CAPÍTULO II COMPLEMENTAÇÃO - University of São Paulo

CAP?TULO II COMPLEMENTA??O

Sonia Cyrino* Jairo Nunes** Emilio Pagotto***

2.1. Introdu??o Vimos no Cap?tulo 1 que, numa perspectiva fregeana, um predicado pode

subsidiar julgamentos sobre a verdade ou falsidade de proposi??es somente quando estiver conectado aos argumentos que ele requer. Diz-se nesse caso que o predicado est? saturado. Um predicador verbal como colocar, por exemplo, demanda tr?s argumentos e ? a sua satura??o atrav?s da conex?o com os sintagmas eu, a e na [escola] maternal em (1), por exemplo, que permite que a proposi??o associada a essa senten?a seja julgada como verdadeira ou falsa.

(1)

a minha menina tem tr?s anos agora ela foi a escola com um ano e quatro meses...eu

a

coloquei na maternal com um ano e quatro meses (DID SSA 231)

Observe que essa concep??o estritamente l?gica oblitera a cl?ssica distin??o entre sujeitos e complementos, pois cada argumento tem uma rela??o direta com o verbo. A quest?o que devemos contemplar ? se esta distin??o ? relevante do ponto de vista ling??stico e, em caso afirmativo, como captur?-la.

Que essa distin??o ? pertinente para uma compreens?o mais abrangente da faculdade da linguagem ? fato indiscut?vel. Basta uma breve olhada em qualquer gram?tica para encontrarmos uma s?rie de diagn?sticos sem?nticos e sint?ticos que op?em sujeitos, de um lado, e complementos, de outro. Pode-se (e deve-se!) questionar se os diagn?sticos s?o os mais adequados e se s?o derivados da intera??o de propriedades mais b?sicas. Mas a id?ia de que a distin??o sujeito-complemento deve ser capturada em algum n?vel de an?lise ? ponto pac?fico nos estudos ling??sticos.

Este cap?tulo enfocar? as rela??es de complementa??o no portugu?s brasileiro (PB), estando organizado da seguinte forma. A se??o 2.2 retoma a concep??o de complementa??o existente na gram?tica tradicional e a se??o 2.3 explicita a no??o de complementa??o que exploraremos aqui, introduzindo a distin??o entre argumentos externos e internos. A se??o 2.4 apresenta uma tipologia de verbos em fun??o dos tipos de complementos que tomam e a se??o 2.5 discute as v?rias possibilidades de realiza??o desses complementos no PB. Finalmente, a se??o 2.6 refina a estrutura geral do sintagma verbal com base na tipologia apresentada na se??o 2.4.

2.2. A no??o de complementa??o nas gram?ticas tradicionais1

* Universidade Estadual de Campinas/CNPq (Proc. 303006/2009-9)

** Universidade de S?o Paulo/CNPq (Proc. 309036/2011-9)

*** Universidade Estadual de Campinas

1

A maioria das gram?ticas pedag?gicas brasileiras ainda se pauta pela Nomenclatura Gramatical

Brasileira (NGB), publicada pelo Minist?rio da Educa??o e Cultura por meio da Portaria No. 36, de 28 de

Janeiro de 1959. A NGB distingue somente dois tipos de complemento ? objeto direto e indireto ?, n?o

levando em conta complementos de natureza mais adverbial, chamados por Rocha Lima (1972) de

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A gram?tica tradicional geralmente flutua entre dois eixos para estabelecer a distin??o entre sujeitos e complementos. Num eixo mais sem?ntico, privilegiando aspectos lexicais do verbo, o sujeito ? tido como o elemento que tipicamente pratica a a??o expressa pelo verbo e o complemento, como o paciente dessa a??o. Embora capture de modo transparente os protot?picos predicados de a??o na voz ativa, como em (2), por exemplo, em que n?s ? o agente da a??o e o sujeito da senten?a e muito xinxim de galinha...bob? de camar?o...acaraj? ? o paciente da a??o e o complemento do verbo, essa no??o n?o se mostra adequada nos exemplos de (3).

(2) ent?o n?s comemos muito xinxim de galinha...bob? de camar?o...acaraj? (DID RJ 328)

(3) a. Quase sempre ela ? procurada pelos alunos (D2 SP 360) b. N?s fomos a um restaurante l? (DID RJ 328) c. Eu gosto mais de laranja (DID RJ 328) d. N?s passamos uma tarde num lugar onde eles serviram uma refei??o. (DID RJ 328)

Em (3a), temos um caso em que o sujeito da senten?a n?o corresponde ao agente da a??o expressa pelo verbo (os alunos), mas ao paciente (ela). Em (3b), por sua vez, temos um verbo de a??o que toma como complemento um elemento locativo (a um restaurante l?), que n?o ? entendido naturalmente como o paciente da a??o. J? em (3c) e (3d) n?o temos verbos de a??o. Verbos psicol?gicos como gostar podem ser analisados como requerendo um experienciador e uma fonte desencadeadora da experi?ncia psicol?gica, enquanto verbos de estado como passar, como requerendo um tema, um tempo e um lugar. Apesar da aus?ncia de agentes e pacientes em (3c) e (3d), ainda assim se observa a distin??o entre sujeitos de um lado (eu em (3c) e n?s (3d)) e complementos de outro (de laranja em (3c) e uma tarde e num lugar onde eles serviram uma refei??o em (3d)). Destaque-se tamb?m que em (3b) e (3d) os complementos t?m natureza adverbial, fato que ? apontado por in?meros gram?ticos, mas acabou ignorado pela Nomenclatura Gramatical Brasileira de 1959, que vem pautando as gram?ticas escolares a partir dos anos 60.

O outro eixo que a gram?tica tradicional tamb?m explora para distinguir sujeitos de complementos ? de natureza mais sint?tica. Nessa perspectiva, o sujeito ? tomado como o sintagma com o qual o verbo concorda e que exibe caso reto (nominativo) quando pronominal. Uma vez identificado assim o sujeito, as gram?ticas costumam ent?o lidar com a rela??o de complementa??o na descri??o da sintaxe dos termos da senten?a e nas listas de reg?ncia. No caso espec?fico da complementa??o verbal, levamse em conta as rela??es de complementa??o para classificar tipos de verbos (transitivos, intransitivos e de liga??o) e a forma dos complementos para distinguir sua fun??o sint?tica (objeto direto e objeto indireto). J? o termo reg?ncia tem sofrido mudan?as no seu emprego: j? designou a rela??o entre um n?cleo e seus especificadores e complementos, passando a designar apenas as rela??es de complementa??o, sendo por fim empregado mais recentemente como a subcategoriza??o lexical de cada verbo com rela??o ? preposi??o. A reg?ncia de um verbo passa a ser, assim, a presen?a ou n?o de preposi??o no seu complemento e a especifica??o lexical dessa preposi??o.

Essa perspectiva mais sint?tica faz as distin??es desejadas entre sujeitos e complementos nos dados de (2) e (3), mas de certa forma perde-se agora a

complementos circunstanciais. Para uma explica??o da nomenclatura sistematizada pela NGB, ver Kury 1964.

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generaliza??o de que, passivas ? parte, quando verbos de a??o estiverem associados a um agente e um paciente, o agente vai corresponder ao sujeito e o paciente, ao complemento. Ou seja, uma vis?o estritamente sint?tica n?o explica por que ? o agente o elemento que desencadeia a concord?ncia verbal nessas constru??es.

A no??o de complementa??o que vamos adotar neste cap?tulo vai tomar os eixos sem?ntico e sint?tico n?o como excludentes, mas como complementares. Como veremos na se??o 2.3 abaixo, as generaliza??es sem?nticas ser?o determinadas pela estrutura??o da rela??o do verbo com seus argumentos e as quest?es pertinentes ? concord?ncia verbal estar?o associadas ? posi??o estrutural dos argumentos dentro da senten?a.

2.3. A no??o de complementa??o a ser adotada neste volume A informa??o constante na entrada lexical de um verbo envolve, entre outras

coisas, tr?s especifica??es: (i) quantos (de zero a tr?s) s?o os argumentos que esse verbo requer; (ii) qual ? o papel tem?tico (agente, paciente, experienciador etc.) desses argumentos; e (iii) qual ? a realiza??o sint?tica (sintagma nominal, sintagma preposicional etc.) de tais argumentos. At? certo ponto, essas especifica??es s?o independentes. Os verbos adorar e gostar em (4), por exemplo, requerem o mesmo n?mero de argumentos e o mesmo tipo de papel tem?tico para esses argumentos, mas exigem complementos sint?ticos diferentes: enquanto adorar seleciona um sintagma nominal (SN), gostar seleciona um sintagma preposicional (SPrep).

(4) a. eu adorei o tal do acaraj? (DID RJ 328) b. eu gosto de qualquer tipo de bebida...cacha?a...desde a cacha?a at? o vinho mais fino (DID RJ 328)

Do ponto de vista sem?ntico, por outro lado, um verbo n?o somente determina o n?mero de argumentos a serem projetados na sintaxe, como tamb?m especifica que tipos de rela??es sem?nticas se estabelecem entre tais argumentos e o processo descrito pelo verbo. Ao contr?rio do que poderia sugerir a abordagem fregueana mencionada na se??o 2.1, diferentes argumentos n?o interagem com o verbo ou entre si da mesma maneira. Considere os exemplos com o verbo tomar em (5), por exemplo.

(5) a. e tamb?m n?o tinha sal:: temperinho porque ?s vezes agora a gente precisa tomar sopa de pedregulho n?? (EF SP 405)

b. TOdo o DIA pegava uma amiguinha pegava um:: bonde aqui (do) S?o Jo?o que tinha.., e:: ?amos tomar banho n?? l? no:: no Barroso... (DID POA 45)

c. essa parte estudantil que est? se interessando para isso por isso...est? tomando assim::ma/...maior impulso... (DID SP 234)

d. os alunos parece que tomam conta... dos professores... (DID POA 45) e. ? um milagre, foi uma economia...impelida a seguir o seu caminho, tendo que

tom?-lo t? claro? (EF RJ 379) f. atrav?s DEle que o senhor presidente vai tomar p?... das questoes... mais

importantes... desde as menores digamos assim at? as mais relevantes... (DID REC 131) g. porque normalmente quando tem muitos...e um come?a... (...) a...a a ((risos)) a tomar atitudes mais ou menos autorit?rias (D2 SP 360) h. essa quest?o... toma uma outra dimens?o... porque DESAPARECE... por assim dizer... a chamada rela??o... patr?o...e empregado... (DID REC 131) i. mas o tipo de trote mesmo que eu tomei eu achei uma beleza... (DID SSA 98)

Embora tomar selecione dois argumentos em todas as senten?as de (5), o verbo parece

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formar uma unidade sem?ntica com apenas um dos argumentos. Ou seja, tomar sopa, tomar banho, tomar impulso, tomar conta, tomar um caminho, tomar p?, tomar uma atitude, tomar uma dimens?o e tomar trote em (5) soam como unidades sem?nticas bem formadas na medida em que podem ter seu valor sem?ntico estabelecido independentemente do outro argumento requerido pelo verbo; j? seq??ncias como a gente toma, n?s tom?vamos, essa parte estudantil toma, os alunos tomam, uma economia tomou, o senhor presidente tomar?, um toma, essa quest?o toma ou eu tomei s? recebem interpreta??o apropriada quando associados ao outro argumento do verbo.

O contraste entre as senten?as de (6) e (7) abaixo tamb?m aponta para a mesma conclus?o. Manteve-se como constante em (6) o segundo argumento de tomar e em (7) o primeiro argumento. Em (6), a mudan?a do primeiro argumento de o Jo?o para o cachorro n?o acarreta diferen?a na interpreta??o do segundo argumento. J? em (7), embora o primeiro argumento se mantenha constante, seu papel sem?ntico muda ? medida que muda o segundo argumento. O Jo?o tem um papel sem?ntico totalmente distinto quando associado a tomar uma decis?o e tomar um pesco??o, por exemplo. Dito de outra forma, a interpreta??o do primeiro argumento ? computacionalmente determinada n?o em fun??o de uma rela??o direta com o verbo, mas em fun??o da rela??o previamente estabelecida entre o verbo e o segundo argumento.

(6) a. O Jo?o tomou ?gua. b. O cachorro tomou ?gua.

(7) a. O Jo?o tomou o ?nibus. b. O Jo?o tomou caf?. c. O Jo?o tomou vergonha. d. O Jo?o tomou uma decis?o. e. O Jo?o tomou um pesco??o.

Fatos como os ilustrados em (5)-(7) est?o, na verdade, em conson?ncia com a heran?a gramatical que se origina da gram?tica de Port-Royal, que toma a complementa??o de um verbo como uma esp?cie de desdobramento do elemento predicador. Sendo o verbo um predicador ? aquele que diz algo do sujeito ?, o verbo intransitivo seria o predicador por excel?ncia. O verbo transitivo, por sua vez, constituiria com o seu complemento uma esp?cie de predicador composto: ? um predicador cuja raiz n?o traria toda a informa??o necess?ria ? predica??o, precisando ser desdobrado.

Evitando-se as armadilhas a que o termo sujeito pode conduzir, assunto que ser? discutido no Cap?tulo 3, a assimetria entre diferentes argumentos vista acima foi reinterpretada mais recentemente em fun??o da oposi??o argumento externo vs. argumento interno. A id?ia ? que a rela??o de depend?ncia sem?ntica entre os argumentos espelha uma assimetria sint?tica. Em (7a), por exemplo, tomou forma uma unidade sint?tica complexa com o sintagma nominal o ?nibus, excluindo o primeiro argumento, como representado na Figura 1:

Figura 1

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Na Figura 10, cada n? na ?rvore representa um constituinte sint?tico. Assim, a conex?o sint?tica entre o verbo e SN2 forma um constituinte verbal, V', chamado de proje??o intermedi?ria para se distinguir do item lexical tomou e de todo o sintagma verbal, e a conex?o sint?tica de V' com SN1, por sua vez, resulta no sintagma verbal pleno (SV). A representa??o em (8) pode receber agora uma interpreta??o sem?ntica composicional adequada, baseada na estrutura sint?tica: o verbo estabelece uma rela??o sem?ntica com SN2 e V' estabelece uma rela??o sem?ntica com SN1. ? por isso que se mudamos o segundo argumento das senten?as de (7), o valor sem?ntico de o Jo?o pode se alterar. Ao substituir o ?nibus por outro sintagma nominal, o conte?do de V' em (8) vai ser diferente e, portanto, a rela??o sem?ntica estabelecida entre V' e SN1 ? potencialmente diferente.

Chega-se, assim, ? distin??o entre argumentos internos e externos. Argumentos internos estabelecem uma rela??o sint?tica direta com o verbo no interior de V', enquanto argumentos externos s?o os elementos que est?o imediatamente dominados por SV e estabelecem uma conex?o sint?tica com V'. ? oposi??o sem?ntica argumento externo / argumento interno corresponde a distin??o sint?tica especificador/complemento. Em (8), por exemplo, dizemos que o Jo?o ? o argumento externo/especificador de tomou e o ?nibus, seu argumento interno/complemento.

Um argumento independente para a estrutura do sintagma verbal nos moldes da Figura 10 ? fornecido por express?es idiom?ticas. S?o in?meros os casos de express?es idiom?ticas com o formato [SV SN1 [V' V SN2]], em que o verbo e o argumento interno sombreados formam uma express?o idiom?tica que n?o inclui o argumento externo, como exemplificados em (8).

(8) a. O Jo?o pintou o sete. b. O Jo?o bateu o p?. c. O Jo?o esticou as canelas. d. O Jo?o chutou o balde.

(~ 'fez bagun?a') (~ 'insistiu em sua posi??o') (~ 'morreu') (~ 'fez besteira')

Por outro lado, n?o existem casos com o formato [SV SN1 [V' V SN2]], que deveriam corresponder a express?es idiom?ticas envolvendo o argumento externo e o verbo, excluindo o argumento interno. Essa lacuna encontra explica??o se express?es idiom?ticas tiverem de corresponder a um constituinte sint?tico. Observe que SN1 e V n?o formam um constituinte sint?tico nessas estruturas. Em outras palavras, a inexist?ncia de express?es idiom?ticas com o formato [SV SN1 [V' V SN2]] mostra que o argumento externo n?o estabelece uma rela??o sem?ntica direta com o verbo, mas sim com V'.

Apesar de estar fundamentalmente alicer?ada numa distin??o estrutural, observe que a oposi??o argumento externo/argumento interno est? norteada para o eixo sem?ntico mencionado na se??o 2.2. Subjaz a essa discuss?o a id?ia de que um argumento vai ocupar a posi??o de especificador ou de complemento do verbo em fun??o de seu papel tem?tico. Assim, o papel tem?tico de agente ser? canonicamente atribu?do ? posi??o de especificador do verbo e o de paciente, ao seu complemento. A exce??o aparece quando constru??es passivas entram em campo.

Considere, por exemplo, o par de senten?as em (9).

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