Sérgio Seabra LEIS & LETRAS - ANADEP

[Pages:10]S?rgio Seabra

Defensor P?blico do Estado do Par?. P?s-graduando em Direito Penal e Processual Penal.

DA FRONTEIRA ENTRE O CONCEITO DE "BEM DE PEQUENO VALOR" E DE "BEM DE VALOR INSIGNIFICANTE", PARA APLICA??O DO PRINC?PIO DA BAGATELA.

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo discorrer acerca da linha fronteiri?a entre o bem de pequeno valor e o bem de valor insignificante, seus principais pontos em comum, as diferen?as entre ambos e a aplica??o do princ?pio da bagatela ou insignific?ncia.

Palavras-chave: Fronteira entre bem de pequeno valor e bem de valor insignificante; Bem de pequeno valor; Bem de valor insignificante; Princ?pio da Bagatela; Princ?pio da Insignific?ncia.

INTRODU??O

A lei, como ato geral e abstrato, surgiu para controlar a conduta do indiv?duo em sociedade. Desde logo, era necess?rio um instrumento jur?dico que criminalizasse condutas e cominasse penas. Com a evolu??o dos povos, naturalmente, surgiu o Direito Penal. Diga-se a prop?sito, passou-se a punir de forma legalizada.

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Inicialmente, o instituto penal dos tempos antigos era caracterizado pela injusti?a, crueldade e vingan?a privada, gradativamente, metamorfoseou-se e a sociedade passou a apreciar de forma mais humana a conduta suscet?vel de qualifica??o do ponto de vista do bem e do mal.

Hodiernamente, ? cedi?o que o Direito Penal n?o deve se ocupar de conduta que produza um resultado cujo desvalor, por n?o causar les?o significativa a bens jur?dicos relevantes, n?o represente, por isso mesmo, preju?zo importante, seja ao titular do bem tutelado, seja ? integridade da pr?pria ordem social.

Neste contexto, ? absolutamente certo que nem todas as condutas, conquanto causem les?es a bens jur?dicos, justificam a interven??o penal.

Diante desta realidade, h? mister de estabelecer os limites constitu?dos em sutis barreiras jur?dicas, mas nem por isso menos impositivas que qualquer outra linha imagin?ria de segrega??o, entre as condutas humanas que incidem sobre bem de valor insignificante e bem de valor pequeno, j? que necessariamente a primeira n?o configura crime e a segunda sim.

Com efeito, este artigo cient?fico visa refletir sobre a fronteira entre o conceito de "bem de pequeno valor" e de "bem de valor insignificante", para aplica??o do princ?pio da bagatela, visto que alguns fatos s?o t?o insignificantes que n?o causam uma reprovabilidade social.

DESENVOLVIMENTO

H? ciz?nia doutrin?ria e jurisprudencial acerca da linha fronteiri?a entre bem de pequeno valor e bem de valor insignificante. O dissenso vai desde a mensura??o do valor do bem, passando pela import?ncia do objeto material atacado, o exame das circunst?ncias do fato, a condi??o pessoal do agente, a les?o ao patrim?nio da v?tima, a aplica??o do princ?pio da insignific?ncia e por fim os efeitos jur?dicos das condutas incidentes a cada um dos diferentes tipos de bens.

Para compreender melhor essa linha t?nue ? necess?rio ter a exata percep??o das condutas que incidem sobre bagatelas e sobre bens de valor pequeno.

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A express?o bagatela1 ? utilizada para designar algo de pouco valor ou de pouca import?ncia. Tem com sin?nimo: ninharia, insignific?ncia e futilidade. Portanto, o delito de bagatela consiste na conduta ou ataque a bem sem pr?stimo ou de valor insignificante que n?o justifica a interven??o do Direito Penal e sim deve ser tratada por outros ramos do direito. Essa rela??o de subsidiariedade se alicer?a no Princ?pio da Interven??o M?nima, "por esse princ?pio o Direito Penal s? deve intervir quando nenhum outro ramo do Direito puder dar resposta efetiva ? sociedade, atuando, pois, como ultima racio"2.

Com efeito, ? necess?rio aferir se efetivamente a conduta do agente causou les?o ao bem tutelado pela norma jur?dica a ponto de justificar a sua criminaliza??o, visto que parte expressiva da doutrina e da jurisprud?ncia preconiza que o mero enquadramento formal do fato ao tipo abstrato previsto na lei n?o ? suficiente para caracterizar o il?cito. A doutrina preconiza que o "princ?pio da insignific?ncia ou da bagatela, proposto por Claus Roxim, estabelece serem penalmente irrelevantes os fatos que provoquem les?es insignificantes aos bens jur?dicos [...]. Por conta disso, diz-se que o direito penal n?o se deve ocupar de bagatelas3". A prop?sito, define-se como Princ?pio da Insignific?ncia Jur?dica aquele que permite infirmar a tipicidade de fatos que, por sua inexpressividade, constituem a??es de bagatela, despidas de reprovabilidade, de modo a n?o merecerem valora??o da norma penal, exsurgindo, pois, como irrelevantes. A tais a??es falta ju?zo de censura penal. Nesse diapas?o, tamb?m disp?e a jurisprud?ncia:

PENAL ? FURTO DE PEQUENO VALOR ? PRINC?PIO DA INSIGNIFIC?NCIA OU DE BAGATELA ? O ?nfimo valor da res furtiva, sem qualquer repercuss?o no patrim?nio da v?tima, ? mingua de efetiva les?o ao bem jur?dico tutelado pelo art. 155 do CP, n?o repercute na ordem jur?dica a ensejar a reprimenda estatal, ainda que o agente seja reincidente, pois a irrelev?ncia do resultado implica no reconhecimento da atipicidade da conduta, afetando materialmente a estrutura do delito. Recurso provido. (TAMG ? ACr 0378813-6 ? (72083) ? 2? C. ? Rel. Des. Ant?nio Armando dos Anjos ? J. 11.02.2003) JCP.155.

1 Wikip?dia, a enciclop?dia livre. Dispon?vel em: . Acesso em: 13 nov. 2009. 2 SOUZA. Luiz Ant?nio de. Direito Penal. S?o Paulo: Saraiva, 2009. p. 6. 3 ESTEFAM. Andr?. Direito Penal 1 ? Parte Geral. 4 ed. S?o Paulo: Saraiva, 2008. p. 15.

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Por n?o ter previs?o legal e t?o somente doutrin?ria e jurisprudencial, n?o h? unanimidade na aceita??o do princ?pio da bagatela. Logo, uma corrente doutrin?ria conservadora e legalista preconiza que a lei n?o faz refer?ncia ? quantidade de les?o necess?ria para caracterizar um delito, por conseguinte n?o cabe ao interprete conceder ou n?o tutela jur?dica ao bem a partir de uma valora??o pessoal. Alguns Tribunais j? decidiram que inexiste previs?o legal para descriminalizar os delitos de bagatela, verbi gratia:

FURTO TENTADO ? BAGATELA ? As condutas de menor potencial ofensivo est?o definidas nas Leis n? 9.099/95 e 10.259/01. N?o existe previs?o legal descriminalizando os chamados delitos bagatelares. Para crimes de menor significado, o sistema oferece penas e mecanismos outros para evitar a pris?o, mas marcando a reprova??o da conduta. Recurso provido, para receber a den?ncia. (AC 70 005 159 074, 7? C. Criminal, TJRS, Rel. Des. Ivan Leomar Bruxel, un?nime, DJ 05.12.2002). (TJRS ? ACr 70005159074 ? 7? C.Crim. ? Rel. Des. Ivan Leomar Bruxel ? J. 05.12.2002)

Instado a se manifestar, o Supremo Tribunal Federal entende que o princ?pio da bagatela ou insignific?ncia ? causa supra legal de exclus?o da tipicidade e tem cumulativamente como vetores: a) a m?nima ofensividade da conduta do agente, (b) nenhuma periculosidade social da a??o, (c) o reduzid?ssimo grau de reprovabilidade do comportamento do agente, (d) a inexpressividade da les?o jur?dica provocada. Esse foi o entendimento firmado pela Excelsa Corte no HC 84.412-MC/SP4.

A presen?a de todos estes requisitos torna o fato sem import?ncia na seara penal, apesar do comportamento ser formalmente t?pico, isto ?, de haver les?o a bem jur?dico tutelado pela norma penal, n?o ocasiona no plano material, perturba??o social, logo incide o princ?pio da insignific?ncia e por consequ?ncia torna o fato at?pico, face ? natureza fragment?ria do Direito Penal, que s? deve ser acionado quando, outros ramos do direito n?o sejam suficientes para a prote??o dos bens jur?dicos envolvidos.

4 Informativo n? 354 do STF. Dispon?vel em: . Acesso em: 15 nov. 2009.

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Por outro norte, bem de pequeno valor n?o ?, necessariamente, bem insignificante. O valor de bem n?o ? aferido levando em considera??o unicamente o seu valor econ?mico e sim um conjunto de fatores no caso concreto, tais como: condi??o econ?mica da v?tima em rela??o ao bem, o efetivo preju?zo da v?tima, a extens?o da ofensa ao bem jur?dico, dentre outros.

Assim, a conduta que incide sobre bem, cujo valor n?o pode ser considerado ?nfimo n?o ? tida como um indiferente penal, na medida em que a falta de repress?o de tal conduta representaria verdadeiro incentivo a pequenos delitos que, no conjunto, trariam desordem social. Neste sentido, disp?e a jurisprud?ncia:

PRINC?PIO DA INSIGNIFIC?NCIA ? FURTO DE OBJETO DE PEQUENO VALOR ? APLICA??O ? IMPOSSIBILIDADE ? ? imposs?vel a aplica??o do princ?pio da insignific?ncia na hip?tese de furto de objeto de pequeno valor, pois inexiste amparo legal para o reconhecimento da figura, devendo ser prestigiada a legisla??o em vigor, sendo certo que, para pequenas infra??es, h? as alternativas de furto privilegiado e penas alternativas, trazidas pela recente altera??o da parte geral do C?digo Penal. (TACRIMSP ? RSE 1271089/1 ? 3? C. ? Rel. Juiz Ciro Campos ? DOESP 01.11.2001)

Assim, algumas condutas perpetradas pelo agente n?o se inserem na concep??o doutrin?ria e jurisprudencial de crime de bagatela, pois romperam o patamar m?nimo da irrelev?ncia para o Direito Penal.

O bem de pequeno valor n?o pode ser confundido com bem de valor insignificante. Este, necessariamente, exclui o crime em face da aus?ncia de ofensa ao bem jur?dico tutelado, aquele, eventualmente, pode caracterizar um privil?gio, como por exemplo, pena mais branda compat?vel com a pequena gravidade da conduta. H? julgados assinalando a diferen?a entre ambos os bens.

PENAL E PROCESSUAL PENAL ? RECURSO ESPECIAL ? FURTO ? PRINC?PIO DA INSIGNIFIC?NCIA ? DISS?DIO ? I ? No caso de furto, para efeito da aplica??o do princ?pio da insignific?ncia, ? imprescind?vel a distin??o entre ?nfimo (ninharia) e pequeno valor. Este, ex vi legis, implica eventualmente, em furto privilegiado; aquele, na atipicidade conglobante (dada a m?nima gravidade). II ? A interpreta??o deve considerar o bem jur?dico tutelado e o tipo de injusto. III ? O diss?dio pretoriano tem que observar o disposto nos

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arts. 255 do RISTJ e 541 do CPC (c/c o art. 3? do CPP). Recurso n?o conhecido. (STJ ? RESP 470978 ? MG ? 5? T. ? Rel. Min. Felix Fischer ? DJU 30.06.2003 ? p. 00292) JCPC.541 JCPP.3

Reconhecer um delito de pequeno valor significa dizer que a atua??o da Lei Penal ? imprescind?vel, apesar do baixo valor do objeto ofendido. Por outro lado, o crime insignificante deixa de merecer a tutela do Direito Penal. No primeiro h? a reprimenda penal e no outro o Estado deixa de atuar diante da insignific?ncia penal do fato.

A aplica??o do Princ?pio da Bagatela ocorre de forma mais intensa nos casos relacionados a furto, drogas e dano. Via de regra, tranca ou fulmina a a??o penal por atipicidade da conduta.

Embora alguns fatos se amoldem a subtra??o de bem m?vel descrita na lei como furto, a jurisprud?ncia afasta a tipicidade, verbi gratia:

CRIMINAL ? TRANCAMENTO DA A??O PENAL ? FURTO SIMPLES ? ?NFIMO VALOR DA QUANTIA SUBTRA?DA PELO AGENTE ? INCONVENI?NCIA DE MOVIMENTA??O DO PODER JUDICI?RIO ? DELITO DE BAGATELA ? PRINC?PIO DA INSIGNIFIC?NCIA ? ORDEM CONCEDIDA ? Faz-se mister a aplica??o do princ?pio da insignific?ncia, excludente da tipicidade, se evidenciado que a v?tima n?o teria sofrido dano relevante ao seu patrim?nio ? Pois os valores, em tese, subtra?dos pelo paciente representariam quantia bem inferior ao sal?rio m?nimo. Inconveni?ncia de se movimentar o Poder Judici?rio, o que seria bem mais dispendioso, caracterizada. Considera-se como delito de bagatela o furto simples praticado, em tese, para a obten??o de quantia de ?nfimo valor monet?rio, consistente em apenas R$ 13, 00 (treze reais) ? Hip?tese dos autos. Deve ser determinado o trancamento da a??o penal instaurada em desfavor do paciente, por aus?ncia de justa causa. Ordem concedida, nos termos do voto do Relator. (STJ ? HC 27218 ? MA ? Rel. Min. Gilson Dipp ? DJU 25.08.2003 ? p. 00342).

Portar ?nfima quantidade de subst?ncia entorpecente ?, formalmente, uma conduta criminosa. No entanto, a ofensa ao bem jur?dico ? irrelevante, se n?o h? forma de qualific?-la como tr?fico de entorpecentes, exempli gratia:

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PENAL ? ENTORPECENTES ? PRINC?PIO DA INSIGNIFIC?NCIA ? Sendo ?nfima a pequena quantidade de droga encontrada em poder do r?u, o fato n?o tem repercuss?o na seara penal, ? m?ngua de efetiva les?o do bem jur?dico tutelado, enquadrando-se a hip?tese no princ?pio da insignific?ncia. Recurso Especial conhecido. (STJ ? RESP 290445 ? MG ? 6? T. ? Rel. Min. Vicente Leal ? DJU 29.09.2003 ? p. 00356).

Um dano irris?rio e destitu?do de potencialidade ? insignificante para a seara penal, v.g.:

PENAL ? PROCESSUAL PENAL ? CRIME DE DANO ? PRINC?PIO DA INSIGNIFIC?NCIA ? AUS?NCIA DE POTENCIALIDADE LESIVA ? RECURSO PROVIDO ? O fato tido por penalmente irrelevante, destitu?do de potencialidade lesiva, autoriza a aplica??o do princ?pio da insignific?ncia. Recurso conhecido e provido. (TJRR ? ACr 073/02 ? T.Crim. ? Rel. Des. Carlos Henriques ? DPJ 26.09.2002 ? p. 04).

O referido princ?pio tamb?m ? aplicado em outros fatos, embora de forma menos usual, tais como: crime militar5, descaminho6, falsifica??o de moeda7, les?o corporal8, ato infracional9, dentre outros.

Extrai-se das respectivas decis?es que o princ?pio da insignific?ncia se faz presente no plano valorativo do estudo do tipo penal. N?o sendo violado o bem jur?dico da tutela penal, exclui-se, ? vista do referido princ?pio, a tipicidade do fato.

Obviamente, o Princ?pio da Bagatela n?o se aplica a todo e qualquer crime, em especial quando a conduta do agente apresenta viol?ncia ou grave

5 Informativo n? 446 do STF. Dispon?vel em: . Acesso em: 15 nov. 2009. 6 Informativo n? 490 do STF. Dispon?vel em: . Acesso em: 15 nov. 2009. 7 Informativo n? 514 do STF. Dispon?vel em: . Acesso em: 15 nov. 2009. 8 Informativo n? 531 do STF. Dispon?vel em: . Acesso em: 15 nov. 2009. 9 Informativo n? 564 do STF. Dispon?vel em: . Acesso em :15 nov. 2009.

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amea?a. Com efeito, a tese da singeleza n?o se aplica ao crime roubo, ainda que na forma tentada, por exemplo:

PRINC?PIO DA INSIGNIFIC?NCIA ? APLICA??O AO CRIME DE ROUBO ? INADMISSIBILIDADE ? ? inadmiss?vel a aplica??o do princ?pio da bagatela ao crime de roubo, pouco importando o valor subtra?do, porquanto praticado com viol?ncia ou grave amea?a ? pessoa. Recurso improvido. (TJMA ? ACr 001392-2003 ? (44.143/2003) ? 2? C.Crim. ? Rel? Des? Madalena Serejo ? J. 10.04.2003).

Logo, descabe a aplica??o do Princ?pio da Bagatela no roubo, ainda que na forma tentada, mesmo sendo ?nfimo o valor do bem subtra?do. ? que, al?m do patrim?nio, tutela-se a integridade f?sica e moral da pessoa, raz?o pela qual n?o ? poss?vel aplicar o referido princ?pio.

CONCLUS?O

N?o h? um crit?rio legal para delimitar com exatid?o a fronteira entre o conceito de bem de pequeno valor e de valor insignificante. Sua determina??o depende do caso concreto, portanto cabe ao magistrado analisar se a conduta que incide sobre um ou outro bem deve ou n?o ser objeto de san??o imposta pelo Direito Penal.

Para evitar decis?es tir?nicas e insens?veis, a Excelsa Corte estabeleceu alguns par?metros, alhures citados, os quais devem nortear a as decis?es dos ju?zes.

Logo, se o fato causar les?o ?nfima e desvalorizada a um bem protegido pelo Direito Penal a conduta ser? materialmente at?pica e, portanto, insuscet?vel de gerar puni??o estatal. Por outro lado, se transpor o conceito de ninharia e atingir um bem de pequeno valor a conduta estar?, inevitavelmente, tipificada como crime e, por conseguinte, pass?vel de puni??o na esfera penal.

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