo no creí

que en mi vida te viese,

según las muertes que vi.

Almena:

Muito, Senhor, folgarei

com novas de vencimento.

Júpiter:

De tudo quanto passei,

por vos dar contentamento,

em suma vos contarei.

Trago, Senhora, a vitória

daquele Rei tão temido,

com fama crara e notória,

porém maior foi a glória

de me ver de vós vencido.

Sem me terem resistência,

os grandes me obedeceram,

como el Rei morto tiveram,

em sinal de obediência

esta copa me trouxeram.

El Rei por ela bebia;

ela e tudo o mais é nosso,

por onde craro se via,

que tudo me obedecia,

pois tinha nome de vosso.

Mercúrio:

Si, mas luego de rondón

la fortuna dia la vuelta.

Almena:

Como?

Mercúrio:

Fué gran perdición,

porque en aquella revuelta,

me hurtaron mi jubón.

Pero bien me lo pagaron,

cuando comigo riñeron;

que aunque me despojaron,

si uno de seda llevaron

otro de azotes me dieron.

Almena:

Senhor, não posso gostar

de gosto, que é tão imenso,

senão muito devagar.

Faça me mercê d'entrar,

e contar mo há por extenso.

Vão-se e fica Mercúrio e Brómia

Mercúrio:

Yo también te contaría,

Bromia, si quedas atrás,

que una noche... enojarte has?

Brómia:

Quê?

Mercúrio:

Soñaba, que tenía...

No me atrevo a decir más.

Brómia:

Dize.

Mercúrio:

Pardies, no diré.

Soñaba...

Brómia:

Bem: que sonhavas?

Mercúrio:

Que cuando en la cama estavas

que yo... enfin recordé.

Brómia:

Pois tudo isso receavas?

Mercúrio:

Sabe Dios que' yo acá siento:

sola una alma vive en dos,

la cual anda dentro en vos.

Brómia:

E que quer ela cá dentro?

Mercúrio:

También eso sabe Dios.

Vai se Brómia e diz Mercúrio

Mercúrio:

Bem se poderá enganar

Brómia, segundo ora estou,

como Almena s'enganou;

mas cumpre ir ordenar

o que meu Pai me mandou.

E porque seja guardada

esta porta e vigiada

de toda a gente nacida,

me será cousa forçada,

ser tão depressa a tornada,

quão prestes faço a partida.

Vai se Mercúrio e vem Sósia

co recado d'Anfatrião

Sósia:

Anfatrión esforzado, bravo

vá por la batalla,

siete cabezas llevava,

de las mejoras que ha hallado.

Fala:

Quién viene de tierra ajena,

y de la muerte escapó,

la razón le permitió

que cante como sirena,

como agora hago yo.

Y pues canto tan gentil,

fuera llano si muriera,

quiero cantar como quiera,

una y otra, y mas de mil,

que digan desta manera:

Canta:

«Dongolondron, con dongolondrera,

Por el camino de Otera,

Rosas coge en la rosera,

Dongolondron, con dongolondrera»

Fala:

Cuando yo vengo a pensar

que uno matar me quisiera,

no hago sino temblar,

porque creo, si muriera,

no pudiera más cantar.

Porque estando a un rincón

de la casa adó quedé,

senti muy grande ronron,

y, mirando, ¿que miré?

vi que era un gran ratón.

Empero yo nunca sigo,

sino consejos muy sanos,

que en estos casos levianos,

quien desprecia el enemigo,

mil veces muere a sus manos.

Pero mi señor alli

mató al Rey de los Glipazos:

yo como muerto lo vi,

juro a mi fe, que le di

más de dos mil cuchillazos.

y por me librar de afán,

me voy siempre a cosa hecha

probar mi mano derecha;

que aquele es buen capitán,

que del tiempo se aprovecha.

Que quien ha de pelear,

ba de buscar tiempo y hora.

Pero quiero caminar,

que me muero por contar

todo aquesto a mi señora.

Vem Mercúrio e diz

[Mercúrio]

Mil vezes comigo vejo,

pera que meu Pai se afoute;

pois em tão pequeno ensejo

lhe mandei talhar a noute

à medida do desejo.

E pois que como possante

a mi tudo se reporta,

chego agora neste instante

a estrovar qu' este bargante

me não chegue a esta porta.

Sósia:

No sé que miedo, o locura,

neste pecho se me cría:

por Dios que se me afigura

que ha mucho qu'es noche escura,

sin que venga el claro día.

Mas sabed, que pienso yo

qu'el sol que no se acordó

de con ele día venir,

que a noche quando cenó

algun buen vino bebió,

que le hace tanto dormir.

Mercúrio:

Já sintes comprida a noute,

que eu assi mandei fazer?

Pois mais te quero dizer,

que sentirás muito açoute,

se cá quiseres vir ter.

Porém, pois este bargante

tem medroso coração,

quero me fingir ladrão,

ou fantasma, e por diante

não irá, se vem à mão.

E com tudo se passar,

a fala quero mudar

na sua, de tal feição,

que couces e perfiar

lhe façam hoje assentar

que eu sou Sósia, ele não.

Fala Castelhano:

No veo pasar ninguno,

en quien yo me pueda hartar.

Sósia:

¿A quien oigo aqui hablar?

Mande Dios no sea alguno

que me quiera aporrear.

Mercúrio:

La carne de algun humano

me seria muy sabrosa.

Sósia:

¡Oh qué voz tan temerosa!

¿Hombres comes, o mi hermano?

¿No es mejor otra cosa?

Carne humana es muy mezquina.

¡Oh no comas deso, no!

Antes carne de gallina.

¿Pero se más se avecina,

qué más gallina, que yo?

Mercúrio:

Una voz de hombre aora

a la oreja me voló.

Sósia:

Pésete quien me parió:

¿la voz traigo boladora?

ella quisiera ser yo.

Pues mi voz pudo volar,

do la pudieses oír;

por contigo no reñir,

me debieras de prestar

las alas para huir.

Mercúrio:

¿Qué buscas cabe essa puerta,

Hombre? Sé que eres ladrón.

Sósia:

¡Ay que el alma tengo muerta!

iOh! Júpiter me convierta

las tripas en corazón!

Mercúrio:

¿Quién eras? ¿quieres hablar?

Sósia:

Soy quen mi voluntad quiere.

Mercúrio:

Piensas que puedes burlar?

Sósia:

¿Y tú puedesme quitar

que yo sea quien quisiere?

Mercúrio:

¿Osas hablar tan osado,

don vellaco bobarrón?

Di, ¿quién eres?

Sósia:

Un criado

del señor Anfatrión

por nombre Sosia llamado.

Mercúrio:

Pienso qu'el seso perdiste.

¿Como te llamas, mal hombre?

Sósia:

Sosia soy, si no me oiste.

Mercúrio:

¿Como? ¿En persona tan triste

osas d'ensuciar mi nombre?

Estos puños llevarás,

pues tener mi nombre quieres.

¿Quieresme decir quien eres?

Sósia:

Oh Señor, no me dés más,

que yo seré quien tú quisieres.

Mercúrio:

¿Con tan nueva falsedad

andáis por esta ciudad,

delante de quien os mira?

Pues si sois Sosia, tomad.

Sósia:

¿Si me dás por la verdad,

que me harás por la mentira?

Mercúrio:

¿Y que verdad es la tuya,

que te quiero dar castigo?

Sósia:

Si no soy Sosia que digo,

que Júpiter me destruya.

Mercúrio:

Mirad el falso enemigo:

tomad este bofetón,

que yo soy Sosia, e no vos.

Sósia:

¿Tu, Sosia?

Mercúrio:

Sósia por Dios,

escravo d'Anfatrión.

Sósia:

¿De modo que tiene dos?

Mercúrio:

No terná, aunque tu quieres,

que a mi solo conoció.

Sósia:

Pues yo luego quien soy?

Mercúrio:

¿Si tu no sabes quien eres,

quieres que lo sepa yo?

Sósia:

¿Enfin, has me de hacer crer

que yo no soy quien ser solía;

Mercúrio:

¿Quien solias tu de ser?

Sósia:

Treguas me has de prometer.

Dirtelohé sin porfia.

Mercúrio:

Prometo.

Sósia:

¿No me darás?

Mercúrio:

No si no fuere razón.

Sósia:

Pues, hermano, tu sabrás

que mi amo Anfatrión...

Mercúrio:

¿Tu amo? Pues llevarás.

Mi amo es, que tuyo no.

Sósia:

¡Ay que un brazo me quebró!

Mercúrio:

Mas que luego te matase.

Sósia:

¡Ojala Dios ordenase

que tú ahora fueses yo,

[y] yo que te desmembrase!

Mercúrio:

Esa tu tema tan loca

puños te la han de quitar.

Dime, di, verguenza poca,

¿qué hablas?

Sósia:

¿Qué puedo hablar,

si me has quebrado la boca?

Mercúrio:

Di quién eres, sin fatiga.

Sósia:

Soy un hombre, en quien tu dás.

Mercúrio:

Dime pues, qué nombre has.

Sósia:

¿Como quieres tu que diga,

pera qué no me dés más?

Mercúrio:

No me has de hablar contrahecho.

Sósia:

Toda mi vida pasada

Sosia fuy, y con despecho

aora soy... ¿qué? Nonada

que tus manos me han desecho

Mercúrio:

¿Cuyo eres, pues las sientes,

dejando consejos vanos?

La verdad, que si me mientes,

dás con la lengua en los dientes,

y yo doyte con las manos.

Sósia:

¿No conoces Anfatrión?

Mercúrio:

¡Hombre sin seso te llamo,

tan fuera estás de razón!

¿Piensas de mi, bobarrón,

que no conozco a mi amo?

Sósia:

¿En su casa conociste

uno, que es Sosia llamado,

hombre despreciado y triste?

Mercúrio:

Desa suerte lo dijiste

Yo soy triste y despreciado.

Pues sabe que te allegó

a la muerte tu fortuna.

Sósia:

Pues logo si yo no soy yo,

aunque nadie me mató;

soy luego cosa ninguna.

¡Oh dioses, que desconcierto!

¿Yo por ventura soy muerto,

o murióme la razón?

¿Yo no soy de Anfatrión?

¿E1 no me mandó del puerto?

¿Yo no sé que no estoy loco?

¿De mi madre no nací?

¿No ando? ¿No hablo aquí?

Mercúrio:

Pues sosiega ahora un poco,

que yo también diré de mí.

¿Yo no sé que yo soy yo?

¿Yo no te di con mis manos?

¿Mi Señor no me llevó

a la guerra, adó mató

aquel Rey de los Tebanos?

Sósia:

Yo eso muy bien lo sé.

¿Empero tú qué hazias

cuando la batalla vías?

Mercúrio:

Escucha: yo lo diré,

y cesarán tus porfías.

Cuando mi Señor andaba

peleando, y derramaba

la sangre de algun mezquino,

con una bota de vino

yo la mía acrescentaba.

Sósia:

Dijo lo que yo hacía.

Con todo, saber quería

sola una cosa, si puedo:

tu pecho entón que sentía?

Mercúrio:

Del beber grande alegría,

y del pelear gran miedo.

Sósia:

¿Y despues?

Mercúrio:

Muy reposado

a dormir me eché de grado,

desde el sol hasta la luna.

Sósia:

Todo lo tiene contado.

Enfin, tengo averiguado

que yo no soy cosa ninguna.

Pues de todo en un instante

me has echado de mi fuera,

aconséjame siquiera,

quien seré daquí adelante,

pues no soy quien d'antes era.

Mercúrio:

Quando yo no ser quisiere

ese, que tu ser deseas,

despues que ya Sosia no fuere,

darte hé, si te pluguiere,

licencia que todo seas.

Y acógete luego, amigo,

a buscar tu nombre, digo,

pues Dios vida te dejó;

quel el Sosia queda comigo.

Sósia:

Pues contigo quedo yo,

Dios quede, hermano, contigo.

Ahora quiero ir allá

adó mi Señora está

contarle como es venido

mi Senor. Mas, ¡oh perdido!

Si un otro yo tiene allá,

todo lo terná sabido.

Mercúrio:

Ah hombre...

Sósia:

Mi voz sonó.

Mercúrio:

¿Aónde vuelves ahora?

Sósia:

Por Dios no sé onde vo,

porque si yo no soy yo,

ni Almena es mi Señora.

Mercúrio:

¿Adónde vas?

Sósia:

Con mensaje

del señor Anfatrión

pera Almena.

Mercúrio:

¿Adó, salvaje?

Pues quebraste la homenaje,

ahí verás tu perdición.

¿Yo doyte consejos sanos,

y porfias otra vez?

Sósia:

Altos dioses soberanos,

pues me no valen las manos ,

aqui me valgan los pies. (Foge.)

Mercúrio:

¿Desta arte enseñan aquí

a hurtar el nombre ajeno?

Vai se e torna Sósia e diz

Sósia:

¡Ay Dios, como me acogí

¡Ó Júpiter alto y bueno,

cuan cerca la muerte vi!

Quiérome yr a mi Señor

contarle cuanto hé pasado,

y el me dirá de grado,

si yo soy su servidor,

en que cosa me hé tornado.

vai se Sósia e vem Júpiter e Almena

e diz, Júpiter:

Poda a pessoa discreta

terá, Senhora, assentado

que um bem muito desejado

se há de alcançar por dieta,

pera ser sempre estimado.

E quem alcançado tem

tamanho contentamento

por conservá lo convém

que tome por mantimento

a fome de tanto bem.

Por isso hei de tornar

este tempo tão ditoso

pera a frota visitar;

e despois, quando tomar,

tornarei mais desejoso.

Que pois tão bom cativeiro

me tem presa a liberdade,

eu lhe prometo, em verdade,

que tome ainda primeiro,

que mo peça a saudade.

Almena:

Ainda que se possa ir

mais asinha do que creio,

como hei de consentir

que se haja de partir

na mesma noite que veio?

Júpiter:

Forçada é minha tomada,

mas muito cedo virei,

porque dês que foi chegada

a este porto a armada,

ainda a não visitei.

Almena:

Pois, Senhor, tão pouco estais

com quem vistes inda agora,

faça se como mandais.

Júpiter:

Vós me vereis cá, Senhora,

primeiro do que cuidais.

Vão se e vem Anfatrião e Sósia

e diz, Anfatrião

Anfatrião:

Enfim, tu, que estás aqui,

estavas já lá primeiro?

Sósia:

Señor, crea que es ansí.

Anfatrião:

Eu nunca entendi de ti,

que eras também chocarreiro.

Sósia:

Señor, yo que estoy presente,

no soy Sosia, su criado?

Anfatrião:

Creio que não, certamente?

porque Sósia era avisado,

e tu és mui diferente.

Sósia:

Pues, Señor, [si] en mi se vé

que no soy quien dantes era,

vuélvo me.

Anfatrião:

E para quê?

Sósia:

Ver si a dicha me quedé

durmiendo por la galera.

Anfatrião:

Pois me queres fazer crer

üa doudice tão rasa,

mais quero de ti saber:

como não entraste em casa

de Almena, minha mulher?

Sósia:

Aunque Sosia quisiese,

la verdad no negará:

aquel yo que allá está,

no quiso que a casa fuese

estotro yo, que yba allá.

¡Y con furia tan crecida

a mi se vino aquel hombre,

que yo me puse en huyda,

y ansi te dejé mi nombre

por me dejar él la vida!

Anfatrião:

Quem seria tão ousado

que tanto mal te fizesse?

Sósia:

Yo mismo Sosia llamado,

que a casa era ya llegado,

antes que de acá partiese.

Anfatrião:

Tu chegaste antes de ti?

Este é gentil desbarate.

Sósia:

Pues más te digo de aqui,

que vengo huyendo de mi

porque yo mismo no me mate.

Anfatrião:

Eram dous ou era um só,

quem te fez assi fugir?

Sósia:

Pésete quien me parió:

digo, que era un solo yo:

mil vezes lo hé de decir?

Puede ser que nacería

daquel hombre otro alguno,

como aquel de mi nacía,

porque aunque fuese [él]

uno, por más de quatro tenía.

Él tenía mi aparência,

empero yo nunca vi

tal fuerza, ni tal potencia:

esta sola diferencia

le tengo hallado de mí.

Anfatrião:

Pudeste delle saber

cujo era?

Sósia:

¿Quién? Aquel yo?

Tuyo, Señor, dijo ser.

Anfatrião:

Nunca eu tive mais que um só,

e esse não quisera ter.

Sósia:

Pues, Señor, si el bien doblado

te lo muestra ahora Dios,

debe ser de ti alabado;

pues de uno solo criado

te ha hecho agora dos.

Anfatrião:

Antes pera que conheças,

que cousa é mau servidor,

me pesará se assi for,

que de tão ruins cabeças,

quantas mais, tanto pior.

E já que são tão incertos

teus ditos pera se crer,

muito milhor deve ser

que deixe teus desconcertos,

vá ver minha mulher.

Vão se e entra Almena e diz

Almena:

Que fado, que nacimento

de gente humana nacida,

que d'escasso e avarento,

nunca consentiu na vida

perfeito contentamento!

Anfatrião, que mostrou

um prazer tão desejado

a quem tanto o desejou,

na noite que foi chegado,

nessa mesma se tornou!

De se tornar tão asinha

sinto tanto entristecer

o sentido e alma minha,

que certo que me adivinha

algum novo desprazer.

Mas parece este que vem,

se não estou enganada.

Se ele é, venha com bem,

pois que com a sua tornada

tão trestornada me tem.

Entra Anfatrião e Sósia

e diz, Anfatrião

Anfatrião:

Com que palavras, Senhora,

poderei engrandecer

tão sublimado prazer,

como é ver chegada a hora

em que vos pudesse ver?

Certo grão contentamento

tive de meu vencimento;

mas maior o hei de mim,

de me ver posto na fim

de tão longo apartamento.

Almena:

Já eu disse o que sentia

de vinda tão desejada.

Mas diga me todavia:

como não foi ver a armada,

que me disse hoje este dia?

Anfatrião:

Dela venho eu inda agora

desejoso de vos ver,

muito mais que de vencer.

Mas que me dizeis, Senhora,

que hoje me ouvistes dizer?

Almena:

Se não estava remota,

certamente que lhe ouvi,

quando hoje partiu daqui,

que tornava a ver a frota,

porque era forçado assi.

Anfatrião:

Sósia!

Sósia:

Señor, aqui estoy yo.

Anfatrião:

Tu ouves tal desconcerto?

Sósia:

Grandes orejas gañó,

pues estando en casa oyó

quien estava allá nel puerto!

Anfatrião:

Quando dizeis que me ouvistes?

Almena:

Hoje, quando vos partistes.

Anfatrião:

Donde?

Almena:

Daqui, de me ver.

Anfatrião:

Nunca vi grande prazer,

que não tenha os cabos tristes.

Quantos males d'improviso

que causam grandes mudanças!

Que mulher de tanto aviso

agora minhas lembranças

a tem fora de juízo!

Almena:

Quereis me fazer cuidar

que poderia sonhar

o que pelos olhos vi?

Nunca vos eu mereci

quererdes me exprimentar.

Anfatrião:

Posto que e pera pasmar

ver um caso tão estranho,

todavia hei de atentar

se poderei concertar

um desconcerto tamanho:

Quando dizeis que vim cá?

Almena:

Esta noite que passou.

Anfatrião:

Dai me alguém, que aqui se achou,

que me visse.

Almena:

Esse que ai está,

Sósia, que convosco andou.

Anfatrião:

Sósia, podes te lembrar,

que ontem me viste aqui?

Sósia:

Nunca yo supe de mí

que me pudiese acordar

daquello que nunca vi.

Almena:

Ora eu creio, e é assi,

que ambos vindes conjurados,

pera zombardes de mi,

mas eu darei hoje aqui

sinais que sejam provados.

Anfatrião:

Que sinais pode i haver

de mentira tão notória,

que nem foi, nem pode ser?

Almena:

Donde vim eu a saber

novas de vossa vitória?

Anfatrião:

Que novas?

Almena:

Dir vo las hei,

assi como mas cantastes,

que na batalha matastes

aquele soberbo rei,

e tudo desbaratastes.

Não fazendo resistência

nüa batalha tão crua,

dando vos obediência,

vos deram uma copa sua,

lavrada por excelência.

Anfatrião:

Sósia é culpado só

nestes acontecimentos.

Sósia:

Señor, son encantamientos,

porque aquel hombre, que es yo,

le contaria estos cuentos.

Anfatrião:

Quem é esse, que vos deu

tais novas, saber queria;

Almena:

Quem mo pergunta.

Anfatrião:

Quem? Eu?

quereis me fazer sandeu?

Almena:

Mas vós me fazeis sandia.

Anfatrião:

Ora quero perguntar:

que fiz sendo aqui chegado?

Almena:

Pusemo nos a cear.

Anfatrião:

E despois de ter ceado?

Almena:

Fomo nos ambos deitar.

Anfatrião:

Nunca queira Deus que possa

achar se na minha honra

nenhüa falta nem mossa:

seja isto doudice vossa,

antes que minha desonra.

Sósia:

Bien lo supe yo entender,

que era esto encantaciones;

y ahora me habrá de crer que

dos Sosias puede haber,

pues ay dos Anfatriones.

Almena:

Com que me quererdes tentar

tão torvada me fizestes,

que me não pode lembrar

que vos mandasse mostrar

a copa que me ontem destes.

Anfatrião:

Eu? Copa? Se isso aí há,

que estou doudo cuidarei.

Sósia:

Señor, bien guardada está.

Almena:

Brómia!

Brómia:

Senhora.

Almena:

Dai cá a copa que ontem vos dei.

Sósia:

Pues yo pari otro yo,

y vós otro Enfatrión

no es mucha admiración,

si la copa otra parió,

Ni aun fuera de razón.

Entra Bramia com a copa, e diz

{Brómia}

Eis aqui a copa vem,

testemunho da verdade.

Anfatrião:

Ó estranha novidade!

Almena:

Poder me há dizer alguém

que o que digo é falsidade?

Anfatrião:

Sósia, quando ontem cá vinhas,

poder me hás negar, ladrão,

que lhe deste as novas minhas,

mais a copa que tinhas

guardada na tua mão?

Sósia:

Señor, que no pude, no,

ver a mi señora Almena:

si aquél eso acá ordenó,

no lleve este yo la pena del

mal que hizo el otro yo.

Anfatrião:

Ora eu não sei entender

tal caso, nem lhe acho fundo:

com tudo venho a dizer

que há tantos males no mundo,

que tudo se pode crer.

Se vos trouxer quem vos diga

como esta noite dormi

na nau, crereis que é assi?

Almena:

Nenhüa causa me obriga

que não creia o que vi.

Anfatrião:

Se o Patrão aqui vier,

que é homem d'autoridade,

crereis o que vos disser?

Almena:

Sim, que ninguém pode haver

a que me negue esta verdade.

Anfatrião:

Eu estou em concrusão

d'hoje desembaraçar

tão enleada questão:

à nau me quero tornar

a trazer cá Belferrão.

Sósia, até minha tornada

fica nesta casa em vela,

qu'eu armarei tal cilada

a quem ma mim tem armada,

que venha hoje a cair nela.

Vai se e diz, Almena

Almena:

Oh mulher triste e suspensa

da mais alta confusão

que nunca

viu coração! Em que mereces a ofensa,

que te faz Anfatrião?

Sempre de mim foi amado,

tanto quanto em mim se sente,

co coração tão liado,

que se de mim era ausente,

nele o via figurado.

E pois mulher que cumprisse

milhor qu'eu fidelidade

não na vi, nem quem me visse

que dos limites saísse

um ponto de honestidade;

pois porque é tão maltratada

inocência tão singela?

Que a pena mais apertada,

é a culpa levantada

ao coração livre dela.

Mas já que minh' alma está

sem culpa do que padeço,

seja o que for, que eu conheço

que a verdade me porá

no que eu pelo ter mereço.

Brómia!

Brómia:

Senhora.

Almena:

I mandar

a Feliseo, que vá

meu primo Aurélio chamar,

que lhe quero perguntar

que conselho me dará.

E pois que Enfatrião vai

buscar somente quem

lhe ajude a sua tenção,

quero eu ter aqui também

quem me defenda a razão.

Vai-se Brómia e vem Júpiter

e diz Júpiter

Júpiter:

Grão desconcerto tem feito

Anfatrião com Almena!

Qualquer deles tem direito:

eu sou o que venço o preito,

e ambos pagam a pena.

Quero me ir lá desfazer

tão trabalhosa demanda,

por nos tornarmos a ver;

porque, enfim, quem muito quer

com qualquer desculpa abranda.

E pois que a afeição

há de mudar tão asinha,

quero ir alcançar perdão

da culpa que, sendo minha,

parece d'Anfatrião.

Almena:

Parece que torna cá

Anfatrião, que já se ia:

não sei a que tornará,

senão se lhe pesa já

dos enganos que tecia.

Júpiter:

Senhora, não haja error

que tantos males me faça,

porque se o contrário for,

pequeno será o amor,

que manencória desfaça.

E pois com tanta alegria

de tantos perigos vim,

pesar me há se achar no fim,

que üa leve zombaria

vos possa agravar de mim.

Almena:

Com palavras de desonra

não se há de tratar quem ama;

nem zombaria se chama,

por exprimentar a honra,

pôr em tal perigo a fama.

Bem tive eu para mi,

que era aquilo experiência.

Júpiter:

Errei no que cometi:

bem me basta a penitência

de quanto me arrependi.

E se fiz algum error,

com que vosso amor se mude

de quem vo lo tem maior,

não exprimentei vertude

mas exprimentei amor.

Que, se com caso tão vário,

folguei de vos agastar,

foi amor acrecentar,

porque às vezes um contrário

faz seu contrário aviar.

Daqui vem que a leve mágoa

firmeza, feições aumenta,

como bem se vê na frágua,

onde o fogo se acrecenta,

borrifando o com pouca água.

Se um mal grande se alevanta

num coração que maltrata,

a afeição desbarata,

porque onde a água é tanta

o fogo d'amor se mata.

E pois tive tal tenção,

perdoai, Senhora, a culpa

deste vosso coração.

Almena:

Não se alcança assi perdão

d'erro que não tem desculpa.

Júpiter:

Ora pois assi tratais

quem em tanto risco pôs

o amor que vós negais,

eu m'ausentarei de vós

onde mais me não vejais.

Que, pois desculpa não tem

coração que tanto quer,

vou me, que não será bem

que quem vós não podeis ver,

que possa mais ver ninguém.

Se algüa hora meu cuidado

vos der dor, em que pequena,

peço vos, pois fui culpado,

que vos não pese da pena

de quem vos foi tão pesado.

E despois que a desventura

puser este coração

debaixo da sepultura,

as letras na pedra dura

vossa dureza dirão.

Isto vos hei de dizer,

que me ensinou minha dor:

se quiserdes leda ser,

nunca exprimenteis amor

em quem vo lo não tiver.

Deixai me ir; não me tenhais.

Almena:

Anfatrião, não choreis!

Anfatrião!

Júpiter:

Que quereis,

ou pera que nomeais homem,

que ver não podeis?

Almena:

Anfatrião, se eu causei,

com manencória pequena,

cousa com que o magoei,

eu quero cair na pena

dessa culpa que lhe dei.

Júpiter:

Sempre serei magoado,

se vossa má condição

me não perdoa o passado.

Almena:

Perdoa e peço perdão

de lhe não ter perdoado.

Sósia:

No le perdone, Señora,

hasta que con devoción

también me pida perdón,

que vien se me acuerda ahora

que me ha llamado ladrón.

Júpiter:

Sósia?

Sósia:

Señor.

Júpiter:

Vai buscar

o piloto Belferrão;

dir lhe hás, se desembarcar,

que me parece razão

que venha hoje cá cear.

Sósia:

Si, señor, voy a la hora.

Júpiter:

De nenhüa calidade

cures de fazer demora.

E nós vamo nos, Senhora,

confirmar nossa amizade.

Vão se e vem Mercúrio e diz,

{Mercúrio:}

Grandes revoltas vão lá,

Grandes acontecimentos!

Cumpre me que esteja cá,

enquanto meu pai está

em seus desenfadamentos.

Porque vejo Anfatrião

vir da nau mui apressado;

e tendo corrido e andado,

não pôde achar Belferrão,

que lhe era bem escusado.

Parece me que virá

ver se lhe abre aqui alguém;

mas porém, se chega cá,

já pode ser que se vá,

mais confuso do que vem.

Entra Anfatrião e diz

{Anfatrião}

Quis nos nossa natureza

com tal condição fazer,

que já temos por certeza

não haver grande prazer,

sem mistura de tristeza.

Este decreto espantoso,

que instituiu nossa sorte,

é tal e tão rigoroso,

que ninguém antes da morte

se pode chamar ditoso.

Com esta justa balança

o fado grande, profundo,

nos refrea a esperança,

porque ninguém neste mundo

busque bem aventurança.

Eu, que cuidei de viver

sempre contente de mi

com tamanho Rei vencer,

venho achar minha mulher

de todo fora de si.

Mas d'outra parte, que digo?

Que s' é verdade o que vi,

e o que lá diz é assi,

virei a cuidar comigo

que eu sou o fora de mi.

Quero ver se [a] acho já

fora de tão secos nós.

Ó de casa?

Mercúrio:

¡Ó de allá!

¿Quien sois?

Anfatrião:

Abre

Mercúrio:

¡Santo Dios!

pues no os conocen acá.

Anfatrião:

Oh que gentil desvario!

Abri me ora, se quiserdes.

Mercúrio:

No haré, que en mi confio

que de fuera dormiredes,

que no comigo, amor mío.

¡Qué canción para oír!

Anfatrião:

Ah Sósia! zombas de mi?

Ora quero me fingir que

ainda o não conheci,

por ver se me quer abrir.

Ah Senhor, não abrireis

Mercúrio:

¿Qué queréis, hombre, por Dios?

Anfatrião:

Duas palavras de vós.

Mercúrio:

Tengo dicho más de seis,

¿e chora me pedis dos?

De fuera podéis dormir,

que no podéis entrar acá.

Anfatrião:

Ora acabai, abri lá.

Mercúrio:

Digo que no quiero abrir:

dije dos palabras ya.

Anfatrião:

Ora sus, bargante, abri.

Mercúrio:

Si no te vuelves de aqui,

gran peligro te ofreces.

Anfatrião:

Velhaco, não me conheces,

ou estás fora de ti?

Mercúrio:

Bonito venís, amor.

¿Quién sais, que habláis tan osado?

Anfatrião:

Abre, que sou teu senhor.

Mercúrio:

Vuélvase desotro lado,

y conocerle hé mejor.

Anfatrião:

Sósia moço.

Mercúrio:

Assi me llamo,

Huélgome que lo sepáis;

Empero digo que os vais,

que Enfatrión es mi amo,

vos id buscar quien senis.

Anfatrião:

Pois quero saber de ti;

eu quem sou?

Mercúrio:

¿Y quien sois vos? ¿Cómo os llaman?

Anfatrião:

Abri.

Mercúrio:

¿A vos o llaman Abri?

Pues, Abri, andad con Dios.

Anfatrião:

Quem há, que possa sofrer

em sua honra tal destroço,

que pera me endoudecer

me tem negado a mulher,

e agora me nega o moço?

Mercúrio:

Mira el encantador

como se lastima y llora,

y fuése tomar ahora

la forma de mi Señor,

para enganar mi Señora.

Pues esperad, y no os vais,

por un espacio pequeno;

Verná quien representáis,

e él os hará que volváis

el falso gesto á su dueño.

Anfatrião:

Vai, velhaco, e chama cá

esse falso feiticeiro,

que se ele lá dentro está,

esta espada julgará

qual de nós é o verdadeiro.

Vai se Mercúrio e vem Sósia

e Belferrão, e diz Belferrão

Belferrão:

Ora ninguém presumira

que tinhas tão pouco siso,

pois vás achar d' improviso

tão bem forjada mentira,

que me faz cair de riso.

Um moço, que alevantou

tal graça, nunca naceu,

porque vos jura que achou

que ou ele em dous se perdeu,

ou de um, dous se tomou.

Sósia:

Patrón, que no burla, no:

en uno son dos unidos,

y en dos cuerpos repartidos;

yo soy él, y él es yo,

de un padre y madre nacidos.

Belferrão:

Esse tu, que lá estás,

tão velhaco é como ti?

Sósia:

Mas aun pienso que es más:

por delante y por detrás

todo se parece a mí.

Y fué gran merced de Dios

ajuntar a mi más uno,

que peor fuera de nos,

si Dios me hiciera ninguno,

que no de uno hacer dos.

Belferrão:

Assi que, se te perdeste,

vieste a cobrar mais um:

mui gentil conta fizeste,

pois que perdido soubeste

que eras dons, sendo nenhum.

Sósia:

Pues tenéis por abusión

verdad tan clara, y tan rasa,

aunque pane admiración,

quieta Dios, que allá en casa

no halléis otro patrón.

Anfatrião:

O Patrão, que fui buscar,

parece que vejo vir.

Não sei quem o foi chamar;

mas que me há de aproveitar

se me não querem abrir?

Ah Belferrão!

Belferrão:

Ah Senhor!

Já sinto que fui culpado,

porque quem é convidado,

se tão vagaroso for

merece não ser chamado.

Anfatrião:

A vós quem vos convidou?

Belferrão:

Sósia, por mandado seu.

Anfatrião:

Disso, Patrão, não sei eu,

que Sósia já me negou,

já se não dá por meu.

E se alguém vos foi dizer

qu'eu vos chamo à minha mesa,

al vos dará de comer

quem de todo lhe é defesa

a casa, e mais a mulher.

Belferrão:

Quem é esse tão ousado,

que vos isso faz, Senhor?

Anfatrião:

Sósia, creio que enganado

por algum encantador,

que a honra me tem roubado.

Belferrão:

Sem ele aqui comigo vem,

isso como pode ser?

Anfatrião:

Ah! que a ira que vou ter,

tão cega a vista me tem,

que mo não deixava ver.

Porque rezão, cavaleiro,

não me abris, quando vos mando?

Vós fazei vos chocarreiro?

Sósia:

¿Yo, Señor? ¿Y como? ¿y cuándo?

Anfatrião:

Quereis lo saber primeiro?

Esperai, dir se vos há,

mas será por outro som.

Sósia:

Ah señor Anfatrión,

¿porque matándome está,

sin delito, y sin razón?

Anfatrião:

Agora que vos eu dou

me chamais Anfatrião,

e pera me abrirdes não?

Belferrão:

Este moço em que pecou?

Porque pena sem razão?

Nô mais, por amor de mi.

Anfatrião:

Não, que não sou seu senhor;

eu sou um encantador.

Não no dizeis vós assi,

ladrão, perro, enganador?

Sósia:

¿Porque fuy presto a llamar

por su mandado al Patrón,

me quiere ora matar?

Anfatrião:

Quem vo lo mandou buscar?

Sósia:

Si no hay otro Anfatrión,

vuestra merced, sin dudar.

Anfatrião:

Eu te mandei?

Sósia:

Si, Señor,

si otro no.

Anfatrião:

Outro há aqui,

por quem tu zombes de mi?

Pois só desse encantador

me quero vingar de ti.

Sósia:

¿Oh Júpiter, a quién bramo

por su bondad que me vala!

¿Pues porque Sosia me llamo,

yo mismo, e despues mi amo

me dieron venida mala!

Entra Júpiter e diz,

Júpiter:

Quem é o tão atrevido,

que aqui ousa de fazer

tão revoltoso arruído

com meus moços, sem temer,

que fui sempre tão temido?

Quem aqui faz união

toma mui grande despejo.

Belferrão:

Oh grande admiração!

Vejo eu outro Anfatrião

ou é sonho isto que vejo?

Sósia:

¿No miráis la encantación,

que aquele hizo a mi Señor?

El que sale, Belferrón,

es el cierto Anfatrión

qu'estotro es encantador.

Júpiter:

Sósia?

Sósia:

Mi Señor, ya vó.

Júpiter:

Patrão, por vós só espero.

Sósia:

¿Nó os lo diria yo,

que este era el verdadero,

y ese que allá queda, no?

Anfatrião:

Bargante, onde te vás?

Fazes teu senhor sandeu?

Pois espera, e levarás.

Júpiter:

Olá, tornai por detrás,

não deis no moço, que é meu.

Anfatrião:

Vosso?

Júpiter:

Meu.

Anfatrião:

Pode isto haver, que

outrem minhas cousas tome?

Vós galante haveis de ser,

o que me tomais o nome,

casa, moços e mulher.

Eu vos farei conhecer

com quem tendes esse trato.

Júpiter:

Sósia?

Sósia:

Señor.

Júpiter:

Vai dizer

que aparelhem de comer,

enquanto este doudo mato.

Belferrão:

Oh Senhor, não seja assim,

haja em vós concerto algum!

E senão, pois aqui vim,

farei que só tome em mim

os golpes de cada um.

Júpiter:

Patrão, vossa boa estrela

me fará deixar com vida

quem me não merece tê la.

Anfatrião:

Não na tenho eu merecida,

pois que vos deixo com ela.

Belferrão:

O homem que for sesudo,

nüa tão grande questão

há de tomar por escudo

a justiça e a razão,

que estas armas vencem tudo.

E pois nossa natureza

muitos homens faz iguais,

dê qualquer de vós sinais

de quem é, pera certeza

da forma que ambos mostrais.

Júpiter:

Sou contente de mostrar

pelos sinais que vos dou,

que são este sem faltar.

Anfatrião:

Que sinais podeis vós dar,

pera que sejais quem sou?

Júpiter:

Estes, que logo vereis

se são vãos, se de raiz.

Patrão, vós sede juiz,

que vós logo enxergareis

qual mais verdade vos diz.

Belferrão:

Eu não sinto onde consista

a cura desta doença,

que há tão pouca diferença,

que aquele em que ponho a vista

por esse dou a sentença.

Mas, Senhor, vós que ordenastes

que o juiz disto fosse eu,

quando se a batalha deu,

dizei: que me encomendastes

que ficasse a cargo meu?

Júpiter:

Dei vos cargo, que estivesse

toda armada a bom recado,

e se mel nos sucedesse,

que pera os vivos houvesse

o refúgio aparelhado.

Belferrão:

Ora vós quantos dobrões

esse dia m'entregastes?

Anfatrião:

Três mil; e vós os contastes.

Belferrão:

Ambos sais Anfatriões

pelos sinais que mostrastes.

Júpiter:

Pera ser mais conhecida

a tenção deste sandeu,

vede est'outro sinal meu,

que é neste braço a ferida

que me el Rei Terela deu.

Belferrão:

Mostrai vós, Senhor, também.

Anfatrião:

Aqui o podeis olhar.

Belferrão:

Oh cousa pera espantar!

Que ambos a ferida tem

dum tamanho, em um lugar

Vem Sósia

Sósia:

Dice mi Señora Almena

que no se há asi de estar

con un bovo a razonar,

que se te enfría la cena.

Júpiter:

Belferrão, vamos cear.

Anfatrião:

Belferrão, não me leixeis.

Como? também me negais?

Júpiter:

Andai, não vos detenhais,

vamos comer, se quereis,

não ouçais um doudo mais.

Anfatrião:

Ah maus! Assi me ordenais

ofensa tão mal olhada?

Eu farei, se me esperais,

com que todos conheçais

os fios da minha espada.

Júpiter:

As portas prestes fechemos,

não entre este doudo cá.

Sósia:

De fuera se dormirá:

entre tanto que cenemos,

puede pasearse allá.

Vão se dentro e fica Anfatrião só e diz,

Anfatrião:

Oh ira pera se não crer,

em que minh'alma se abrasa,

que me faz endoudecer,

e não me ajuda a romper

as paredes desta casa!

E porque não tenho eu

forças, que tudo destrua?

Pois que tanto a salvo seu,

outrem acho que possua

a milhor parte do meu,

eu irei hoje buscar

quem me ajude a vir queimar

toda esta casa sem pena,

donde veja arder Almena,

com quem a vejo enganar.

Vão se Anfatrião e vem Aurélio e um seu moço, e diz

Aurélio:

No hallo a mis males culpa,

pera que merezca pena

la causa que me condena.

Moço:

Essa está gentil desculpa

Pera hoje dar [a] Almena!

Tem no mandado chamar

e ele está tão descuidado!

Aurélio:

Moço, queres me matar?

Que desculpa posso eu dar

melhor que este meu cuidado?

Moço:

E não há mais que fazer?

Com isso a boca me tapa

pera mais nada dizer?

Aurélio:

Ora dá me cá essa capa,

e vamos ver o que quer.

Não trates de mais razão,

pois não há quem te resista,

que vejo outra novação!

Moço:

Que é?

Aurélio:

Ou me mente a vista,

ou eu vejo Anfatrião.

Moço:

Eu ouvi a Feliseo,

quando cá trouxe o recado,

como ele era chegado,

e quis me dizer que veio

do siso desconsertado.

Aurélio:

Isso quero eu saber,

pois que tal cousa se soa.

Senhor, pode se dizer

que a vinda seja mui boa?

Anfatrião:

Essa não pode ela ser.

Aurélio:

Porque não?

Anfatrião:

Porque é roubada

minha honra sem temor,

e minha casa tomada,

e vossa prima enganada

por um grande encantador.

Aurélio:

Isso é certo?

Anfatrião:

E manifesto:

e tudo tem já por seu

adúltero e desonesto.

Tem tomado o meu gesto,

e faz lhe crer que são eu.

Aurélio:

Contais um caso d'espanto;

e pois não podeis entrar,

defendei me por em tanto,

que eu hei lá de chegar

pera ver quem pode tanto.

Vai se Aurélio dentro e dia, Anfatrião

Anfatrião:

Se ver desonra tão crara

me não tivera o sentido

totalmente endoudecido,

que gravemente chorara ver

tão grande amor perdido!

E quando vejo a verdade

do nosso amor e amizade

desfeita com tanta mágoa,

enchem se me os olhos d'água,

e a alma de saudade.

Assi que quis minha estrela

pera nunca ser contente,

que agora, estando presente,

viva mais saudoso dela,

que quando dela era ausente!

Esta porta vejo abrir

com ímpeto demasiado.

Que poderei presumir,

que vejo Aurélio sair,

como homem desatinado?

Vem Aurélio e Belferrão e diz Aurélio

Aurélio:

Oh estranha novidade!

Oh cousa pera não crer!

Belferrão:

Venho cego de verdade,

que não puderam sofrer

meus olhos a claridade. claridade.

Sósia:

Oh triste, que vengo ciego

com rayos y con visiones!

Y destas encantaciones,

si nuestra casa arde en fuego,

han se de arder mais colchones.

Aurélio:

Vamos a Anfatrião contar lhe cousas tamanhas.

Anfatrião:

Que vai lá? que cousas vão?

Aurélio:

Maravilhas tão estranhas,

que me treme o coração.

Porque aquele homem, que assi

tantos enganos teceu,

como era cousa do céu,

tanto que apareci,

logo desapareceu.

E em desaparecendo

com ruído grande e horrendo,

toda a casa alumiou,

e de arte nos inflamou,

que nos vimos acolhendo

do raio que nos cegou.

Estes acontecimentos

não são de humana pessoa.

Vós ouvis a voz que soa?

Escutai, estai atentos;

vejamos o que pregoa:

Voz de Júpiter, de dentro

Júpiter:

Anfatrião, que em teus dias

vês tamanhas estranhezas,

não te espantem fantesias,

que às vezes grandes tristezas

parem grandes alegrias.

Júpiter são, manifesto

nas obras de admiração

que por mim causadas são:

quis me vestir em teu gesto,

por honrar tua geração.

Tua mulher parirá

um filho de mi gerado,

que Hércules se chamará,

o mais valente e esforçado,

que no mundo se achará.

Com este, teus sucessores

se honrarão de serem teus,

e dar lhe hão os escritores,

por doze trabalhos seus,

doze milhões de louvores.

[E] dessa ilustre fadiga

colherás mui rico fruito:

enfim, a razão me obriga

que tão pouco dele diga,

porque o tempo dirá muito.

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Índice

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Auto chamado de FILODEMO

feito por Luís de Camões, em que entram as figuras seguintes: Filodemo, Vilardo, seu moço, Dionisa, Solina, sua moça, Venadoro, monteiro, um pastor Doriano. amigo de Filodemo, um Bobo, filho do pastor, Florimena, pastora, Dom Lusidardo, pai de Venadoro, três Pastores bailando, Doloroso, amigo de Vilardo.

Argumento do Auto

Um fidalgo português, que a caso andava nos Reinos de Dinamarca, como por largos amores e maiores serviços tivesse alcançado o amor de üa filha del Rei, foi lhe necessário fugir com ela em üa galé, por quanto havia dias que a tinha prenhe; e de feito, sendo chegados à costa de Espanha, onde ele era Senhor de grande património, armou-se-lhe grande tromenta, que, sem nenhum remédio dando a galé à costa, se perderam todos miseravelmente, senão a Princesa, que em üa tábua foi à praia; a qual, como chegasse o tempo de seu parto, junto de üa fonte pariu duas crianças, macho e fêmea; e não tardou muito que um pastor castelhano, que naquelas partes morava, ouvindo os tenros gritos dos meninos, Ihe acudiu a tempo que a mãe já tinha espirado. Crecidas, enfim, as crianças debaixo da humanidade e criação daquele Pastor, o macho, que Filodemo se chamou à vontade de quem os bautizara, levado da natural inclinação, deixando o campo, se foi pera a Cidade, aonde por músico e discreto valeu muito em casa de Dom Lusidardo, irmão de seu Pai, a quem muitos anos serviu sem saber o parentesco que entre ambos havia. E como de seu Pai não tivesse herdado mais que os altos espritos, namorou se de Dionisa, filha de seu Senhor e Tio, que, incitada ao que por suas obras e boas partes merecia, ou porque elas nada enjeitam, Ihe não queria mal. Aconteceu mais que Venadoro, filho de Dom Lusidardo, mancebo fragueiro e muito dado ao exercício da caça, andando um dia no campo após um cervo, se perdeu dos seus; e indo dar em üa fonte, onde estava Florimena, irmã de Filodemo, que assim Ihe puseram o nome, enchendo üa talha de água, se perdeu de amores por ela, que se não soube dar a conselho, nem partir se donde ela estava, até que seu Pai o não foi buscar. O qual, informado pelo pastor que a criara (que era homem sábio na arte mágica) de como a achara e como a criara, não teve por mal de casar a Filodemo com Dionisa, sua filha, e prima de Filodemo, e a Venadoro, seu filho, com Florimena, sua sobrinha, irmã de Filodemo, pastor, e também pela muita renda que tinha que de seu Pai ficara, de que eles eram verdadeiros herdeiros. E das mais particularidades da Comédia, fará menção o Auto, que é, o seguinte:

Entra logo Filodemo e um seu moço Vilardo

Filodemo:

[pic]

oço Vilardo?

Vilardo, Moço:

Ei lo vai.

Filodemo:

Falai eramá, falai,

e sai cá pera a sala.

O vilão como se cala!

Moço:

Pois, Senhor, saio a meu pai,

que quando dorme não fala.

Filodemo:

Trazei cá üa cadeira.

Ouvis, vilão?

Moço:

Senhor, sim.

Se m'ela não traz a mim,

vejo lh'eu

ruim maneira.

Filodemo:

Acabai, vilão ruim.

Que moço pera servir

quem tem as tristezas minhas!

Quem pudesse assi dormir!

Moço:

Senhor, nestas menhãzinhas

não há i senão cair:

por demais é trabalhar,

qu'este sono se me ausente.

Filodemo:

Porquê ?

Moço:

Porque há de assentar

que se não for com pão quente,

não há de desaferrar.

Filodemo:

Ora i pelo que vos mando,

vilão feito de formento.

Triste do que vive amando

sem ter outro mantimento,

com qu'estê fantesiando!

Só üa cousa me desculpa

deste cuidado que sigo:

ser de tamanho perigo,

que cuido que a mesma culpa

me fica sendo castigo.

Vem o moço, e assenta se na cadeira

Filodemo, e diz, avante

[Filodemo:]

Ora quero praticar

só comigo um pouco aqui,

que despois que me perdi,

desejo de me tomar

estreita conta de mi.

Vai pera fora, Vilardo.

Torna cá: vai me saber

se se quer já lá erguer

o senhor Dom Lusidardo,

e vem mo logo dizer.

(Vai se o Moço:)

Ora bem, minha ousadia!

Sem asas, pouco segura,

quem vos deu tanta valia,

que subais a fantesia

onde não sobe ventura?

Por ventura eu não naci

no mato, sem mais valer

qu'o gado ao pasto trazer?

Pois donde me veio a mi

saber me tão bem perder?

Eu , nacido antre pastares

fui trazido dos currais,

e d' antre meus naturais

pera casa dos Senhores,

donde vima valer mais .

Agora logo tão cedo

quis mostrar a condição

de rústico e de vilão!

Dando me ventura o dedo,

lhe quero tomar a mão!

Mas oh! qu'isto não é assi,

nem são vilãos meus cuidados,

como eu deles entendi;

mas antes, de sublimados

os não posso crer de mi.

Porque como hei eu de crer

que me faça minha estrela

tão alta pena sofrer,

que somente pola ter

mereço a glória dela,

senão se amor, d'atentado,

porque me não queixe dele,

tem por ventura ordenado

que mereça o meu cuidado,

só por ter cuidado nele ?

Vem o moço e diz:

O senhor Dom Lusidardo

dorme com todo contento,

e ele com o pensamento

quer estar fazendo alardo

de castelinhos de vento

Pois tão cedo se vestiu,

com seu dano se conforme,

pesar de quem me pariu,

ainda o sol não saiu,

se vem à mão, também dorme.

Ele quer se levantar

assi pela menhãzinha?

Pois quero o desenganar:

que «por muito madrugar

não amanhece mais asinha».

Filodemo:

Traze me a viola cá.

Moço:

Voto a tal que me vou rindo.

Senhor, também dormirá.

Filodemo:

Traze, moço.

Moço:

Sim, virá,

se não estiver dormindo.

Filodemo:

Ora i polo que vos mando:

não gracejeis.

Eis me vou:

pois, posar de São Fernando,

por ventura sou eu grou?

Sempre hei d' estar vigiando?

Vai se o moço e diz

Filodemo:

Ah Senhora, que podeis

ser remédio do que peno;

quão mal ora cuidareis

que viveis e que cabeis

num coração tão pequeno!

Se vos fosse apresentado

este tromento em que vivo

creríeis que foi ousado

em este vosso criado

tornar se vosso catigo.

Vem o moço e traz a viola

Moço:

Ora eu creio, se é verdade

que estou de todo acordado,

que meu amo é namorado;

e a mim dá me na vontade

que anda um pouco abalado.

E se tal é, eu daria

por conhecer a donzela

a ração d'hoje este dia,

porque a desenganaria,

somente por ter dó dela.

Havia lhe de perguntar:

Senhora, de que comeis?

se comeis d'ouvir cantar,

de falar bem, de trovar,

em boa hora casareis.

Porém se vós comeis pão,

tende, Senhora, resguardo,

que eis aqui está Vilardo,

que é um camaleão;

por isso vós fazei fardo.

E se vós sois das gamenhas

e houverdes d'atentar

por mais que por manducar,

«Mi cama son duras penas,

mi dormir siempre velar».

A viola, Senhor, vem

sem primas, nem derradeiras.

Mas sabe o que lhe convém?

Se quer, Senhor, tanger bem,

há de haver mister terceiras.

E se estas cantigas vossas

não forem pera escutar,

e não quiserdes espirar,

há mister cordas mais grossas,

porque não possam quebrar.

Filodemo:

Vai pera fora.

Moço:

Já venho.

Filodemo:

Qu'eu só desta fantesia

me sostenho e me mantenho.

Moço:

Camanha vista que tenho,

que vejo à estrela no dia!

Vai se Vilardo e canta Filodemo:

«Adó sube el pensamiento,

sería una gloria inmensa

si allá fuese quien lo piensa».

Fala:

Qual espírito divino

me fará a mim sabedor,

pois que tão alto imagino,

deste meu mal, se é amor,

se por dita desatino?

Se é amor, diga me qual

pode ser seu fundamento,

ou qual é seu natural

ou porque empregou tão mal

um tão alto pensamento.

Se é doudice, como em tudo

a vida me abrasa e queima,

ou quem viu num peito rudo

desatino tão sesudo,

que toma tão doce teima!

Ah senhora Dionisa,

onde a natureza humana

se mostrou tão soberana,

que o que vós valeis me avisa,

e o qu'eu peno m'engana.

Vem Solina, moça, e diz

Solina:

Tomado estais vós agora,

Senhor, com o furto nas mãos.

Filodemo:

Solina, minha Senhora,

quantos pensamentos vãos

me ouviries lançar fora!

Solina:

Oh senhor, e quão bem que soa

o tanger de quando em quando!

Bem sei eu üa pessoa,

que há bem üa hora boa,

que vos está escutando.

Filodemo:

Por vida vossa, zombais?

Quem é? quereis mo dizer?

Solina:

Não no haveis vós de saber,

bofé, se me não peitais.

Filodemo:

Dar vos hei quanto tiver,

pera tais tempos como estes.

Quem tivera üa voz dos Céus,

pois escutar me quisestes.

Solina:

Assi pareça eu a Deus,

como lhe vós parecestes.

Filodemo:

A senhora Dionisa

quer se já alevantar?

Solina:

Assi me veja eu casar,

como despida em camisa

se ergueu por vos escutar.

Filodemo:

Em camisa levantada!

Tão ditosa é minha estrela,

ou mo dizeis refalsada?

Solina:

Pois bem me defendeu ela

que vos não dissesse nada.

Filodemo:

Se pena de tantos anos

merecer algum favor,

pera curar de meus danos

fartai me desses enganos,

que não quero mais do amor.

Solina:

Agora quero eu falar

neste caso com mais tento;

quero agora perguntar:

e de siso is vós tomar

um tão alto pensamento?

Certo é muita maravilha,

se vós isto não sentis

bem. Vós como não caís

que Dionisa que é filha

do Senhor a quem servis?

Como? Vós não atentais

dos grandes de que é pedida?

Peço vos que me digais

qual é o fim que esperais

neste caso, em vossa vida.

Que razão boa, ou que cor

podeis dar a esta afeição?

Dizei me vossa tenção.

Filodemo:

Onde vistes vós amor

que se guie por razão?

e quereis saber de mim

que fim, ou de que teor

pretendo em minha dor,

se eu neste amor quero fim,

sem fim me atromente amor.

Mas com glória fingida

pretendeis de m'enganar,

por assi mal me tratar:

assi que me dais a vida

somente por me matar.

Solina:

Eu vos digo a verdade.

Filodemo:

Da verdade fujo eu,

porque só amor me deu

pena de tal calidade,

que assaz me custa do meu.

Solina:

Folgo muito de saber

que sais amante tão fino.

Filodemo:

Pois mais vos quero dizer,

que às vezes no que imagino

não ouso de m'estender.

Na hora que imaginei

na causa de meu tormento,

tamanha glória levei,

que por onças desejei

de lograr o pensamento.

Solina:

Se me vós a mim jurardes

de me terdes em segredo

üa causa... mas hei medo

de logo tudo cantardes.

Filodemo:

A quem?

Solina:

Àquele enxovedo.

Filodemo:

Qual ?

Solina:

Aquele mau pesar,

que ontem convosco ia.

Quem se fosse em vós fiar!

O que vos disse o outro dia,

tudo lhe fostes contar.

Filodemo:

Que lhe contei?

Solina:

Já lhe esquece?

Filodemo:

Por certo qu'estou remoto.

Solina:

Hi, que sois um cesto roto.

Filodemo:

Esse homem tudo merece.

Solina:

Vós sois muito seu devoto.

Filodemo:

Senhora, não hajais medo;

contai m'isso, e far m'hei mudo.

Solina:

Senhor, o homem sesudo,

se em tais cousas tem segredo,

saiba que alcançará tudo,

A senhora Dionisa

crede que mal vos não quer.

Não vos posso mais dizer.

Isto tende por baliza

com que vos saibais reger,

que em mulheres, se atentais,

o querer está visível:

e se bem vos governais,

não desespereis do mais,

porque, enfim, tudo é possível.

Filodemo:

Senhora, pode isso ser?

Solina:

Si, que tudo o mundo tem,

olhai não no saiba alguém.

Filodemo:

E que maneira hei de ter

pera em mim ter tanto bem?

Solina:

Vós, Senhor, o sabereis;

e já que vos descobri

tamanho segredo aqui,

üa mercê me fareis

em que me vai muito a mi.

Filodemo:

Senhora, a tudo me obrigo

quanto for em minha mão.

Solina:

Pois dizei a vosso amigo

que não gaste tempo em vão,

nem queira amores comigo,

porque eu tenho parentes,

que me podem bem casar;

e mais que não quero andar

agora em boca de gentes

a quem s'ele vai gabar.

Filodemo:

Senhora, mal conheceis

o que vos quer Duriano;

sabei, se o não sabeis,

que em sua alma sente o dano

do pouco que lhe quereis;

e que outra cousa não quer,

que ter vos sempre servida.

Solina:

Pola sua negra vida,

isso havia eu bem mister.

Filodemo:

Vós sois desagradecida?

Solina:

Si, que tudo são enganos

em tudo quanto falais.

Filodemo:

Não quero que me creais:

crede o tempo, que há dous anos

que vos serve, e inda mais.

Solina:

Senhor, bem sei que m'engano;

mas a vós, como a irmão,

descubro este coração:

sabei que a Duriano

tenho sobeja afeição.

Olhai que lhe não digais

isto que vos aqui digo.

Filodemo:

Senhora, mal me tratais:

inda que sou seu amigo,

sabei que vosso sou mais.

Solina:

E já que vos confessei

aquestas fraquezas minhas,

que há tanto que de mim sei,

fazei vós nas causas minhas

o qu'eu nas vossas farei.

Filodemo:

Vós enxergareis, Senhora,

o qu'eu por vós sei fazer.

Solina:

Como me deixo esquecer!

Aqui estivera agora

falando té anoutecer.

Vou me, e olhai quanto val

o que passou antre nós.

Filodemo:

E porque vos ides vós?

Solina:

Porque parece já mal

estar aqui ambos sós.

E mais vou vestir agora

a quem vos dá tão má vida.

Ficai vos, Senhor, embora.

Filodemo:

E porque vos ides vós?

Solina:

Porque parece já mal

estar aqui ambos sós.

E mais vou vestir agora

a quem vos dá tão má vida.

Ficai vos, Senhor, embora.

Filodemo:

Nessa ide vós, Senhora,

que já vos tenho entendida.

Vai se Solina e diz Filodemo

Filodemo:

Ora se pode isto ser

do qu' esta moça me avisa,

que a senhora Dionisa,

por me ouvir, se fosse erguer

da sua cama em camisa!

E diz que mal me não quer,

Não queria maior glória;

mas o que mais posso crer,

que nem pera lhe esquecer

lhe passo pela memória.

Mas ter Solina também

em Duriano o intento

é levar me a lenha o vento,

porque s’ela lhe quer bem,

pera bem vai meu tormento.

Mas foi se este homem perder

neste tempo, de maneira,

por üa mulher solteira,

que não me atrevo a fazer

que um pequeno bem lhe queira.

Porém far lh’ei um partido,

porqu'ela não se querele,

que se mostre seu perdido,

inda que seja fingido,

como lh' outrem faz a ele.

E já que me satisfaz,

e tanto nisto se alcança,

dê lhe fingida esperança:

do mal que lhe outrem faz,

tomará nela vingança.

Vai se Filodemo e vem Vilardo

Moço:

Ora boa está a cilada

de meu amo com sua ama,

que se levantou da cama

por ouvi lo! Está tomada,

assi a tome má trama.

E mais crede que quem canta

ainda descantará.

E quem do leito onde está,

por ouvi lo se levanta,

mor desatino fará.

Quem havia de cuidar

que dama formosa e bela

saltasse o demónio nela,

pera a fazer namorar

de quem não é igual dela?

Que me dizeis a Solina?

como se faz Celestina,

que por não lhe haver enveja

também pera si deseja

o que o desejo lh' ensina!

Crede que se me alvoroço,

que a hei de tomar por dama;

e não será grão destroço,

pois o amo quer a ama,

que à moça queira o moço.

Vou me, que vejo lá vir

Venadoro, apercebido

pera a caça se partir;

e voto a tal, que é partido

pera ver e pera ouvir.

Que é razão justa e rasa

que seu folgar se desconte

em quem arde como brasa;

que se vai caçar ao monte,

fique outrem caçando em casa.

Vai se Vilardo e entra Venadoro

Venadoro:

Aprovada antigamente

foi, e muito de louvar,

a ocupação do caçar,

e da mais antiga gente

havida por singular.

É o mais contrário ofício

que tem a ociosidade,

mãe de todo o bruto vício.

Por este limpo exercício

se reserva a castidade.

Este dos grandes Senhores

foi sempre muito estimado;

e é grande parte do estado

ter monteiros, caçadores,

como ofício que é prezado.

Pois logo por que razão

a meu pai há de pesar

de me ver ir a caçar?

E tão boa ocupação

que mal me pode causar?

Vem o Monteiro e diz

Monteiro:

Senhor, venho alvoroçado,

e mais com muita razão.

Venadoro:

Como assi?

Monteiro:

Que me é chegado

mais estremado cão,

que nunca caçou veado.

Vejamos que me há de dar.

Venadoro:

Dar vos hei quanto tiver;

mas há-se d'exprimentar,

pera se poder julgar

as manhas que pode ter.

Monteiro:

Pode assentar qu'este cão,

que tem das manhas a chave:

bem feito em admiração,

pois em ligeiro é üa ave,

em cometer, um leão.

Com porcos, maravilhoso,

com veados, estrumado.

Sobeja lhe o ser manhoso.

Venadoro:

Pois eu ando desejoso

l'irmos matar um veado.

Monteiro:

Pois, Senhor, como não vai?

Venadoro:

Vamos, e vós mui ligeiro

o necessário ordenai:

qu' eu quero chegar primeiro

pedir licença a meu pai.

Vão se e vem Duriano e diz

Duriano:

Pois não creio eu em Sam Pisco do pau, se hei de pôr pé em ramo verde, té lhe dar trezentos açoutes. Despois te ter gastado perto de trezentos cruzados com ela, porque logo lhe não mandei o cetim pera as mangas, fez de mim mangas ao demo. Não desejo eu de saber senão qual é o galante que me sucedeu; que se vo lo eu colho a balravento, eu lhe farei botar ao mar quantas esperanças lhe a fortuna tem cortado à minha custa. Ora tenho assentado, que amor destas anda co dinheiro, como a maré co a lua: bolsa cheia, amor em águas vivas; mas se vaza, vereis espraiar este engano, e deixar em seco quantos gostos andavam como o peixe n'água.

Entra Filodemo e diz

Filodemo:

Olá, cá sois vós ? Pois agora ia eu bater essas montas, para ver se me saíeis de algüa, porque quem vos quiser achar, é necessário que vos tire como üa alma.

Duriano:

Oh maravilhosa pessoa! Vós é certo que vos prezais de mais certo em casa, que pinheiro em porta de taverna; e trazeis, se vem à mão, os pensamentos cos focinhos quebrados de caírem onde vós sabeis. Pois sabeis, senhor Filodemo, quais são os que me matam: uns muito bem almofadados que, com dois ceitis, fendem a anca pelo meio, e se prezam de brandos na conversação, e de falarem pouco e sempre consigo, dizendo que não darão meia hora de triste pelo tesouro de Veneza; e gabam mais Garcilaso que Boscão; e ambos lhe saem das mãos virgens; e tudo isto por vos meterem em consciência que se não achou pera mais o Grão Capitão Gonçalo Fernandes. Ora, pois, desengano vos que a mor raparia do mundo foram altos espritos e eu não trocarei duas pescoçadas da minha, etc., despois de ter feito a trosquia a um frasco, e falar me por tu e fingir se me bêbada, porque o não pareça, por quantos Sonetos estão escritos polos troncos das árvores do Vale Luso, nem por quantas madamas Lauras vós idolatrais.

Filodemo:

Tá, tá! não vades avante, que vos perdeis.

Duriano:

Aposto que adivinho o que quereis fizer ?

Filodemo:

Quê ?

Duriano:

Que se me não acudíeis com batel, que me ia meus passos contados a herege de amor.

Filodemo:

Oh que certeza tamanho, o muito pecador não se conhecer por esse!

Duriano:

Mas oh que certeza maior, de muito enganado, esperar em sua opinião! Mas tornando a nosso porpósito, que é o pera que me buscais, que se é causa de vossa saúde, tudo farei?

Filodemo:

Como templará el destemplado' Quem poderá dar o que não tem, senhor Duriano ? Eu quero vos deixar comer tudo; não pode ser que a natureza não faça em vós o que a razão não pode; o caso é este, dir vo lo hei; porém é necessário que primeiro vos limpeis como marmelo, e que ajunteis para um canto de casa todos esses maus pensamentos, porque, segundo andais mal avinhado, danareis tudo aquilo que agora lançarem em vós. Já vos dei conta da pouca que tenha com toda a outra cousa que não é servir a senhora Dionisa; e posto que a desigualdade dos estados o não consinta eu não pertendo dela mais que o não pretender dela nada, porque o que lhe quero consigo mesmo se paga, que este meu amor é como a ave Fénix, que de si só nace, e não de outro nenhum interesse.

Duriano:

Bem praticada está isso, mas dias há que eu não creio em sonhos.

Filodemo:

Porquê ?

Duriano:

Eu vo lo direi: porque todos vós outros, os que amais pela passiva, dizei' que o amor fino como melão, não há de querer mais de sua dama que amá la; e virá logo o vosso Petrarca, e vosso Petro Bembo, ateado a trezentos Platões, mais çafado que as luvas d' um pajem d'arte, mostrando razões verisímeis e aparentes, para não quererdes mais de vossa dama que vê la; e ao mais até falar com ela. Pois inda acha reis outros esquadrinhadores d' amor mais especulativos, que defenderão . justa por não emprenhar o desejo e eu, faço vos voto solene, se a qual quer destes lhe entregassem sua dama tosada e aparelhada entre dous pratos eu fico que não ficasse pedra sobre pedra, e eu já de mim vos sei confessar que os meus amores hão de se pela activa, e que ela há de ser a paciente e eu agente, porque esta é a verdade mas contudo, vá v. m. co a história por diante.

Filodemo:

Vou, porque vos confesso que neste aso há muita dúvida entre os Doutores: assi que vos conto que, estando esta noite com a viola na mão, bem trinta ou quarenta léguas pelo sertão dentro de um pensamento, senso quando me tomou à treição Solina; e antre muitas palavras que tivemos me descobriu que a senhora Dionisa se levantara da cama por me ouvir, e que estivera pela greta da porta espreitando quase hora e meia.

Duriano:

Cobras e tostões, sinal de terra; pois inda vos não fazia tanto avante.

Filodemo:

Finalmente, veio me a descobrir, que me não queria mal, que foi para mim D maior bem do mundo; que eu estava já concertado com minha pena a sofrer por sua causa, e não tenho agora sujeito pera tamanho bem.

Duriano:

Grande parte da saúde é pera o doente trabalhar por ser são. Se vos leixardes manquecer na estrebaria com essas finezas de namorado, nunca chegareis onde chegou Rui de Sande. Por isso boas esperanças ao leme, que eu vos faço bom que às duas enxadadas acheis água. E que mais passastes?

Filodemo:

A maior graça do mundo: veio me descobrir que era perdida por vós; e assi me quis dar a entender que faria por mim tudo o que lhe vós mereceis.

Duriano:

Santa Maria! Quantos dias há que nos olhos lhe vejo marejar esse amor Porque o fechar de janelas que essa mulher me faz, e outros enojos que dizer poderia, no son sino corredores del amor, e a cilada em que ela quer que eu caia.

Filodemo:

Nem eu não quero que lho queirais mas que lhe façais crer que lho quereis

Duriano:

Não... cant' a dessa maneira me ofereço a romper meia dúzia de serviços alinhavados às panderetas, que bastem assemtar me em soldo pelo mais fiel amante que nunca calçou esporas; e se isto não bastar, salgan las palabras mas sangrientas del corazón, entoadas de feição, que digam que sou um Mancias, e pior ainda.

Filodemo:

Ora dais me a vida. Vamos ver se por ventura aparece, porque Venadoro, irmão da senhora Dionisia, é fora à casca, e sem ele fica a casa despejada; e o senhor Dom Lusidardo anda no pomar todo o dia; que todo o seu passatempo é enxertar e dispor, e outros exercícios d'agricultura, naturais a velhos; e pois o tempo nos vem à medida do desejo, vamo nos lá; e se lhe puderdes falar, fazei de vós mil manjares, porque lhe façais crer que sais mais esperdiçado d'amor que um Brás Quadrado.

Duriano:

Ora vamos, que agora estou de vez, e cuido d'hoje fazer mil maravilhas, com que vosso feito venha à luz.

Vão se e entra Dionisa e Salina, e diz,

Dionisa:

Solina, mana.

Solina:

Senhora.

Dionisa:

Trazei me cá a almofada, que a casa está despejada, e esta varanda cá fora está milhor assombrada. Trazei a vossa também pera estarmos cá lavrando; enquanto meu pai não vem, estaremos praticando, sem nos estorvar ninguém.

Este é o mesmo lugar onde estava o bem logrado, tal que de muito enlevado se esquecia do cantar por se enlevar no cuidado

Dionisa:

Vós, mana, sais mui ruim!

Logo lhe fostes contar

que me ergui polo escutar.

Solina:

Eu o disse?

Dionisa:

Eu não no ouvi?

como mo quereis negar?

Solina:

E pois isso que releva?

Que se perde nisso agora?

Dionisa:

Que se perde? Assi, Senhora,

folgareis vós que se atreva

a contá lo lá por fora?

Que se lhe meta em cabeça

alguma párvoa tenção?

Que faça, se vem à mão,

Algüa cousa que pareça?

Solina:

Senhora, não tem razão.

Dionisa:

Eu sei mui bem atentar

do que se há de ter receio,

e do que é pera estimar.

Solina:

«Não é o demo tão feio

como alguém o quer pintar»;

e não se espera isso dele,

que não é ora tão moço.

E vossa mercê assele que

qualquer segredo nele

é como üa pedra em poço.

Dionisa:

E eu que segredo quero

com um criado de meu pai?

Solina:

E vós, mana, fazeis fera:

ao diante vos espero,

se adiante o caso vai.

Dionisa:

O madraço, quem no vir

falar de siso co ela...

Então vós, gentil donzela,

folgais muito de o ouvir?

Solina:

Si, porque me fala nela.

eu como ouço falar

nela, como quem não sente,

folgo de o escutar,

só pera lhe vir contar

o que dela diz a gente.

Que eu não quero nada dele.

E mais, porque está falando?

Não m' esteve ela rogando

que fosse falar com ele?

Dionisa:

Dissevo lo assi zombando.

Vós logo tomais em grosso

tudo quanto me escutais.

Parvo! Que vê lo não posso.

Solina:

inda isto há de vir a mais.

Pois que tal ódio lhe tem,

falemos, Senhora, em al;

mas eu digo que ninguém

merece por querer bem

que a quem lho quer, queira mal.

Dionisa:

Deixai o vós doudejer.

Se meu pai ou meu irmão,

o vierem a aventar,

não há ele de folgar.

Solina:

Deus meterá nisso a mão.

Dionisa:

Ora i polas almofadas,

que quero um pouco lavrar,

por ter em que me ocupar,

que em cousas tão mal olhadas

não se há o tempo de gastar.

Vai Solina dizendo:

Que cousas somos mulheres!

Como somos perigosas!

E mais estas tão viçosas

que estão a boca que queres?

e adoecem de mimosas!

Se eu não caminho agora

a seu desejo e vontade,

como faz esta Senhora,

fazem se logo nessa hora

na volta da honestidade

Quem a vira o outro dia

um poucochinho agastada,

dar no chão co almofada,

e enlevar a fantesia,

toda noutra trasformada!

Outro dia lhe ouvirão

lançar suspiros a molhos,

e com a imaginação

cair lhe agulha da mão,

e as lágrimas dos olhos.

Ouvir lh' heis à derradeira

a ventura maldizer,

porque a foi fazer mulher.

Então diz que quer ser freira

e não se sabe entender.

Então gaba o de discreto,

de músico e bem disposto,

de bom corpo e de bom rosto,

quant'a então eu vos prometo

que não tem dele desgosto.

Despois, se vem atentar,

diz que é muito malfeito

amar homem deste jeito,

e que não pode alcançar

pôr seu desejo em efeito.

Logo se faz tão Senhora,

logo lhe ameaça a vida,

logo se mostra nessa hora

muito segura de fora,

de dentro está sentida.

Bofé, segundo vou vendo,

se esta postema vier,

como eu suspeito, a crecer,

muito há que dela entendo

ao fim que pode vir ter.

Vai se Solina e entra Duriano

e Filodemo, e diz,

Duriano:

Ora deixai a ir,

que à vinda lhe falaremos;

entretanto, cuidarei

o como lei de fazer,

que não há mor trabalho

para üa pessoa que fingir se.

Filodemo:

Dar lhe heis esta carta,

e fazei muito co ela

que a dê à Senhora Dionisia,

que e vai nisso muito.

Duriano:

Por mulher de tão bom engenho

a tendes?

Filodemo:

E porque me perguntais isso?

Duriano:

Porque ainda ontem

entrou pelo A, B, C,

e já quereis que leia

carta mandadeira;

fá la heis cedo

escrever matéria junta.

Filodemo:

Não lhe digais que vos disse nada,

porque cuidará

que por isso lhe falais;

mas fingi que de puro amor

a andais buscando a tempos

que façam à vossa tenção.

Duriano:

Deixai me vós a mi com o caso,

que eu sei milhor as pancadas

a estes vintes que vós;

e eu vo la farei hoje

a nós sem Rafas;

e vós entretanto

acolhei vos a sagrado,

porque ei la lá vem.

Filodemo:

Olhai lá, fazei que a não vedes,

fingi que falais convosco;

que faz nosso caso.

Duriano:

Dizeis bem.

Yo sigo tristeza,

remedio de tristes:

la terrible pena mia la

espero remediar.

Pois não devia as de ser,

pelos santos Evangelhos;

mas muitos dias há

que eu sei que o amor

e os cangrejos andam às vessas.

Ora, enfim, las tristezas

no me espanten,

porque suelen aflojar

cuanto mas duelen.

Entra Solina e vai se Filodemo e dia,

Solina co a almofada

Solina:

Aqui anda passeando

Duriano, e só consigo

pensamentos praticando.

Daqui posso estar notando

com quem sonha, se é comigo.

Duriano:

Ah quão longe estará agora

minha Senhora Solina

de saber que estou bem fora

de ter outra por senhora,

segundo o amor determina!

Porém se determinasse

minha bem aventurança

que de meu mal lhe pesasse,

atá que nela tomasse

do que lhe quero vingança!...

Solina:

Comigo sonha por certo.

Ora quero me mostrar,

assi como por acerto.

Chegar me hei mais ao perto,

por ver se me quer falar.

Sempre esta casa há d'estar

acompanhada de gente,

que não possa homem passar*

Duriano:

treição vindes tomar

quem já feridas não sente?

Solina:

Logo me a mi parecia

que era ele o que passeava.

Duriano:

E eu mal adivinhava

que me viesse este dia,

que há tantos que desejava.

Se uns olhos por vos servir,

com o amor que vos conquista,

se atreveram a subir

os muros de vossa vista,

que culpa tem quem vos vir?

E se esta minha afeição,

que vos serve de giolhos,

não fez erro na tenção,

tomai vingança nos olhos,

e deixai o coração.

Solina:

Ora agora me vem riso.

Assi que vós sois, Senhor,

de siso meu servidor?

Duriano:

De siso não, porque o siso

de tem tirado o amor.

Porque o amor, se atentais,

num tão verdadeiro amante

não deixa siso bastante,

senão se siso chamais

a doudice tão galante.

Solina:

Como Deus está nos Céus,

que se é verdade o que temo,

que fez isto Filodemo.

Duriano:

Mas fê lo o demo, que Deus

não faz mal tanto em estremo.

Solina:

Bem. Vós, senhor Duriano,

porque zombareis de mim?

Duriano:

Eu zombo ?

Solina:

Eu não me engano.

Duriano:

S'eu zombo, inda em meu dano

vejais vós mui cedo a fim.

Mas vós, senhora Salina,

porque me querereis mal?

Solina:

Sou mofina.

Duriano:

Oh! real!

Assi que minha mofina

é minha imiga mortal.

Dias há qu' eu imagino

que em vos amar e servir

não há amador mais fino;

mas sinto que de mofino

me fino sem no sentir

Solina:

Bem derivais: quant'a assi

à popa o dito vos veio.

Duriano:

Vir me há de vós, porque creio

que vós falais dentro em mim,

como esprito em corpo alheio.

E assi que em estas piós

a cair, Senhora, vim,

bem parecerá antre nós,

pois vós andais dentro em mim,

que and'eu também dentro em vós.

Solina:

E bem! Que falar é esse?

Duriano:

Dentro na vossa alma, digo,

Lá andasse, e lá morresse!

E se isto mal vos parece,

dai me a morte por castigo.

Solina:

Ah mau! Como sois malvado!

Duriano:

as vós como sois malvada,

que de um pouco mais de nada

fazeis um homem armado,

como quem está sempre armada!

Dizei me, Solina mana

Solina:

Que é isso? Tirai lá a mão.

E vós sois mau cortesão.

Duriano:

O que vos quero m' engana,

mas que desejo, não.

Aqui não há senão paredes,

as quais não falam, nem vem.

Solina:

Está isso muito bem

Bem: e vós, Senhor, não vedes

que poderá vir alguém?

Duriano:

Que vos custam dous abraços?

Solina:

Não quero tantos despejos.

Duriano:

Pois que farão meus desejos,

que querem ter vos nos braços,

e dar vos trezentos beijos?

Solina:

Olhai que pouca vergonha!

I vos d'i, boca de praga.

Duriano:

Eu não sei certo a que ponha

mostrardes me a triaga,

e virdes me a dar peçonha.

Solina:

Ora ide rir à feira,

e não sejais dessa laia.

Duriano:

Se vedes minha canseira,

porque lhe não dais maneira?

Solina:

Que maneira?

Duriano:

A da saia.

Solina:

Por minha alma, [hei ]de vos

dar meia dúzia de porradas.

Duriano:

Oh que gostosas pancadas!

mui bem vos podeis vingar,

que em mim são bem empregadas.

Solina:

Ó diabo que o eu dou.

Como me doeu a mão!

Duriano:

Mostrai cá, minha afeição,

que essa dor me magoou

dentro no meu coração

Solina:

Ora i vos embora asinha.

Duriano:

Por amor de mi, Senhora,

não fareis uma cousinha?

Solina:

Digo que vades embora.

Que cousa?

Duriano:

Esta cartinha

Solina:

Que carta?

Duriano:

De Filodemo

Dionisa, vossa ama

Solina:

Dizei que tome outra dama,

dê os amores ao demo.

Duriano:

Não andemos pola rama,

Senhora, aqui para nós,

que sentis dela com ele?

Solina:

Grandes alforges sois vós!

Pois i lhe dizer que apele

Duriano:

Falai, que aqui estamos sós

Solina:

Qualquer honesta se abala,

como sabe que é querida

Ela é por ele perdida,

nunca noutra cousa fala.

Duriano:

Ora vou lhe dar a vida

Solina:

E eu não lhe disse já

quanta afeição lh' ela tem?

Duriano:

Não se fia de ninguém,

nem crê que para ele há

no mundo tamanho bem.

Solina:

Dir vos hia de mim lá

o que lh'eu disse zombando?

Duriano:

Não disse, por Sam Fernando!

Solina:

Ora ide vos.

Duriano:

Que me vá?

E mandais que torne? Quando?

Solina:

Quando eu cá vir lugar,

vo lo mandarei dizer.

Duriano:

Se o quiserdes buscar,

não vos deve de faltar,

se não faltar o querer.

Solina:

Não falta.

Duriano:

Dai me um abraço

Em sinal do que quereis.

Solina:

Tá, que o não levareis.

Duriano:

De quantos serviços faço

Nenhum pagar me quereis?

Solina:

Pagar vos hão algü' hora,

Que isso a mi também me toca;

as agora i vos embora

Duriano:

Essas mãos beijo, Senhora,

enquanto não posso a boca

Vai se Duriano e fala Solina com

Dionisa, que lhe traz a almofada,

e diz, Solina

Solina:

Já vossa mercê dirá

que estive muito tardando

Dionisa:

Bem vos detivestes lá.

Bofé, que estava cuidando

em não sei quê

Solina:

Que será?

Aqui somos. Quant' agora

está ela trasportada.

Dionisa:

Que rosnais vós lá, Senhora?

Solina:

Digo que tardei lá fora

em buscar esta almofada.

Qu'estava ela agora só

consigo fantesiando?

Dionisa:

Bofé, que estava cuidando

que é muito pera haver dó

da mulher que vive amando.

Que um homem pode passar

a vida mais ocupado:

com passear, com caçar,

com correr, com cavalgar,

forra parte do cuidado.

Mas a coitada

da mulher, sempre encerrada,

que não tem contentamento,

nem tem desenfadamento

mais que agulha e almofada!

Então isto vem parir

os grandes erros da gente;

em que já antigamente

foram mil vezes cair

princesas d'alta semente.

Lembra me que ouvi contar

de tantas afeiçoadas

em baixo e pobre lugar,

que as que agora vão errar

podem ficar desculpadas.

Solina:

Senhora, a muita afeição

nas Princesas d'alto estado

não é muita admiração,

que no sangue delicado

faz o amor mais impressão.

Mas deixando isto à parte,

se m'ela quiser peitar,

prometo de lhe mostrar

üa cousa muito d'arte,

que lá dentro fui achar.

Dionisa:

Que cousa?

Solina:

Cousa d'esprito.

Dionisa:

Algum pano de lavores?

Solina:

Inda ela não deu no fito.

Cartinha sem sobrescrito,

que parece ser d'amores.

Dionisa:

Essa é a boa ventura?

Solina:

Bofé, que mo pareceu.

Dionisa:

E essa donde naceu?

Solina:

No meu cesto dá costura;

não sei quem m'ali meteu.

Dionisa:

Mostrai ma, não hajais medo,

mana. Eu que vos descobri...

Solina:

E s'ela vem para mi,

logo quer ver meu segredo?

Não na veja: vá se di.

Ei la aí.

Dionisa:

Cuja será?

Solina:

Não sei certo cuja é.

Dionisa:

Si, sabeis.

Solina:

Não sei, bofé.

Dionisa:

Ora a carta mo dirá.

Solina:

Pois leia vossa mercê.

Abre Dionisa a carta e lê a

Carta:

Se pera merecer minha pena me não falta mais que viver contente dela, já logo ma podeis consentir, pois que de nenhüa outra cousa vivo triste, senão por não ser pera tão doce tristeza. Se tendes por ofensa cometer tamanha ousadia, por maior a devíeis ter, se a não cometesse, que amor acostumado é fazer os estremos às medidas das afeições, e as afeições às medidas da causa dele. Pois logo nem o meu amor pode ser pouco, nem fazer menos. Se este [não] bastar pera consentirdes em meu pensamento, baste pera me dardes o que pelo ter mereço; e senão muitas graças ao amor que me soube dar um cuidado, que com tê lo se paga o trabalho de sofrê lo.

Solina:

Quanta parvoíce diz!

Dionisa:

Ora muito boa está!

Como vós, mana, sois má!

Não sejais vós tão biliz,

que bem vos entendo já.

Cuja é?

Solina:

E eu que sei?

Dionisa:

Pois quem o sabe ?

Solina:

O demo.

Dionisa:

Certo que é de quem temo,

que os ditos que nela achei

são todos de Filodemo.

Este homem, que atrevimento

é este que foi tomar?

Qual será seu fundamento,

que mil vezes me faz dar

mil voltas ao pensamento?

Não entendo dele nada;

mas inda qu'isto é assi,

disso que dele entendi

me sinto tão alterada,

que me arreceio de mi.

Eu inda agora não creio

que é verdade este amor;

mas praza a Deus, se assi for,

que inda este meu receio

se não converta em temor.

Solina:

«Já vós jazedes,

pexes, nas redes».

Senhora, quem mais confia,

mais asinha a cair vem.

Natural é do querer bem,

que o amor n'alma se cria,

sem no sentir quem no tem.

Filodemo, no que ouvi,

tem lhe sobeja afeição;

e posto que o creia assi,

ou eu sonhei, ou ouvi,

que era d' alta geração.

Logo na filosomia,

nas manhas, artes e jeito,

mostra mui grande respeito;

nem tão alta fantesia

não se põe em baixo peito.

Dionisa:

Tudo isso cuido, e vi

mil vezes, miudamente;

mas estas mostras assim

são desculpas para mim

e não pera toda a gente.

Solina:

O seu moço vejo vir

a nós, seu passo contado;

este é muito pera ouvir,

que diz que me quer serviu

d' amores esperdiçado

Entra Vilardo e diz

Vilardo:

Senhora, o senhor seu Pai,

mesmo de vossa mercê,

já lá pera casa vai.

Por isso, Senhora, andai

que ele me mandou num pé,

e diz que fosse jantar

Vossa mercê mesmamente.

Solina:

E já veio do pomar?

Dionisa:

Oh quem pudera escusar

de comer, nem de ver gente!

Nenhüa cor de verdade

tenho do que m' ele manda.

Vilardo:

S' ela sem vontade anda,

eu lh' emprestarei vontade,

empreste m'ela a vianda.

Solina:

Vá, Senhora, por não dar

mais em que cuidar a gente

Dionisa:

Irei, mas não por jantar,

que quem vive descontente

mantém se de imaginar

Vilardo:

Pois também cá minhas dores

me não deixam comer pão,

nem come minha afeição

senão sopadas d'amores,

e mil postas de paixão

Das lágrimas caldo faço,

do coração escudela;

esses olhos são panela

que coze bofes e baço,

com toda a mais cabedela

Vão se todos e entra o Monteiro

em busca de Venadoro, que se perdeu

na caça, e diz

Monteiro:

Perdeu se por essa brenha

Venadoro, meu Senhor,

sem que novas dele tenha.

Queira Deus que inda não venha

desta perda outra maior.

Contra esta parte daqui

despós um cervo correu,

logo desapareceu;

como da vista o perdi,

o gosto se me perdeu.

Eu, e os mais caçadores

corremos montes e covas,

falámos com lavradores

deste vale, e com pastores,

sem acharmos dele novas.

Quero ver nestes casais

que cobrem aquele arvoredo,

se acharei pastores mais,

que me dêm alguns sinais

que me possam tornar ledo.

Chama polos pastores do casal,

e responde lhe um pastor

Ô dos casais, ô de lá!

Ah Pastores, não falais?

Pastor:

¿Quien sois, o lo que buscais?

Monteiro:

Ouvis! Chegai pera cá.

Pastor:

Dicid vos lo que mandáis

Fala o Bobo, filho do Pastor

Bobo:

No vayais adó os llamó,

Padre, sin saber quien es.

Pastor:

¿Porque?

Bobo:

Porque este es

aquele ladrón que hurtó

el asno del Portugues.

Y se vais adó están,

os juro al cuerpo sagrado

de san Pisco y San Juán,

que también os hurtarán,

que sois asno mas honrado.

Pastor:

Déjame i, que me llamó

Bobo:

No, por vida de mi madre,

que si allá vas, muerto só,

y desta vez queda yo,

sin asno, triste, y sin padre.

Monteiro:

Vinde, que vo lo encomendo,

e em vossas mãos me ponho.

Bobo:

¿No vas, que dijo en comiendo,

y encomiendoos al demónio!

¿Y eso es lo que andáis haciendo?

Pastor:

Déjame ir adó está,

que no es cosa que me espante.

Bobo:

¿No queréis sino ir allá?

Pues echale pan delante,

puede ser que amansará.

Pastor:

¡Dios os guarde! ¿Que cosa es

esa porque boceáis?

Monteiro:

Dar me heis novas, ou sinais

dum Fidalgo Português,

se passou por onde andais?

Bobo:

Yo so Hidalgo Portugues

Que manda su Señoria?

Pastor:

Cállate: ¡oh que nescio es!

Bobo:

Padre, ¡no me dejarés

ser lo que quisiere un dia?

¡Ah Santo Dios verdadero!

¿No seré lo que otros son?

Digo ahora que no quiero

ser Alonsico, el vaquero.

Pastor:

Cállate ya, bobarrón.

Bobo:

Ya me callo: ahora un poco

He de ser lo que yo quisiere.

Pastor:

Señor, diga lo que quiere,

porque este mochacho es loco,

y muero porque no muere.

Monteiro:

Digo, que se por ventura

sabeis o que ando buscando;

um Fidalgo que, caçando,

se perdeu nesta espessura

após um cervo andando.

Tenho esta parte corrida,

sem dele poder saber:

trago a alegria perdida;

e se de todo a perder,

perca se também a vida.

Porque só polo buscar

tenho trabalhos assaz.

Bobo:

Yo no puedo callar mas

Pastor:

¿Como no puedes callar?

Quitate allá para tras.

Cuanto por aquestra tierra,

no siento nueva ninguna.

Monteiro:

Oh trabalhosa fortuna!

Pastor:

Mas detrás daquesta sierra

hallaréis, por dicha, alguna,

que unas chozas de vaqueros

portugueses alli están,

y ahi muchas veces van

cazadores caballeros:

puede ser que lo sabrán.

Monteiro:

Quero me ir lá saber.

Ficai vos; adeus, pastor.

Pastor:

Dios os libre de dolor

Bobo:

Y a nos dé siempre comer,

pan y sopas, qu' es mejor.

Mirad lo que os notifico:

en aquele valle, acullá,

anda paciendo un burrico,

hidalgo, manso y bonico;

puede ser que ese será.

Pastor:

Calla, y acaba de andar.

Bobo:

Ya ando

Pastor:

¿Quieres callar?

¡Bobo, que tan poco sabe!

Bobo:

¿No dicéis que ande y acabe?

Ando y no quiero acabar.

Vão se todos e entra Florimena, Pastora,

com um pote, que vai à fonte, e diz

Florimena:

Por este fermoso prado

tudo quanto a vista alcança

tão alegre está tornado,

que a qualquer desesperado

pode dar certa esperança

O monte e sua aspereza,

de flores se veste ledo;

reverdece o arvoredo;

somente em minha tristeza

está sempre o tempo quedo.

Junto desta fonte pura,

segundo a muitos ouvi,

d' altos parentes naci:

foi como quis a ventura,

mas não como eu mereci

O dia que fui nacida,

minha mãe do parto forte

foi sem cura falecida;

e o dia que me deu a vida

lhe dei eu a ela a morte.

Do mesmo parto naceu

meu irmão, que antre os cabritos

comigo também viveu;

mas, assi como creceu,

creceram nele os espritos.

Foi-se buscar a cidade;

teve juízo e saber;

eu fiquei, como mulher,

e não tive faculdade

pera poder mais valer.

A um Pastor obedeço

por pai, que doutro não sei;

e, pola mãe que matei,

a üa cabra conheço,

de cujo leite mamei.

Mas porém, já qu’este monte

me obriga e meu nacimento,

quero, pois, quer meu tromento,

encher a talha na fonte

que cos olhos acrecento.

Enquanto finge que enche a talha,

entra Venadoro, e diz

Venadoro:

Pois que me vim alongar

dos caminhos e da gente,

Fortuna, que o consente,

se devia contentar

de me ter tão descontente.

Porém, segundo adivinho,

por tão espesso arvoredo,

por tão áspero rochedo,

quanto mais busco o caminho

tanto mais dele me arredo.

O cavalo, como amigo,

já cansado me trazia,

nas deixou me todavia,

que mal poderá comigo

quem consigo não podia

Quero me aqui assentar

à sombra, nesta ervinha,

porque canso já de andar;

nas inda a fortuna minha

não cansa de me cansar.

Junto desta fonte pura,

não sei quem cuido qu'está;

mas no coração me dá

que aqui me guarda a ventura

algüa ventura má.

Ou ganhado, ou bem perdido,

faça, enfim, o que quiser,

que eu o fim disto hei de ver,

que já venho apercebido

a tudo quanto vier.

Oh que formosa serrana

à vista se me oferece!

Deusa dos montes parece;

e se é certo que é humana,

o monte não na merece.

Pastora tão delicada,

de gesto tão singular,

parece me que em lugar

de perguntar pola estrada,

por mim lh'ei de perguntar.

Até qui sempre zombei

de qualquer outra pessoa

que afeiçoada topei;

mas agora zombarei

de quem se não afeiçoa.

Serrana, cuja pintura

tanto alma me moveu,

dizei me: Por qual ventura

andareis nesta espessura,

merecendo estar no Céu?

Florimena:

Tamanho inconveniente

andar na serra parece?

Pois a ventura da gente

sempre é muito diferente

do que, ao parecer, merece

Venadoro:

Tal reposta é manifesto

não se parecer co as cabras,

pois não vos parece honesto

saberdes matar co gesto

senão inda com palavras?

No mato tudo é rudeza.

Há tal gesto e discrição?

Não no creio.

Florimena:

Porque não?

Não suprirá natureza

onde falta criação?

Venadoro:

Já logo nisso, Senhora,

dizeis, se não sinto mal,

que do vosso natural

não era serdes Pastora.

Florimena:

Digo, mas pouco me val.

Venadoro:

Pois quem vos pôde trazer

à conversação do monte?

Florimena:

Perguntai o a essa fonte,

que as cousas duras de crer,

um as faça, outro as conte.

Venadoro:

Esta fonte, que está aqui,

que sabe do que dizeis?

Florimena:

Senhor, mais não pergunteis,

porque outra cousa de mi

sabei que não sabereis.

De vós agora sabei

o que não tendes sabido:

se quereis água, bebei;

se andais por dita perdido,

eu vos encaminharei.

Venadoro:

Senhora, eu não vos pedia

que ninguém m' encaminhasse;

que o caminho que eu queria,

se o eu agora achasse,

mais perdido me acharia.

Não quero passar daqui

e não vos pareça espanto

que em vos vendo me rendi;

porque quando me perdi,

não cuidei de ganhar tanto.

Florimena:

Senhor, quem na serra mora

também entende a verdade

dos enganos da cidade:

vá se embora, ou fique embora,

qual for mais sua vontade.

Venadoro:

Oh lindíssima donzela,

a quem a ventura ordena

que me guie como estrela,

quereis me deixar a pena,

e levar me a causa dela?

E já que vos conjurastes

vós e amor pera matar me,

oh não deixeis d' escutar me!

Pois a vida me tirastes,

não me tireis o queixar me!

Que eu em sangue e em nobreza

o claro Céu me estremou;

e a fortuna me dotou

de grandes bens e riqueza,

que sempre a muitos negou.

Andando caçando aqui,

após um cervo ferido,

permitiu meu fado assi,

que andando dos meus perdido,

me venha perder a mi.

E porque inda mais passasse

do que tinha por passar,

buscando quem m'ensinasse

por que via me tornasse,

acho quem me faz ficar.

Que vingança permitiu

a fortuna num perdido!

Oh que tirano partido,

que quem o cervo feriu,

vá como cervo ferido!

Ambos feridos num monte,

eu a ele, outrem a mi;

üa diferença há aqui:

que' ele vai sarar à fonte,

e eu nela me feri.

E pois que tão transformado

me tem vossa fermosura,

um de nós troque o estado,

ou vós pera povoado,

ou eu pera a espessura.

Florimena:

Dos arminhos é certeza,

se lhe a cova alguém sujar,

morar fora, antes d' entrar:

d' estimar muito a limpeza

pola vida a vai trocar:

também quem na serra mora

tanto estima a honestidade,

que antes toma ser Pastora,

que perder a castidade,

a troco de ser senhora.

Se mais quereis, esta fonte

vos descubra o mais de mim:

o que ela viu, ela o conte;

porque eu vou me pera o monte,

que há já muito que vim.

Vai se Florimena e diz, Venadoro

Venadoro:

Ó linda minha inimiga,

gentil Pastora, esperai!

Pois a tanto amor me obriga,

consenti me que vos siga;

vá o corpo onde alma vai.

E pois por vós me perdi,

e neste estado amor me pôs

os olhos com que vos vi,

pois os deixastes sem mi,

oh não os deixeis sem vós!

Porque a Fortuna me dixe

que nas serras onde andais,

em estes estremos tais,

não era bom que vos visse

pera não ver de vós mais.

E pois amor se quis ver

da livre vida vingado,

em que eu soía viver,

faça em mi o que quiser,

que aqui vou ao jugo atado.

Vai se Venadoro após de Florimena

e entra Dom Lusidardo seu pai,

que quer ir em sua busca,

e o Monteiro, e Filodemo, e diz,

Lusidardo:

Oh santo Deus verdadeiro,

a quem o Mundo obedece!

Meu filho não aparece,

ou que me dizeis, Monteiro?

Monteiro:

Digo lhe, que m' entristece,

que eu corri por esses montes,

bem quinze léguas, ou mais,

e busquei pelos casais,

por serras, montes e fontes,

sem ver novas, nem sinais.

Toda a gente que levou,

buscando o, muito cansada,

pelo mato anda espalhada;

mas ainda ninguém tornou,

que soubesse dele nada.

Lusidardo:

Oh fortuna nunca igual!

Quem me fará sabedor

de meu filho e meu amor,

que se é muito grande o mal,

muito mor é o temor?

Quem tolhe que não achasse

algum leão temeroso

nalgum monte cavernoso

que sua fome fartasse

em seu corpo tão fermoso?

Quem há que saiba, ou que visse

que das montanhas erguidas

algum monstro não saísse,

e com seu sangue tingisse

as ervas nele nacidas?

Ó filho, vai me a lembrar

quantas vezes vos mandava

que leixásseis o caçar!

Não cuidei de adivinhar

o que fortuna ordenava.

Eu irei, filho, buscar vos

por esses montes, por i,

ou perder me, ou cobrar vos,

que morte que quis matar vos,

quero que me mate a mi.

Onde fostes fenecido

seja também vosso Pai;

ser me há acontecido,

como virote que vai

buscar outro que é perdido.

Vós só haveis de ficar,

Filodemo, encarregado

pera esta casa guardar,

que de vosso bom cuidado

tudo se pode fiar.

Ide vos a fazer prestes,

mandai cavalos selar

pois achá lo não pudestes,

ir me heis buscar o lugar

onde da vista o perdestes.

Vão-se e entra o Bobo com o vestido

de Venadoro, que lhe tomou Venadoro

o seu, por se vestir de Pastor

e diz, cantando

«Los mochachos del Obispo

no comen cosa mimosa,

ni zanca d'araña, ni cosa mimosa».

Fala:

De su sayo colorado

tan lozano me vestió,

y pues yo ya no soy yo,

ya por otro estoy trocado;

que este sayo me trocó.

¡Oh que asno Portugues,

que loco por Florimena,

deseó samarra agena,

y dame por interés

una zamarra tan buena!

Como yo vi la bobilla

andar con él en questiones,

y pararsele amarilla,

Dixele: ¿Florimenilla,

andáis en dongolondrones?

Él me dijo: Matalote,

no tengáis dello desmayo,

y en esta, como un rayo,

tomóme mi capirote,

y dióme su capisayo.

Capirote, en buena fé,

si vos, cuando en mi entrastes,

capisayo vos tornastes,

que yo por eso cantaré,

pues ansi me mejorastes.

Canta:

«Lirio, lirio, lirio loco,

¿con que? Con capirotada.»

¡Por hablar con la golosa

de amores, mirad la cosa!

Zamarilla tan hermosa

que me ha dado tan honrada,

¿con que? Con capirotada.»

Fala:

Yo entonces respondí:

Señor, dame pan y queso,

mas despues que lo entendí,

dixe a ella: dale un beso,

que él me dió zamarra a mí.

Ahora me mirarán

cuantos a la iglesia fueren;

y aquellos que no me quieren,

ahora me rogarán.

¿Sabéis porque no querré?

Porque estoy ahidalgado;

y cuando fuere rogado,

cantando responderé,

que ya estoy otro tornado.

Canta e baila:

«Soropicote, picote, mozas,

ahora quiero amores con vosotras.»

Entra o Pai, e diz

Pastor:

Hijo Alonsillo

Bobo:

Hijo Alonsillo

Pastor:

No me quieres escuchar!

Bobo:

Pues déjame suspirar.

Pastor:

Escúchame ahora, asnillo,

lo que te quiero mandar.

Vete al valle de las rosas,

y di a Anton del Lugar

que si puede acá llegar,

porque tengo muchas cosas

que importan para le hablar.

Porque es aqui llegado

a este valle un hombre honrado,

mancebo de casta buena,

que amores de Florimena

le traen loco y penado.

Dice que quiere casar

con ella, que su tromento

no le deja reposar;

y que venga festejar

tan dichoso casamiento.

Bobo:

Dicid, padre, ¿también vos,

no queréis casar comigo?

Casemos ambos a dos.

Pastor:

Ve, y haz lo que te digo.

Bobo:

Responde, padre, por Dios.

Pastor:

Ve luego, y vuelve apresado.

Anda. ¿No quieres andar?

Bobo:

Pues me habéis empuxado,

juro á mi de desandar

todo quanto tengo andado.

Pastor:

¡Trabajoso es este insano!

Nunca hace lo que quereis.

Bobo:

Ora no os apaxoneis,

mi padrecico lozano:

¿que burlaba, y no lo véis?

Pastor:

Vete dahí.

Bobo:

Heme aquí.

Pastor:

Ve donde te dixe.

Bobo:

Ya vengo.

¡Oh que padrasto que tengo,

que asi me manda por ahí,

sendo camino tan luengo!

Vão se e entra Dionisa e Solina

Dionisa:

Ó Solina, minha amiga,

que todo este coração

tenho posto em vossa mão,

Amor me manda que diga,

vergonha me diz que não.

Que farei?

Como me descobrirei?

Porque a tamanho tromento

mais remédio lhe não sei,

que entregá lo ao sofrimento.

Meu pai muito entristecido

se vai pela serra erguida,

já da vida aborrecido,

buscando o filho perdido,

tendo a filha cá perdida!

Sem cuidar,

foi a casa encomendar

a quem destruir lha quer:

olhai que gentil saber,

que vai comigo leixar

quem me não leixa viver.

Solina:

Senhora, em tanto desgosto

não posso meter a mão;

mas, como diz o rifão,

«mais val vergonha no rosto,

que mágoa no coração»,

E, bofé, se tanto amasse,

e visse tempo e sazão,

«sem seu pai, sem seu irmão,

que a nuvem triste tirasse

de cima do coração.

Dionisa:

Ah mana, que tenho medo,

que s' eu em tal consentisse

que logo o mundo o sentisse,

porque nunca houve segredo,

que, enfim, se não descobrisse.

Solina:

Se eu tantas dobras tivesse

como quantas houve erradas,

sem que o mundo o soubesse,

à fé qu'eu enriquecesse,

e fosse das mais honradas.

Dionisa:

Sabeis que tenho em vontade?

Solina:

Que podeis, Senhora, ter?

Dionisa:

Falar lhe, só pera ver

se é por ventura verdade

o que dizeis que me quer.

Solina:

Bofé, mana, dizeis bem,

e eu o mandarei chamar,

como pera lhe rogar

que um anel que lá me tem

que mo mande consertar.

Dionisa:

Dizeis mui bem.

Solina:

Vou me lá

chamar o seu moço à sala;

e s' este parvo vem cá,

com ele um pouco rirá,

que sempre amores me fala.

Vilardo, moço?

Vilardo:

Quem chama?

Solina:

Vem cá, moço; eu te chamo.

Qu' he de teu amo?

Vilardo:

Ah que dama!

Perguntais me por meu amo,

não por um que vos ama?

Solina:

E quem é esse amador,

que quer ter comigo passo?

Será ele algum madraço?

Vilardo:

Eu sou o mesmo, que o amor

me quebra pelo espinhaço.

E mais vós sabei de mi,

se a dizê lo me atrevo,

que dês qu'esses olhos vi,

que yo ni como, ni bebo,

ni hago vida sin ti.

E mais pera namorado

não são ora tão madraço.

Solina:

Pois muito desmazelado.

Vilardo:

Mas antes, de delicado

caio pedaço a pedaço.

E mais eu sofrer não posso

que me façais tanto feno,

qu' estou já posto no osso,

porque sou vosso e revosso,

por vida de quanto quero.

Solina:

Feros está cheia a rua.

Ora estou bem aviada.

Vilardo:

Cupido, por via tua,

que a não faças tão crua,

pois que te não faço nada.

Amor, amor, mas te pido

que quando se for deitar,

que le digas al oído:

devíeis vos de lembrar

neste tempo dum perdido.

Solina:

E tu fazes já coprinhas ?

Ainda tu trovarás?

Vilardo:

Quem, eu? Por estas barbinhas,

que se vós virdes as minhas,

que digais que não são más.

Solina:

Ora, pois me quereis bem,

dizei me üa.

Vilardo:

Ei la aqui,

e veja o saibo que tem,

porque esta trovinha assi

saiba qu' é trova do assem.

Diz, o moço a trova:

«Passarinhos que voais

nesta manhã tão serena,

sabei que só minha pena

pode encher mil cabeçais.»

Solina:

O rifão está salgado.

Essa pena te dou eu?

Vilardo:

Vós e amor, que de malvado

me tem milhor empenado,

que nenhum virote seu.

Pois se me ouvíreis cantar!

Solina:

E tu és também cantor?

Vilardo:

Canto milhor que um açor

Quereis que vos venha dar

musiqueta de primor

e que vos mande tanger

muito milhor que ninguém?

Solina:

Já isso quisera ver.

Vilardo:

Querer m' eis, se o eu fizer,

algum pedaço de bem?

Solina:

Querer t' eis trinta pedaços.

Vilardo:

E esse querer dará fruito,

que me tire destes laços?

Solina:

E que fruito?

Vilardo:

Dous abraços.

Solina:

Esse fruito custa muito.

Vilardo:

Esse é o amor que em vós há?

pesar de minha mãe torta!

Solina:

Ora i, chamai logo lá

vosso amo, que venha cá logo,

que é causa que importa.

Vilardo:

Logo?

Solina:

Logo nessas horas.

Vilardo:

Não estarei aqui mais?

Solina:

Não. Ainda aí estais?

Vós haveis mister esporas.

Vilardo:

lrei, porque mo mandais.

Vai se Vilardo e Solina,

e entra o Pastor

e Venadoro com ele,

feito Pastor, e diz o Pastor

Pastor:

Mas de un mes es ya pasado

que en esta sierra andáis;

y es caso mal mirado

que andéis guardando ganado

por una que tanto amáis.

Y si os determináis

en querer casar con ella,

juro a mí que nada erráis;

y si eso es para habella,

en vano cabras guardáis.

Ya me distes vuestra fe

sábenlo estas sierras todas;

yo con ella me engañé,

que luego mandar llamé

quien festejasse las bodas.

Y ahora dicis con pena,

que es dura cosa casar:

pues volveos, n' hora buena,

que no habéis d'engañar

con palavras Florimena.

Venadoro:

Quem há de ter coração

pera tamanho temor?

Que em mim pegando estão,

düa parte a rezão,

e doutra parte o amor.

Também vejo que perdê la ;

Será minha perdição

que bem me diz a afeição,

que pouco faço por ela,

pois não desfaço em quem são.

Pastor:

Digoos, si por baxeja

dicis que no os conviene,

daros he una certeza,

que en sangue y en nobreza,

tanto como vos la tiene.

Venadoro:

Pastor, digo que daqui

farei tudo o que quiserdes;

e se mais quereis de mi,

digo que vos dou o si

pera tudo o que fizerdes.

Pastor:

Dios os de su bendición;

y pues que casáis con ella,

yo os afirmo en conclusión,

que aun de vos y mas della

verná gran generación.

Yo me voy por ella, hijo,

tomadla así mal compuesta;

verná quien haga la fiesta;

que en placer y regocijo

nos festeje esta floresta.

Vai se o Pastor e fica Venadoro

falando só e diz

Venadoro:

Ó ribeiras tão fermosas,

vales, campos pastoris,

porque vos não revestis

de novas flores e rosas,

se minha glória sentis?

Porque não secais, abrolhos?

E vós, água, que regando

os olhos is alegrando,

correi, que também meus olhos

d'alegres estão manando.

Ah Pastora, em quem espero

poder viver descansado!

Contigo guardarei gado,

que já eu sem ti não quero

nenhüa alteza d'estado.

Diga o que quiser a gente,

tudo terei nüa palha,

porque está craro e vidente

que não há honra que valha

contra a vida de contente.

Entram três Pastores bailando

e cantando de terreiro,

diante do Pastor que traz

Florimena, e diz o

Pastor:

Pues el amor os obliga

a que hagáis tan buena liga,

tomando a Dios por testigo,

daqui os la entrego, amigo,

por muger y por amiga.

Venadoro:

Consentis nisto, Senhora?

Florimena:

Senhor em tudo consento.

Venadoro:

Oh grande contentamento!

Florimena:

Saiba que nunca até agora

lhe houve enveja ao tromento.

Pastor:

¿Asi lo decís, bobilla?

¡Oh mala dolor os duela!

Pero no es maravilla

quien consiente ansi la silla,

consienta también la espuela

Tornam a bailar e cantar,

e, acabado entra D. Lusidardo,

e o Monteiro que andam

em busca de Venadoro,

e diz D. Lusidardo

Lusidardo:

Três dias há já que ando

por esta larga espessura

a Venadoro buscando,

e o que dele vou achando

é como quer a ventura.

Monteiro:

Senhor, cuido que lá vejo

uns lavradores cantar.

Lusidardo:

I diante perguntar.

Monteiro:

Cumprido é seu desejo,

se a vista não m' enganar.

Lusidardo:

Como assi?

Monteiro:

Ele não vê

aquele Pastor loução

com üa moça pola mão?

Se Venadoro não é,

nem eu o Monteiro são.

Pastor:

¿Quién veo allá asomar,

que se viene a nuestras bodas?

Bobo:

No los dexemos llegar,

que nos vernán a robar,

juro a mi, las migas todas.

Lusidardo:

Oh Venadoro, meu filho,

és tu este?

Venadoro:

Tal estou,

que cuido que este não sou.

Lusidardo:

Certo que me maravilho

de quem tanto te mudou.

Como estás assi mudado

no rosto e mais no vestido!

Venadoro:

Ando já n'outro trocado,

tanto, que fiquei pasmado

de como fui conhecido.

E se vossa mercê vem

para me levar daqui,

mais há de levar que a mi,

e há de ser quem me tem

todo transformado em si.

Bobo:

¿Eso porque lo entendéis?

¿Por las migas por ventura?

Voto a tal no llevaréis:

por mas y por mas que andéis

no haréis tal travessura.

Venadoro:

Esta fermosa donzela

em mi teve tal poder,

que folguei de me perder;

pois, enfim, vim achar nela

o que não cuidei de ser.

Tanto em mi pode este amor,

que a tenho recebida;

e se o erro grave for

aqui quero ser Pastor:

deixe me ter esta vida.

Lusidardo:

É certo tal casamento ?

Venadoro:

Tenha o por cousa segura.

Lusidardo:

Oh grande acontecimento!

Dest' arte sabe a ventura

aguar um contentamento!

Pastor:

Oyame, Señor, a mi,

como hombre sábio, discreto,

porque acaeció así,

y lo que supo hasta aqui

Lo puede tener por cierto.

Muchos años son corridos

que en esta fuente abierta,

en estos valles floridos,

hallé dos niños nacidos,

ya a su madre casi muerta.

Los niños chicos crié,

y desta cierto me arreo,

y a la madre sepulté;

y despues un gran deseo

de saber esto tomé.

Como yo fuese enseñado

de chico a la mágica arte

por mi padre, qu' es finado,

muy conoscido y nombrado

soy por tal en toda parte.

Yo con yervas de la sierra,

artimales y otras cosas

haré, si el arte no se yerra,

que desciendan a la tierra

las estrellas luminosas.

Soy, en fin, certificado

que la madre de los dos

fué Princesa de alto estado,

y por un caso nombrado

la traxo a esta tierra Dios.

El macho, como creció,

deseoso de otro bien,

a la corte se partió:

la hembra es esta por quien

vuestro hijo se perdió.

Y si más quiere, Señor,

de mi arte, prestamente

dello te haré sabedor;

mas ha de ser de tenor

que no lo sepa la gente.

Lusidardo:

Mas vamo nos, se quereis,

que não sofro dilação,

a minha casa, e então

lá disso me informareis,

que caso é de admiração.

E vós, filho, não cuideis

que a glória de vos achar

não é tanto d'estimar,

que em qualquer estado que esteis

não folgue de vos levar.

Vão se todos, e diz, Solina

vendo vir a Filodemo

Solina:

Eis Filodemo lá vem:

asinha acudiu ao leme.

Dionisa:

Isso é de quem quer bem;

mas não sei se o viu alguém,

porque quem espera, teme.

Agora me quisera eu

daqui cem mil léguas ver.

Filodemo:

Folgara eu assi de ser,

porq' este cuidado meu

fora mais de agradecer;

que, quando por acidente

da fortuna desastrado

fosse apartado da gente

num deserto, onde somente

das feras fosse guardado,

e por ferro, fogo e água

buscar minha morte iria,

a voz ronca, a língua fria,

tamanho mal, tanta mágoa

às montanhas contraria;

lá, mui contente e ufano

de mostrar amor tão puro,

poderia ser que o dano,

que não move um peito humano

que movesse um monte duro

Dionisa:

Nesse deserto apartado

de toda a conversação

merecíeis degradado

por justiça, com pregão

que dissesse: Por ousado.

E eu também merecia

metida a grave tromento,

pois que, como não devia,

vim a dar consentimento

a tão sobeja ousadia.

Filodemo:

Senhora, se me atrevi,

fiz tudo o que amor ordena;

e se pouco mereci,

tudo o que perco por mi

mereço por minha pena.

E se amor pode vencer,

levando de mim a palma,

eu não lho pude tolher,

que os homens não têm poder

sobre os afeitos da alma.

E ainda que pudera

resistir contra o mal meu,

saiba que o não fizera,

que pouco valera eu,

se contra vós me valera.

Não deve logo ter culpa

quem se venceu d'armas tais:

assi que nisto, e no mais

tomo por minha desculpa

vós mesma, que me culpais.

E se este atrevimento

contudo for de culpar,

acabai de me matar,

que aqui tenho um sofrimento

que tudo pode passar.

E se esta penitência,

que faço em me perder,

algum bem vos merecer,

fique em vossa consciência

o que me podeis dever.

Que dizeis a isto, Senhora?

Dionisa:

Eu que vos posso dizer?

Já não tenho em mi poder,

segundo me sinto agora,

pera poder responder.

Respondei lhe vós, Solina,

pois a vós m'entreguei.

Solina:

Bofé, não responderei.

Veja ela o que determina.

Dionisa:

Não no vejo, nem no sei.

Solina:

Pois eu também não sei nada.

Dionisa:

Porquê ?

Solina:

Do que eu fizer,

se despois se arrepender,

dirá que eu fui a culpada.

Dionisa:

Eu só quero a culpa ter.

Solina:

Senhora, por não errar,

não quero que fique em mim.

Esta noite no jardim

ambos podem praticar

como isto venha a bom fim.

Lá poderão ajuntar

entr'ambos o parecer,

que eu não m' hei nisso de achar,

que não quero temperar

o que outrem há de comer.

Dionisa:

Vós vedes a torvação,

que lá nessa casa vai?

Dá me cá no coração

que é vindo o senhor seu Pai

com o senhor seu irmão.

Dionisa:

Filodemo, i vos embora,

falai despois com Solina.

Solina:

Vamo nos também, Senhora,

receber seu pai lá fora,

não venha sentir a mina.

Vão se todos e entra Vilardo

e Doloroso que vêm dar üa

música a Solina com os

Músicos, e diz logo Vilardo

Vilardo:

Assi que te contava, Doloroso,

destas em que sempre andam

rugindo as sedas.

Doloroso:

Avante, que bem sei que o não dizes

polas sedas de Veneza.

Vilardo:

Já sabeis que esta nossa Solina

é tão Celestina que não há quem

a traga a nós.

Doloroso:

Logo parece moça brigosa, que por dá cá aquelas palhas, dará e tomará quatro espaldeiradas; e ao outro dia quem há de cuidar que üa mulher de sua arte há de querer bem a um parvo como ti? Porque estas tais são como homens sesudos: se de noite se acham em algum arruído, onde possam fugir sem serem conhecidos, facilmente o fazem; e ao outro dia quem há de cuidar que um homem tão honrado havia de fugir? Outros dizem: Bem pode ser, porque noite escura é capa de Judeus e de envergonhados.

Vilardo:

Mui gentil comparação é esta; mas assi que te dizia o outro dia, assi zombando lhe pormeti de lhe dar üa música, e já chamei outros dous meus amigos, que logo hão de vir aqui ter connosco.

Doloroso:

Que tal é a música que determinas de lhe dar? Não seja de siso; porque será a maior parvoíce do mundo, porque não concerta com a parvoíce que tu finges.

Vilardo:

A música não é senão das nossas; mas faço te queixume que nem com um cão de busca pude achar üas nêsporas por toda esta terra.

Doloroso:

Nem nas acharás senão alugadas; mas eu não sou de opinião que teus amores te custem dinheiro. Ora já lá aparecem os outros companheiros, e eu também ajudarei de telhinha, ou de assovio, e vem me isto à popa, porque daqui iremos à porta da minha padeirinha, porque ando com ela num certo requerimento.

Vilardo:

Vossas mercês vem ao próprio: boa seja a vinda. As guitarras vêm temperadas ?

Ami[go] :

Tudo vem como cumpre: mandai vigiar a Justiça entretanto.

Vilardo:

Ora sus: fazei como se temperásseis cabeça de pescada com seu fígado e bucho, e canada e meia, que nunca meu Pai fez tamanho gasto na sua Missa nova.

Neste passo se dá a música com todos quatro, um tange guitarra, outro pentem, e outro telhinha, e outro canta cantigas muito velhas, e no milhor, diz Vilardo

Vilardo:

Estai assi quedos, que eu sinto quem quer que é.

Doloroso:

Justiça, pelo corpo de tal! Ora sus: aqui não há outro velhacouto que nos valha, que pôr os pés ao caminho, e mostrar lhe as ferraduras.

Vão se todos e entra o Monteiro e diz

Monteiro:

Como é gracioso este mundo, e como é galante, e quão gracioso seria quem o pudesse ver de palanque com carta d' alforria ao pescoço, porque não pudessem entender nele Meirinhos, Almotaceis da limpeza, trabalhos, esperanças, temores, com toda a outra cabedela de enfadamentos! Ora notai bem de quantas cores teceu a fortuna esta manta d’ Alentejo: perdeu se Venadoro na caça, eis a casa toda envolta como rio: o pai enfadado, a irmã triste, a gente desgostosa; tudo, enfim, fora do couce; e o galante aposentado nos matos com trajos mudados como camaleão, decepado dos pés e das mãos, por üa serranica d' Alentejo; e veio o caso a sair de maneira fora da madre, que a recebesse por mulher; e rapa óleo e crisma de quem é, e renega todas as alembranças de seu pai; pois tanto tomou ao pé da letra o que Deus disse: Por esta deixarás teu pai e mãe. E atentai isto por me fazer mercê: cuidareis que este caso era solus peregrinus; sabei que os não dá a fortuna senão aos pares, como quedas. Dionisa, mais mimosa e mais guardada de seu pai que bicho de seda, moça sem fel como pombinha, que nos anos não tinha feito inda o enequim, mais fermosa que üa manhã de S. João, mais mansa que o rio Tejo, mais branda que um soneto de Garcilaso, mais delicada que um pucarinho de Natal, enfim, que por meia hora de sua conversação se poderá sofrer üa pipa com cobra e galo e doninha, como a parricida, contanto que dissesse o pregão o porque; e porque vos não fieis em castanhas, não sei se o diga, se o cale, que de magoado me trava pola manga a fala da garganta; mas, contudo, não há quem se tenha,—seu Pai a achou esta noite no jardim com Filodemo, mais arrependida do tempo que perdera, que do que ali perdia; eu, coitado de mim, que meta os dentes nos cabeçais, se desejar ave de pena.

Aqui entra Duriano, e diz como cantando

Duriano:

Ti ri ri, ti ri rão.

Monteiro:

Que é isso, Senhor Duriano ? Que descuidos são esses? Onde é cá a ida agora?

Duriano:

Vou assi como parvo, porque o milhor é não saber homem nada de si.

Monteiro:

Que dizeis a vosso amigo Filodemo, que assi se soube aproveitar do tempo que ficou só em casa?

Duriano:

Eu que hei de dizer? Digo que descreio desta minha capa, se não é isto caso pera sair com ele a desafio.

Monteiro:

Porquê ?

Duriano:

Porque não basta que lhe dê a fortuna gostos tão medidos sobre o funil, que lhe põe nos braços Dionisa, a mais fermosa dama que nunca espalhou cabelos ao vento, senão ainda pera o assegurar em sua boa ventura, lhe vem a descobrir que é filho de não sei quem, nem quem não.

Monteiro:

Esses são outros quinhentos. Cujo filho dizem que é ? Que eu ouvi já sobr'isso não sei que fábulas.

Duriano:

Dir vo lo hei; pasmareis, que não é menos que Príncipe, e pior ainda. Nunca ouvistes dizer de um irmão do senhor Dom Lusidardo, que agravado del Rei, se foi pera os Reinos de Dinamarca ?

Monteiro:

Tudo isso ouvi já.

Duriano:

Pois esse galante, em satisfação de muitas mercês que el Rei de Dinamarca lhe fizera, meteu se d' amores com üa sua filha, a mais moça; e como era bom justador, manso, discreto, galante, partes que a qualquer mulher abalam, desejou ela de ver geração dele; senão quando, livre nos Deus, se lhe começou d' encurtar o vestido; que estas cidras não se desistem em nove dias, senão em nove meses. Foi lhe a ele então necessário acolher se co ela, porque não colhessem a ela co ele: acolheu se em üa galé, e vede la Princesa em üa galera nueva, com el marinero a ser marinera. Finalmente, vindo navegando todo esse Oceano Germânico, bancos de Frandes, mar d'Inglaterra, e trazidos à costa d' Espanha, não os quis a ventura deixar gozar do repouso que nela buscavam: deu lhe supitamente tamanha tromenta, que sem remédio deu a galé à costa, onde, feita pedaços, morreram todos desastradamente, sem escapar mais que a Princesa com o que trazia na barriga, a quem parece que a fortuna guardava pera dar o descanso que a seu pai e mãe negara. Saiu finalmente a moça na praia, tal qual o Temeroso naufrágio deixaria üa Princesa mais delicada que um arminho; e indo assi a pobre mulher pola terra estranha e despovoada, e sem quem a encaminhasse por donde, despois de ter perdido tanto a esperança de ter algum remédio, dando lhe as dores de parto junto de üa fonte, aonde em breve espaço lançou duas crianças, macho e fêmea, como vizagras. E como a fraca compreição da delicada mulher não pudesse sustentar tantos e tão desacostumados trabalhos, facilmente deu a vida, que tanto havia que desejava de dar, deixando vivos aqueles dous retratos dela e de seu Pai, que por causa de seus nacimentos a vida lhe tiraram, como acontece a bíboras. E como as crianças fossem destinadas ao que vedes, não faltou um Pastor que as criasse, que ali veio ter, dando a mãe a alma a Deus. De maneira que, por não gastar mais palavras, o macho é vosso amigo Filodemo, e a fêmea é a serrana Florimena, mulher que é já de Venadoro.

Monteiro:

Estranhas cousas me contais. Assi que, logo de seu Pai herdou Filodemo namorar a filha do Senhor que serve, não haverá logo por mal o senhor Dom Lusidardo tomar por genro e nora quem acha por sobrinhos.

Duriano:

Sabei que chora de prazer com eles, que já diz que acha que Filodemo se parece natural com seu irmão e Florimena com sua mãe.

Monteiro:

Dai me a entender como se creu tão de ligeiro o senhor Dom Lusidardo de quem isso contou.

Duriano:

No caso não há dúvida, porque o Pastor que lá achastes lhe certificou todo o caso; e fez ao Pastor muitas mercês, e mandou fazer muitas festas solenes. Venadoro, casado com sua mulher e prima, e Filodemo, que o mesmo parentesco tem com a senhora Dionisa, estão fora de crer tamanho contentamento; cuida que zombam dele.

Monteiro:

Ora deixa me ir a ver o rosto a esse velhaco de Filodemo, pois de meu matalote se me tornou Senhor. Que creio que vem o senhor Dom Lusidardo. Dissimulemos.

Entra Dom Lusidardo com Venadoro, que traz Florimena pela mão, e Filodemo traz a Dionisa, e diz Dom Lusidardo

Lusidardo:

Quem não ficará pasmado

de ver que por tal caminho

tem a ventura ordenado

Filodemo, meu criado,

vir ser meu genro e sobrinho!

Quem não pasmará agora

de ver a ventura minha,

que tem tornado nüa hora

Florimena, üa pastora,

ser minha nora e sobrinha!

Dêm se graças ao Senhor,

cujo segredo é profundo,

pois que vemos que quis pôr,

a ventura e o amor por prazeres deste mundo.

Vão-se todos e fenece a presente obra.

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Índice

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EL-REI SELEUCO

Diz logo o Mordomo [Escudeiro],

ou dono da casa:

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is, senhores, o Autor, por me honrar nesta festival noite, me quis representar üa farsa;

e diz que por se não encontrar com outras já feitas, buscou uns novos fundamentos para a quem tiver um juízo assi arrazoado satisfazer. E diz que quem se dela não contentar, querendo outros novos acontecimentos, que se vá aos soalheiros dos Escudeiros da Castanheira, ou d'Alhos Vedros e Barreiro, ou converse na Rua Nova em casa do Boticário, e não lhe faltará que conte. Porém diz o Autor que usou nesta obra da maneira de Isopete. Ora quanto à obra, se não parecer bem a todos, o Autor diz que entende dela menos que todos os que lha puderem emendar. Todavia, isto é pera praguentos: aos quais diz que responde com um dito de um filósofo, que diz: Vós outros estudastes para praguejar, e eu pera desprezar praguentos. E contudo quero saber da farsa, em que ponto vai. Moço! Lançarote!

Moço:

Senhor.

Escudeiro:

São já chegadas as figuras?

Moço:

Chegadas são elas quase ao fim de sua vida.

Escudeiro:

Como assi?

Moço:

Porque foi a gente tanta, que não ficou capa com frisa, nem talão de çapato, que não saísse fora do couce. Ora vieram uns embuçadetes, e quiseram entrar por força; ei-lo arrancamento na mão: deram üa pedrada na cabeça ao Anjo, e rasgaram üa meia calça ao Ermitão; e agora diz o Anjo que não há de entrar, até lhe não darem üa cabeça nova, nem o Ermitão até lhe não porem üa estopada na calça. Este pantufo se perdeu ali; mande-o v. m. Domingo apregoar nos púlpitos, que não quero nada do alheio.

Escudeiro:

Se ela fora outra peça de mais valia, tu botaras a conciência pela porta fora, pera a meteres em tua casa.

Moço:

Oh, se o ela fora, mais conciência seria torná-la a seu dono, quem a havia mister para si.

Escudeiro:

Ora vem cá: vai daqui a casa de Martim Chinchorro, e dize-lhe que temos cá Auto com grande fogueira; que se venha sua mercê pera cá, e que traga consigo o Senhor Romão d'Alvarenga, pera que sobre o Cantochão botemos nosso contraponto de zombaria. Ouves, Lançarote ? Ir-lhe hás abrir a porta do quintal, porque mudemos o vinte aos que cuidam de entrar por força.

Indo-se o Moço diz:

Chichelo de Judeu, assi como foste pantufo, que te custava ser üa bolsa com um par de reales, que são bons pera escudeiro hipócrita, que são muito e valem pouco?

Escudeiro:

Moço, que estás fazendo que não vás?

Moço:

Senhor, estou tardando, e porém estou cuidando que se agora fora aquele tempo em que corriam as moedas dos sambarcos, sempre deste tiraria pera üas palmilhas. Mas já que assi é, diga-me v. m. que farei deste?

Escudeiro:

Oh fideputa bargante, esperai, que est' outro vo-lo dirá.

Faz que lhe atira com outro pantufo,

vai-se o Moço, e diz o Escudeiro:

Não há mais mau conselho, que ter um vilão destes mimoso, porque logo passam o pé além da mão, zombam assi da gravidade de seu amo. Mas tornando ao que importa, vossas mercês é necessário que se cheguem uns pera os outros, pera darem lugar aos outros Senhores que hão de vir; que de outra maneira, se todo o corro se há de gastar em palanques, será bom mandar fazer outro Alvalade; e mais que me hão de fazer mercê, que se hão de desembuçar, porque eu não sei quem me quer bem, nem quem me quer mal: este só desgosto tem um Auto, que é como ofício de alcaide; ou haveis deixar entrar a todos, ou vos hão de ter por vilão ruim.

Entra Martim Chinchorro, falando com

outro escudeiro por nome Ambrósio,

e diz o Martim Chinchorro:

[Martim]

Entre v. m.

Ambrósio:

Dias há, Senhor, que ando de quebras com cortesias; e por isso vou diante. Beijo as mãos a v. m. A verdade é esta: passear em casa juncada, fogueira com castanhas, mesa posta com alcatifa e cartas, além disso Auto pera esgaravatar os dentes; esta é a vida de que se há de fazer conciência.

Escudeiro:

Senhor, o descanso dizem lá que se há de ter enquanto homem puder, porque os trabalhos, sem os chamarem, de seu se vêm «por seu pé, que seu nome é».

Martim:

Ora pois, Senhor, o Auto dizem que é tal? Porque um Auto enfadonho traz mais sono consigo que üa pregação comprida.

Escudeiro:

Senhor, por bom mo venderam, e eu o tomei a cala de sua boa fama. E se tal é, eu acho que, por outra parte, não há tal vida como ouvir um vilão, que arranca a fala da garganta, mais sem sabor que üa pêra pão, e üa donzela, que vem mais podre de amor, falando como Apóstolo, mais piadosa que üa lamentação.

Martim:

Pera estes tais é grande peça rapaz travesso com molho de junco, porque não andem mais ao coscorrão, mais roucos que üa cigarra, trazendo de si enfadamento.

Moço:

Olá, Senhores! Pedem as figuras alfinetes pera toucarem um Escudeiro. Ora sus, há i quem dê mais ? Que ainda vos veja todas a mim às rebatinhas! Ora sus, venham de mano em mano, ou de mana em mana.

Mordomo:

Moço, fala bem ensinado!

Moço:

Senhor, não faz ao caso, que os erros por amores tem privilégio de moedeiro.

Ambrósio:

Ó rapaz, não me entendes? Pergunto-te se tardará muito por entrar.

Moço:

Parece-me, Senhor, que antes que amanheça começarão.

Ambrósio:

Oh que salgado moço! Zombas de mim? Vem cá. Donde és natural?

Moço:

Donde quer que me acho.

Ambrósio:

Pergunto-te onde naceste.

Moço:

Nas mãos das parteiras.

Ambrósia:

Em que terra?

Moço:

Toda a terra é üa, e mais eu naci em casa assobradada, varrida daquela hora, que não havia palmo de terra nela.

Martim:

Bem varrido de vergonha que me tu pareces. Dize: Cujo filho és? É pera ver com que disbarate respondes.

Moço:

A falar verdade, parece-me a mim que eu sou filho de um meu tio.

Martim:

Vem cá. De teu tio? E isso como?

Moço:

Como? Isto, Senhor, é adivinhação, que vossas mercês não entendem. Meu pai era Clérigo, e os Clérigos sempre chamam aos filhos sobrinhos, e daqui me ficou a mim ter filho de meu tio.

Martim:

Ora te digo que és gracioso. Senhor, donde houvestes este?

Escudeiro:

Aqui me veio às mãos sem piós nem nada; e eu por gracioso o tomei; e mais tem outra cousa: que üa trova fá-la tão bem como vós, ou como eu, ou como o Chiado.

Ambrósio:

Não! quant'a disso nós havemos-lhe de ver fazer algüa cousa, enquanto se vestem as figuras. Ainda que, pera que é mais Auto, que vermos a este?

Escudeiro:

Vem cá, moço: dize aquela trova que fizeste à moça Briolanja, por amor de mim.

Moço:

Senhor, si, direi; mas aquela trova não é senão pera quem a entender.

Martim:

Como ! Tão escura é ela ?

Moço:

Senhor, assi a sei eu escrever e a fiz na memória, porque eu não sei escrever senão com carvão, e porém diz assi:

Per amor de vós, Briolanja,

ando eu morto,

pesar de meu avô torto.

Martim:

Oh como é galante! Que descuido tão gracioso! Mas vem cá: que culpa te tem teu avô nos disfavores que te tua dama dá ?

Moço:

Pois, Senhor, se eu houve de pesar de alguém, não pesarei eu antes dos meus parentes, que dos alheios ?

Escudeiro:

Pois ouçam vossas mercês a volta, que é mais cheia de gavetas, que trombeta de sereníssimo de La Valla.

Moço:

A volta, Senhores, é mui funda; e parece-me, Senhores, que nem de mergulho a entenderão. E por isso mandem assoar os engenhos, e metam mais üa sardinha no entendimento, e pode ser que com esta servilha lhe calçará milhor; e todavia palra assi:

Vossos olhos tão daninhos

me trataram de feição,

que não há em meu coração

em que atem dous réis de cominhos.

Meu bem anda sem focinhos

por vós morto,

pesar de meu avô torto.

Martim:

Ora bem: que tem de ver os cominhos com o teu coração?

Moço:

Pois, Senhores, coração, bofes, baço e toda a outra mais cabedela não se podem comer senão com cominhos; e mais, Senhores, minha dama era tendeira, e este é o verdadeiro entendimento.

Martim:

E aquela regra que diz: Meu bem anda sem focinhos, me dá tu a entender, que ela não dá nada de si.

Moço:

Nunca vossas mercês ouviram dizer:

Meu bem e meu mal

lutaram um dia,

meu bem era tal

que meu mal o vencia?

Pois desta luta foi tamanha a queda, que meu bem deu entre üas pedras, que quebrou os focinhos, e por ficarem tão esfarrapados, porque lhe não podiam botar pedaço, por conselho dos Físicos lhos cortaram por lhe neles não saltarem erpes, e daqui ficou: Meu bem anda sem focinhos, como diz o texto.

Ambrósio:

Tu fazes já milhores argumentos, que moços do estudo por dia de S. Nicolau.

Martim:

Senhor, aquilo tudo é bom engenho: este moço é natural pera Lógico.

Moço:

Quê, senhor? Natural pera lójea! Si, mas não tão fria como vossas mercês.

Escudeiro:

Parece-me, Senhor, que entra a primeira figura. Moço, mete-te aqui por baixo desta mesa, e ouçamos este Representador, que vem mais amarlotado dos encontros que um capuz roxo de Piloto que sai em terra e o tira d'arca de cedro.

Martim:

Senhor, ele parece que aprende Cirurgião.

Ambrósio:

Mais parece ourinol capado, que anda de amores com a menina dos olhos verdes.

Escudeiro:

Enfim, parece figura d'Auto, em verdade.

Entra o Representador:

É lei de direito, assaz verdadeira,

julgar por si mesmos aquilo que vem:

porque eu cuido que em zombo d'alguém,

e cuido que zombo da mesma maneira.

E assi a qualquer parece que está mais dobrado, sem nenhum conhecer seu próprio engano, por grande que seja. Ora, Senhores, a mi me esquece o dito todo de ponto em claro; mas não sou de culpar, porque não há mais que três dias que mo deram. Mas em breves palavras direi a vossas mercês a suma da obra: ela é toda de rir, do cabo até a ponta. Entrarão logo primeiramente quinze donzelas que vão fugidas de casa de seus pais, e vão com cabazes apanhar azeitona; e trás elas vêm logo oito mundanos metidos em um côvão, cantando: Quem os amores tem em Sintra; e despois de cantarem farão üa dança de espadas, cousa muito pera ver; entra mais el-Rei D. Sancho, bailando os machatins, e entra logo Catarina Real com uns poucos de parvos numa joeira, e semeá-los há pela casa, de que nacerá muito mantimento ao riso, e nisto fenecerá o Auto, com música de chocalho e buzinas, que Cupido vem dar a üa alfeloeira a quem quer bem, e ir-se hão vossas mercês cada um pera suas pousadas, ou consoarão cá connosco disso que aí houver. Parece-me que nenhum diz que não. Ora, pois, ficareis em vano laboraverunt, porque até 'gora zombei de vós, por me forrar do erro da representação como quem diz digo-te, antes que mo digas.

Ambrósio:

Ora vos digo, Senhores, que se as figuras são todas tais, que acertariam em errar os ditos; ainda que me parece que este o não fez, senão a ser mais galante. Mas se assi é, ela é a milhor invenção que eu vi; porque já agora representações, todas é darem por praguentos, e são tão certas, que é milhor errá-las que acertá-las.

Escudeiro:

Parece-me que entram as figuras de siso; vejamos se são tão galantes na prática como nos vestidos.

Entra El-Rei Seleuco com a Rainha

Estratonica:

Rei:

Senhora, dês que a ventura

me quis dar-vos por mulher,

me sinto emmeninecer,

porque em vossa fermosura

perde a velhice seu ser.

Um homem velho, cansado,

não tem força, nem vigor,

pera em si sentir amor,

se não é que estou mudado

com ser vosso noutra cor.

Muito grande dita tem

a mulher que é fermosa.

Rainha:

Senhor, grande: mas, porém,

se a tal é virtuosa,

quer-lhe a ventura mor bem.

Rei:

Si, mas porém nunca vemos

a natureza esmerar

donde haja que taxar,

que quando ela faz estremos,

em tudo quer-se estremar.

Eu falo como quem sente

em vós esta calidade,

pelo que vejo presente;

e se me esta mostra mente,

mente-me a mesma verdade.

üa só tristeza tenho

que não tem a meninice,

que no mor contentamento

o trabalho da velhice

me embaraça o sentimento.

Rainha:

Senhor, novidades tais

far-me hão crer de verdade...

Rei:

Novidades lhe chamais!

Folgo, Senhora, que achais

na velhice novidades.

Rainha:

Senhor, dias há que sento

no Príncipe Antíoco

certo descontentamento:

dera algüa cousa a troco

por saber seu sentimento.

Vejo-lhe amarelo o rosto,

ou de triste, ou de doente:

ou ele anda mal disposto,

ou lá tem certo desgosto

que o não deixa ser contente.

Mande, Senhor, vossa Alteza

a chamá-lo por alguém,

saberemos que mal tem:

se é doença de tristeza,

de que nace, ou de que vem.

Rei:

Certo que eu me maravilho

do que vos ouço dizer.

Que mal pode nele haver?

Ide dizer a meu filho

que me venha logo ver.

Rainha:

Se curar não se procura

üa cousa destas tais,

vem despois a crecer mais:

quando já se não acha cura,

toda a cura é por demais.

Entra o príncipe Antíoco,

com seu pajem

por nome Leacádio:

Príncipe:

Leocádio, se és avisado

e não te falta saber,

saber-me hás dar a entender,

quem ama desesperado

que fim espera de haver?

Pajem:

Senhor, não.

Mas porém por que razão l

he avém sabê-lo, ou de quê?

Príncipe:

-Pergunto-te a conclusão;

não me perguntes porquê.

Porque é minha pena tal,

e de tão estranho ser,

que me hei de deixar morrer;

e por não cuidar no mal

o não ouso de dizer.

Que maneira de tormento

tão estranho e evidente,

que nem cuidar se consente,

porque mesmo pensamento

há medo do mal que sente!

Pajem:

Não entendo a vossa Alteza.

Príncipe:

Assi importa à minha dor.

Pajem:

E por que razão, Senhor?

Príncipe:

Pera que seja a tristeza

castigo do meu temor.

Porque ordena

o amor, que me condena,

que se ajão de sentir,

e sem dizer, nem ouvir.

Bem-aventurada a pena

que se pode descobrir!

Oh caso grande e medonho!

Oh duro tormento fero!

Verdade é isto, que eu quero?

Não é verdade, mas sonho

de que acordar não espero.

Quero-me chegar a el-Rei

meu Pai, que já me está vendo.

Mas onde vou? Não m'entendo.

Com que olhos olharei

um Pai, a quem tanto ofendo?

Que novo modo de antolhos!

Porque neste atrevimento

devera meu sentimento

para ele não ter olhos,

nem para ele pensamento.

Chega aonde está el-Rei,

e diz el-Rei

Rei:

Filho, como andais assi,

que tanto desgosto tomo

de vos ver como vos vi?

Príncipe:

Não sei eu tanto de mi,

que possa saber o como.

Dias há, Senhor, que ando

mal disposto, sem saber

este mal que possa ser;

que se nele estou cuidando,

quase me vejo morrer.

Rei:

Pois, filho, será razão

que meus físicos nos vejam.

Príncipe:

Os físicos, Senhor, não,

que os males que em mi estão

são curas que me sobejam.

Rainha:

Deite-se, que, na verdade,

um corpo, deitado e manso,

descansa à sua vontade.

Príncipe:

Senhora, esta enfermidade

não se cura com descanso.

Rainha:

Todavia, bom será

que lhe façam üa cama.

Príncipe:

Um coxim abastará,

que assi não descansará

o repouso de quem ama.

Rei:

Vamos, filho, pera dentro,

enquanto a cama se faz:

repousai como capaz:

que a mi me dá cá no centro

a pena que assi vos traz.

Vão-se, e vem üa Moça

a fazer a cama e diz:

Moça:

Mimos de grandes senhores,

e suas estremidades,

me hão de matar de amores,

porque de meros dulçores

adoecem.

Então logo lhe parecem

aos outros que são mamados;

e os que são mais privados

sobre eles estremecem.

Certo, e assi Deus me ajude,

que são muito graciosos,

porque de meros viçosos,

não podem com a saúde.

Mas deixá-los,

porque eles darão nos valos,

donde mais não se erguerão,

inda que lhe dêm a mão

os seus privados vassalos.

Entra um Porteiro da Cana,

e bate primeiro e diz:

Porteiro:

Traz, traz, traz?

Moça:

Jesu! Quem está aí?

Porteiro:

Já vós, mana, éreis mamada:

pera vos levar furtada

nunca tal ensejo vi.

E vós estais descuidada!

Moça:

E meus descuidos que fazem?

Porteiro:

Vossos descuidos, cadela?

Ah minh'alma! Sois tão bela,

que esses descuidos me trazem

dous mil cuidados à vela

Pois sou vosso há tantos anos,

mana, tirai os antolhos,

e vereis meus tristes danos.

Moça:

Não tenhais esses enganos.

Porteiro:

Nem vós tenhais esses olhos,

que de vossos olhos vem

esta minha pena fera.

Moça:

De meus olhos? Assi era!

Porteiro:

Moça que tais olhos tem

nenhuns olhos ver devera.

Moça:

E porquê?

Porteiro:

Porque cegais

a quantos olhos olhais,

posto que por vós padecem.

Olhos, que tão bem parecem,

porque não nos castigais?

Moço:

Deus dê siso, pois de vós

tirou o que aos outros deu.

Porteiro:

Desatai-me lá esses nós.

Que mais siso quero eu,

que não ter siso por vós?

Moça:

Falais d' arte; eu vos prometo

que a reposta vem à vela.

Isso é olho de panela.

Quanto há que sois discreto?

Porteiro:

Quanto há já que vós sois bela?

Moça:

Dais-me logo a entender

que eu sou feia, a meu ver.

Porteiro:

E isso porque o entendeis?

Moça:

Porquê? Porque me dizeis

que só de meu parecer

vos procede o que sabeis.

Porteiro.

É verdade.

Moça:

Pois bem sento

que o vosso saber é vento;

fica a cousa declarada

meu parecer não ser nada.

Porteiro:

Olhai aquele argumento:

além de bela, avisada!

Oh nem tanto, nem tão pouco!

Vede vós o que falais.

Moça:

Cego no saber andais.

Porteiro:

No siso, mas não tão louco

como vós, mana, cuidais.

Ora dizei, duna má:

que não amais quem vos ama?

Moça:

Ouvistes vós cantar já

Velho malo, em minha cama?

já me entendereis.

Porteiro:

Ah! Ah!

Senhora, estais enganada,

que com üa capa e espada,

e com este capuz fora...

Moça:

Ora bem: tirai-o ora,

e fazei üa levada.

Porteiro:

Não: se me eu hoje alvoroço,

achar-me heis doutra feição.

Aqui tira o capuz e diz:

Porteiro:

Tenho má disposição?

Estas obras são de moço,

se as mostras de velho são.

Moça:

Tendes mui gentis meneos.

Porteiro:

Não, Senhora; faço estremos.

Moça:

Passeai ora , veremos

se tendes tão bons passeos.

Porteiro:

Tudo, Senhora, faremos.

Moça:

Virai ora a essoutra mão.

Porteiro:

Esta disposição vede-a,

que tenho gentil feição.

Moça:

Tendes vós mui boa rédea.

Sofreis ancas?

Porteiro:

Isso não.

Moça:

Por certo que tendes graça

em tudo quanto fizerdes.

Fazei mais o que souberdes.

Porteiro:

Não sei cousa que não faça,

Senhora, por me quererdes.

Moça:

Tendes vós muito bom ar.

Porteiro:

Mais que isto faz quem quer bem.

Moça:

I-vos asinha, que vem

o Príncipe a se deitar.

Porteiro:

Nunca üa pessoa tem

üa hora pera falar.

Entra o Príncipe com o seu pajem

Leocádio, e diz:

Príncipe.

Seja a morte apercebida,

porque já o amor ordena

a dar a meu mal saída,

porque o fim da minha vida

o seja da minha pena.

Não tarde pera tomar

vingança de meu querer,

pois não se pode dizer

que não tem já que esperar,

nem com que satisfazer.

Os físicos vêm e vão,

sem saberem minhas mágoas,

nem o pulso me acharão;

e se o querem ver nas águas,

as dos olhos lho dirão.

Se com sangrias também

procuram ver-me curado,

o temor de meu cuidado

o mais do sangue me tem

nas veas todo coalhado.

Quero-me aqui encostar,

que já o espírito me cai.

Leocádio, vai-me chamar

os músicos de meu Pai;

folgarei de ouvir cantar.

Aqui se deita, como que repousa,

e fala dizendo assi:

Príncipe:

Senhora, qual desatino

me trouxe a tanta tristura?

Foi, Senhora, por ventura,

a força do meu destino,

como vossa fermosura?

Bem conheço que não posso

ter tão alto pensamento;

mas disto só me contento,

que se paga com ser vosso

o mor mal de meu tormento.

Entram os músicos,

e diz Alexandre d'Afonseca,

um deles:

Alexandre:

Senhor, de que se acha mal

o Príncipe, ou que mal sente?

Pajem:

Senhor, sei que está doente,

mas sua doença é tal,

que entender-se não consente.

Os físicos vêm e vão,

uns e outros ameúde,

sem o poderem dar são:

quanto mais cura lhe dão,

então tem menos saúde.

O Pai anda em sacrifícios

aos deuses, que lhe dêm

a saúde que convém,

dizendo que por seus vícios

o mal a seu filho vem.

Eu suspeito que isto são

alguns novos amorinhos,

que terá no coração.

Alexandre:

Amores! Com quem serão,

que lha não dêm de focinhos?

Porteiro:

Senhores, que lhe parece

da doença de Antioco?

Alexandre:

Diga-lha quem lha conhece.

Pajem:

Que toma morrer a troco

de calar o que padece:

Porteiro:

Isso é estar emperrado

na doença, que é pior.

Tem-no os físicos curado?

Alexandre:

Oh! Que «de mal del amor

no ha, señor, sanador».

Porteiro:

Falais como exprimentado,

que eu cuido que esta fadiga,

que o faz que desespere,

«y por mas tormento quiere

que se sienta, y no se diga».

Alexandre:

Pois, senhor, isso assele,

porque a pena, que sabeis,

que eu cuido que está nele,

dar-lhe há penas cruéis,

«pues no hay quien las consuele».

Porteiro:

Folgo, porque me entendeis.

Pajem:

Hemo-nos, Senhores, de ir,

porque nos está esperando.

Porteiro:

Pois eu também hei de ir

que não me posso espedir

donde vejo estar cantando.

Príncipe:

Cantai por amor de mi,

algüa cantiga triste,

que todo meu mal consiste

na tristeza em que me vi.

Porteiro:

Mande-lhe cantar um chiste.

Alexandre:

Chiste não, que é desonesto,

e não tem esses estremos.

Outro canto mais modesto;

porém não sei que diremos.

Pajem:

Gaonleão o dirá presto.

Porteiro:

Dá licença vossa Alteza

que diga minha tenção?

Príncipe:

Dizei: seja em cantochão.

Porteiro:

Pois crede que é sutileza,

que os Anjos a comerão.

Digam esta:

«Enforquei minha esperança,

e o amor foi tão madraço,

que lhe cortou o baraço».

Alexandre:

Não me parece essa boa.

Porteiro:

Haja eu perdão,

porque não a entenderão.

Entender! Bofá, que é boa!

Não lhe caís na feição?

Alexandre:

Dizei ora outra milhor,

com que nos atarraqueis.

Porteiro:

Ora esperai, e ouvireis:

se a esta não dais louvor,

quero que me degoleis.

Cantiga:

«Com vossos olhos Gonçalves,

Senhora, cativo tendes

este meu coração Mendes».

Alexandre:

Essa parece mui taibo,

porque mostra bom indício.

Porteiro:

Vós cuidareis que eu que raivo.

Alexandre:

Todavia tem mau saibo.

Ora mal lhe corre o ofício.

Príncipe:

Tá, não vá mais por diante

a zombaria, que é má:

Cantei qualquer delas já

que esse Porteiro é galante,

ninguém o contentará.

Aqui cantam, e em acabando diz, o

Pajem:

Parece que adormeceu.

Porteiro:

Pois será bom que nos vamos.

Alexandre:

Senhor, quer que nos vejamos?

Porteiro:

Senhor, vir-me há do céu:

releva-me que o façamos.

Entra a Rainha com üa sua criada

por nome Frolalta, e diz a

Rainha:

Frolalta, como ficava

Antíoco em te tu vindo?

Frolalta:

Ficava-se despedindo

da vida que então levava,

e assi seus dias cumprindo.

Rainha:

Oh grave caso de amor!

Desesperada afeição!

Oh amor sem redenção,

que ali te fazes maior

onde tens menos razão!

No mais alto e fundo pego

ali tens maior porfia.

Razão de ti não se fia:

quem a ti te chamou cego

mui bem soube o que dizia.

Por ventura ia chorando?

Frolalta:

Chorando ia, chamando

ó amor, amor cruel;

e em, Senhora, se deitando,

lhe caiu este papel.

Rainha:

Que papel?

Frolalta:

Este, Senhora.

Rainha:

Amostra, que quero lê-lo.

Agora acabo de crê-lo,

que ao que mostra por fora

aqui lhe lançou o selo.

Aqui lê o papel e diz,:

Rainha:

Oh estranha pena fera!

Desditosa vida cara!

Oh quem nunca cá viera,

e com seu Pai não casara,

ou em casando morrera!

Frolalta:

Ainda que eu peca são,

Senhora, tudo bem vejo.

Atente, que na eleição

o que lhe pede o desejo

não consente o coração.

Rainha:

Frolalta, pois que és discreta

nada te posso encobrir;

porque, se queres sentir,

a üa mulher discreta

tudo se há de descobrir.

O dia que entrei aqui,

que a Seleuco recebi,

logo nesse mesmo dia

no Príncipe filho vi

os olhos com que me via.

Este princípio sofri-lho,

pera ver se se mudava.

Antes mais se acrecentava:

eu amava-o como filho,

e ele doutra arte me amava.

Agora vejo-o no fim

por se me não declarar.

Pois que já a isso vim,

a morte que o levar

me leve também a mim.

Porque já que minha sorte

foi tão crua e desabrida,

que me não quer dar saída,

sejamos juntos na morte,

pois o não somos na vida.

Oh quem me mandou casar,

pera ver tal crueldade!

Ninguém venda a liberdade,

pois não pode resgatar

onde não tem a vontade.

Que não há mor desvario,

que o forçado casamento

por alcançar alto assento,

que, enfim, todo o senhorio

está no contentamento.

Não sei se o vá ver agora,

se será tempo conforme,

ou se imos a desora.

Frolalta:

Despois iremos, Senhora,

que agora dizem que dorme.

Entra o Físico a tomar-lhe o pulso,

e tomando-o diz:

Físico:

Su madrasta oyó nombrar,

y ele pulso se le alteró:

esto no entiendo yo,

porque para le alterar

el corazón le obligó.

Pues que el corazón se altere,

es porque en un momento

algun nuevo vencimiento

de afición terrible le hiere,

que causa tal movimiento.

¿Pues que afición cabe así

con madrasta? Digo yo,

dos razones hay aqui:

la una dice que sí,

la otra dice que no.

Empero yo determino

de exprimentar la verdad,

y hacer una habilidad,

que declare es agua, o vino

esta su enfermedad.

Porque toda esta mañada

tengo estudiado su mal,

sin ver causa efectual

de su dolencia inhumana,

ni otra de su metal.

Llamar quiero este asnejón;

mas aun debe de dormir,

según que es dormilón.

¿Ó Sancho ? ¿ó Sancho ?

Sancho:

¡Ah, Señor! ¡Ah, Señor!

Físico:

¿Ea, aun estás dormiendo?

Sancho:

Estoyme, Señor, vestiendo.

Físico:

Pues, vellaco y sin sabor,

¿no me respondes dormiendo?

Vestios presto, ladrón.

¡Oh qué mozo, y qué ventura!

Sancho:

(¡Mas qué amo y qué cabron!

Embíeme el ropón,

que no hallo mi vestidura.

Físico:

¿Que embie el ropón acá?

Parece que os desmandáis.

Sancho:

¿Que vaya, Señor? há, há!

Que buenos dias hayáis.

Entra o moço embrulhado

em üa manta, e diz o

Físico:

Di: ¿cómo vienes así,

con la manta... y para qué?

Sancho:

Yo, Señor, se lo diré:

por venir presto vestí

lo que mas presto me hallé:

Porque viendo que él me llama,

dormiendo yo sin afán,

«salté presto de la cama,

que paresco un gavilán»,

hermoso como una dama.

Físico:

¿Mas es tu bovedad tanta,

que vienes dessa facción ?

Sancho:

¿De mi vestido se espanta?

De noche sirve de manta,

y de dia de ropón.

Físico:

Embióme el-Rey a llamar

otra vez.

Sancho:

¿Y a mí?

Físico:

¡Y a ti!

Sancho:

¿Y él qué presta allá sin mí?

Físico:

¿Qué puedes tu aprovechar?

Sancho:

Yo se lo diré de aquí;

Si por la ventura quiere

para que le dé consejo,

cuando doliente estuviere,

digo, coma, si pudiere,

y beba buen vino anejo;

Porque este es el licor

que dá fuerza, y es sabroso;

que segón dicen, Señor,

Vinum laetificat cor

Hominis, y le es provechoso.

Físico:

Ya sabes la medicina,

que Avicena nos refiere.

Sancho:

Pues, Señor, porque es divina.

¿Pero el-Rey qué le quiere,

qué manda, o qué determina?

Físico:

E1 Príncipe está doliente.

Sancho:

¡Oh mesquino! ¿Y qué mal ha?

Físico:

¿Y a ti, necio, que te vá?

Sancho:

¡Oh! Señor, que es mi pariente!

Físico:

Gracioso el bovo está.

Y pues díme por tu fé:

¿llorarás, si se muriere?

Sancho:

No, [Señor], no lloraré;

empero, Señor, haré

la peor cara que pudiere.

Físico:

Ea, bovo, vé corriendo,

y ensilla la mula aína.

Sancho:

Mula viene ensillar mejor.

Físico:

¡Oh vellaco, y sin sabor!

Sancho:

Yo por cierto no lo entiendo.

Pero una melecina

le he de pedir, Dios queriendo,

porque ando atribulado

y no sé parte de mi

con este nuevo cuidado

para un sayo esfarrapado,

que me dicen hay allí.

Físico:

Ora ensilla: y nunca biva,

pues sufro tus desatinos.

Sancho:

Señor, pasión no reciva:

«Ya cavalga Calaínos

a la sombra de una oliva».

Aqui se vai bolindo com a almofaça,

e acorda o Príncipe, e diz:

Príncipe:

Oh bela vista e humana,

por quem tanto mal sostenho!

Oh Princesa soberana

como nos braços vos tenho,

ou este sonho me engana?

Pois como, sonho, também

me queres vir magoar,

e pera me atormentar

mostras-me a sombra do bem

pera assi mais me enganar?

Assi que, com quanto canso,

já não posso achar atalho,

pois que o sono quieto e manso,

que os outros têm por descanso,

me vem a mim por trabalho.

Pois há i tantos enganos

que condenam minha sorte,

não o tenho já por forte,

se à volta de tantos danos

viesse também a morte.

Aqui entra el-Rei com o Físico,

e diz el-Rei:

Rei:

Andai e vede se achais

o rasto deste segredo,

que me dizem que alcançais;

ainda que tenho medo

que lhe seja por demais.

Físico:

Plega a Dios que aquesta sea

para salud y remédio

desta dolencia tan fea;

yo buscaré todo el medio

que presto sano se vea.

Aqui lhe toma o Físico o pulso, e diz:

Afloxen, Señor, sus ais.

¿Cómo se halla en su penar?

Príncipe:

Como me acho perguntais?

Como se pode achar

quem sempre se perde mais?

Físico:

La respuesta abre el camino:

¿Imagina de contino?

Príncipe:

Não tenho outro mantimento,

nem outro contentamento,

senão o em que imagino.

Aqui entra a Rainha e diz,:

Rainha:

Como se sente, Senhor?

Tem a febre mais pequena?

Príncipe:

Responda-lhe minha pena.

Físico:

Conocido es su dolor.

Ora sea en hora buena.

Tomada está la tristeza

á las manos. ¿Qué sintió?

Usaré de sutileza.

Diz, contra el-Rei:

Cúmpleme que solo yo

platique con vuestra Alteza.

Rei:

Cheguemo-nos pera cá.

Rainha:

Não deve desesperar,

que, enfim, se bem atentar,

pera tudo o tempo dá

tempo pera se curar.

Príncipe:

Que cura poderá ter

quem tem a cura, Senhora,

no impossível haver?

Rainha:

Ficai-vos, Senhor, embora,

que vos não sei responder.

Vai-se a Rainha e diz el-Rei:

Rei:

Neste mal, que não comprendo,

que meio dais de conselho?

Físico:

Señor, nada entiendo dello;

y puesto que lo entiendo,

yo quisiera no entendello.

Rei:

Porquê ?

Físico:

Porque tengo entendido

lo más malo de entender,

para lo que puede ser,

porque anda, Señor, perdido

d'amores por mi mujer.

Rei:

Santo Deus! Quê! Tal amor

lhe dá doença tão fera?

Que remédio achais milhor?

Físico:

Forzado será que muera,

porque no muera mi honor.

Rei:

Pois como! A um só herdeiro

deste reino não dareis

vossa mulher, pois podeis,

que tudo faz o dinheiro?

Pois este não o enjeiteis;

dai-lha, porque eu espero

de vos dar dinheiro e honra,

quanto eu para ele quero.

Físico :

No tira el mucho dinero

la mancha de la deshonra.

Rei:

Ora bem pouco defeito!

É pequice conhecida,

quando deixa de ser feito,

porque com ele dais vida

a quem vos dará proveito.

Físico:

¡Cuán facilmente aporfia

quién en tal nunca se vió!

¿Del consejo que me dió,

vuestra Alteza que haria

si ahora fuese yo?

Rei:

A mulher que eu tivesse

dar-lha ia. Oxalá

que ele a Rainha quisesse!

Físico:

Pues dela, si le parece,

que por ella muerto está.

Rei:

Que me dizeis?

Físico:

La verdad.

Rei:

Sem duvida, tal sentistes?

Físico:

Sin duda, sin falsedad.

Pues, Señor, ahora tomad

los consejos que me distes.

Rei:

Certamente que eu o via

em tudo quanto falava.

Como o vistes? Porque via?

Físico:

Nel pulso, que se alteraba

si la vía, o si la oía.

Rei:

Que maneira há de haver?

Que eu, certo, me maravilho,

possa mais o amor de filho,

do que pode o da mulher.

Finalmente, hei-lha de dar,

que a ambos conheço o centro.

Quero-o ir levantar,

e iremos pera dentro

neste caso praticar.

Diz contra o Príncipe:

Levantai-vos, filho, di,

o milhor que vós puderdes,

e vinde-vos pera aqui,

porque, enfim, o que quiserdes

tudo havereis de mi.

Pajem:

Ah, Senhores, oulá, ou?

Porteiro:

Viestes em conjunção

a milhor que pode ser:

haveis aqui de fazer

a trosquia a um rifão.

Pajem:

Deixai-me, Senhor, dizer;

haveis isto de acabar:

Coração, i bugiar,

no esteis preso en cadenas,

que, pois o amor vos deu penas,

que vos lanceis a voar.

Porteiro:

Por certo que bem comprou.

Pajem:

Ora sabeis o que vai?

Antíoco que casou

com a mulher de seu Pai,

e o mesmo Pai o ordenou

Porteiro:

Isso como?

Pajem:

Não o sei:

porque dizem que a amava,

e que só por ela andava

pera morrer; e el-Rei

deu-a a quem a desejava.

Porteiro:

Se o casa por querer bem

com a moça a quem ama,

direi que a mim me inflama

o amor mais que a ninguém.

Pajem:

Pois pedi-lhe a nossa dama.

Porteiro:

Por São Gil, que ei-los cá vem,

ele pela mão com ela.

Entra el-Rei, e Antíoco

com a Rainha pela mão, e diz el-Rei:

Rei:

Que mais há i que esperar?

Olhai que estranheza vai:

o muito amor ordenar

ir-se o filho namorar

de üa mulher de seu Pai!

Querer bem foi sua dor,

negar-lha será crueldade;

assi que já foi bondade

usar eu de tal amor

e de tal humanidade.

Ela deixou de reinar

como fazia primeiro

por se com ele casar,

e por amor verdadeiro

tudo se pode deixar.

Eu que nela tinha posto

todo o bem de meu cuidado,

deixei mais que ela há deixado,

que mais se deixa no gosto,

que no poderoso estado.

Mas já que tudo isto vemos,

hajam festas de prazer,

as que milhor possam ser,

porque em tão grandes estremos

estremos se hão de fazer.

Hajam cantos pera ouvir,

jogos, prazeres sem fundo,

porque, se quereis sentir,

deste modo entrou no mundo,

e assi há de sair

Aqui vem os Músicos e cantam,

e despois de cantarem

saem-se todas as figuras, e diz

Martins Chinchorro:

Ora, Senhor, tomemos também nosso pandeiro, e vamos festejar os noivos, ou vamos consoar com as figuras, porque me parece que esta é a mor festa que pode ser. Mas espere v. m., ouviremos cantar e na volta das figuras nos acolheremos. Moço, acende esse molho de cavacos, porque faz escuro, não vamos dar connosco em algum atoleiro, aonde nos fique o ruço e as canastras.

Estácio da Fonseca:

Não, Senhor, mas o meu Pilarte irá com eles com um par de tições na mão; e perdoem o mau gasalhado, mas daqui em diante sirvam-se desta pousada, e não tenham isto por palavras, porque «essas e plumas, o vento as leva».

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CARTA I

mandada da Índia a um amigo

Desejei tanto üa vossa, que cuido que pola muito desejar, a não vi; porque este é o mais certo costume da fortuna: consentir que se deseje o que mais presto há de negar. Mas porque outras naus me não façam tamanha ofensa, como é fazerem- me suspeitar que vos não lembro, determinei de vos obrigar agora com esta; na qual pouco mais ou menos vereis o que quero que me escrevais dessa terra. Em pago do qual, d'antemão vos pago com novas desta, que não serão más no fundo de üa arca pera aviso de alguns aventureiros que cuidam que todo o mato é ouregãos, e não sabem que «cá e lá más fadas há»! Despois que dessa terra parti, como quem o fazia pera o outro mundo, mandei enforcar a quantas esperanças dera de comer até então, com pregão público: Por falsificadoras de moeda. E desenganei esses pensamentos, que por casa trazia, porque em mim não ficasse pedra sobre pedra. E assi posto em estado que me não via senão por entre fusco e fusco, as derradeiras palavras que na nau disse foram as de Cipião Africano: Ingrata pátria, nora possidebis osso mea.Porque quando cuido que, sem pecado que me obrigasse a três dias de Purgatório, passei três mil de más línguas, peores tenções, danadas vontades, nacidas de pura enveja, de verem su amada Medra de si arrancada, y en otro muro asida...Da qual também amizades, mais brandas que cera, se acendiam em ódios que disparavam lume que me deitava mais pingos na fama que os couros de um leitão. Então ajuntou-se a isto acharem- me sempre na pele a virtude de Aquiles, que não podia ser cortado senão pelas solas dos pés; as quais de mas não verem nunca, me fez ver as de muitos, e não enjeitar conversações da mesma impressão, a quem fracos punham mau nome, vingando com a língua o que não podiam com o braço. Enfim, Senhor, eu não sei com que me pague saber tão bem fugir a quantos laços nessa terra me armavam os acontecimentos, senão com me vir pera esta, onde vivo mais venerado que os touros da Merceana, e mais quieto que a cela de um Frade Pregador. Da terra vos sei dizer que é mãe de vilões ruins, e madrasta de homens honrados. Porque os que se cá lançam a buscar dinheiro, sempre se sustentam sobre a água com{o} bexigas; mas os que sua opinião deita a las armas Mouriscote, como maré corpos mortos à praia, sabei que, antes que amadureçam, se secam. Já estes que tomavam esta opinião de valentes às costas, crede que nunca riberas del Duero arriba cavalgaron Zamoranos, que roncas de tal soberbia entre sí fuesen hablando; e quando vêm ao efeito da obra, salvam-se com dizerem que se não podem fazer tamanhas duas cousas, como é prometer e dar. Informado disto, veio a esta terra João Toscano, que, como se achava em algum magusto de rufiões, verdadeiramente que ali era su comer las carnes crudas, su beber la viva sangre. Calisto de Sequeira se veio cá mais humanamente, porque assim o prometeu em üa tormenta grande em que se viu. Mas um Manuel Serrão, que, sicut et nos, manqueja de um olho, se tem cá provado arrezoadamente. Porque fui tomado por juiz de certas palavras de que ele fez desdizer a um soldado, o qual, pola postura de sua pessoa, era cá tido em boa conta. Se das damas da terra quereis novas, as quais são obrigatórias a üa carta, como marinheiros à festa de S. Frei Pêro Gonçalves, sabei que as Portuguesas todas caem de maduras, que não há cabo que lhe tenha os pontos, se lhe quiserem lançar pedaço. Pois as que a terra dá, além de serem de rala, fazei-me mercê que lhe faleis alguns amores de Petrarca, ou de Boscão; respondem-vos üa linguagem meada de ervilhaca, que trava na garganta do entendimento, a qual vos lança água na fervura da mor quentura do mundo. Ora julgai, Senhor, o que sentirá um estâmago costumado a resistir às falsidades de um rostinho de tauxia de üa Dama Lisbonense, que chia como pucarinho novo com a água, vendo-se agora entre esta carne de salé, que nenhum amor dá de si. Como não chorarás las memórias de in illo tempore! Por amor de mim, que às mulheres dessa terra digais de minha parte que, se querem absolutamente ter alçada com baraço e pregão, que não receiem seis meses de má vida por esse mar, que eu as espero com procissão e pálio, revestido em pontifical, adonde estoutras Senhoras lhe irão entregar a chaves da cidade, e reconhecerão toda a obediência, a que por sua muita idade são já obrigadas. Por agora não mais, senão que este Soneto que aqui vai, que fiz à morte de Dom António de Noronha, vos mando em sinal de quanto dela me pesou. Üa Égloga fiz sobre a mesma matéria, a qual também trata algüa cousa da morte do Príncipe, que me parece milhor que quantas fiz. Também vo-la mandara para a mostrardes lá a Miguel Dias, que, pela muita amizade de D. António, folgaria de a ver; mas a ocupação de escrever muitas cartas pera o Reino me não deu lugar. Também lá escrevo a Luís de Lemos, em resposta de outra que vi sua: se lha não derem, saiba que é culpa da viagem, na qual tudo se perde.— Vale.

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CARTA II

Esta vai com a cadeira na mão morrer nas de v.m.; e, se dai passar, seja em cinza, porque não quero que do meu pouco comam muitos. E se todavia quiser meter mais mãos na escudela, mande-lhe lavar o nome e valha sem cunhas.

La mar en media y tierras De dejado

y cuanto bien coitado Co tenta.

Mas cuán cano imaginar, cuán claro engaño

es dorme Vá a entender que, con partirme,

de mi se há de partir un mal tamaño!

Quão mal está no caso quem cuida que a mudança do lugar muda a dor do sentimento! E, se não, diga-o quien dijo que la ausência causa olvido. Porque, enfim, la tierra queda, e, o mais, a alma acompanha. Ao alvo destes cuidados jogam meus pensamentos à barreira, tendo-me já, pelo costume, tão contente, de triste, que triste me faria ser contente; porque o longo uso dos anos se converte em natureza. Pois o que é pera mor mal, tenho eu pera mor bem. Ainda que, pera viver no mundo, me debruo de outro pano, por não parecer coruja entre pardais, fazendo-me um pera ser outro, sendo outro pera ser um; mas a dor dissimulada dará seu fruito, que a tristeza no coração é como a traça no pano.

E por tão triste me tenho

que, se sentisse alegria,

de triste, não viveria.

Porque a tal sorte vim

que não vejo bem algum

em quanto vejo,

que não naceu pera mim;

e por não sentir nenhum,

nenhum desejo.

Porque, cousas impossíveis, é milhor esquecê-las que desejá-las. E, por isso

Só tristeza ver queria,

pois minha ventura quer

que só ela

conheça por alegria,

e que, se outra quiser,

moura por ela.

Pouco sabe da tristeza quem, sem remédio para ela, diz ao triste que se alegre; pois não vê que alheios contentamentos a um coração descontente, não lhe remediando o que sente, lhe dobram o que padece. Vós, se vem à mão, esperáreis de mim palavrinhas joeiradas, enforcadas de bons propósitos. Pois desenganai-vos, que, dês que professei tristeza, nunca mais soube jogar a outro fito. E, porque não digais que sou gente fora do meu bairro, vedes, vai üa volta feita a este mate, que escolhi na manada dos enjeitados; e cuido que não é tão dedo queimado que não seja dos que el-rei mandou chamar; o qual fala assi:

Não quero e não quero

jubão amarelo.

Se de negro for

também me parece

quanto m' aborrece

toda a alegre cor:

cor que mostra dor,

quero e não quero

jubão amarelo.

Parece-vos que se pode dizer mais? Não me respondais: «Quem gabará a noiva?» Porque assentai que foi comendo e fazendo, ou assoprando, que não é tão pequena habilidade. E, porque vos não pareça que foi mais acertar que querê-lo fazer, vedes, vai outra do mesmo jaez, contanto que se não vá a pasmar:

Perdigão perdeu a pena,

não há mal que lhe não venha.

Em um mal outro começa,

que nunca vem só nenhum;

e o triste que tem um

a sofrer outro se of’reça;

e só pelo ver, conheça

que basta um só que tenha

pera que outro lhe venha.

Que graça será esperardes de mim propósitos, em cousa que os não tem pera comigo? Pois, ainda que queira, não posso o que quero; que um sentido remontado, de não pôr pé em ramo verde, tudo lhe sucede assi; e «cada um acode ao que lhe mais dói»; e mais eu, que o que mais me entristece é contentamento ter, pois fujo dele, que minh'alma o aborrece, porque lhe lembra que é virtude de viver sem ele. Porque já sabeis que mágoa é: «vê-lo hás e não o paparás». Por fugir destes inconvenientes,

Toda a cousa descontente

contentar-me só convinha,

de meu gosto;

que, o mal de que sou doente,

sua mais certa mezinha

é desgosto.

Já ouviríeis dizer: «Mouro, o que não podes haver, dá-o pela tua alma». O mal sem remédio, o mais certo que tem, é fazer da necessidade virtude; quanto mais, se tudo tão pouco dura como o passado prazer. Porque, enfim, allegados son iguales los que viven por sus manos, etc. A este propósito, pouco mais ou menos, se fizeram üas voltas a um mote de enche-mão, que diz por sua arte, zombando mais, que não de siso (que toda a galantaria é tirá-la donde se não espera), o qual crede que tem mais que roer do que um praguento. Portanto recuerde el alma adormida, e mande escumar o entendimento, que, doutra maneira, de fuera dormiredes, pastorcico. E o meu senhor diz assi:

Dava-lhe o vento no chapeirão,

quer lhe dê, quer não.

Bem o pode revolver,

que o vento não traz mais fruito;

e mais vento é sentir muito

o que, enfim, fim há-de ter.

O milhor, é milhor ser,

que o vento no chapeirão,

quer lhe dê, quer não.

üa cousa sabei de mim: que queria antes o bem do mal, que o mal do bem; porque muito mais se sente o porvir, que o passado; e a morte, até matar, mata. Não sei se sereis marca de voar tão alto; porque, pera tomar a palha a esta matéria, são necessárias asas de nebri. Mas vós sois homem de prol, e desculpa-me a conta em que vos tenho. E a que de mim vos sei dar, é que:

Esperança me despede,

tristeza não me falece,

e tudo o mais m'aborrece.

Já que mais não mereceu

minha estrela,

só a tristeza conheço,

pois que para mim naceu

e eu para ela.

No mundo não tem boa sorte senão quem tem por boa a que tem. E daqui me vem contentar-me, de triste. Mas olhai de que maneira:

Vivo assi ao revés,

tomando por certa vida

certa morte,

com que folgo, em que me pês,

pois minha sorte é servida

de tal sorte.

üa cousa sabei: que o mal, inda que às vezes o vejais louvar, não há quem o louve com a boca que o não taxe com o coração:

Ajudai-me a sofrer

vida tão sem sofrimento,

e tão sem vida:

ver que, enfim, fim há-de ter

desgosto e contentamento

üa medida.

Atentai que não são maus confeitos de enforcado pera os que estão com o baraço na garganta, cuidar que o bem e o mal, ainda que sejam diferentes na vida, são conformes na morte; porque vemos

Que não há tão alta sorte,

nem ventura tão subida,

ou desastrada,

a quem não assopre a morte,

não sopre o fogo da vida.

A seu fim todas cousas vão correndo;

nem há cousa que o tempo não consuma,

nem vida que de si tanto presuma

que se não veja nada, em se vendo.

Que o mais certo que temos

é nada termos certo

cá na terra,

pois pera seus não nacemos;

se o seu nos dá incerto,

nada erra.

Quero-vos dar conta de um soneto sem pernas, que se fez a um certo recontro que se teve com este destruidor de bons propósitos, e não se acabou, porque se teve por mel empregada a obra; cujo teor é o seguinte:

Forçou-me Amor, um dia, que jogasse;

deu as cartas, e d'ouros levantou;

e, sem respeitar mão, logo trunfou;

cuidando que o metal que me enganasse,

dizendo, pois trunfou, que triunfasse

a üa seta de ouros que jogou;

eu então, por burlar quem me burlou

três paus joguei, e disse que ganhasse.

Príncipes de condição, ainda que o sejam de sangue, são mais enfadonhos que a pobreza; fazem, com sua fidalguia, com que lhe cavemos fidalguias de seus avos, onde não há trigo tão joeirado que não tenha algua ervilhaca. Já sabeis que «basta um frade ruim pera dar que falar a um convento». Três cousas não se sofrem sem discórdia: companhia, namorar, mandar vilão ruim sobre cousa de seu interesse. Não se pode ter paciência com quem quer que lhe façam o que não faz. Desagradecimentos de boas obras, destruem a vontade pera não fazê-las a amigo, que tem mais conta com o interesse que com a amizade; rezai dele, que é dos cá nomeados.

Grande trabalho é querer fazer alegre rosto quando o coração está triste: pano é que não toma nunca bem esta tinta; que a Lua recebe a claridade do Sol, e o rosto, do coração. Nada dá quem não dá honra no que dá: não tem que agradecer quem, no que recebe, a não recebe; porque bem comprado vai 0 que com ela se compra. Nada se dá de graça o que se pede muito. Está certo! Quem não tem üa vida tem muitas. Onde a razão se governa pela vontade, há muito que praguejar, e pouco que louvar. Nenhüa cousa homizia os homens tanto consigo como males de que se não guardaram, podendo. Não há alma sem corpo, que tantos corpos faça sem almas, como este purgatório a que chamais honra; donde muitas vezes os homens cuidam que a ganham, aí a perdem. Onde há enveja, não há amizade; nem a pode haver em desigual conversação. Bem mereceu o engano quem creu mais o que lhe dizem que o que viu. Agora, ou se há-de viver no mundo sem verdade, ou com verdade sem mundo. E pera muito pontual, perguntai-lhe de onde vem; vereis que algo tiene en el cuerpo, que le duele. Ora temperai-me lá esta gaita, que nem assi, nem assi achareis meio real de descanso nesta vida; ela nos trata somente como alheios de si, e com razão:

Pois somente nos é dada

pera que ganhemos nela

o que sabemos.

Se se gasta mal gastada,

juntamente com perdê-la,

nos perdemos.

Enfim, esta minha Senhora, sendo a cousa por que mais fazemos, é a mais fraca alfaia de que nos servimos. E se queremos ver quão breve é,

ponderemos e vejamos

que ganhamos em viver

os que nacemos: veremos

que não ganhamos senão

algum bem fazer,

se o fazemos.

E, por isso, respeitando

que o porvir tal será,

entesouremos;

porque [ao certo] não sabemos

quando a morte pedirá

que lhe paguemos.

Nunca vi cousa mais pera lembrar, e menos lembrada, que a morte; sendo mais aborrecida que a verdade, tem-se em menos conta que a virtude.

Mas, contudo, com seu pensamento, quando lhe vem à vontade, acarreta mil pensamentos vãos; que tudo pera com ela é um lume de palhas. Nenhüa cousa me enche tanto as medidas pera com estes que vivem [n]a mor bonança, como ela; porque quando lhe menos lembra, então lhe arranca as amarras, dando com os corpos à costa; e se vem à mão, com as almas no inferno, que é bem ruim gasalhado:

E pois todos isto temos,

não nos engane a riqueza,

por que tanto esmorecemos,

e trás que vamos;

Já que temos a certeza

que, quando mais a queremos,

a deixamos.

Gastamos em alcancá-la

a vida; e quando queremos

usar dela,

nos tira a morte lográ-la;

assi que a Deus perdemos

e a ela .

Porque já ouviríeis dizer: «Ninho feito, pega morta». Que me dizeis ao contentamento do mundo, que toda a dura dele está enquanto se alcança? Porque, acabado de passar, acabado de esquecer. E com razão, porque, acabado de alcançar, é passado; e maior saudade deixa do que é o contentamento que deu. Esperai, por me fazer mercê, que lhe quero dar umas palavrinhas de propósito:

Mundo, se te conhecemos,

porque tanto desejamos

teus enganos?

E, se assi te queremos,

mui sem causa nos queixamos

de teus danos.

Tu não enganas ninguém,

pois a quem te desejar

vamos que danas;

se te querem qual te vem,

se se querem enganar,

ninguém enganas.

Vejam-se os bens que tiveram

os que mais em alcançar-te

se esmeraram;

que uns, vivendo, não viveram,

e os outros, só com deixar-te,

descansaram.

E se esta tão clara fé

te aclara teus enganos,

desengana;

sobejamente mal vê

quem, com tantos desenganos,

se engana

Mas como tu sempre mores

no engano em que andamos

e que vemos,

não cremos o que tu podes,

senão o que desejamos

e queremos.

Nada te pode estimar

quem bem quiser estimar-te

e conhecer-te;

que em te perder ou ganhar,

o mais seguro ganhar-te

é perder-te.

E quem em ti determina

descanso poder achar,

saiba que erra;

que sendo a alma divina,

não a pode descansar

nada da terra.

Nacemos pera morrer,

morremos pera ter vida,

em ti morrendo.

O mais certo é merecer

nós a vida conhecida,

cá vivendo.

Enfim, mundo, és estalagem

em que pousam nossas vidas

de corrida;

de ti levam de passagem

ser bem ou mal recebidas

na outra vida.

Afuera, afuera, Rodrigo, que eu, se muito for por este caminho, darei em enfadonho, ainda que me parece já me não livrará privilégio de cidadão do Porto.

E, pois me vendo a vós, sofrei-me com meus encargos. E, porque não digais que sou herege de Amor, e que lhe não sei orações, vedes, vai üa: Di, Juan¿ de qué murió Blas? com um pé à portuguesa e outro à castelhana; e não vos espanteis da libré, que eu em qualquer palmo desta matéria perco o norte. E os suplicantes dizem assi:

—Di, Juan, ¿ de que murió Blas,

tan niño e tan mal logrado?

—Gil, murió de desamado.

—Dime. Juan, ¿quien te engañó

que con Amor se engañase,

pensando que el bien hallasse

adonde el mal cierto halló

¿Después que el engano vio,

que hino desenganado?

—Gil, murió de desamado.

Travou com ele pendença,

em ter razão confiado;

mas Amor, como é letrado,

houve contra ele a sentença;

e com aquela diferença,

disse entre si o coitado:

Gil morreu de desamado.

Quem tem razão tão cerrada

que não saiba, sendo rudo

e sem respeito,

que, sem Deus, é tudo

nada, e nada, com ele, tudo,

sem defeito?

E sendo isto tão certo,

como todos confessamos

e sabemos.

não demos pelo incerto

o em que tão certo estamos,

pois o vamos.

A tudo isto podeis responder que todos morremos do mal de Faetão, porque del dicho al hecho, va gran trecho. E de saber as cousas a passar por elas, há mais diferença que de consolar a ser consolado: mas assi entrou o mundo, e assi, há-de sair; muitos a repreendê-lo, e poucos a emendá-lo. E com isto amaino, beijando essas poderosas mãos üa quatrínqua de vezes, cuja vida e reverendíssima pessoa nosso Senhor, etc.

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