Temporalidade e identidade. O jogo do bicho no Rio de ...

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Temporalidade e identidade. O jogo do bicho no Rio de Pereira Passos

Jos? Luiz Villar Mella

Doutor em Hist?ria Social e das Id?ias pela Universidade de Bras?lia. E-mail: zvillar@.

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Fotos: Augusto Malta Marinheiros com prostitutas - Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.

Resumo ? As reformas implementadas por Pereira Passos expressaram o confronto entre a imposi??o de um projeto ?nico e a atua??o de uma multiplicidade de agentes modeladores do espa?o urbano que inclu?a o jogo do bicho, sua difus?o espacial e geopol?tica. O projeto ?nico da elite republicana baseava-se na busca da consolida??o de uma identidade europ?ia, progressista, para a cidade do Rio de Janeiro, que passaria a ser o espa?o da ordem e do tempo cronol?gico. Portanto, identidade e temporalidade estabelecem e mant?m uma rela??o que transcende a abordagem f?sica das reformas urbano-paisag?sticas. Palavras-chave: Pereira Passos; Rio de Janeiro; reforma urbana; jogo do bicho; controle social.

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A reforma urbana do per?odo Pereira Passos tornou materialmente expl?cito o confronto entre diferentes viv?ncias de temporalidade. Podemos observar tanto a manifesta??o espacial do tempo cronol?gico, a express?o de uma ordem apol?nea, quanto ? multiplicidade de experi?ncias e estrat?gias de sobreviv?ncia que se forjaram na rela??o entre o cidad?o, com suas singularidades, e o espa?o urbano.

No cen?rio das reformas, temos de considerar a presen?a e a import?ncia do ide?rio positivista, baseado no lema: "Saber para prever, prever para prover",1 que desde os prim?rdios da Rep?blica influenciou e orientou o pensamento jur?dico policial.

Assim, sobretudo para a elite republicana, era necess?rio moralizar e normatizar a cidade conferindo-lhe uma nova identidade. Mesmo que esta fosse constru?da de forma dr?stica e autorit?ria, como se observou na campanha sanitarista e na sucess?o de demoli??es que marcaram o in?cio da reforma urbana de Pereira Passos. A repress?o ao jogo do bicho e a destrui??o dos quiosques, guardadas as devidas propor??es, inserem-se nesse processo de cria??o de um espa?o cartesiano, racional e previs?vel, um espa?o que obedecesse a linearidade de um tempo cronol?gico.

Quando tratamos da repress?o como confronto de diferentes viv?ncias do tempo estamos, portanto, diante da rela??o entre diferentes formas de inser??o socioecon?mica. Por um lado, uma elite que se apresenta como "mundo da ci?ncia", mundo da ordem, ou n?cleo civilizado da sociedade e, por outro, segmentos populares que se manifestam como "mundo da vida".2

As a??es e inten??es dos agentes da ordem expressaram-se por meio do aumento e do aperfei?oamento dos mecanismos e instrumentos de controle social, fundamentados,

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sobretudo, numa racionalidade sanitarizadora que se aplicava tanto ao combate de doen?as f?sicas quanto ? repress?o a poss?veis "desvios", ou "doen?as morais".

A elabora??o e a divulga??o de manuais de instru??es, tais como o Processo das contraven??es de jogo: instru??es pr?ticas organizadas na administra??o do Dr. Aurelino Leal, representaram a tentativa de ordenar, prever, antever a forma como o jogo seria encontrado. Mas, a diversidade de modalidades de manifesta??es do jogo do bicho superava qualquer tentativa de previs?o, o que indica uma complexidade da realidade do "mundo da vida".

Como um indicador da rea??o das elites republicanas a uma suposta amea?a representada pelo crescimento considerado desordenado da popula??o urbana, cabe destacar o aumento do efetivo policial. A publica??o intitulada Regulamentos da Policia e Boletim Comemorativo da Exposi??o Nacional de 1908 demonstra que ocorreu um aumento acentuado do contingente policial ao longo dos primeiros anos da Rep?blica. Em 17 anos, de 1889 a 1905, o efetivo de policiais/10.000 habitantes duplicou, passando de 29 policiais por 10.000 hab., em 1889, para 58 policiais por 10.000 hab., em 1905.3

A inten??o de controlar o devir, os resultados, apresentada como necessidade, justificou a??es pol?ticas excludentes. A previsibilidade, pretensamente cient?fica, ou vis?o prospectiva, que pode se apresentar como profilaxia social, conferiu uma racionalidade ao preconceito e ?s arbitrariedades cometidas pela Policia. A repress?o ao jogo, no caso espec?fico da cidade do Rio de Janeiro da Primeira Rep?blica, se inseriu nesse movimento, no qual tamb?m merecem destaque a defini??o de uma nova posi??o social para o negro, a "regenera??o" da cidade e o processo de constru??o de um tipo de trabalhador urbano.

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Com rela??o ao car?ter preventivo da repress?o policial aos front?es que exploravam jogos il?citos no per?odo das reformas, cabe destacar o pensamento do chefe de pol?cia, Alfredo Pinto, publicado no Boletim Policial ao se referir ? apela??o, movida pelo advogado Carlos Drumond Franklin, com o intuito de rever e anular a proibi??o da explora??o de jogos no Jardim Zool?gico:

O Supremo Tribunal em Acc. n? 595 de 24 de dezembro de 1908 p?s termo ? celebre explora??o dos front?es que a policia coibiu com vigor e tenacidade, amparada pelo poder judici?rio. Naquele julgado ficou firmada a doutrina de que `n?o constitui viol?ncia a a??o legal preventiva da autoridade policial em rela??o a certos g?neros de jogo' (...).

Fundado, portanto, no pr?prio contrato celebrado entre a Prefeitura e o Acusado, em decis?o do poder Judici?rio e nas normas de direito decorrentes da a??o preventiva da pol?cia, de acordo com o decreto n? 6.440 de 30 de mar?o de 1907, proibi o funcionamento que o A. projetava explorar no Jardim Zool?gico, talvez no intuito de restabelecer nesta cidade um jogo verdadeiramente de azar que a autoridade publica pode felizmente banir com aplausos gerais. (Rio, 1? de setembro de 1908 ? Alfredo Pinto Vieira de Mello, Chefe de Pol?cia)4

A pr?tica de jogos ? uma express?o da multiplicidade de alternativas de situa??es futuras. No caso espec?fico de jogos il?citos, como o jogo do bicho, a amea?a ? no??o ou ? exist?ncia de uma ordem linear e mec?nica ? ainda maior, porque esta pr?tica, seu controle

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e explora??o escapam ao ?mbito do Estado. Assim, a repress?o pode ser vista como a manifesta??o do confronto de diferentes no??es, ou viv?ncias de tempo.

As reformas urbanas realizadas de forma autorit?ria imp?em ? sociedade uma ?nica possibilidade de futuro, sugerido como o poss?vel, o planejado. A sociedade, por outro lado, vivencia, pelas diversas alternativas que a singularidade humana cria, a possibilidade de seguir outros caminhos rumo a diferentes alternativas de futuro.5

A predomin?ncia da abordagem das ilicitudes a partir da l?gica do tempo cronol?gico, como um esfor?o de sistematizar o estudo do crime, est? claramente exposta no pensamento de Elysio de Carvalho:

(...) estudando-se a marcha da criminalidade nos principais paises europeus, verificou-se que a criminalidade, n?o somente sofre um movimento ascendente, aumentando cada ano de uma maneira desproporcional com a cifra da popula??o, mas ainda tem sua evolu??o particular, caracterizada por dois fen?menos que consistem no seguinte: a criminalidade natural vai substituindo as formas primitivamente rudes, musculares, impulsivas da viol?ncia, pelas formas modernamente intelectuais, requintadas, civilizadas da ast?cia e, depois, paralelamente a esta altera??o morfol?gica, passa do estado agudo e espor?dico para o estado cr?nico e epid?mico.

Tal evolu??o, cada vez mais intelectual do delito, se verifica nos paises de civiliza??o superior.

A medida que um pais progride em cultura e civiliza??o, a criminalidade requinta-se, adquirindo aspectos fraudulentos e astuciosos, e isto, naturalmente, porque, segundo uma lei fatal, a luta pela exist?ncia se

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torna cada vez mais intelectual, as formas anormais desta luta estando sempre intimamente ligadas ?s suas manifesta??es normais.

F?cil ? estabelecer as causas dessa transforma??o da criminalidade, afirma Niceforo. `O homem criou at? aqui duas grandes formas principais de civiliza??o que, em geral, podem ser chamadas: civiliza??o violenta, a antiga, e civiliza??o fraudulenta, a moderna.

Niceforo desenvolve de uma maneira completa esta teoria com suas aplica??es ? geografia criminal, ? evolu??o do crime e ? especializa??o do crime nas diferentes classes sociais. (Carvalho, 1912, p.11-12)

A amea?a supostamente representada pelo jogo do bicho foi associada ?s epidemias. Reprimir o jogo do bicho era tamb?m combater uma epidemia de imoralidade, ou mais uma manifesta??o de patologia urbana.

A repress?o ao jogo do bicho mereceu, assim, uma especial aten??o das autoridades desde os prim?rdios da Rep?blica, sendo inscrita em um movimento mais amplo de patologiza??o do crime.6 Esta postura, adotada sobretudo pelas autoridades policiais, expressou-se por meio da caracteriza??o do h?bito do jogo como um v?cio, ou como uma doen?a da alma. A preocupa??o com a explora??o e a pr?tica dos jogos il?citos devia-se ? possibilidade de terem resultados sociais imprevis?veis.

Um elemento marcante do aumento do n?mero de casas e pontos de jogos, nos primeiros anos da Rep?blica, entretanto, foi o fato de o jogo do bicho ter sido abordado com um vocabul?rio pr?prio da ?rea de sa?de. Publicavam-se na imprensa cr?ticas em que o jogo era apresentado como um mal que se "disseminava" ou uma "endemia", numa clara iniciativa de patologizar o jogo.

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A iniciativa de patologizar a pr?tica do jogo representava rea??o a uma suposta amea?a ? sociedade, em particular ? sociedade civilizada, pois o jogo il?cito, fora de controle, estaria atingindo o corpo social, suas conquistas e expectativas. O jogo il?cito era apresentado como patologia porque, diferentemente dos jogos oficiais, era considerado uma atividade de dif?cil acompanhamento, al?m de promover desperd?cio de recursos.

A patologiza??o do jogo, em especial o do bicho, fez tamb?m parte do discurso dos representantes das atividades comerciais. Merece destaque o Of?cio da Associa??o dos Empregados no Comm?rcio do Rio de Janeiro ao Chefe de Pol?cia:

Secretaria, 28 de novembro de 1900 Exm?

Os aplausos da Gazeta de Not?cias de hoje ao altivo e justo proceder de V. Ex? na atitude de que assumiu na quest?o dos boliches e a senten?a do Conselho Supremo da Corte de Apela??o, traduzem perfeitamente o modo de sentir desta Associa??o, e remuneram V. Ex? do ?rduo trabalho com que se prop?e a exterminar o mais nocivo dos cancros que hoje corroem a sociedade .

Todas as fases Exm? Sr. por que passam a vida d'um povo, obedecem sempre a fatores, muitas vezes desconhecidos, que lhe determinam o progresso ou o aniquilamento; porem na decad?ncia da nossa popula??o h? uma s? causa que lhe atrofia a atividade, roubando-lhe a virilidade do animo para a luta da exist?ncia - ? o jogo!

As artimanhas que existem entre a lei e o fisco, Exm? Sr, n?o podem roubar a autoridade o direito d'a??o, e tanto isto ? assim, que V.Ex? desdenhando d?umas sutilezas de ocasi?o, sabia e prudentemente destruiu perniciosos princ?pios com que o v?cio queria destronar a verdade.

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