Intercom Sociedade Brasileira de Estudos ...

[Pages:12]Intercom ? Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunica??o XXXV Congresso Brasileiro de Ci?ncias da Comunica??o ? Fortaleza, CE ? 3 a 7/9/2012

Imagens do Futebol e Experi?ncia Est?tica no Canal 1001

Ana Maria ACKER2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

RESUMO

O presente artigo analisa aspectos da linguagem audiovisual do cinejornal Canal 100 na produ??o de imagens de futebol. O informativo foi realizado por Carlos Niemeyer, de 1959 a 1986, e influenciou outros meios de registro desse esporte no Brasil. As escolhas visuais do produto e as experi?ncias est?ticas que potencializa, a partir de conceitos de Hans Ulrich Gumbrecht3, s?o o foco do trabalho, que tamb?m problematiza o contexto de produ??o do cinejornal.

PALAVRAS-CHAVE: Comunica??o; Experi?ncia Est?tica; Esporte; Canal 100.

Introdu??o

A simples descri??o de momentos hist?ricos do futebol j? evoca as respectivas imagens: do gol fat?dico de Gigghia sobre o Brasil na final da Copa de 50, passando pelos socos no ar de Pel? ap?s balan?ar as redes, at? os dribles desconcertantes de Garrincha. Tais instantes est?o presentes no imagin?rio cultural do Brasil da mesma forma que o esporte mais popular do pa?s. O jogo, que se tornou pr?tica massiva a partir do come?o do s?culo XX (FRANCO J?NIOR, 2007), ultrapassou os limites dos campos e est?dios e se consolidou tamb?m em raz?o das reprodu??es imag?ticas. Os registros em foto, pel?cula e, mais tarde, em televis?o e meios digitais acompanharam a expans?o do futebol e se transformaram com ele.

A liga??o entre a modalidade e o audiovisual no Brasil sempre existiu, conforme Luiz Zanin Oricchio (2006). Um cap?tulo dessa rela??o ? o cinejornal Canal 100, produzido de 1959 a 1986 por Carlos Niemeyer (1920 ? 1999) e exibido nas salas de cinema antes das sess?es. O programa teve 52 edi??es anuais num total de 1.924 cinejornais, al?m de

1 Trabalho apresentado no GP Comunica??o e Esporte do XII Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunica??o, evento componente do XXXV Congresso Brasileiro de Ci?ncias da Comunica??o. 2 Mestranda em Comunica??o e Informa??o ? UFRGS (bolsista CAPES). E-mail: ana_acker@.br 3 A discuss?o sobre futebol e experi?ncia est?tica, baseada em teorias de Gumbrecht, ? o fundamento da disserta??o de mestrado desenvolvida no PPGCOM/UFRGS, sob orienta??o da Prof. Dra. Miriam de Souza Rossini. Na pesquisa, o foco de an?lise ? o cinema ficcional brasileiro ? 1995 a 2012.

1

Intercom ? Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunica??o XXXV Congresso Brasileiro de Ci?ncias da Comunica??o ? Fortaleza, CE ? 3 a 7/9/2012

realiza??es extras de programas do in?cio do s?culo, adquiridos pela produtora4. Atos pol?ticos, festas, cerim?nias - as informa??es do Canal 100 eram variadas, mas o destaque ficava por conta das imagens de jogos de futebol.

A plasticidade, o uso da c?mera lenta, os detalhes de jogadas dif?ceis de visualizar das arquibancadas s?o aspectos que o Canal 100 instituiu como linguagem, tanto para transmiss?es televisivas, quanto para registros documentais, ou recria??es ficcionais do futebol. O objetivo do presente artigo ? refletir sobre essa heran?a e discutir algumas caracter?sticas das experi?ncias est?ticas proporcionadas pelo cinejornal.

O contexto de produ??o do Canal 100 Os cinejornais alcan?aram s?lida produ??o no mundo todo, especialmente na

primeira metade do s?culo XX. Conforme Paulo Roberto de Azevedo Maia, na disserta??o Canal 100: a trajet?ria de um cinejornal, tal produ??o ? portadora "de uma narrativa pr?pria, de cunho jornal?stico e que, ao mesmo tempo, ao se expressar atrav?s do cinema, ? uma modalidade desse, afinal, ? uma forma de jornalismo utilizando um ve?culo espec?fico" (MAIA, 2006, p. 9). O primeiro cinejornal a surgir no Brasil foi a vers?o nacional do Path? Journal, em 1912 (MAIA, 2006).

Na d?cada de 1930, o governo de Get?lio Vargas incentivou a produ??o de cinejornais. O decreto 21.240, de 04 de abril de 1932, tornava obrigat?ria a exibi??o de um filme nacional de dura??o de 10 minutos (MAIA, 2006). De acordo com o mesmo autor, durante muito tempo os document?rios, incluindo os cinejornais, formaram o bloco majorit?rio das produ??es nacionais. O cinema ficcional teve impulso, de fato, somente ap?s a Segunda Guerra Mundial.

Nos anos 1950, a televis?o ainda era um meio estranho para a maioria dos brasileiros. ? nesse ambiente que, em 1959, o carioca Carlos Niemeyer d? in?cio ?s atividades da "Carlos Niemeyer Produ??es Ltda", produtora do cinejornal Canal 100 at? 1986, quando encerrou as atividades. Piloto durante a Segunda Guerra, Niemeyer n?o era um cineasta. O gosto pelo cinejornalismo se deu ap?s contato com o fot?grafo e documentarista franc?s Jean Manzon na d?cada de 1950. Na verdade, o interesse pela s?tima arte ocorreu mais cedo, ainda nos anos 1940, quando da passagem do diretor Orson Welles pelo Rio de Janeiro. O ent?o bo?mio Niemeyer figurou em cenas rodadas pelo norte-americano no cassino da Urca.

4 Dados do site oficial do Canal 100 - . Acesso em junho de 2012.

2

Intercom ? Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunica??o XXXV Congresso Brasileiro de Ci?ncias da Comunica??o ? Fortaleza, CE ? 3 a 7/9/2012

Da tentativa de carreira como gal? de cinema para a de produtor, Niemeyer associou os informativos ao entretenimento de uma maneira inovadora para a ?poca:

O Canal 100 surgiu em um momento de fecunda produ??o engajada, como ? caso do Cinema Novo, que criticava a falta de a??o do cinema de entretenimento, despreocupado com a for?a da arte como instrumento de mudan?a social. Levar not?cias ?s telas com um forte car?ter de entretenimento, utilizando velhos temas dos informativos cinematogr?ficos como o futebol em destaque era algo impensado. Primeiro pelos que achavam que a produ??o de cinejornais era sem valor est?tico e outros pela cr?tica pol?tica de esquerda que negava o cinema alienado, distante dos temas e das mudan?as que seriam necess?rias para superar sua condi??o de pa?s dependente do terceiro mundo. (MAIA, 2006, p. 33).

O cinejornal contou com patroc?nio de estatais: o Banco do Brasil e a Caixa Econ?mica investiram no informativo (MAIA, 2006). Assim, Niemeyer deu aten??o especial ?s a??es do governo federal nas produ??es. A rela??o se firmou ainda no mandato do presidente Juscelino Kubitschek (1956 ? 1961):

O modelo desenvolvimentista de JK influenciou na forma??o de um imagin?rio do otimismo do qual fez parte o Canal 100. Teve import?ncia, nessa perspectiva de Brasil assumida pelo cinejornal, o clima do per?odo, mas, de forma mais direta, a influ?ncia de Jean Manzon, ativo empreendedor no ramo cinematogr?fico de um cinema que procurou levar um discurso dentro da ideologia do otimismo (MAIA, 2006, p. 39).

Uma produ??o organizada a partir da ideologia do otimismo n?o significava uma vis?o limitada. Como tamb?m dependia de dinheiro privado, a empresa de Carlos Niemeyer realizava document?rios para quem se dispusesse a pagar. Como exemplos de pluralidade, MAIA (2006) cita os filmes: Os Sem Terra, sobre reforma agr?ria e realizado sob encomenda do governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola; A Boa Empresa, uma abordagem conservadora das rela??es de trabalho, e Asas da Democracia, uma homenagem ? For?a A?rea Brasileira, os dois ?ltimos encomendados pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais ? IP?S.

Nesse contexto, a produtora de Niemeyer tamb?m direcionava as lentes para os campos de futebol. Ali, havia um objetivo claro: o de representar, reconstruir o jogo como espet?culo, celebra??o popular do Brasil. O Canal 100 fundamentou uma linguagem na capta??o desse esporte e tal processo acompanhou a transforma??o ocorrida no s?culo XX. Com as imagens tecnol?gicas, a rela??o com os esportes se modificou, conforme Victor Andrade de Melo (2006):

3

Intercom ? Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunica??o XXXV Congresso Brasileiro de Ci?ncias da Comunica??o ? Fortaleza, CE ? 3 a 7/9/2012

[...] Cinema e esporte constituem-se em poderosas representa??es de valores e desejos que permeiam o imagin?rio do s?culo XX: a supera??o de limites, o extremo de determinadas situa??es (comuns em um s?culo onde a tens?o e a viol?ncia foram constantes), a valoriza??o da tecnologia, a consolida??o das identidades nacionais, a busca de uma emo??o controlada, o exaltar de um certo conceito de beleza, tudo isso esteve constantemente presente nos filmes e nas competi??es organizadas no decorrer do s?culo que passou, e por certo continuar? presente neste que come?a (MELO, 2006, p. 70).

Para assistir a eventos esportivos n?o era mais necess?ria a presen?a no est?dio, gin?sio ou arena. Os jogos chegavam at? os espectadores por meio de imagens e esse consumo se consolidou com a televis?o. No entanto, nos primeiros anos do Canal 100, os aparelhos dom?sticos eram raridade, bem como as transmiss?es ao vivo. Por isso, o cinejornal n?o teve concorr?ncia na produ??o de imagens de futebol em seus primeiros anos, fortalecendo a prefer?ncia entre o p?blico que o assistia nas salas de cinema.

A linguagem audiovisual do Canal 100 O som de Na Cad?ncia do Samba, de Luiz Bandeira, ficou associado ?s imagens

que deslizavam pelas telas de cinema do pa?s. O trabalho de montagem e fotografia realizado pelo Canal 100 salientava os detalhes pl?sticos das partidas. Al?m da trilha musical, as imagens eram acompanhadas pela voz over de um narrador, que trazia as informa??es sobre a partida (nomes dos jogadores, descri??o dos lances e do ambiente do est?dio). Segundo o cineasta Oswaldo Caldeira, "seus c?meras eram capazes de acompanhar a bola antes mesmo que ela partisse numa dire??o" (CALDEIRA apud ORICCHIO, 2006, p. 310). Sob a coordena??o de Francisco Torturra, os profissionais de capta??o conseguiam "driblar" as dificuldades t?cnicas da ?poca, segundo an?lise do fot?grafo Walter Carvalho:

Eles eram craques, capazes de segurar o foco na bola com lentes telesc?picas de 600mm. Isso equivale a fazer uma cirurgia a laser no olho. Trabalhavam numa ?poca em que os negativos eram menos sens?veis e as luzes dos est?dios tamb?m n?o ajudavam (CARVALHO apud MELO, 2006, p. 123).

O manuseio desses aparatos pelos profissionais da produtora resultava em imagens que detalhavam fatos que passariam despercebidos para um espectador de arquibancada. Tais escolhas serviam ao objetivo de exacerbar a beleza dos movimentos, como aborda Kl?ber Mendon?a Filho:

4

Intercom ? Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunica??o XXXV Congresso Brasileiro de Ci?ncias da Comunica??o ? Fortaleza, CE ? 3 a 7/9/2012

O futebol do Canal 100 tinha releituras de jogadas imposs?veis de serem vistas das arquibancadas ou na televis?o, um futebol em 35mm, gingado nos seus m?nimos detalhes. Mulheres na plateia geralmente amavam as imagens ampliadas de coxas musculosas dos atletas, os jogadores escarravam elegantemente ansiosos em c?mera lenta, a tens?o de uma barreira de homens preocupados com um chute potente, a bola rodopiando doida em dire??o ? rede. Dezenas de imagens como essas tornaram-se assinaturas de uma est?tica que engrandecia um esporte j? enorme dentro da cultura brasileira (MENDON?A apud MELO, 2006, p. 122).

A manipula??o realizada pelo cinejornal tamb?m era poss?vel pela natureza de sua produ??o: cinematogr?fica. A pel?cula permite uma constru??o temporal que n?o ocorre na transmiss?o ao vivo de televis?o. Tal diferen?a ? reconhecida por Carlos Niemeyer:

No Canal 100 futebol ? coisa s?ria. O tom bem humorado vai por conta da partida: conv?m lembrar que muitas vezes o jogo pode ter sido visto pelo espectador, cabe assim comentar a partida e n?o descrev?-la secamente. O tal "tom jocoso" ? feito (mal) por um cinejornal concorrente. E mais: no cinema, com tela grande, o futebol (e outros esportes) tem uma for?a incr?vel, inclusive porque os recursos t?cnicos do cinema (c?mera lenta, por exemplo) conseguem captar coisas que TV n?o mostra. De um modo geral, em mat?ria de futebol, a TV ? "fria" e o cinema "quente" (NIEMEYER apud MELO, 2006, p. 121).

O "captar coisas que a TV n?o mostra" se d? porque o cinema n?o est? atrelado ao transcorrer do tempo, caracter?stica base de uma transmiss?o ao vivo. A imagem cinematogr?fica ? passado. Ou, segundo o cineasta Pier Paolo Pasolini, "o presente se transforma em passado" em raz?o da montagem, por?m este passado "aparece sempre como presente" por causa da natureza da imagem (PASOLINI apud DELEUZE, 1990, p. 50).

Na televis?o, ? arriscado tentar subverter o padr?o do ao vivo, pois existe a chance de se perder lances. De acordo com Arlindo Machado, "numa partida de futebol, por exemplo, o centro de interesse se concentra na bola e n?o h? praticamente grandes possibilidades, at? mesmo por for?a do mecanismo do jogo, de alterar essa fatalidade" (MACHADO, 2000, p. 136). Entretanto, a c?mera lenta, que na tev? ? o slow motion, ocupa lugar privilegiado nas transmiss?es: ? o recurso que recupera o que n?o foi poss?vel ver em detalhes no tempo real, ? o que ret?m o passado da imagem fugidia, conectada aos minutos de jogo que transcorrem em fluxo, conforme Philippe Dubois:

Ele [o slow motion] se espalhou por toda parte, ora exacerbando o real (no telejornal, na reportagem), ora congelando o fact?cio (o clipe, a publicidade). ? sobretudo nas emiss?es esportivas, onde se conjuga ao replay, que ele exerce sua "efic?cia": ver, rever, "reviver" o acontecimento, imediatamente, sob diversos ?ngulos, estender o instante com o luxo

5

Intercom ? Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunica??o XXXV Congresso Brasileiro de Ci?ncias da Comunica??o ? Fortaleza, CE ? 3 a 7/9/2012

"palp?vel" do segundo-que-dura-horas. O slow motion ? insistente e c?clico, frequentemente pegajoso, ?s vezes m?gico. Aqui, ele preenche os tempos mortos, serve de inserto depois de momentos de intensidade extrema da imagem ao vivo (o gol, a queda, o esfor?o, o drama) (DUBOIS, 2004 , p. 208).

A fun??o do slow motion ? justamente a de repetir o lance, reapresentar o detalhe de diversos ?ngulos. O uso desse recurso se tornou padr?o em transmiss?es de tev?. No Canal 100, a c?mera lenta tamb?m era usada para mostrar uma jogada de m?ltiplas maneiras, entretanto a proposta ia al?m da fun??o que se tornaria tradicional no meio eletr?nico. A apresenta??o dos movimentos humanos em um ritmo que n?o o natural constitui um modo diferenciado de percep??o e abre a possibilidade para ambiguidades interpretativas que ultrapassam a voz over do narrador que explica as jogadas. Walter Benjamin, no ensaio A obra de arte na ?poca de sua reprodutibilidade t?cnica, observa que com a c?mera lenta o movimento adquire novas dimens?es:

Assim como a amplia??o n?o tem por ?nica finalidade tornar mais claro o que "sem ela" seria confuso (gra?as a ela, pelo contr?rio, vemos aparecerem novas estruturas da mat?ria), tampouco a c?mera lenta coloca simplesmente em relevo formas de movimento que j? conhec?amos, mas descobre novas formas, perfeitamente desconhecidas, "que n?o representam absolutamente movimentos r?pidos tornados lentos, mas antes aparecem como movimentos fluidos, a?reos, supraterrestres" (BENJAMIN, 1990, p. 233).

A partir da reflex?o de Benjamin ? poss?vel afirmar que a c?mera lenta permite a descoberta de novas formas. N?o ? simplesmente ver novamente, mas, sim, visualizar potencialidades imag?ticas que s? s?o poss?veis por meio do aparato t?cnico. Como destaca o fil?sofo alem?o, a c?mera "nos abre a experi?ncia de um inconsciente visual, assim como a psican?lise nos fornece a experi?ncia do inconsciente instintivo" (BENJAMIN, 1990, p. 234). O futebol visto pelo Canal 100 s? ? enxergado daquela maneira por meio de todo aparato utilizado na produ??o daquele cinejornal e que permite perceber uma dimens?o est?tica daquele evento esportivo ? a c?mera lenta e a montagem s?o fundamentais no estabelecimento de tais percep??es.

A manipula??o das imagens captadas nos est?dios recebia aten??o especial na produ??o dos informativos. Segundo defini??o de Jacques Aumont, a montagem ? "o princ?pio que rege a organiza??o de elementos f?lmicos visuais e sonoros, ou de agrupamentos de tais elementos, justapondo-os, encadeando-os e/ou organizando sua dura??o" (AUMONT, 1995, p. 62). A dura??o e o tempo das a??es f?lmicas se estabelecem

6

Intercom ? Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunica??o XXXV Congresso Brasileiro de Ci?ncias da Comunica??o ? Fortaleza, CE ? 3 a 7/9/2012

pela montagem. Entretanto, segundo Andrei Tarkovski, a justaposi??o de planos n?o possibilita a impress?o de um ritmo por si s?, pois esse depende totalmente da constru??o temporal impressa no filme. O diretor salienta que o potencial mais precioso desse meio ? a "possibilidade de imprimir em celuloide a realidade do tempo" (TARKOVSKI, 2010, p. 71). Sendo assim, ele refuta a ideia de que a montagem seja o principal elemento de um filme:

A imagem cinematogr?fica nasce durante a filmagem, e existe no interior do quadro. [...] A montagem re?ne tomadas que j? est?o impregnadas de tempo, e organiza a estrutura viva e unificada inerente ao filme; no interior de cujos vasos sangu?neos pulsa um tempo de diferentes press?es r?tmicas que lhe d?o vida (TARVOVSKI, 2010, p. 135).

Gilles Deleuze apresenta ideia semelhante ? de Tarkovski no livro A imagemtempo. Para o autor, "a montagem ser?, pois, uma rela??o de n?mero, vari?vel segundo a natureza intr?nseca dos movimentos considerados em cada imagem, em cada plano" (DELEUZE, 1990, p. 49).

Na montagem do Canal 100 havia manipula??es diversas, conforme depoimento de Caldeira: "Seu montador Walter Roenick sabia a melhor maneira de armar um chute, de passar de cima para baixo e do fechado para o mais aberto rompendo com o verismo em fun??o do impacto maior, favorecendo o espet?culo" (CALDEIRA apud ORICCHIO, 2006, p. 313). Apesar dessas op??es, a constru??o temporal do futebol se dava, sobretudo, pelo tempo impresso no interior do plano, conforme concep??o de Tarkovski e Deleuze. Ou seja, a proposta est?tica do cinejornal come?ava de fato na capta??o.

O tempo no Canal 100, pensado a partir da filmagem, reitera as imagens do futebol para al?m do car?ter informativo. Como destaca Niemeyer em trecho de entrevista citado anteriormente, h? um coment?rio sobre aquela jogada. De acordo com Deleuze, "o tempo cinematogr?fico n?o ? o que escorre, mas o que dura, coexiste" (DELEUZE, 1992, p. 95). O tempo em fluxo no informativo n?o ? subordinado aos movimentos do jogo. Ao contr?rio, h? a cria??o de percep??es temporais m?ltiplas a partir da impress?o do jogo em pel?cula, completadas pela montagem que enfatiza o espet?culo.

O presente e o passado na mesma imagem tamb?m possibilitam outras constru??es narrativas. O tempo no cinejornal ? subvertido e se descola do movimento. Isso fica evidente, principalmente, nos planos de torcida. Em muitas oportunidades, h? os reaction shots do p?blico ap?s jogadas bonitas, ou pr?ximas do gol. Contudo, em outras, fica

7

Intercom ? Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunica??o XXXV Congresso Brasileiro de Ci?ncias da Comunica??o ? Fortaleza, CE ? 3 a 7/9/2012

evidente que a imagem da arquibancada n?o tem qualquer conex?o com a a??o do campo. H? uma mistura de tempos e narrativas em torno de um mesmo jogo de futebol.

Imagens do futebol e experi?ncia est?tica A linguagem audiovisual do cinejornal exacerbava ainda mais a beleza dos

movimentos do futebol, mas n?o evitava o car?ter violento do jogo. Para Hans Ulrich Gumbrecht, esse fator ? um dos principais para a grande popularidade dos esportes. Em seu livro Elogio da beleza atl?tica (2007), o autor usa o conceito do fil?sofo Immanuel Kant para a palavra belo: um "ju?zo de gosto" realizado numa situa??o de "satisfa??o pura e desinteressada" (GUMBRECHT, 2007, p. 37); a partir desse conceito, ele relaciona nossa atra??o pelos esportes:

A palavra importante nesse ponto ? "desinteressada", em seu sentido n?ocorrompido de "n?o ter interesses ocultos". [...] Ver seu time jogar bem ou assistir a seu atleta favorito quebrar um recorde jamais ter? algum resultado objetivo em sua vida cotidiana. [...] Essa desconex?o em rela??o ao cotidiano ? o que alguns fil?sofos descrevem, desde o fim do s?culo, como a autonomia ou a insularidade da experi?ncia est?tica (GUMBRECHT, 2007, p. 37).

Podemos aplicar ao Canal 100 essa leitura feita por Gumbrecht: assisti-lo nas salas de cinema proporcionava uma experi?ncia est?tica. N?o a mesma vivenciada pelo p?blico dos est?dios, mas outra, que dava a ver imagens somente percept?veis atrav?s do aparato t?cnico. Al?m disso, a bola, o gol n?o eram focos ?nicos. A natureza cinematogr?fica permitia a exibi??o do que estava no entorno: jogadas perif?ricas, o p?blico, discuss?es entre atletas, faltas duras. Conforme Gumbrecht, a bela jogada ? t?o ou mais importante que o resultado, que o gol:

O que gostamos nos grandes momentos de uma partida n?o ? apenas o gol, o touchdown do futebol americano, o home run ou a enterrada. ? a bela jogada que toma forma antes do tento. Sabemos intuitivamente o que ? essa forma. O soci?logo e fil?sofo Niklas Luhmann definiu a forma como a uni?o paradoxal da diferen?a entre a auto-refer?ncia e a refer?ncia externa. Isso significa somente que forma ? qualquer fen?meno com a capacidade de se apresentar a nossos sentidos e a nossa experi?ncia numa clara distin??o em rela??o ?quilo que n?o faz parte dela (GUMBRECHT, 2007, p. 134).

O Canal 100 ? repleto de imagens de jogadas pouco objetivas, por?m que est?o na tela justamente pela beleza, pela sua forma, pelo inesperado, por darem uma dramaticidade extra ao futebol. As constru??es temporais salientam, repetem, reiteram movimentos, que se perderiam, ou nem seriam percebidos sem o registro cinematogr?fico.

8

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download