Ana Sofia Ferreira .pt

197 Revista da Faculdade de Letras HIST?RIA Porto, III S?rie, vol. 7, 2006, pp. 197-212

AS ELEI??ES NO ESTADO NOVO

Ana Sofia Ferreira1

As elei??es no Estado Novo As elei??es presidenciais de 1949 e 1958

R E S U M O

O Estado Novo, apesar de ser uma ditadura, consagrou, na Constitui??o, a realiza??o de elei??es presidenciais, legislativas e para as Juntas de Freguesia, uma vez que s? o voto popular podia fornecer a legitima??o interna e externa de que necessitava. Todavia, os resultados eleitorais sempre foram controlados de modo a garantir a vit?ria do candidato ou da lista da Uni?o Nacional e todas as elei??es foram fraudulentas. As elei??es presidenciais de 1949 e 1958 foram dois desses momentos importantes para Portugal, em que o povo teria podido votar e decidir o futuro do pa?s mas em que a opress?o, a censura, a viol?ncia e a fraude marcaram a campanha eleitoral e determinaram a vota??o, garantindo a vit?ria dos candidatos da Situa??o e a derrota dos da Oposi??o, apesar destes terem, inequivocamente, o apoio da maioria da popula??o.

As elei??es no Estado Novo

As elei??es sempre foram, s?o e ser?o o momento em que a popula??o de um pa?s participa na vida pol?tica, elegendo os seus representantes e governantes e manifestando o seu apoio ou rep?dio pelas pol?ticas do governo. Por isso, elas devem ser livres pois o povo tem o direito de expressar livremente a sua opini?o. Durante 48 anos os portugueses n?o tiveram esse direito, pois viveram debaixo de uma ditadura.

O Estado Novo foi um regime autorit?rio, conservador, corporativo, antidemocr?tico, antiliberal e fascista que manteve Portugal debaixo de uma ditadura repressiva que n?o aceitava a exist?ncia de partidos pol?ticos, de sindicatos livres, da oposi??o, que reprimiu severamente todas as manifesta??es de descontentamento popular e que manipulou todas as elei??es que se realizaram durante este per?odo.

O Governo sempre se preocupou em realizar elei??es, tanto para as Juntas de Freguesia, como legislativas e presidenciais, j? que o acto eleitoral era uma forma de legitimar o poder do Governo, quer a n?vel interno, como a n?vel externo. A n?vel interno, porque "era dado ao povo o direito de poder mudar o Governo" e manifestar o seu desagrado, caso estivesse insatisfeito e era uma forma de dizer que aquele regime tinha o aval dos portugueses que se deslocavam ?s

1 Mestranda de Hist?ria Contempor?nea

198

ANA SOFIA FERREIRA

urnas. A n?vel externo, mostrava ao mundo que o regime implantado em Portugal estava legitimado pelos resultados eleitorais e que era um pa?s livre, em que os cidad?os podiam escolher livremente o governo e o Presidente da Rep?blica. Assim, a visita peri?dica ?s urnas funcionou como um meio de legitima??o do governo e como uma forma de estabelecer, como diz Moreno, "una relaci?n directa entre masas y l?der."2, uma vez que eram as massas que escolhiam o seu l?der e este apenas tinha de responder perante estas.

Um outro motivo para o Estado Novo realizar elei??es era porque durante as campanhas eleitorais tornava-se poss?vel identificar novos membros da oposi??o e actualizar as informa??es que o regime possu?a sobre a estrutura, organiza??o, apoio e ac??es da oposi??o. Esta ideia ?, inclusiv?, defendida por Schemitter que refere que, a oposi??o "subia periodicamente ? superf?cie da vida pol?tica e, ao faz?-lo, era um alvo conveniente para o esc?rnio dos que estavam no poder e um mecanismo inc?modo que permitia a estes ?ltimos descobrir a diversidade das suas reac??es e os seus programas de oposi??o ao governo autorit?rio e ? ordem econ?mica"3.

No fundo, o regime controlava de tal forma as elei??es e a campanha eleitoral que sabia que era imposs?vel a oposi??o ganhar; por isso permitia que estas se efectuassem para adquirir novas informa??es sobre a oposi??o e obter a legitimidade interna e externa que tanto procurava, sobretudo ap?s a derrota dos fascismos na Europa.

O Estado Novo, como o haviam feito os anteriores regimes pol?ticos portugueses, consagrou formalmente na Constitui??o o princ?pio representativo ? a Assembleia Nacional era uma c?mara pol?tica de representa??o nacional ? e o princ?pio electivo ? designa??o do Presidente da Rep?blica e da Assembleia Nacional. A sua concretiza??o foi, por?m, viciada pela aus?ncia de liberdade pol?tica e a aplica??o de mecanismos de controlo da oposi??o e da sociedade.

O direito de voto n?o era universal, pelo contr?rio, ele estava fortemente condicionado de forma a manter de fora todos os que o regime considerava seus opositores. O pr?prio recenseamento eleitoral filtrava os que podiam votar, j? que havia dois processos de recenseamento: a inscri??o oficiosa, feita pelas comiss?es concelhias de recenseamento (compostas por elementos da Uni?o Nacional) com base nas indica??es fornecidas pelos servi?os p?blicos e que eram instru?das para "aumentar o n?mero de eleitores de reconhecida idoneidade pol?tica"; e a livre inscri??o de eleitores, que era praticamente insignificante4. Segundo a legisla??o eleitoral, podiam votar os homens maiores de 21 anos, chefes de fam?lia, que soubessem ler e escrever e contribu?ssem com um determinado valor para o Estado, bem como um n?mero muito restrito de mulheres que fossem chefes de fam?lia, tivessem curso geral dos liceus ou curso superior ou contribu?ssem com uma determinada quantia para o Estado5. Estas disposi??es legais n?o reconheciam, portanto, o direito de voto a uma grande parte da popula??o portuguesa, que era analfabeta e ? grande maioria das mulheres. Todavia, e para que o controlo das elei??es fosse

2 MORENO, 2003: p?g. 13 3 SCHEMITTER, 1999: p?g. 87 e 88 4 CRUZ, 1998: p?g. 199 - 202. 5 DECRETO-LEI N? 2:015, de 28 de Maio de 1946

199

AS ELEI??ES NO ESTADO NOVO

total tamb?m n?o podiam ser eleitores todos os que o Governo considerasse que "professassem ideias contr?rias ? exist?ncia de Portugal como Estado independente e ? disciplina social e os que notoriamente carecessem de idoneidade moral"6.

O regime eleitoral do Estado Novo variou ao longo dos anos, quer para a designa??o do Presidente da Rep?blica, quer para a forma??o da Assembleia Nacional. No que diz respeito ?s elei??es presidenciais, a mudan?a ocorreu ap?s as elei??es de 1958, em que o ?xito da candidatura do General Humberto Delgado atemorizou o regime que promoveu uma revis?o constitucional atrav?s da qual o Presidente da Rep?blica deixou de ser eleito por sufr?gio directo e passou a ser eleito por um col?gio eleitoral. Relativamente ? elei??o dos deputados ? Assembleia Nacional, o sistema de c?rculo e listas ?nicas que vigorou desde 1934 foi substitu?do, em 1945, por um regime de c?rculos e listas plurais, o que legalmente permitiu uma mais f?cil manifesta??o legal da oposi??o e mostrou que o regime permitia uma certa concorr?ncia politica. Na realidade, esta toler?ncia para com a oposi??o foi somente simulada e as restri??es ? sua manifesta??o continuaram a fazer-se sentir.

A legisla??o eleitoral portuguesa permitiu ao Governo controlar todo o processo eleitoral, n?o s? porque exclu?a do direito de voto uma grande parte da popula??o mas tamb?m porque permitiu que este controlasse, em exclusivo, o recenseamento eleitoral e o pr?prio escrut?nio, uma vez que os governadores civis ? que designavam os presidentes das assembleias eleitorais os quais, por sua vez, designavam os elementos da mesa de voto que, at? 1969, n?o podiam ser controlados por nenhum delegado independente ou da oposi??o. Al?m disso, a lei referia que os boletins de voto eram fabricados e distribu?dos pelas candidaturas, n?o podendo haver qualquer tipo de diferen?as entre eles. Assim, a oposi??o tinha de tentar averiguar como eram os boletins de voto da Uni?o Nacional para poder fabricar iguais. A simples diferen?a de mil?metros na espessura do papel ou uma t?nue diferen?a na tonalidade da cor era o suficiente para anular os boletins da oposi??o. Estes boletins eram distribu?dos pelos eleitores recenseados por elementos das pr?prias candidaturas o que colocava dois entraves ? oposi??o: primeiro, esta n?o tinha acesso ? c?pia dos cadernos eleitorais e como tal, n?o sabia quem estava ou n?o recenseado, al?m de que o Governo falsificava os cadernos eleitorais riscando o nome de elementos da oposi??o e colocando nome de pessoas da situa??o ou que n?o votavam; segundo, a distribui??o dos seus boletins era feita clandestinamente, por militantes e num espa?o de tempo t?o curto que n?o permitia chegar a todos os eleitores.

Apesar de todas as restri??es impostas, a oposi??o participou nas elei??es realizadas pelo regime. Umas vezes participou unida e noutras separadamente, mas nunca deixou de o fazer mesmo que acabasse por desistir por falta de condi??es democr?ticas.

? necess?rio salientar que a actividade da oposi??o sempre foi ilegal e somente era "permitida" durante os 30 dias de campanha eleitoral. No entanto, as candidaturas da oposi??o sempre se viram impossibilitadas de exercer livremente o direito de esclarecer a popula??o e apresentar as

6 COMISS?O DO LIVRO NEGRO SOBRE O REGIME FASCISTA, 1979: p?g. 9

200

ANA SOFIA FERREIRA

suas ideias, pois as suas declara??es eram censuradas na imprensa; os seus com?cios eram restringidos e tinham de ter a presen?a de uma autoridade para ocorrer; n?o eram permitidas quaisquer manifesta??es de rua; a pol?cia pol?tica apreendia documentos da candidatura, propaganda eleitoral e at? boletins de voto; os com?cios tinham de ser efectuados em recintos fechados e era proibida a utiliza??o de altifalantes; os funcion?rios p?blicos simpatizantes da oposi??o e/ou que participassem em qualquer acto da campanha eleitoral eram perseguidos, sofriam san??es e podiam, inclusiv?, ser despedidos; e muitos dos seus apoiantes eram presos.

Apesar de todos os entraves ? sua actua??o e da fraude eleitoral, a oposi??o sempre apresentou listas e concorreu ?s elei??es e, embora n?o tenha ido at? ao fim em todas e algumas vezes tenha optado por se abster, sempre se manifestou e aproveitou-as, juntamente com o pequeno per?odo de legalidade que lhe era concedido, para mostrar o seu descontentamento face ao regime e para denunciar as estrat?gias utilizadas por este para a controlar, para coagir o povo e para manipular os resultados eleitorais.

Portanto, a campanha eleitoral era um per?odo extremamente importante para a oposi??o, uma vez que lhe eram concedidos 30 dias de legalidade, embora grandemente condicionada, que era utilizada para denunciar todas as arbitrariedades cometidas pelo regime e para contactar com a popula??o, tentando esclarec?-la para o que se passava no pa?s, a n?vel econ?mico, social, mas, sobretudo, pol?tico. A pr?pria estrat?gia de actua??o utilizada perante as elei??es era uma forma de denunciar o autoritarismo do Governo e a fraude eleitoral: o abstencionismo foi utilizado para denunciar que n?o eram dadas condi??es ? oposi??o para se manifestar e participar nas elei??es; o intervencionismo at? ao fim, para disputar o direito ? exist?ncia; e, a desist?ncia ? boca das urnas, para aproveitar o per?odo de campanha eleitoral para denunciar o regime.7

O processo eleitoral nem sempre foi visto pelos historiadores como um tema de estudo extremamente importante para compreender o fascismo. Contudo, ? preciso n?o esquecer que todos os estados fascistas recorreram ao plebiscito e ?s elei??es para obterem legitima??o jur?dicopartid?ria. Estes regimes perceberam que necessitavam das elei??es para legitimar o seu poder e, por isso, recorreram a elas para institucionalizar a nova situa??o pol?tica criada com a chegada ao poder do ditador. Assim, a visita peri?dica ?s urnas funcionou como um meio de legitima??o do governo.

Como considero que o estudo das elei??es ? algo essencial para poder compreender um regime pol?tico, principalmente um regime ditatorial, que utilizava a coa??o, a viol?ncia, a censura e a fraude para vencer nas urnas, resolvi na minha tese de mestrado focar o tema das elei??es. Perante a impossibilidade de fazer uma an?lise de todas as elei??es e para n?o confundir realidades distintas, decidi que somente me iria dedicar ao estudo das elei??es presidenciais e, mesmo nestas, resolvi apenas escolher para objecto de an?lise as de 1949 e 1958, pois pretendia estudar elei??es em que a oposi??o se tivesse apresentado unida em torno de um candidato, que tivesse manifestamente o apoio da popula??o. Al?m disso, restringi o meu estudo ? forma como decorreram as elei??es no Porto, j? que n?o existe um estudo aprofundado sobre a campanha

7 CRUZ, 1983: p?g. 703.

201

AS ELEI??ES NO ESTADO NOVO

eleitoral, a forma como decorreram as elei??es e como se processou a coac??o da popula??o e a fraude eleitoral nesta cidade, que ? a segunda cidade mais importante do pa?s e foi sempre um centro de grandes contesta??es politicas e de defesa da liberdade. Da? que fosse importante analisar a reac??o da popula??o desta cidade ?s campanhas eleitorais da oposi??o e do regime, de forma a poder-se compreender se os portuenses estavam com a situa??o ou com a oposi??o e, tendo em conta o passado liberal da cidade, tentar perceber como o Governo e a oposi??o fizeram a campanha eleitoral e como o Governo manipulou os resultados eleitorais na cidade.

Para realizar esta an?lise, estou a utilizar documentos encontrados na correspond?ncia recebida e expedida pelo Governo Civil, sobretudo os que fazem refer?ncias ? actividade da oposi??o no Distrito do Porto; estou a fazer um levantamento das not?cias sa?das nos jornais "O Com?rcio do Porto" e o""Primeiro de Janeiro" referentes ? campanha eleitoral que o Governo e a Oposi??o estavam a realizar no Porto (com?cios efectuados, manifesta??es de apoio popular, comunicados das respectivas Comiss?es Distritais de Candidatura), a fim de verificar os factos ocorridos durante a campanha eleitoral e a forma como estes foram descritos nos jornais da cidade. Por fim, irei recorrer aos arquivos da PIDE/DGS que se encontram na Torre do Tombo para examinar os relat?rios da PIDE sobre os acontecimentos da campanha eleitoral no Porto e tentar descobrir a forma como esta actuou nesta cidade para controlar as elei??es e efectuar a fraude.

De seguida, irei fazer uma pequena s?ntese do estudo que efectuei sobre as elei??es de 1949 e 1958, de modo a que possamos verificar a import?ncia destas elei??es e o modo como o regime e a oposi??o se posicionaram e agiram perante estas, quer durante a campanha eleitoral, quer perante a exist?ncia de fraude.

Elei??es de 1949

Com o come?o da Guerra Fria, em 1948, Salazar iniciou uma pol?tica de aproxima??o ? Inglaterra e aos E.U.A, acentuou nos seus discursos o anticomunismo e o antisovietismo, iniciou uma escalada da repress?o sem que se fizessem sentir san??es internacionais. A oposi??o percebeu claramente que as medidas liberalizadoras do p?s-guerra tinham acabado e que uma nova vaga de repress?o se estava a fazer sentir.

Face ao aumento da repress?o e ? dissolu??o do MUD, em 1947, por um despacho do Minist?rio do Interior que o considerava ilegal por nele participarem comunistas, a oposi??o viu nas elei??es presidenciais de 1949 o melhor meio para dar continuidade ? sua actividade.

Em Julho de 1948, a oposi??o lan?ou a candidatura do general Norton de Matos, uma personalidade da oposi??o republicana que nunca tinha aceitado o Estado Novo.

Logo ap?s o lan?amento da sua candidatura come?ou a persegui??o aos seus apoiantes: alguns intelectuais da oposi??o viram os seus nomes eliminados dos cadernos eleitorais e o

8 PEREIRA, 2001: p?g. 810

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download