Configurações de um cenário territorial: o eixo Rio Doce ...

DOI: 10.5433/1984-3356.2014v7n14p373

Configura??es de um cen¨¢rio territorial:

o eixo Rio Doce/bairro S?o

Tarc¨ªsio/ribeirinhos (Governador

Valadares/MG)

Configurations of a territorial scenario: the rio Doce, S?o Tarc¨ªsio

Quarter and Riparians (Governador Valadares-MG) axis

Patr¨ªcia Falco Genovez?

Jos¨¦ Bispo Ferreira Filho??

RESUMO

O bairro de S?o Tarc¨ªsio, pr¨®ximo ao rio Doce ¨C Governador Valadares, Brasil ¨C ¨¦ o cen¨¢rio de um

territ¨®rio fact¨ªvel onde uma por??o espec¨ªfica de terra associa-se de modo vago (frouxo) com um solonatureza e a alguns tra?os humanos especiais marcados culturalmente. Na realidade, este ensaio lida com

tr¨ºs dimens?es ao mesmo tempo: o rio, o bairro e os seus moradores. Tendo presente um processo

hist¨®rico, um ¡®clima¡¯ de sentimentos e algumas categorias como imagin¨¢rio, representa??es, c¨®digos

sociais e identidade como os principais instrumentos, pode-se encontrar um caminho de se chegar ao de

produ??o e reprodu??o simb¨®lica deste processo de territorializa??o. O territ¨®rio ¨¦ compreendido como

o produto de uma cena de um territ¨®rio fact¨ªvel atrav¨¦s da apropria??o material e simb¨®lica de um

espa?o. Esta apropria??o vincula-se profundamente ao imagin¨¢rio, ¨¤ experi¨ºncia, ao m¨ªtico, ¨¤ vida

cotidiana e c¨®digos culturais.

Palavras-chave: Territ¨®rio. Bairro. Ribeirinhos. Rio Doce. Interdisciplinaridade.

ABSTRACT

The quarter of S?o Tarc¨ªsio near river Doce ¨C Governador Valadares, Brazil - is a scenario of a feasible

territory where a specific portion of land is loosely associated with a physical soil and some particular

humans traits printed culturally. Actually, this essay deals with three dimensions at the same time: the

River, the quarter and its inhabitants. Having in mind an historical process, a realm of feelings and some

? Professora do curso de Hist¨®ria e do Mestrado em Gest?o Integrada do Territ¨®rio (GIT/Univale).

Pesquisadora do Observat¨®rio Interdisciplinar do Territ¨®rio/Univale. Doutora em Hist¨®ria Moderna e

Contempor?nea (UFF).

?? Professor do curso de Design/Univale. Mestre em Gest?o Integrada do Territ¨®rio.

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categories like imaginary, representations, social codes and identity as the main tools one could get a way

in order to reach the process of symbolic production and reproduction of this process of territorialization.

The territory is understood as the product of a scene of feasible territory through the material and

symbolic appropriation of a space. This appropriation is deeply linked to the imaginary, to experience, to

the mythical, to the day-by-day life and cultural codes.

Keywords: Territory (Feasible Territory Scenario). Quarter (Burgh). Riparian. Rio Doce. Interdisciplinarity.

Introdu??o

A t¨ªtulo de uma breve contextualiza??o, o bairro S?o Tarc¨ªsio, localizado na parte central

da cidade de Governador Valadares (MG), foi oficialmente criado na d¨¦cada de 1950 (Figura

1). Mas, antes disso, a regi?o ribeirinha j¨¢ era habitada, uma vez que possu¨ªa um pequeno

porto de canoas e algumas casas pr¨®ximas ¨¤ atual Rua Prudente de Moraes (SIMAN, 1988,

p.78). Enquanto bairro, o S?o Tarc¨ªsio pode ser, ordinariamente, definido atrav¨¦s das

mesmas caracter¨ªsticas que permeiam outros territ¨®rios de igual escala, ou seja, trata-se de

uma divis?o territorial de uma cidade. O espa?o do S?o Tarc¨ªsio, assim, pode ser classificado

com refer¨ºncias ao latim barrium ou mesmo do ¨¢rabe barri (de fora, exterior, separado). Isso

porque, em termos gerais, pode ser compreendido como uma das zonas principais em que se

divide uma cidade, ou uma ¡°por??o de territ¨®rio nas proximidades de um n¨²cleo urbano¡±

(BARROS, 2002, p. 7). O bairro, ent?o, estaria associado ¨¤ id¨¦ia de separa??o, delimita??o de

um espa?o f¨ªsico que abriga uma popula??o. Bairros como o S?o Tarc¨ªsio s?o considerados

urbes ¡°porque fazem parte da cidade¡±. Um bairro pode ser caracterizado pelo sentimento de

localidade existente nos seus moradores, e cuja forma??o depende n?o apenas da posi??o

geogr¨¢fica, mas, tamb¨¦m, do interc?mbio entre as fam¨ªlias e as pessoas no espa?o f¨ªsico

(BARROS, 2002, p.12).

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Figura 1 - Foto a¨¦rea (Ilha dos Ara¨²jos ao centro e Bairro S?o Tarc¨ªsio)

Fonte: Acervo Museu da Cidade

? neste processo hist¨®rico, composto por uma esfera de sentimentos que pretendemos,

apoiados na Geografia Cultural, desenvolver este trabalho. Consideraremos categorias, tais

como, imagin¨¢rio, representa??es, c¨®digos e identidades, como de suma import?ncia para

compreendermos a poss¨ªvel exist¨ºncia de um processo de produ??o simb¨®lica. Para tanto, a

cidade de Governador Valadares se oferece, numa escala maior, n?o apenas como refer¨ºncia

para buscarmos compreens?o dos aspectos presentes no bairro, mas, como cen¨¢rio que nos

auxiliaria na compreens?o de influ¨ºncias tanto hist¨®ricas e sociais, como culturais, no que

diz respeito ao conv¨ªvio com o rio Doce e a alguns comportamentos/c¨®digos que fariam

parte de uma poss¨ªvel din?mica entre o micro e o macro.

Assim, considerando inicialmente a cidade como uma escala maior, temos: uma cidade

considerada de porte m¨¦dio, com seus 276 mil habitantes (IBGE, 2010), emancipada em 1938 e

que, a partir de 1940 e 1950, registrou not¨¢vel crescimento econ?mico, com a explora??o da

mica e da madeira da regi?o. Junto com o crescimento populacional, que saltou de 5.734

habitantes para 20.357,em 1950, a cidade, ent?o, recebeu uma nova demarca??o: surgiram os

bairros para abrigar os trabalhadores da ind¨²stria da madeira. ? neste momento que a

cidade e regi?o tornam-se alvo de programas sanitaristas a cargo do Servi?o Especial de

Sa¨²de P¨²blica (SESP), para a erradica??o da mal¨¢ria (VILARINO, 2008, p. 34). A partir desta

atmosfera de desenvolvimento, higieniza??o e crescimento, as camadas da classe m¨¦dia da

cidade passam a adotar um discurso de modernidade, presente em relatos orais, ao mesmo

tempo em que configuram uma suposta tradi??o social calcada no prest¨ªgio das fam¨ªlias da

classe m¨¦dia denominadas de pioneiras, e responsabilizadas, em relatos de memorialistas,

pelo progresso ¡°modernizante¡± de Governador Valadares (GENOVEZ; VILARINO, 2010).

A presen?a do rio Doce na hist¨®ria da cidade e do bairro ¨¦ uma constante. ? a partir do

rio que surgem n?o apenas o processo de ocupa??o territorial, mas, tamb¨¦m, de demarca??o

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e orienta??o na forma??o dos demais bairros (SIMAN, 1988, p.79). As ¨¢reas mais valorizadas

em termos imobili¨¢rios situam-se numa parte mais elevada do terra?o e espraiam-se nas

imedia??es do S?o Tarc¨ªsio formando o Centro de Governador Valadares, que ¨¦ tamb¨¦m um

bairro. No entanto, a id¨¦ia de ¡°centro¡±, do ponto de vista de pulso econ?mico e comercial, ir¨¢

abarcar uma ¨¢rea conc¨ºntrica envolvendo v¨¢rios bairros como, por exemplo: Bairro de

Lourdes, Bairro Nossa Senhora das Gra?as e Bairro Esplanada. As ¨¢reas mais desvalorizadas

e de risco ser?o aquelas situadas em proximidade de encostas em declive e da margem do rio

Doce.

? nesta medida que, enfocando o processo de produ??o e reprodu??o simb¨®lica

existente no bairro S?o Tarc¨ªsio, propomos utilizar os dados coletados numa pesquisa

etnogr¨¢fica, juntamente com dados bibliogr¨¢ficos existentes sobre a cidade. O objetivo ¨¦

compreender, atrav¨¦s de relatos dos ribeirinhos, o bairro e o rio Doce enquanto territ¨®rio

¨²nico para eles. A compreens?o de determinado processo de produ??o simb¨®lica num

territ¨®rio pressup?e considerar, preliminarmente, certos c¨®digos de conduta, de natureza

cultural e social. Por ¡°produ??o¡± e ¡°reprodu??o¡± simb¨®lica, consideramos determinados

aspectos hist¨®ricos e sociais de gera??o e transmiss?o de condutas e conven??es (ELIAS,

1990, p. 14). Entretanto, neste processo, a produ??o e/ou reprodu??o n?o se daria de forma

ininterrupta, est¨¢vel e uniforme no territ¨®rio. Assim como a cultura possui um aspecto

din?mico, estas conven??es e condutas permitiriam a porosidade, a diversidade e a

contradi??o, uma vez que a sociedade ¨¦ passiva de influ¨ºncias diversas (WILLIAMS, 1969,

p.20). Desta forma, entendemos de antem?o que o aspecto da heterogeneidade e elasticidade

destes c¨®digos precisaria ser considerado se queremos estudar determinado objetoterrit¨®rio social, cultural e geogr¨¢fico, como ¨¦ o caso do Bairro S?o Tarc¨ªsio, foco central

deste ensaio.

Em termos de justificativa, a contribui??o pretendida deve ser ressaltada na medida em

que ainda n?o se produziu obra acad¨ºmica que articulasse um di¨¢logo entre Hist¨®ria,

Geografia, Sociologia e Antropologia capaz de subsidiar os Estudos Territoriais na

mesorregi?o do Vale do Rio Doce e que tivesse como refer¨ºncia te¨®rica o pensamento de

Max Weber, Norbert Elias e Paul Claval, os principais autores que norteiam as matrizes

te¨®ricas desta pesquisa. ? preciso salientar ainda que, apesar dos avan?os da Geografia

Cultural, as pesquisas voltadas para a microescala territorial ainda caminham a passos

lentos. De forma geral, os c¨®digos particulares s?o negligenciados e privilegiam-se os

estudos focados nas grandes cidades o que, em muitos casos, dificulta a verifica??o da

constitui??o de territ¨®rios espec¨ªficos (SILVA, 2006, p. 22). Entendemos a priori que, para se

compreender a l¨®gica destes c¨®digos, tanto na cidade como no bairro, devemos nos pautar

pelo processo de constitui??o hist¨®rica da regi?o e pelo desenrolar da vida cotidiana no

bairro, considerando-se o universo cultural que lhe d¨¢ sentido.

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Do ponto de vista metodol¨®gico, estamos cientes de que ¨¦ ilus¨®ria a pretens?o de

captura da totalidade de um real social, sabemos dos desafios e das limita??es de um

trabalho como o nosso, uma vez que todo recorte ¨¦ apenas um fragmento da realidade

(SIQUEIRA, 2005, p. 35). Assim, sem nos esquivarmos de utilizar alguns dados quantitativos

interessantes para a contextualiza??o do nosso objeto de estudo, recorremos ¨¤ pesquisa

qualitativa como recurso central (GUNTHER, 2006). O nosso objetivo principal ¨¦ o de

verificar a poss¨ªvel exist¨ºncia de um processo de produ??o e reprodu??o simb¨®lica atrav¨¦s

de condutas e concep??es de vida dos ribeirinhos, envolvendo o rio Doce e o S?o Tarc¨ªsio.

Al¨¦m dos relatos dos moradores, recorremos pontualmente a outras fontes, tais como

fotografias, dados quantitativos (sobre o bairro), e uma s¨¦rie de artigos do jornal

valadarense Di¨¢rio do Rio Doce, apresentando bairros da cidade, publicados na d¨¦cada de

2000, e que se prestem ¨¤ compreens?o do territ¨®rio pesquisado. Quanto ao m¨¦todo de

an¨¢lise (Estudo de Caso) fundamos a nossa interpreta??o na etnometodologia (GUNTHER,

2006). Em nosso trabalho de campo, os dados foram anotados e organizados juntamente

com o material colhido ap¨®s as entrevistas e serviram como refer¨ºncia em nossas visitas.1

Di¨¢logos Epistemol¨®gicos Subsidi¨¢rios Dos Estudos Territoriais

Ao nos voltarmos para a pesquisa de campo, nossa an¨¢lise centrar¨¢ na ¡°interpreta??o da

interpreta??o¡± (GEERTZ, 1989, p.23). Justificamos o m¨¦todo de an¨¢lise escolhido atrav¨¦s da

compreens?o de que a abordagem interpretativa adotada, a etnometodol¨®gica, ¨¦ essencial

para compor quadros de refer¨ºncias significativas sobre saberes locais, ao possuir uma

perspectiva de an¨¢lise abrangente para uma leitura interpretativa da realidade. Assim,

acreditamos que este m¨¦todo possua caracter¨ªsticas interdisciplinares que possam permitir

a busca e a utiliza??o de conceitos te¨®ricos n?o apenas da Geografia, mas, tamb¨¦m, da

Sociologia, da Geografia Cultural, da Hist¨®ria, da Antropologia, e da Psicologia numa

¡°descri??o densa¡± (MARQUES, 2005, p. 14). Apropriando-se do conceito do c¨ªrculo

hermen¨ºutico, Clifford Geertz (1989, p. 26), prescreve a ¡°descri??o densa¡± e uma

¡°epistemologia pr¨¢tica do bom senso¡±, ou seja, ¡°do senso comum¡± como recursos para a

etnometodologia numa ¡°refigura??o do pensamento social¡±, uma vez que as ¡°prov¨ªncias do

11

O Material coletado em campo encontra-se preservado na ¨ªntegra: dez horas de entrevistas gravadas com

trinta pessoas, dentre as quais consideramos vinte e duas para sustentar esse ensaio. Foram arquivadas

tamb¨¦m as anota??es de campo. Dadas as circunst?ncias de viol¨ºncia no bairro optamos por n?o nomear os

informantes e trabalhar os dados de forma circunstanciada ilustrando os aspectos te¨®rico-metodol¨®gicos

proposto neste ensaio. Os crit¨¦rios para definirem o grupo de entrevistados seguiram o seguinte padr?o:

residentes em ruas pr¨®ximas e mais afastadas (por eleva??o) do rio, com idades acima de 18 anos. A idade dos

moradores e o tempo de resid¨ºncia (mais de cinco anos) no bairro constitu¨ªram-se elemento importante em

nossa pesquisa, que se voltou para um recorte temporal de 10 anos, ou seja, buscamos a compreens?o das

pr¨¢ticas, representa??es, territorialidades e c¨®digos culturais, dentre outras poss¨ªveis categorias te¨®ricas

pass¨ªveis de estudos e pressupostamente existentes no bairro, tomando como refer¨ºncia temporal a d¨¦cada de

2000. Primamo-nos, no processo de transcri??o de dados, amparados em Geertz (1989, p.28) em detalharmos

literalmente todos os sinais indicando entona??es, sotaques, regionalismos e ¡°erros¡± de fala.

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