Dos que estão contra a política (1)



Dos que estão contra a política (1)

O PANORAMA político do país não é dos melhores. Os resultados das últimas eleições municipais confirmaram uma tendência preocupante, nomeadamente a crescente supremacia de um único partido. Já logo a seguir às últimas eleições legislativas e presidenciais publiquei, na minha qualidade de sociólogo oficioso e segundo a honra que me foi conferida pelo jornal Savana, uma série de artigos no também pelo mesmo semanário honrado oficioso Jornal Notícias com alguns “recados” ao novo governo que, de entre vários assuntos, chamavam a atenção para a necessidade de reforçar a oposição. Esse recado não era motivado por amores particulares pela oposição que temos, nem por achar que muito poder para a Frelimo fosse uma coisa necessariamente má. Um escriba de serviço – a mais recente honra que me foi conferida pelo Savana – não escreve esse tipo de coisas. A razão desse recado era outra. Tinha como pano de fundo uma preocupação, digamos, procedural com a democracia que me parece ameaçada sempre que um único partido detém uma espécie de poder absoluto. A minha ideia na altura, e que continua a mesma, era que a fraqueza da oposição fosse compensada por uma maior atenção pela transparência, pela legalidade e por uma separação ainda mais clara entre partido no governo e aparelho de Estado.

Maputo, Terça-Feira, 10 de Fevereiro de 2009:: Notícias

 

O discurso inicial do Presidente Guebuza continha elementos pertinentes a este respeito. As suas ideias sobre o “espírito do deixa-andar” e burocratismo apontavam um pouco neste sentido, mas, curiosamente, os defeitos estruturais do nosso sistema político – que conferem muitas prerrogativas ao partido que controla a Presidência da República e Parlamento (um dos efeitos mais nefastos do Acordo de Roma) – encarregaram-se de perverter as intenções deste discurso. A legítima preocupação de Guebuza de reforçar o seu próprio partido teve um efeito de soma zero ao implicar uma derrocada mais rápida do principal partido da oposição. Concorreu para este desfecho o excesso de zelo por parte de importantes sectores do partido Frelimo que interpretaram o reforço do seu partido de várias maneiras problemáticas do ponto de vista democrático, nomeadamente diminuir a importância da oposição e usar a influência no aparelho de Estado para, em jeito de chantagem, ganhar mais membros.

Pessoalmente, não acho trágico que a Renamo esteja a ter a sorte que tem agora porque por tudo quanto ela foi capaz de produzir como discurso e prática, nunca me pareceu uma alternativa viável. Para mim pelo menos, e como moçambicano, foi sempre razão de muito embaraço que um grupo político daquela natureza e com aquele líder constituísse a principal alternativa de governação no país.  Acho, contudo, trágico que a descida para a insignificância merecida da Renamo deixe um vazio no nosso panorama político, vazio esse que coloca o país à mercê de tudo quanto de nefasto é possível numa situação de poder absoluto. Este perigo é real e os verdadeiros patriotas no seio do partido no governo hão-de ter sensibilidade para esta situação. O que podemos esperar deles não é que sacrifiquem estas vantagens que lhes caíram às mãos a favor de um reforço fictício da oposição, mas que prestem mais atenção ainda ao que faz da democracia liberal o sistema político menos imperfeito até aqui inventado pelos Homens. Isso passa pelo respeito pela legalidade, por um interesse muito grande na preservação e alargamento das liberdades e pela observância da transparência. O nosso país não é o primeiro com uma situação desta natureza. A Escandinávia, por exemplo, foi dominada durante muitos anos por um único partido. Essa dominação, porém, nunca descambou em autoritarismo ou totalitarismo pelo simples facto de que foi preservada a legalidade, a liberdade e a transparência. Isto permitiu que os assomos de nepotismo, incúria e arrogância do poder que são quase que normais nestas circunstâncias fossem devidamente controlados.

O que se requer, portanto, é a prudência e o sentido de Estado por parte daqueles que hoje têm os destinos do país nas suas mãos. Mas isso só não é suficiente. Igualmente importante, senão mesmo mais importante ainda, é uma esfera pública que saiba apreciar estes perigos devidamente e aja no sentido de os conter. Neste ponto, contudo, vejo muitos problemas e é esta, no fundo, a razão desta reflexão. A minha reflexão é política no sentido em que tento partilhar com os leitores a minha postura política em relação ao país, mas é também académica no sentido em que parto de um problema que quero definir como um desafio essencialmente académico. A minha postura política é, de um modo geral, liberal no sentido em que justo para mim é o sistema político que garante, preserva e amplia as liberdades individuais através do direito, observa e protege proceduralmente o direito à diferença, e respeita uma noção de verdade que não é transcendental, mas se produz num debate livre de constrangimentos. O sistema político que temos instalado no país não satisfaz uma boa parte destes critérios. Contudo, e aí está o desafio académico, tem tudo quanto necessita para os satisfazer desde o momento que a esfera pública aceite o desafio.

Ao contrário de vários e ilustres colegas académicos não vejo a função das ciências sociais como sendo – numa interpretação cafreal de Marx – de pôr a descoberto as forças ocultas que são responsáveis pelo sofrimento do povo. Embora reconhecendo a existência de injustiças e de desigualdades gritantes no acesso à e distribuição da riqueza nacional defendo uma abordagem dos desafios do conhecimento herdeira de correntes liberais românticas – por exemplo: Richard Rorty – mas também profundamente enraizada no proceduralismo – por exemplo: Axel Honneth na Alemanha e Ronald Dworkin nos EUA – e na supremacia dos meios sobre os fins – por exemplo: Amartya Sen na sua definição de desenvolvimento como liberdade, Severino Ngoenha na sua preocupação com o paradigma libertário, Eduardo Mondlane na sua visão histórica do país, Nelson Mandela no seu espírito de inclusão – epistemologia essa que não apregoa a mudança radical, mas sim os pequenos passos profundamente alicerçados na empatia, na solidariedade e na crença no direito que todos nós temos de sermos tratados como iguais. Defendo, enfim, uma visão que acha extremamente problemático o tipo de crítica que alguns jovens são encorajados a formular, por exemplo, o músico Azagaia na sua lírica de ódio e violência. Chamo atenção particular para uma música que me parece particularmente chocante e vil, nomeadamente a composição sobre as explosões no paiol – o uso indecente que é feito de um hino com significado muito importante para a emancipação dos nossos povos – e ao facto de isto ter passado despercebido a uma figura proba e íntegra como Jorge Rebelo que, numa discussão pública, se juntou ao coro de vozes que consideram este tipo de letras de “crítica social”. A minha postura política leva-me a ver as ciências sociais não como arma de arremesso contra os maus, mas sim como instrumento de emancipação, condição essencial de desenvolvimento do país.

PREMISSAS CLASSIFICATÓRIAS

Maputo, Terça-Feira, 10 de Fevereiro de 2009:: Notícias

 

Como se manifesta este desafio académico? Ele manifesta-se através de uma forma muito específica de argumentação e que marca forte presença no actual debate político. Chamo a essa forma, socorrendo-me da lógica, de argumento baseado na classificação verbal. O que quero dizer com isto é que muita da nossa reflexão sobre os desafios políticos enfrentados pelo país é de natureza verbal sem revelar, contudo, muita preocupação em clarificar o sentido em que usamos os termos. Deixem-me ilustrar isto com um exemplo simples e depois complicar as coisas um bocadinho. Por exemplo, se eu dissesse que todos os países situados no continente africano são africanos poderia, validamente, concluir também que Moçambique – por se situar também no continente africano – é um país africano. Essa classificação verbal da noção “país africano” é-me facilitada pela convenção geográfica. O que acontece, porém, é que esta facilidade nem sempre existe. Muitos argumentos baseados na classificação verbal dependem do uso corrente de certas palavras no quotidiano. Por exemplo, em Maputo dizemos que toda e qualquer pessoa que falta à sua palavra, não se compromete e tem sempre saída para situações difíceis é “mafiosa”. Partindo dessa classificação verbal poderíamos concluir, olhando para um indivíduo que faltasse à palavra, não se comprometesse e sempre tivesse saída para situações difíceis, que esse indivíduo é “mafioso”.

Estamos, portanto, a dizer que uma certa entidade individual contém uma determinada propriedade e que a posse dessa propriedade implica a presença de uma outra propriedade. Se provarmos que uma pessoa tem determinadas características que definimos como sendo “mafiosas”, então essa pessoa é mesmo mafiosa. Isto é normal no quotidiano, na verdade, tão normal que estamos sempre a argumentar dessa maneira. Quando dizemos que o governo é corrupto fazemo-lo em função de premissas classificatórias que supomos estarem presentes no governo; quando dizemos que o líder da oposição é autoritário fazemo-lo em função de premissas classificatórias que supomos estarem presentes na sua actuação; quando dizemos que o edil da Beira é competente fazemo-lo em função de premissas classificatórias que supomos estarem presentes na sua pessoa. Reparem, contudo, que estes argumentos baseados na classificação verbal têm um teor normativo muito elevado que pode limitar a discussão. Por exemplo, alguém pode dizer “criticar é inveja” e concluir a partir daí que não se devia criticar. Tem acontecido na nossa esfera pública, sobretudo, estranhamente, da parte de músicos que gostam de dizer isto dos seus críticos. Dores de cotovelo, dizem. Alguns académicos também dizem isto para a vergonha das universidades que lhes passaram o diploma. Outro exemplo: “Essa ideia compromete as metas definidas”, logo, “essa ideia está errada”. Este é o ambiente do que, no país, se chama de “seguidismo”, “bajulação”, “yes-man”, “lambe-botismo”, etc.

Há remédios críticos para isto. E são duas perguntinhas. A primeira pergunta é de saber que provas existem realmente de que uma determinada entidade contém determinada propriedade. Por exemplo, que provas existem realmente de que a minha crítica a alguém contém as premissas classificatórias que justificariam o uso da noção de “inveja”? A segunda pergunta seria de saber se a classificação verbal contida na premissa classificatória deriva de uma definição objectiva ou de uma definição que pode ser questionada. Por exemplo, eu poderia argumentar que mesmo se a minha crítica fosse um acto de inveja até um certo ponto, essa ponta de inveja em algumas circunstâncias não é necessariamente má se através dela for possível pôr a descoberto fraquezas na posição defendida por outra pessoa. Os mesmos critérios valem para o outro exemplo. Partindo do princípio de que haja razões suficientes para supor que a ideia do técnico fulano-de-tal de, por exemplo, aconselhar ao ministro que peça um parecer jurídico antes da aplicação de uma medida possa comprometer as metas definidas, podemos, mesmo assim, encontrar mérito nisso, sobretudo se essa ideia do técnico fulano-de-tal colocar o respeito pela legalidade em primeiro plano.

• Elísio Macamo - Sociólogo

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