Os incêndios nas páginas dos jornais: relatos de casos e o ...
Os incêndios nas páginas dos jornais: relatos de casos e o corpo de bombeiros no Rio de Janeiro oitocentista.
Jaqueline Neves da Silva(
Bruna Carolina Ornelas Silvestre de Jesus((
Resumo
Este artigo é produto do levantamento e da análise das fontes coletadas no decorrer das atividades iniciais de pesquisa relativas ao subprojeto Crônicas urbanas e notícias de incêndios nos jornais do século XIX (ligado ao projeto Vida urbana e incêndios no Rio de Janeiro Oitocentista, desenvolvido sob a coordenação da Profa. Anita Correia Lima de Almeida). Nossa proposta inicial é realizar o levantamento e a análise de notícias de incêndios que a cidade do Rio de Janeiro sofreu ao longo do século XIX - registradas nos principais periódicos da época – para, a partir daí, discutir a apreciação dos jornais a respeito da atuação do Corpo de Bombeiros e a fundação de um imaginário sobre a instituição.
Palavras chave: Incêndios, Rio de Janeiro, Periódicos
Abstract
This article is the result of the appraisal and analysis of the sources gathered during the initial research activities of the subproject ‘Urban chronicles and news of fires in Rio de Janeiro along the 19th century’ (linked to the project ‘Urban life and fires in the eighteenth-century Rio de Janeiro, developed under the coordination of Professor Anita Correia Lima de Almeida).
Our starting proposal is to perform an appraisal and an analysis of some news of fires that occurred in Rio de Janeiro along the 19th century, in the records of the main newspapers of that time, to discuss the evaluation of these newspapers about the work of the Fire Department and the foundation of the institution’s imagery.
Keywords: Fires, Rio de Janeiro, Newspapers
O poder destrutivo do fogo é um expoente no embate entre o homem e a natureza e vem causando prejuízos e temores às sociedades ao longo da história, podendo “ser considerado como um dos grandes males da civilização” (MELHADO; SOUZA, 1988). Com o desenvolvimento dos centros urbanos, os incêndios assumiram o lugar de um problema real a ser combatido. No século XIX, os discursos envoltos por essa realidade revelam uma reflexão, já então, acerca do tema da segurança pública. O estudo desses casos de sinistro amplia as possibilidades de percepção em relação às visões surgidas no século XIX sobre o crescimento das cidades – e, mais especificamente, neste caso, da cidade do Rio de Janeiro.
O crescimento acelerado e as densas populações faziam das grandes cidades do século XIX alvos vulneráveis a ocorrência de “incêndios catastróficos”, tendo algumas delas tido parte considerável de suas extensões destruída (RYBCZYNSKI,1995:104-5)[1]. A questão dos incêndios tornou-se então uma problemática presente na vida urbana da sociedade oitocentista de várias cidades:
O incêndio pode ser considerado como um dos grandes males da civilização; o homem tem enfrentado, ao longo da história, grandes e famosas catástrofes ligadas a incêndios. Com o passar do tempo veio o crescimento das cidades e a prosperidade industrial, intensificou-se e concentrou-se muito o uso de fontes de energia, construiu-se cada vez mais alto e os riscos conseqüentes para a segurança nem sempre foram considerados. Hoje existem dados que revelam a extensão dos prejuízos econômicos e a perda de vidas humanas que anualmente vêm se somar às estatísticas de incêndio, apontando para a necessidade de se conhecer e controlar cada vez melhor o problema.
No Rio de Janeiro, os incêndios não chegaram a destruir grandes extensões territoriais, mas um levantamento prévio da documentação referente ao tema[2] leva à percepção da ocorrência de um grande número de pequenos casos espalhados pela cidade no decorrer do século, muitos deles geralmente iniciados por práticas ou acontecimentos do dia-a-dia. Nas ruas e nas casas, explosões de lampiões de querosene e de encanamentos de gás[3] eram exemplos de acidentes causadores de princípios das chamas. Nas fábricas, há a explosão do maquinário[4] ou acidentes decorrentes de práticas do cotidiano, a exemplo do caso do incêndio ocorrido numa fábrica de cordas no dia 9 de maio de 1890 em que, segundo noticiado no dia seguinte nas páginas do jornal Gazeta de Notícias, havia sido “provado que o incendio fora casual e devido ao descuido de um dos trabalhadores, que atirara uma ponta de cigarro sobre um fardo.”.[5]
Este incêndio da casa de cordas situada na rua Clemente Pereira, em São Cristóvão, teria destruído completamente o barracão da cordaria, tendo sido contido devido aos esforços e à “presteza” do corpo de bombeiros que compareceu ao local e extinguiu o incêndio. Segundo a descrição do Jornal do Commercio, que também noticiou o caso nas suas páginas no dia 10 de maio, com a costumada prontidão nos seus trabalhos, compareceu ao local o “corpo de bombeiros que impedio que o fogo se communicasse em predios vizinhos.” [6]. Ambos os jornais noticiam a destruição total do prédio – que “ardeu por inteiro” - pertencente à viúva Rolla, que provavelmente receberia o seguro referente à cobertura dos danos causados pelo sinistro do prédio, depois de confirmada a casualidade do desastre e encerradas as investigações do processo.
A preocupação com as conseqüências das chamas era notória na redação de algumas notícias, quer no âmbito do privado, com referencias sobre os proprietários, danos na propriedade e se havia ou não seguros contra incêndio (em alguns casos noticiavam inclusive o calor do seguro), quer no âmbito do público, considerando os danos causados na rua e nos prédios vizinhos, a ação do corpo de bombeiros na contenção das chamas e dos delegados de polícia na investigação dos casos, a condição da prestação dos serviços públicos, algumas vezes considerados insuficientes[7] e também a descrição de outros prejuízos, e da existência ou não de vítimas. O problema dos incêndios era uma preocupação real e presente na vida daqueles que habitavam a cidade. Por vezes, na ausência da presença do corpo de bombeiros no local, a própria população[8] se encarregava de abafar as chamas de um ou outro foco de incêndio.
No mesmo dia deste caso da casa de cordas, noticiou-se também um princípio de incêndio ocorrido na rua da Prainha, se abatendo sobre a fábrica de café dos Soares Vicente & C. Neste segundo, também noticiado no dia 10 de maio de 1890 nas páginas do Jornal do Commercio, o corpo de bombeiros teria comparecido com a “costumada prontidão” e neste caso, por sua vez, o “fogo foi facilmente extincto, não havendo prejuizos nem victimas a lamentar” [9]. De acordo com o Diário de Notícias, de mesma data, o incidente teria sido motivado pela explosão de um torrador de café e teria sido “extincto pelos moradores e pela bomba do largo da Prainha.” [10]. Teriam comparecido ao local algumas autoridades como o pessoal da estação central dos bombeiros e também o 4º delegado de polícia. Segundo noticiado pelo Gazeta de Noticias, o corpo “de bombeiros compareceu e logo extinguia facilmente o incendio” [11].
Conforme verificado nos diferentes casos aqui relatos sobre a contenção das chamas, como no exemplo da fábrica de torrar café, os incêndios foram muitas vezes registrados nas páginas de diferentes periódicos, sendo alvos de diferentes discursos diferentes que aparentam objetivar uma certa realidade (BARBOSA, 2007). Por vezes, havia uma certa disputa no entendimento dos diferentes agentes – o corpo de bombeiros e os jornais – em relação ao entendimento sobre como tinha se dado a extinção do incêndio, sobretudo quando os jornais atribuíam os danos dos sinistros a deficiências nos serviços urbanos, conforme discutiremos mais a frente.
É possível verificar em alguns discursos a indignação quanto alguns problemas urbanos da cidade ou relativos a falhas na prevenção, a exemplo da noticia publicada no Jornal do Commercio no dia 23 de maio de 1890 a respeito do incêndio ocorrido no antigo Zoologico em Vila Isabel:
Avisos de Incendio - A’ vista do que ocorreu no incendio de restaurant do Jardim Zoologico, e do que a tal respeito ponderou o commandante do corpo de bombeiros, foi-lhe recommendado pelo ministerio da agricultura haja de indicar lugares onde convenha colocar caixas de aviso nos bairros da Villa-Isabel e Engenho-Novo para que, nos casos de incendio, possão ser prestados com promptidão os socorros necessarios.
Temos alludido por vezes a organização de completa rede de avisos a uma das principaes necessidades do serviço da extincção de incendios, a qual augmenta de importancia todos os dias com o natural desenvolvimento da cidade. Londres Pariz e Vienna offerecem a este respeito typos dignos de imitação. Sem a promptidão e regularidade dos avisos baldada será muitas vezes toda a diligencia do corpo de bombeiros e assim poderao ser expostas interesses valiosos á damnificação de que seria facil preserva-los. [12]
Este é um bom exemplo de papel e também da postura que os jornais podiam assumir nas notícias de incêndio. Por vezes, elas ultrapassavam a descrição do sinistro e suas consequências, assumindo tons de denúncia dos problemas urbanos (falhas no serviço de comunicação e falta d’água) e de cobrança por medidas que visassem solucionar essas faltas. É possível considerar ainda que muitas dessas narrativas afirmavam discursos civilizatórios e, conforme visto no trecho citado, de tendência europeizante, no sentido de ter como ideal a ser alcançado os exemplos das cidades européias.
Há de atentar-se para o fato de que o antigo Jardim Zoológico, inaugurado em 1888, sendo o primeiro do Rio de Janeiro, era propriedade do barão de Drummond (JAVOROUSKI e BISCAIA, 2007), empresário conhecido e respeitado na corte. Como argumentos para a necessidade da criação do Zoológico, o barão utilizou a questão do desenvolvimento da região da fazenda do Macaco (que depois viria a ser o bairro de Vila Isabel) e, conforme escreveu na petição redigida por ele em 1884 à Intendência com a finalidade de conseguir autorização para a abertura do Zoológico (MAGALHÃES, 2009), desejava
“dotar esta capital com um Jardim Zoológico, há muito reclamado como necessidade à capital do Império não só como motivo de embelezamento, mas principalmente pelos elementos de estudo que tal estabelecimento proporcionará” [13].
Assim, um incêndio ocorrido dentro desse “símbolo” de modernidade que o jardim do barão poderia representar, aliado à idéia de que a implantação do mesmo serviria para desenvolver a região de Vila Isabel, aponta para aspectos que devem ser considerados na leitura da notícia. É possível ainda questionar-se sobre o quanto o desastre e os danos ocorridos no restaurante do antigo Zoológico podem ter repercutido para o desenvolvimento da região, principalmente no que tange à rede de avisos de incêndios, cuja implantação o jornal reivindicou.
Caso semelhante surge na notícia de O Paiz (1898) sobre um incêndio ocorrido no dia 4 de janeiro de 1898, publicada no dia seguinte no jornal. Nela relata-se uma possível falta de água na região, atrasando assim o trabalho do corpo de bombeiros na contenção das chamas. No dia 6 de janeiro, no mesmo O Paiz, publicou-se uma carta na qual o Inspetor Geral, Dr. Floresta Miranda, negava a falta de água. Em seguida à carta, o jornal tecia fortes críticas à declaração do inspetor geral reafirmando a precariedade do sistema hidráulico, insuficiente para a contenção das chamas do sinistro.
Tenha paciencia o illustre Dr. Floresta Miranda. ‘O Paiz’ tem o direito, mais do que isso, o dever de confirmar as informações que hontem forneceu aos seus leitores, relativamente ao incendio da rua S. José. São inteiramente verdadeiras.
Durante cerca de 40 minutos o corpo de bombeiros, os heroicos soldados que arriscam amiudadas vezes a vida para salvar a existencia e propriedades alheias lutou ingloriamente, ante a marcha progressiva do incedio, vendo pasmados a violencia do fogo que ameaçava assenhorar-se dos predios lateraes, impotentes, para vencel-o, porque lhes faltava o elemento poderoso de ataque a agua.
É isso toda a gente viu. A imprensa fluminense, unanime, registrou o facto e verberou-o, pois é indescutivel que a maior parte dos desastres produzidos pelo fogo é exclusivamente devida á carencia d’agua, que, ou por inepcia, ou por inapptidão, falta sempre no momento em que mais é precisa.[14]
Assim, a análise dos casos de incêndio nas páginas dos periódicos oitocentistas no Rio de Janeiro permite uma reflexão sobre esta sociedade, seu cotidiano e os diferentes discursos que eram difundidos nela e por ela. A ameaça imposta à cidade pelo perigo de fogo iminente passou a ser uma problemática importante na vida urbana. Esta ameaça refletia-se nas notícias divulgadas nos jornais, em narrativas revestidas de preocupações que assumem relevância no âmbito do que é público, até mesmo quando os prejuízos dos sinistros tenham atingido apenas os interesses privados, uma vez que a possibilidade – sempre presente – de alastramento das chamas fazia com que a questão dos incêndios fosse um problema coletivo, de todos os que viviam na cidade.
Bibliografia
JAVOROUSKI, M. L.; BISCAIA, S.A. A História do Zoológico Municipal de Curitiba.
Monografia apresentada ao curso de Pós-graduação lato sensu em História e Geografia do
Paraná da Faculdade Padre João Bagozzi, como requisito de obtenção de título de especialista.
Curitiba, 2007.
MAGALHÃES, Felipe. E o rio não civiliza-se... O Jardim Zoológico e o jogo do bicho no Rio de Janeiro. In: Anais do XII Simpósio Internacional de Processo civilizador, Recife, 2009.
Disponível em: Último acesso em 13 de junho de 2010.
BARBOSA, Marialva Carlos. Meios de Comunicação e história: um universo de possíveis In:GOULART, Ana Paula; FERREIRA, M. A. F. (Organizadoras). Mídia e Memória. A produção de sentidos nos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007
MELHADO, Silvio Burratino; SOUZA, Ubiraci Espinelle Lemes de. Segurança contra incêndio nos edifícios de estrutura de aço. Escola Politécnica da USP. Núcleo de tecnologia da construção metálica. Publicação técnica PT 06. COSIPA Grupo Siderbras, São Paulo, p. 6-34, jan. 1988.
RYBCZYNSKI, Witold. A vida nas cidades: expectativas urbanas no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Record, 1996.
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( Jaqueline Neves da Silva é graduanda em História pela UNIRIO e bolsista de Iniciação Cientifica desde 2009 sob orientação da professora Anita Correia Lima de Almeida.
(( Bruna Carolina Ornelas Silvestre de Jesus é graduanda em História pela UNIRIO e colabora na pesquisa.
[1] Rybczynski faz uma argumentação pautada nos exemplos das grandes catástrofes ocorridas em território norte americano, vendo no modelo dos prédios e em alguns hábitos de vida daquela sociedade motivos para o surgimento e/ou intensificação dos sinistros naquelas cidades.
[2] Utilizamos como documentação até o presente momento os livros do Arquivo do Corpo Militar dos Bombeiros do Rio de Janeiro e periódicos em circulação no Rio de Janeiro oitocentista.
[3] Ver Jornal do Commercio, “Gazetilha”, dias 5, 13 e 19 de maio de 1890 para casos de explosão de lampiões e 25 de maio do mesmo ano para caso de explosão de encanamento de gás.
[4] Ver Diario de Notícias, 10 de maio de 1890, pp.1
[5] Gazeta de Notícias, 10 de maio de 1890, pp. 1
[6] Jornal do Commercio, “Gazetilha”, 10 de maio de 1890, pp. 1
[7] Ver casos do incêndio do Zoológico (problemas com os avisos de Incendio) e do caso do Incêndio em 31 de março de 1989 na rua da quitanda, onde, segundo noticiado nas páginas de O Paiz no dia seguinte, havia sido dificultado o trabalho do corpo de bombeiros por falta de água a serem discutidos mais a frente nas páginas 4 e 5 deste artigo.
[8] Numa série de casos os incêndios foram contidos pelos moradores das ruas em que se deram os incêndios, segundo descrito pelos jornais, a exemplo do caso publicado pelo Jornal do Commercio em 5 de maio de 1890.
[9] Ibidem 6.
[10] Diário de notícias, 10 de maio de 1890, pp. 1.
[11] Ibidem 10
[12] Jornal do Commercio, “GAZETILHA”, 23 de maio de 1890, p.1.
[13] Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Jardim Zoológico, Códice 15-4-62, fl 2 e 3.
[14] Jornal O Paiz,”MAIS INCENDIO”, 5 de janeiro de 1898, pp. 2
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