Ônibus 174: a Intertextualidade entre Cinema e Televisão 1

?nibus 174: a Intertextualidade entre Cinema e Televis?o 1 Sandra Nodari2

Docente da Universidade Tuiuti do Paran?

Resumo:

O document?rio ? um g?nero que pode ser desenvolvido para a televis?o ou para o cinema e freq?entemente ? confundido com reportagem de telejornalismo. Ser? que existe uma linguagem pr?pria a cada m?dia ou a est?tica ? a mesma nos dois casos? A presen?a da televis?o no cinema e do cinema na televis?o pode ser entendida como uma forma de intertextualidade. Este trabalho pretende analisar a presen?a do telejornalismo no document?rio ?nibus 174, de Jos? Padilha. O filme ? adaptado de um acontecimento transmitido ao vivo pela televis?o brasileira. Boa parte da capta??o das imagens e di?logos n?o foi dirigida para o cinema, mas para as emissoras de televis?o. No entanto, a montagem do filme revela que ? poss?vel fugir ao formato pr?-determinado e dial?gico da TV em busca de um texto polif?nico que incite a an?lise, a interpreta??o e a discuss?o.

Palavras-chave: Televis?o; Document?rio; Intertextualidade; Polifonia; Dialogismo.

Corpo do trabalho:

? muito comum para o p?blico em geral n?o saber a diferen?a entre um document?rio e uma grande reportagem, principalmente entre o p?blico de televis?o. Prova disso ? que o Globo Rep?rter para muitos ? considerado um programa de document?rios, embora para qualquer pessoa que conhe?a um pouco mais da linguagem do cinema n?o seja dif?cil classificar esse programa como de reportagens especiais. De qualquer forma, a presen?a da televis?o no cinema e do cinema na televis?o, sobretudo nos g?neros de n?o-fic??o pode ser entendida como uma forma de intertextualidade. Esse trabalho pretende analisar rapidamente a presen?a do telejornalismo no document?rio ?nibus 174.

1 Trabalho apresentado ao NP 07 ? Comunica??o Audiovisual, do IV Encontro dos N?cleos de Pesquisa da Intercom. 2 Sandra Nodari ? mestranda do Curso Comunica??o e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paran?, institui??o na qual leciona para o curso de Jornalismo as disciplinas de Telejornalismo e Projeto Experimental. Formada em jornalismo pela Universidade Estadual de Ponta Grossa ? tamb?m rep?rter e apresentadora da R?dio Paran? Educativa, em Curitiba. Seu tema de pesquisa, hoje, ? a linguagem de document?rios brasileiros e do telejornalismo.

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O document?rio ?nibus 174 (2002), de Jos? Padilha, tem um di?logo presente na composi??o da narrativa. O filme ? adaptado de um acontecimento transmitido ao vivo pela televis?o brasileira. Em vez de buscar no epis?dio apenas a refer?ncia para o document?rio, o diretor preferiu usar o evento apresentado pela TV como o centro da obra. Boa parte da capta??o das imagens e di?logos n?o foi dirigida para o cinema, mas para a televis?o.

A id?ia do roteiro surgiu no dia 12 de junho de 2000, quando os canais televisivos exibiam ao vivo as imagens de um ?nibus cercado pela pol?cia numa rua do Rio de Janeiro. Sem poder tirar os olhos da televis?o pela singularidade do seq?estro o cineasta carioca Jos? Padilha decidiu: iria produzir um filme contando aquele epis?dio. "Seq?estros costumam acontecer em locais onde n?o ? poss?vel filmar. Um ?nibus, ao contr?rio, tem janelas e as c?meras de televis?o estavam ali mostrando o seq?estrador com um rev?lver na cabe?a das v?timas", (PADILHA, 2003, p.69).

O ponto de partida da pesquisa de Padilha foi a informa??o de que o seq?estrador, Sandro do Nascimento, era um dos meninos que sobreviveram ? chacina da Candel?ria. A partir dessa informa??o, ele resolveu investigar porque um sobrevivente de tamanha viol?ncia chegou novamente a ser protagonista de um espet?culo na televis?o.

O primeiro ato do cineasta em busca do seu novo filme foi procurar junto ?s emissoras de televis?o as imagens feitas durante aquelas cinco horas, tempo em que durou o epis?dio. De posse do material, 26 horas de grava??o bruta, cedido ou vendido pelas emissoras, Padilha come?ou a montar o roteiro.

Em outro filme, O Prisioneiro da Grade de Ferro -Auto-retratos (Paulo Sacramento, 2003) pode se observar algo um tanto similar na produ??o: as imagens tamb?m n?o foram feitas por quem entendia de cinema. Nesse document?rio, a c?mera que produziu todo o material foi passada aos presos do Carandiru, pres?dio de S?o Paulo, para que filmassem o que bem entendessem. Os detentos passaram por um treinamento para operar o equipamento, a ilumina??o e o som. O resultado foi mais de cem horas de grava??es feitas pelos presos durante sete meses. Com esse material, Sacramento montou o seu filme.

Tanto no ?nibus 174, foco deste trabalho, quanto no Prisioneiro da Grade de Ferro, o cineasta usou imagens produzidas por pessoas que n?o faziam parte da equipe de produ??o. No primeiro, o material que serviu de base para Padilha foi produzido pelos cinegrafistas das

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emissoras de televis?o que nunca imaginaram ceder nada ao cinema e para tanto usaram linguagem do telejornalismo. Eram, portanto, imagens para a televis?o que foram aproveitadas para o cinema. No caso do segundo filme, embora os presos tivessem recebido um treinamento pr?vio para saber filmar, tamb?m n?o entendiam da linguagem do cinema. Ao contr?rio, o contato que os detentos tinham com a imagem era ao assistir televis?o, j? que cinema ? um privil?gio de poucos, menos ainda quando se trata de encarcerados. Se o cinema n?o chega ao pres?dio, a televis?o est? sempre l?, j? que ? um dos poucos privil?gios permitidos dentro das celas.

Voltando ao 174, ? claro que a produ??o p?s-seq?estro foi toda dirigida por Jos? Padilha. Mas em ambos os casos, o diretor teve o papel de montar o roteiro a partir da vis?o do outro. A an?lise de Carlos Alberto Mattos sobre o Prisioneiro vale para os diretores dos dois filmes, eles "reivindicam a forma final resultante da edi??o e de todo o processo de finaliza??o", (2003, p.81).

O que mais pesa quando se trata de usar esse tipo de narrativa ? o poder da verossimilhan?a empregado ao produto final, como afirma Mattos,

O gesto de passar a c?mera aos sem-filme nem sempre ? t?o literal como no filme de Sacramento. Na verdade, esse gesto tem tomado formas bastante diferentes no cinema brasileiro recente. De comum somente o desejo de emitir uma voz que seja percebida como algo leg?timo, que emana da realidade retratada (principalmente urbana) e chega ? tela com for?a de verdade. (idem)

Ismail Xavier (2003) aborda a rela??o do aqui/agora em que a c?mera, o cineasta e o sujeito em foco est?o implicados do ponto de vista da verdade de cada um. No caso dos dois document?rios estes tr?s sujeitos n?o s?o definidos no todo do filme, por?m cena a cena, pois cineasta e sujeito em foco s?o os mesmos, mas a c?mera tem v?rias vis?es de acordo com quem a opera e dirige. No caso do 174, outro elemento pode ser inclu?do nessa rela??o, especificamente para o caso, o da transmiss?o ao vivo que a todo tempo influencia o sujeito a agir.

Neste document?rio, a c?mera participa da a??o enquanto ela acontece, mas a cada elipse, quando entram em cena os personagens que v?o analisar o fato ocorrido, ela deixa de ser um personagem. Sandro (o seq?estrador) tem consci?ncia das c?meras e da import?ncia delas no epis?dio, o que fica muito claro para o espectador quando ele mesmo grita de dentro do ?nibus: "pode filmar para todo o Brasil ver mesmo... Isso n?o ? filme de a??o, aqui o bagulho (sic) ? s?rio". J? os outros personagens, embora tenham vivido aqueles momentos seja como

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seq?estrados, policiais, e outras pessoas envolvidas, ao dar entrevistas depois do acontecido n?o se importam com o "aparecer" para a c?mera, que passa a ser, ent?o, invis?vel. Sandro estaria encenando e os outros personagens n?o.

...pois nem todos os entrevistados s?o personagens no mesmo sentido. Tudo muda conforme a posi??o de cada um no jogo e sua rela??o com o "assunto" (protagonista, observador te?rico, porta voz da "opini?o p?blica", testemunha/fonte de dados) ? h? uma hierarquia, como nos filmes de fic??o que, por sua vez, n?o excluem entrevistas, depoimentos, desde Cidad?o Kane / Citizen Kane. (Xavier, 2003, p.222)

Para tecer o discurso a intera??o entre televis?o e cinema ? sistem?tica. As imagens no document?rio 174 foram captadas sob a ?tica de registro de um evento, seguindo regras que levam em considera??o caracter?sticas como: imediatismo, instantaneidade, envolvimento e superficialidade, comuns aos telejornais, na vis?o de Vera ?ris Paternostro (1999, p.64-65), padr?o que nada tem a ver com a linguagem do cinema enquanto modelo a ser seguido.

A linguagem visual do telejornal dialoga na edi??o e na montagem com a do cinema document?rio como Julia Kristeva, citada por Edward Lopes, prop?e "...todo o texto ? absor??o e transforma??o de outro texto. No lugar da no??o de intersubjetividade instala-se a no??o de intertextualidade", (LOPES, 1999, p.71). Esse procedimento de transforma??o do sentido, por meio da intertextualidade, pode dar-se atrav?s de processos distintos, citados por Fiorin, como: cita??o, alus?o e estiliza??o.

"A estiliza??o ? a reprodu??o do conjunto de procedimentos do `discurso de outrem', isto ?, do estilo de outrem. Estilos devem ser entendidos aqui como o conjunto das recorr?ncias formais tanto no plano da express?o quanto no plano do conte?do...", (FIORIN, 1999, p. 30). Dessa forma, ? poss?vel pensar na proximidade entre uma linguagem e outra, mas ? necess?rio separar a presen?a do formato televisivo que obriga a situa??o a encaixar-se independentemente de qualquer evento.

A est?tica do cinema ? vis?vel em v?rios momentos, como tamb?m ? poss?vel identificar a est?tica da TV em muitos outros. A primeira cena do ?nibus 174 ? um plano seq??ncia3 a?reo que tem como ponto de partida algum lugar em alto mar. A c?mera atravessa a praia, entra na

3 Plano seq??ncia: cena gravada sem nenhum corte.

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cidade, sobe os morros cobertos de matas, atravessa tamb?m a favela, entra no centro da cidade e segue at? o bairro do Jardim Bot?nico, onde aconteceu o seq?estro. A cena toda tem quase quatro minutos, tempo que jamais seria usado numa reportagem ou num programa de televis?o editado, onde os takes4 t?m em m?dia nove segundos.

Esse plano seq??ncia ? interrompido pela imagem, no est?dio, de um entrevistado que est? sentado, de frente para a c?mera, mas sem olhar para ela, num t?pico enquadramento de telejornalismo. A entrevista ? coberta por imagens do seq?estro, mostrando o ?nibus visto de cima, com um take de 18 segundos, t?pico de uma reportagem ao vivo. Nas pr?ximas cenas a est?tica da TV impera: dois takes da movimenta??o da pol?cia durante o epis?dio t?m cinco e nove segundos, respectivamente. Esse di?logo entre a composi??o de imagens para o cinema e para a televis?o ? presente em todo o filme, sendo muito facilmente identific?vel e apresentando a no??o de intertextualidade.

As imagens produzidas pela equipe do cineasta s?o longas, t?m cuidados com a ilumina??o, usam recursos para os movimentos de c?mera (como um travelling5 pelas ruas da Zona Zul do Rio ? procura de meninos de rua). A c?mera passa a ser um elemento importante da cena enquanto composi??o est?tica preocupada com a composi??o e n?o apenas com o registro da imagem. Ao contr?rio, na televis?o, o elemento primeiro ? o objeto de cena, o acontecimento. Os recursos usados s?o os mais simples, sem uma preocupa??o est?tica. O cinegrafista segue os passos b?sicos: liga a c?mera, balanceia as cores, faz o foco, aperta o rec6 do equipamento e come?ar a gravar. Para a televis?o as imagens valem pela import?ncia que t?m a informa??o, registrar o fato ? muito mais importante do que como registr?-lo, regra bem diferente da seguida pelos produtores do cinema arte que colocam a est?tica como ponto fundamental da produ??o.

As cenas do document?rio t?m como ?udio as vozes dos personagens ou fundo musical, sem um narrador oficial. Lopes trata dos textos monol?gicos e polif?nicos ou dial?gicos dentro da teoria de Bakhtin. S?o monol?gicos os romances (que aqui vamos considerar textos) que possuem v?rios personagens, mas que s?o usados sempre para exprimir unicamente uma vis?o do mundo, uma ideologia dominante, ? o caso extremo do telejornal em que a narra??o do rep?rter

4 Takes: um quadro do imagem; mudar o take significa mudar a imagem. 5 Travelling: movimenta??o lateral do c?mera para acompanhar uma cena, um objeto ou uma pessoa em movimento 6 Rec: bot?o da c?mera que deve ser apertado para come?ar a gravar.

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