Ana Leonor Serra Morais dos Santos

嚜燈pci車n, A?o 31, No. Especial 6 (2015): 611 - 631

ISSN 1012-1587

Animal Sentimental: O contributo

das neuroci那ncias para uma redefini??o

do humano*

Ana Leonor Serra Morais dos Santos

Universidade da Beira Interior (Portugal) amorais@ubi.pt;

moraissantos.ana@gmail,com

Resumo

Na resposta 角 pergunta pelo Homem, as emo??es foram tradicionalmente pensadas segundo os registos ou de antagonismo ou de submiss?o relativamente 角 superior faculdade da raz?o, sendo o conceito de

animal racional paradigm芍tico desta teoriza??o. Fazendo uso dos princ赤pios epistemol車gicos da interdisciplinaridade e da integra??o vertical,

propomo-nos atender 角 inclus?o das emo??es e dos sentimentos no discurso neurocient赤fico, e verificar a respectiva compatibilidade com a referida concep??o antropol車gica. Arejei??o da tese dualista, por via da intersec??o entre emo??es, sentimentos e raz?o, levar-nos-芍 a assumir os

sentimentos, na sua rela??o com a consci那ncia, como elemento estruturante do humano.

Palavras-chave: Antropologia, emo??es, neuroci那ncias, racionalidade, sentimentos.

*

Texto parcialmente desenvolvido no ?mbito da tese de doutoramento. Escrito segundo a grafia pr谷via ao novo acordo ortogr芍fico.

Recibido: 30-10-2015 ? Aceptado: 30-11-2015

612

Ana Leonor Serra Morais dos Santos

Opci車n, A?o 31, No. Especial 6 (2015): 611 - 631

The Sentimental Animal: The Neuroscience

Contribution in the Human Reset

Abstract

In the answer to the question on Man, emotions have traditionally

been considered either as antagonistic or submissive in comparison with

reason, the higher faculty, being the concept of ※rational animal§ the

very paradigm of this theory. Following the epistemological principles

of interdisciplinarity and vertical integration, we intend to approach the

inclusion of emotions and feelings in the neuroscientific speech and verify its compatibility with such an anthropological conception. The rejection of a dualistic theory based in the intersection of emotions, feelings and reason will lead us to the conclusion that feelings are a structural element of the human in its relation to consciousness.

Keywords: Anthropology, emotions, neurosciences, rationality, feelings.

Prenez soin de l*animal en vous 每 pour devenir plus humain.

Andr谷 Comte-Sponville

1. INTRODU??O

O afastamento entre fil車sofos e cientistas 谷 relativamente recente

na hist車ria da cultura ocidental. Na Antiguidade, fil車sofos como Dem車crito e Arist車teles interessaram-se de maneira sistem芍tica pelos assuntos

da natureza; matem芍ticos como Euclides e Pit芍goras foram tamb谷m fil車sofos; a medicina manteve uma rela??o com a filosofia antag車nica, 谷 certo, em alguns aspectos, mas simultaneamente simbi車tica em outros tantos: o desenvolvimento de uma medicina racional, com os hipocr芍ticos,

acompanhou a racionaliza??o que a filosofia imprimia ao pensamento;

os f赤sicos cl赤nicos aproveitavam o potencial te車rico dos modelos cosmol車gicos e 谷ticos da filosofia para sugerir regimes m谷dicos mais v芍lidos,

em vista de uma vida boa, enquanto os fil車sofos beneficiaram da complexidade e da clareza do discurso m谷dico, bem como das analogias cl赤nicas, colocando-as ao servi?o da produ??o filos車fica (Carrick, 2001).

A import?ncia da comunica??o nas redes de investiga??o

interdisciplinares e suas pr芍ticas discursivas

613

? ap車s o Renascimento que a clivagem entre as duas ordens de saber

come?a a acentuar-se, ainda que pontuada por excep??es relevantes, quer na

reflex?o filos車fica por parte de cientistas, de que s?o exemplo Augustin

Cournot, Henri Poincar谷 e, mais recentemente, Jacques Monod, quer no interesse pela ci那ncia por parte de fil車sofos, como no caso de Henri Bergson,

de Merleau-Ponty e, mais recentemente, de John Searle.

No que diz respeito, em particular, ao ser humano, a filosofia e a ci那ncia convergiram na tentativa de conhecimento, maioritariamente, por diverg那ncia: convergentes no objectivo, mantiveram-se quase sempre paralelas

nas perspectivas. A assun??o generalizada da dicotomia diltheyniana como

correlato de uma ontologia bipartida sedimentou uma diferen?a epistemol車gica aparentemente irredut赤vel. Filosoficamente, a afirma??o de uma ※antropologia cent芍urea§, na qual se cinde o ser humano em animal e n?o-animal, promoveu esta dicotomia (metaforicamente pensada por Ortega Y

Gasset), a partir da qual a compreens?o da vida humana 谷 irredut赤vel a explica??es naturalistas, tanto mais que, imageticamente, a divis?o claramente

estabelecida mostra uma parte humana (n?o-natural) e uma parte animal

(natural) que, embora unidas, n?o se misturam.

Esta irredutibilidade epistemol車gica e ontol車gica foi sistematicamente assumida como autonomia e apresentada como sustent芍culo do

car芍cter excepcional do ser humano no mundo. Contudo, um fen車meno

de epistemological turn configurou recentemente um reposicionamento

epist谷mico importante: as ci那ncias ditas naturais voltaram a colocar

quest?es ontol車gicas, ao mesmo tempo que o naturalismo voltou a surgir

no seio da filosofia, num processo prof赤cuo em v芍rias ramifica??es. ?

neste contexto que cremos ser pertinente ir ao encontro das ci那ncias, nomeadamente das neuroci那ncias, tendo em conta a relev?ncia antropol車gica do seu objecto de estudo e os progressos alcan?ados nas 迆ltimas d谷cadas, e com elas repensar a defini??o do humano.

Assim, come?amos por ressaltar a natureza sintetizante e globalizante da antropologia, que torna a interdisciplinaridade necess芍ria, para,

em seguida, apontarmos de que forma as neuroci那ncias contribuem para

a compreens?o do ser humano. Apresentado o enquadramento te車rico

subjacente 角 reflex?o em causa, uma exposi??o da teoria das emo??es e

dos sentimentos de Ant車nio Dam芍sio, na qual se insere uma refer那ncia

particular 角 rela??o entre sentimentos e consci那ncia, permitir-nos-芍 propor uma concep??o humana afastada do imp谷rio da raz?o.

614

Ana Leonor Serra Morais dos Santos

Opci車n, A?o 31, No. Especial 6 (2015): 611 - 631

2. DA CONFLU?NCIA DE SABERES NA

ANTROPOLOGIA

A dimens?o simultaneamente sintetizante e globalizante da antropologia 谷 amplamente reconhecida. Estamos no ?mbito de um tipo de saber que re迆ne uma multiplicidade de dimens?es, na tentativa de compreens?o do humano. Nesse sentido, a interdisciplinaridade, mais do que

uma op??o metodol車gica, imp?e-se como condi??o de possibilidade

dessa mesma compreens?o.

No pensamento contempor?neo, Max Scheler foi um dos primeiros

a tomar consci那ncia do perigo do isolamento te車rico na antropologia, e a

assinal芍-lo, notando a inexist那ncia de uma vis?o unit芍ria: ※Possu赤mos

assim uma antropologia cient赤fico-natural, uma antropologia filos車fica e

uma antropologia teol車gica, que mutuamente se ignoram 每 do homem,

por谷m, n?o possu赤mos nenhuma ideia unit芍ria.§ (Scheler, 1928: 15).

Num outro contexto, mas com a mesma preocupa??o subjacente, o

neurocientista Jean-Pierre Changeux, em di芍logo com Paul Ricoeur, faz

notar que ※o fosso que, institucionalmente, separa ci那ncias da vida e ci那ncias do homem e da sociedade 谷 catastr車fico§ (Changeux e Ricoeur,

1998: 31). Na verdade, a compartimenta??o disciplinar, possibilitando

todas as vantagens da especializa??o, deve ser complementada com o di芍logo disciplinar, em vista de um conhecimento global e unificado. Tal

ensejo dialogante 谷 facilitado pelo interesse crescente dos cientistas por

quest?es ontol車gicas, antropol車gicas e 谷ticas, conjugado com o questionamento filos車fico da conveni那ncia de uma reflex?o meramente especulativa e aprior赤stica. Estas condi??es criaram um quadro epist谷mico que

Patricia Churchland caracteriza como sendo de reencontro de problemas

comuns e de tomada de consci那ncia dos benef赤cios de uma investiga??o

cruzada (Churchland, 1986: 5).

J芍 antes Merleau-Ponty havia fomentado esta articula??o entre filosofia e ci那ncia. De um modo geral, o fil車sofo franc那s considera que a ci那ncia permite aferir o desajustamento de certas afirma??es filos車ficas que se

apresentam como verdadeiras, tendo o poder de destituir as pseudo-evid那ncias do seu suposto car芍cter de evid那ncia (Merleau-Ponty, 1952). A

aproxima??o 角 ci那ncia justifica-se, tamb谷m, segundo Merleau-Ponty, pela

dimens?o auto-cr赤tica da ci那ncia moderna, particularmente no que diz respeito 角 sua pr車pria ontologia (Merleau-Ponty, 1994).

A import?ncia da comunica??o nas redes de investiga??o

interdisciplinares e suas pr芍ticas discursivas

615

Esta perspectiva 谷 particularmente importante no seio do tema que

nos ocupa, tendo em conta que propomos uma incurs?o pelas neuroci那ncias para avaliar o ajustamento da ideia, aparentemente evidente, de que

somos animais racionais.

? com o mesmo prop車sito que convocamos tr那s refer那ncias epist谷micas relevantes neste contexto, a saber: o princ赤pio da integra??o vertical; a ideia de constrangimentos m迆tuos; e a de ilumina??o rec赤proca.

2.1. Integra??o vertical, constrangimentos m迆tuo

se ilumina??o rec赤proca

O princ赤pio da integra??o vertical 谷 um princ赤pio epistemol車gico

respeitante 角 obrigatoriedade de coer那ncia interdisciplinar e 角 necessidade de justificar eventuais incompatibilidades. Prop?e que n赤veis de an芍lise sejam ※verticalmente integrados§ (Barkow, 1991: 89).

Do ponto de vista antropol車gico, a coer那ncia interdisciplinar significa a possibilidade de uma vis?o unit芍ria do ser humano. Contudo, o que

est芍 em causa 谷 primordialmente uma harmoniza??o de perspectivas. A

montante, colocam-se tanto o projecto de constrangimento quanto o de

ilumina??o interdisciplinares.

A ideia de ※constrangimentos m迆tuos§ (mutual constraints) 谷 desenvolvida por Francisco Varela no ?mbito da neurofenomenologia. De

acordo com Varela, as viv那ncias fenomenol車gicas t那m uma base natural

biol車gica, pelo que deve reconhecer-se a exist那ncia de constrangimentos

m迆tuos entre fenomenologia e neuroci那ncias. Tal significa implementar

uma esp谷cie de heur赤stica negativa, indicadora dos caminhos a n?o seguir. Ao mesmo tempo, decorre desses constrangimentos um ganho consubstanciado em duas vertentes: i) completam-se as perspectivas parciais e isoladas da primeira-pessoa e da terceira-pessoa, e ii) produzem-se

novos dados, integrando-os nos dois n赤veis de abordagem.

O referido ganho n?o est芍 necessariamente ancorado na ideia de

m迆tuo constrangimento; 谷 poss赤vel integr芍-lo num projecto de neurofenomenologia encarado no sentido de ilumina??o rec赤proca (mutual

enlightenment) entre fenomenologia e neuroci那ncias. ? esta a proposta

de Shaun Gallagher, que v那 na possibilidade de naturalizar a fenomenologia essencialmente um plano metodol車gico, que em nada interfere

com a fenomenologia transcendental. Trata-se, tamb谷m aqui, de atender ao car芍cter clarificador da reuni?o de dados fenomenol車gicos e

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download