Jornal O Nacional - UFRGS



Jornal O Nacional: articulando os interesses do capital na década de 1920

Bibiana Friderichs

Cláudia Bromirsky Trindade

Donesca Calligaro

José Francisco dos Santos Alves[1]

Resumo: O presente estudo busca resgatar a história do surgimento do jornal O Nacional no município de Passo Fundo/RS, no ano de 1925. Este é o periódico mais antigo em circulação na cidade e não há uma pesquisa sistematizada a seu respeito. Assim, o objetivo deste trabalho é conhecer o contexto histórico em que o jornal nasceu e compreender de que modo essa conjuntura se refletiu em sua orientação editorial. O artigo estruturou-se com a realização de uma pesquisa história e tem como fonte as primeiras vinte edições do periódico, publicadas entre 16 de junho e 5 de setembro de 1925.

Palavras-chaves: Jornalismo, pesquisa histórica, O Nacional.

Introdução

Compreender o contexto histórico em que veículos de comunicação nascem em momentos específicos da trajetória de uma cidade, estado ou nação é fundamental para se resgatar a memória histórica destas localidades e levantar o papel da mídia na sociedade.

O jornal impresso, em particular, é um veículo importante no cenário global por ser um espaço onde, além da informação, promover-se a crítica e a reflexão de assuntos e questões elementares na sociedade; tem na força de seu registro o poder de atuar sobre líderes e formadores de opinião, desencadeando atitudes e servindo como intermediário na ação social dos grupos (GOMES, 2004).

Importantes periódicos surgiram no país em períodos históricos marcantes no decorrer do processo político, econômico, cultural e social do Brasil. O jornal é um documento histórico. Além de contar a história da sociedade em suas páginas, conta sua própria história. O jornal O Nacional é um exemplo disso. Fundado em 1925, na cidade de Passo Fundo, no interior do Rio Grande do Sul, reflete a realidade da época e registra em suas edições como o fazer jornalístico era pensado e realizado naquele período.

É o veículo impresso mais antigo da cidade de Passo Fundo e permanece ainda em circulação, mas, mesmo com sua presença ativa na região, não há, até agora, registro sistematizado de seu surgimento. Assim, como veículo significativo da história do município de Passo Fundo e do país, faz-se necessário resgatar a história do surgimento do jornal O Nacional, além de conhecer o contexto histórico em que esse veículo de comunicação nasce e compreender de que maneira essa conjuntura se refletiria em sua orientação editorial.

Para tanto, foram selecionados os vinte primeiros exemplares do jornal, publicados entre 19 de julho e 5 de setembro de 1925. Essa escolha está baseada nas relações que conseguimos estabelecer, inicialmente, entre o contexto histórico, sua contribuição para o surgimento do veículo e a evidência dessa contribuição nas páginas do periódico. Em especial, trabalhamos as matérias relacionadas às estradas de ferro no interior do estado do Rio Grande do Sul, em razão das novas idéias políticas e da movimentação do comércio em torno desta questão, e que são as quais melhor refletem a real postura editorial do veículo.

Para realizar este trabalho, optamos pela pesquisa histórica, que visa localizar, avaliar e sintetizar, sistemática e objetivamente, as provas para estabelecer os fatos e obter conclusões referentes aos eventos do passado (BORG apud RICHARDSON, 1999); tem como fundamento a volta ao passado, buscando as linhas de força que movem os acontecimentos (SANTAELLA, 2001). Para tanto, é necessário conhecer toda a informação disponível sobre o acontecimento em estudo, procurar novas fontes existentes que possam revelar novos dados e novas fontes e dados desconhecidos até então para contribuir para uma melhor análise da ocorrência (RICHARDSON, 1999). Assim, os objetivos básicos da pesquisa histórica são produzir um registro fiel do passado e contribuir para a solução de problemas atuais. Portanto, a compilação e o registro de fatos é o ponto inicial da pesquisa histórica, somados à interpretação dos dados e acontecimentos, à sintetização da informação recopilada, à determinação de tendências e a generalização dos significados.

No caso deste estudo, utilizamos o método de documentação, com técnica de pesquisa bibliográfica e documental, levantando dados de fontes primárias (o próprio jornal) e secundárias (a revisão bibliográfica).

Imprensa no Rio Grande do Sul

A tentativa de desenhar a trajetória da imprensa no Rio Grande do Sul nos leva a uns dos períodos politicamente mais marcantes da formação do estado. A primeira metade de século que viu gaúchos levantarem armas contra o Império foi, também, palco para o surgimento do primeiro jornal impresso e redigido no extremo sul do país. No ano de 1827, o Diário de Porto Alegre surgiu para, em suas páginas, dar voz aos pensamentos do então presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Salvador José Maciel.

A partir da fundação do Diário de Porto Alegre, surgiram nos oitos anos subseqüentes, 32 jornais com características bastante particulares, que ajudaram a traçar uma época do jornalismo gaúcho. O formato, a tiragem (média de quatrocentos exemplares por jornal), a periodicidade (em geral bissemanal ou trissemanal) podem ser vistos como características comuns entre os impressos da época. Dados históricos indicam que 12 diários surgiram e desapareceram entre 1850 e 1875 no estado.

Em tempos de embates ideológicos fervorosos, o jornal nasceu em terras gaúchas com uma marca que o definiria por inúmeras décadas, a de ser considerado doutrinário, despreocupado com os aspectos morais, como ética e imparcialidade, e sendo, eminentemente, um tentáculo impresso de grupos políticos. Inúmeros historiadores concordam que a imprensa serviu para exercício intelectual da revolução política.

Em artigo intitulado “Trajetória da imprensa gaúcha”, a professora Beatriz Dornelles (2004) revela que o fim do levante farroupilha, no ano de 1835, não abrandou somente o ímpeto separatista dos gaúchos, mas marcou, também, “estagnação da atividade jornalística porque não passava de um meio para divulgação ideológica. As tipografias passam a publicar seus próprios jornais, mas dependendo economicamente do Estado, que controlava a publicidade e a formação da opinião pública” (Dornelles, 2004, [s/p]).

A presença dos tipógrafos, responsáveis pelas publicações jornalísticas, que emprestavam forte caráter administrativo ao fazer jornalístico, aliada a sua noção imprecisa de jornalismo, tornava os periódicos basicamente divulgadores de discursos políticos. O desdobramento dessa combinação fez surgir os pasquineiros[2], imortais pelos ataques em linguagens excessivas, importunando autoridades e membros da comunidade, alvos de seus petardos. Dornelles (2004, [s/p]) ilustra:

Essa mesma imprensa surge na cidade de Pelotas, interior do Rio Grande do Sul, em 1851, através de Cândido Augusto de Mello, que criou O Pelotense. Posteriormente, o mesmo tipógrafo publicou jornais no município de Jaguarão. Em 1861 a imprensa surge em Bagé, fronteira-oeste, com o lançamento de A Aurora e O Bageense.

O advento da presença de tipógrafos na política regional por meio de cargos públicos impulsionou o aparecimento do que se convencionou chamar “jornalismo político-partidário” gaúcho, colocando o jornal como uma nova força na disputa por ascensão. Para Dornelles (2004), é nesse momento da história do jornalismo gaúcho que se verificam novas mudanças. Constatou-se o aumento no número de publicações, a ampliação da tiragem (de quatrocentos exemplares, em 1830, para dois mil, no ano de 1900), a mudança do formato (tablete para standard) e a entrada da máquina a vapor, deslocando o caráter manufaturado para o pré-industrial. Dornelles (2004, [s/p]) anota:

Apesar do progresso técnico apresentado, os jornais continuavam sendo usados para doutrinação da opinião pública, constituindo-se num prolongamento da tribuna parlamentar e meios de articulação partidária do movimento da sociedade civil, e não visavam lucro.

Um novo elemento veio se somar ao desenho da composição da trajetória da imprensa no Rio Grande do Sul. No ano de 1869, deu-se o lançamento do jornal A Reforma, folha político-partidária do Partido Liberal, marcando nova era por negar-se a publicar escritos de foro particular. No veio aberto pelo A Reforma, vieram inúmeros impressos político-partidários nos mesmos moldes.

Ao verificar essa nova faceta do jornalismo sul-rio-grandense, de características predominantemente político-partidárias, Dornelles (2004, [s/p]) assinala:

Os jornais político-partidários tiveram significativa participação no trabalho de organização das forças políticas, nas quais se elaborava a doutrina. Eles formavam lideranças e criavam o consenso partidário, permitiam aos partidos intervirem homogeneamente na esfera pública, sustentavam as campanhas eleitorais e criavam um espaço comum de discussão dos problemas da sociedade civil. A sobrevivência das candidaturas políticas dependia da publicidade sustentada pelos periódicos, controlados pelas cúpulas partidárias, que assim continham as tendências dissidentes da agremiação.

A voz impressa dos embates político-partidários sentiu seu primeiro e pesado revés quando da proclamação da República. A tentativa de silenciar os oposicionistas por intermédio de censura policial gerou violência política contra jornais e jornalistas, forçando o fechamento de diversos periódicos. Dornelles (2004) relata que essa situação turbulenta se manteve até a década de 1930, quando podemos observar o desaparecimento do jornalismo político-partidário, sendo o Estado do Rio Grande, folha do Partido Libertador, lançado em 1929, o último do gênero a ser fundado no Rio Grande do Sul.

O advento do Estado Novo, que revogou os partidos políticos e determinou o fechamento de inúmeros periódicos, concluiu e inaugurou uma nova fase do jornalismo brasileiro em geral, e do gaúcho em particular. A mudança de linha editorial parece uma conseqüência evidente em tempos sombrios, marcados por uma ordem política ditatorial. O jornalismo, antes combativo, crítico e opinativo, passou a emprestar cena ao noticioso caracterizado pela mera enumeração de fatos e acontecimentos, com forte caráter oficial. Em contraponto ao empastelamento do jornalismo gaúcho, surgiu como alternativa o jornalismo literário, fazer acentuado entre 1890 e 1920.

Dornelles (2004) verifica outros elementos que evidenciam as transformações na imprensa gaúcha nessa fase: a máquina a vapor já se tornara presente nas tipografias, assim como a renovação na circulação, com o incremento na venda avulsa e a distribuição de jornais no interior do Rio Grande do Sul com a ampliação da rede ferroviária.

Segundo Francisco Rüdiger (1998), foi nesse cenário que a profissão de jornalista mudou seu eixo de entendimento, deslocando-se da sua aplicação tradicional, “exclusivamente aos proprietários e diretores de periódicos político-partidários, passando a designar também os responsáveis pela coleta e confecção de notícias. Em outras palavras, a classe dos jornalistas estava passando por uma mudança em sua composição, de cujas origens dão conta os próprios jornais”.

Dornelles contribui para o entendimento desse cenário (2004, [s/p]):

Nesse período, a notícia, como entendemos hoje, surge no jornalismo, substituindo as matérias de cunho literário, que se baseavam em comentários pessoais, e toma conta das páginas dos jornais, inclusive do noticiário político. Na mesma época, os jornais passam a contar com serviços noticiosos provindos das agências internacionais. Na década de 10, os principais jornais do Estado fecharam acordos com as agências Havas, Americana e Transocean.

O jornalismo gaúcho ainda sofreria uma grande guinada no meio do século XX, no qual se observa o declínio da imprensa do interior do estado e o controle absoluto da imprensa de Porto Alegre, principalmente no que diz respeito à alocação das verbas originárias dos grandes anunciantes.

Passo Fundo: a história da cidade e o momento de novas configurações

O município de Passo Fundo foi emancipado em 1857, no entanto, o território que hoje o constitui já fez parte da Província Jesuítica das Missões Orientais do Uruguai, cujas ruínas se localizam junto aos rios Ijuí e Ijuizinho, no atual município de Santo Ângelo.

Conforme Rodigheri et al (2004, p.77), os índios dos grupos tupi-guarani e jê, com destaque para os caingangues, foram os primeiros moradores desta região. Só em 1827 e 1828 chegaram os habitantes brancos, acompanhados das famílias, dos escravos e de agregados. Eram “homens com espírito aventureiro que partiam da fronteira oeste do território sulino e das Missões à procura de terras devolutas, chegando a região serrana e aproximando-se de Passo Fundo”.

Os autores afirmam ainda que, por isso, a organização econômica, social e política dominante na fase inicial desse povoamento, não oficial, pode ser caracterizada como latifundiária, pastoril, patriarcal-militar e escravocrata. Como era um espaço de riqueza natural, com vantajosa situação geográfica para criação de gado e plantação de ervais, expandiu-se de maneira rápida, tanto que em pouco tempo constitui-se num território de mais de 80.000 km² e tinha uma população estimada em 7.586 habitantes.

Entretanto, a emancipação do distrito não ocorreu apenas por causa do crescimento populacional e econômico, mas, também, por razões políticas e administrativas. Na época, Jerônimo Coelho era presidente da província e criou a Freguesia de Passo Fundo. Rodigheri (2004) relata que na oportunidade foram empossadas as lideranças da Câmara Municipal. Portanto, toda a sua estruturação administrativa deu-se nos moldes republicanos, o que explica, como veremos posteriormente, por que a história da imprensa na cidade está ligada a estes ideais.

Ribas (2004, p.101) lembra, ainda, que foi a construção da estrada de ferro São Paulo - Rio Grande do Sul que acentuou o desenvolvimento econômico do município entre 1898 e 1905, impulsionando o progresso, estagnado até 1897 em razão das dificuldades de transporte e de comunicação. “A passagem da estrada de ferro e a instalação ferroviária no centro de Passo Fundo mostram que o trem modificou o eixo de expansão urbana, atraindo colonizadores e comerciantes”. A instalação da estrada de ferro marca o início do novo século e também baliza uma ruptura significativa na história da cidade, quando a população urbana superou, em números cada vez mais expressivos, a população rural, uma observação que nos leva à situação atual do município.

Conforme o censo demográfico realizado em 2000, pelo Instituto de Geografia Estatística, a população passo-fundense já totaliza 168.440 habitantes, dos quais 95% têm entre zero e 59 anos. Esta população está distribuída numa área de 759,40 km² e concentrada principalmente na região urbana, informação essa interessante considerando que o município tem um perfil urbano-agroindustrial. Essa concentração pode ser a responsável pelo alto índice de desemprego apontado pelos relatórios do IBGE. Mesmo que a cidade tenha muitas empresas de médio porte, nos últimos anos os diagnósticos econômicos demonstram queda na contratação de mão-de-obra para a indústria local. Por isso, a renda per capta média de seus habitantes é de R$ 405,65. Em contrapartida, 84% da população é alfabetizada.

O Nacional: o articulador

A história da imprensa em Passo Fundo não foi muito diferente da contada em todo o território nacional, de um modo geral, e no Rio Grande do Sul, em especial. No entanto, uma pesquisa que ultrapasse o real aparente pode descobrir que essa mesma história guarda algumas peculiaridades significativas, se nos propusermos a pensar acerca da emergência da imprensa de massa e suas características. Trata-se de processo pioneiro no interior do estado, que já apontava para a consolidação dos contornos de um fazer jornalístico que perduraria até os dias atuais. Não estamos falando de qualquer veículo da imprensa passo-fundense, mas do Jornal O Nacional. O periódico é o impresso, em circulação, mais antigo da cidade, o que nos provocaria compreender que ações teriam viabilizado sua permanência num cenário e período marcados pela efemeridade, nos quais tantos jornais eram criados e fechados em questão de meses.

Nesse sentido, vale resgatar algumas matrizes que conduzem uma pesquisa histórica, ou seja, as questões contextuais. Observamos que um fato nunca se dá de modo isolado, mas imbricado com todo o cenário político-social no qual está imerso. Assim, já nas primeiras etapas da pesquisa descobrimos algumas pistas que apontam para uma explicação vinculada ao nascimento do jornal, mesmo que não houvesse um estudo sistematizado sobre o assunto.

Assim, este foi o nosso ponto de partida: resgatar a história do surgimento de O Nacional, conhecer o contexto em que aparece e compreender de que modo esse contexto se reflete em sua orientação editorial. Partindo dessa perspectiva, é necessário verificar, também, um pouco da história que o antecede, ou seja, descobrir que outros impressos existiram antes dele e por que foram fechados.

O primeiro jornal surgido na cidade de Passo Fundo chamava-se Echo da Verdade, fundado em 1892. Conforme D’Outrora (1925), tratava-se de um órgão do Partido Republicano, consolidando as idéias defendidas pela administração política do município em vigor. Era uma folha semanal, publicada aos domingos e editada pelo advogado Gervásio Lucas Annes. Contudo, sua circulação durou apenas dois anos, sendo substituído por outro impresso, o 17 de Julho, também republicano. D’Outrora (1925, p.02) documenta que a redação do novo periódico, o corpo de colaboradores e o tempo de existência foram os mesmos do Echo da Verdade, porém “teve curta vida, sendo paralisado e extinto em 1983, em conseqüência da revolução federalista que seguiu-se”.

Enquanto os periódicos já mencionados se revezavam na divulgação de idéias políticas, surgiriam na cidade outras folhas, um pequeno imprenso literário, chamado Violeta, e, depois dele, O Palco, que conservava abordagem semelhante. Ainda segundo o autor, foi em 1900 que surgiu o quinto jornal passo-fundense. O impresso chamava-se O Gaúcho e foi publicado regularmente até 1920. Os motivos que levaram a sua extinção, assim como ao surgimento de uma nova folha – O Nacional –, não estão explícitos nos documentos históricos, mas podemos relacioná-los a uma série de eventos que aconteceram na cidade durante esse período.

Ribas (2004) destaca que a década foi marcada pelo fortalecimento de novas idéias políticas e pela movimentação crescente do comércio em torno da estrada de ferro. A essa altura, os trilhos já cortavam o centro da cidade, formando uma larga avenida, e a chegada e a partida do trem tornavam-se o centro das atenções municipais.

Observando dessa perspectiva, podemos afirmar que a consolidação do comércio em torno do transporte é um fator de destaque. Para adequar-se ao progresso trazido pelo trem, nessa época a cidade passou por uma reorganização do espaço geográfico urbano, porém não só pois também houve uma transformação do comércio, da administração pública e, de maneira significativa, uma transformação das formas de se relacionar da população com esses lugares e com as instituições que nasciam neles. Por isso, desde o início da década de 1920, a cidade vivia um período de articulação, que culminaria, em 19 de junho de 1925, com a fundação do jornal O Nacional.

O Nacional surgiu pelas mãos de Herculano Annes, Theófilo Guimarães, Americano Araújo Bastos e Hiran Bastos, para na década de 1940, ser adquirido por Múcio de Castro, jornalista e ex-deputado estadual. Esses nomes são aqui pertinentes porque se referem a personalidades em destaque na sociedade passo-fundense e, por isso, configuram um cenário singular de emergência que impregnou a fala do jornal junto aos leitores. Além disso, dado o seu nascimento, o periódico contou com a experiência acumulada pelo fazer jornalístico dos impressos que o antecederam. Essa herança fica evidente, sobretudo, no que se refere às relações políticas às quais estavam submetidos, de modo que sua fala, desde o início, ora se opunha, ora assumia tais relações. Podemos acompanhar esse possível antagonismo pela leitura de trechos do primeiro editorial publicado pelo jornal:

Todo nosso programa se resume às duas palavras do cabeço: Jornal Independente. Independente é aquele que vive por si e se dirige por seu próprio arbítrio sem sugestões estranhas, independente é quem não se acha preso em liames de partidarismo, é quem não está chumbado aos apelos da fé, nem coagido pelas necessidades da vida, ao amém eterno da subalternidade. Quem quer ser livre deve ser honrado, deve ser justo, deve se por à cima de pequeninos interesses que pululam no seio das coletividades em formação, mas também ser enérgico e irredutível no culto da verdade (O Nacional, 1925, p.01).

Se, por um lado, observamos que O Nacional buscava se desvincular da política e da religião sob o signo da independência, por outro, lembramos que, revestido por esse discurso, mesmo que não estivesse vinculado ao partidarismo, estaria submetido a um pré-conceito: o da própria liberdade. Isso se verifica porque, na medida em que assumimos determinada fala, negamos a que está em evidência. Logo, associamo-nos a outros discursos, submetemo-nos às suas regras e ao contexto no qual estão imersos (é o que chamamos de aspecto “translingüístico” da fala). Aliás, toda fala traz consigo uma bagagem conceitual, revelando o pensamento e expressando uma série de relações sociais com as quais, conseqüentemente, estaremos envolvidos.

Essa postura discursiva, assumida pelo corpo editorial, evidenciou-se ao longo das primeiras vinte edições e tornou-se mais contraditória na mesma velocidade em que crescia o número de leitores. Observando tais exemplares, percebemos o desligamento aparente do jornal com as “simpatias” político-partidárias e o estreitamento dos laços com a emergência do capital, através do apoio à ampliação e melhoria das malhas ferroviárias no estado. Essa ação pode ser percebida por dois aspectos: o primeiro refere-se à presença numerosa de espaços publicitários nas quatro páginas do jornal e o segundo, ao conteúdo apresentado.

Analisando sua diagramação, por exemplo, podemos observar algumas características que revelam como o próprio fazer jornalístico era pensado e executado naquele período. Tratava-se de uma folha em formato standard, mas não havia capa, como conhecemos hoje. As matérias eram apresentadas integralmente já na primeira página, sem chamadas e, às vezes, mesmo sem manchetes. Aliás, nas vinte edições analisadas, percebemos que não há uma separação clara entre notícias e propagandas. A forma gráfica que as matérias e os artigos assumiam permite confundi-los com a grande quantidade de anúncios publicitários. A publicação também é marcada pela inexistência de fotografias ou figuras que ilustrassem as notícias. No entanto, o mesmo não acontecia quando se tratava de um anúncio publicitário.

Além disso, o modo como as notícias eram distribuídas chama atenção. Em algumas páginas, a divisão é feita em colunas, mas estas estão posicionadas no sentido horizontal, não vertical. O mais curioso é que, quando uma notícia necessitava de mais espaço para o texto, passava de uma página para outra. No entanto, diferentemente do que acontece atualmente, se a notícia começou, por exemplo, no sentido horizontal, na parte inferior da folha, na página seguinte, continuaria nessa mesma posição. Desse modo, o fluxo de leitura, em 1925, em particular, no jornal O Nacional, tinha outra orientação gráfica, se é que existia uma regra para isso.

Percebemos ainda que as notícias tinham um texto bastante rebuscado, próximo da literatura da época. Muitas matérias não abordavam questões ligadas a Passo Fundo, nem mesmo eram produzidas na cidade, vinham de jornais publicados em outras cidades, principalmente nas capitais. O conteúdo era visivelmente opinativo. Além das notícias factuais, havia espaços prédeterminados para seções, ou o que chamamos hoje de “editorias”, como editais, desportes, visitantes, bolsa, social, entre outras. Também é interessante destacar que, quando uma notícia ou assunto rendia muitas linhas, poderia ser dividida em “capítulos”, publicados em diferentes edições de maneira consecutiva. Essa ação pode ser ilustrada a partir da publicação do projeto Estrada Ferroviária Quatro Irmãos – Nonoay, que ganhou espaço nas páginas do periódico por quase três meses. Com essa observação será possível compreender a relação entre o trem e o jornalismo em Passo Fundo, aspecto nesse o qual vamos nos debruçar.

Tudo começou já na oitava edição do jornal (um bissemanário). O artigo intitulado “O grande polvo”, escrito por Euzébio (sem sobrenome), ganhou uma coluna da capa e, ao longo de 57 linhas, tratava de alertar a população sobre a campanha que estava por vir. Por conta do discurso adotado, parece que O Nacional havia decidido posicionar-se a favor dos transportes férreos, reconhecendo sua importância, exigindo ações governamentais e apoiando sua implantação em todo o estado.

As estradas de ferro e rodoviárias são, incontestavelmente, um dos principais fatores de progresso de um povo (...). Está assim, a estrada de ferro, transformada de propulsora do progresso rio-grandense que deveria ser, em entrave ao seu desenvolvimento. No seu estado atual a Viação Férrea pode comparar-se ao um grande polvo, cujos enormes tentáculos embaraçam e prendem e impossibilitam o comércio e a indústria, nas suas diversas modalidades, de tornar o Rio Grande do Sul êmulo de São Paulo pela sua atividade de trabalho e desenvolvimento. Revistamo-nos, entretanto, de mais um pouco de paciência e esperemos pelos vagões e locomotivas encomendados (1925, capa).

O trecho citado pode parecer mais um artigo preocupado em divulgar e opinar acerca de questões pertinentes ao interesse da população, conquistando credibilidade junto a seu público leitor. No entanto, talvez seja por meio dele que podemos perceber os primeiros contornos de uma relação que, em um futuro próximo, consolidaria O Nacional não apenas como folha de divulgação e apoio de determinadas idéias político-partidárias, mas como empresa jornalística que faz do impresso um espaço à venda e da notícia, um produto para consumo.

Acontece que, após esse texto opinativo, o jornal empreendeu a publicação, em série, de um projeto apresentado ao governo do estado pela Jewish C. Association, cujo objetivo era a ampliação da estrada de ferro entre as colônias Quatro Irmãos e Nonoay. A proposta incluía a doação, pela empresa de toda a madeira necessária para a construção dos trilhos, assim como o financiamento do dinheiro, “sob taxas módicas”, para a realização da obra. “Sobre esse assunto O Nacional fará o possível para trazer aos leitores informações de primeira mão” (O Nacional, 1925, nº 10, capa).

O que desperta nosso interesse é a freqüência e o espaço que os trechos do projeto, “de grande interesse para a região serrana[3]”, ocupam nas páginas do jornal (O Nacional, nº 10, capa). Publicados em capítulos, ao longo de oito edições consecutivas, acabam dividindo/invadindo o espaço de outras poucas notícias, estas, sim, diretamente ligadas ao município, como a questão da apicultura e dos toma-correntes (instalação de pontos de energia elétrica na cidade). Além disso, o texto do projeto é apresentado junto a pequenas notas sobre as malhas ferroviárias no estado, que reforçam a relevância desta ação para o desenvolvimento de cada cidade por onde passa o trem, o que inclui Passo Fundo. Como exemplo temos a matéria sobre outra linha férrea que ligaria Rivera e Payssandu, publicada em 1º de agosto de 1925, na capa do jornal:

A construção desta linha não prejudica de maneira alguma a este estado e se traz decréscimo de movimento aos nossos portos verá, em compensação, aumento de produção, mais operários em atividade, e por conseqüência, uma região produtora de madeira como a nossa, traz benefícios não pequenos.

Diante disso, passamos a nos perguntar por que a Jewish C. Association estaria interessada em fazer tal investimento, e mais, por que o jornal O Nacional dedicou tanto espaço à questão.

A Jewish C. Association era uma empresa de imigração israelita, criada em 1891 para organizar e instalar colônias agrícolas no Brasil, Argentina e Canadá. Os primeiros imigrantes chegaram ao país em 1907. Eram cerca de quarenta famílias e se instalaram em Santa Maria.

A Jewish C. Association, sociedade filantrópica colonizadora, teve por programa deste de seu início, instalar os Israelitas, sempre perseguidos por antigos ódios de raça e religião, nos países que esposam altos princípios liberais e albergam em suas instituições políticas os nobres ideais da democracia. Graças ao seu programa, desinteressado, de trabalho e progresso social, conseguiu ela firmar em obras, a sua ação benéfica, agindo incessantemente no rumo do trabalho honesto e profícuo. Nessa obra empregou avultadíssimo capital (O Nacional, 1925, nº 12, capa).

Para a Jewish C. Association instalar judeus em terras brasileiras, era necessário que o país estivesse em conformidade com as idéias liberais (promovendo a circulação do capital) e, conseqüentemente, fizesse e/ou permitisse uma série de investimentos que resultariam em progresso para os povos acolhidos. Por isso, segundo Gus (2005), a ação colonizatória só se concretizou mesmo com a chegada das ferrovias, responsáveis por escoar os produtos cultivados na colônia e distribuí-los aos consumidores em potencial.

No período referido, ou seja, data da publicação dos textos, a sede oficial da empresa era em Quatro Irmãos e a localização do novo povoado era em Nonoay. Interessava à empresa investir em transportes e estabelecer uma ligação entre os dois povoados. Essa era uma medida-padrão adotada em todas as colônias que instalou no Rio Grande do Sul e fora dele, instaladas ou nas margens da ferrovia ou as ferrovias eram instaladas em suas margens. Mas como a empresa chegou até o jornal O Nacional?

Desde o início da história do jornalismo em Passo Fundo os impressos viabilizados estiveram nas mãos de um mesmo corpo editorial, tanto aqueles preocupados, explicitamente, com as idéias político-partidárias como aqueles vinculados à literatura. Entre os inúmeros membros desse corpo, podemos destacar os representantes da família Annes, sobrenome tradicional até hoje na cidade. O Echo da Verdade, por exemplo, assim como o 17 de Julho e o Palco, foi editado por Gervásio Lucas Annes. Com O Nacional não foi muito diferente. O editor responsável pelo periódico, durante as duas primeiras décadas de circulação, foi Herculano Annes, também advogado da Jewish C. Association. Na matéria publicada no Correio do Povo em 16 de julho de 1925, reproduzida pelo O Nacional em 22 do mesmo mês, encontramos o seguinte trecho:

Com o fim de conferenciar a respeito com dr. Borges de Medeiros, presidente do Estado, chegaram a esta capital os srs. drs. David Sevi, inspetor geral da Jewish na América do Sul e Jacob Masis, um dos diretores da colônia de Quatro Irmãos, fazem-se eles acompanhar do dr. Herculano Annes advogado da companhia (O Nacional, 1925, nº 10, capa).

Considerando esse contexto, é possível acreditar que Herculano Annes adotou como discurso nas páginas do jornal o apoio à proposta feita pela Jewish C. Association de instalação de uma nova malha ferroviária no estado. Desse modo, aparentemente, desvinculou-se das brigas político-partidárias que aconteciam na cidade, pois nada sobre o assunto apareceu ao longo das vinte edições analisadas. Entretanto, isso não se deu por acaso, diferentemente Diferente do que aconteceu com outros jornais ligados a ideais políticos, O Nacional fez uma opção editorial em associar-se ao investimento capital, investimento esse possibilitado pelo apoio que deu à promessa da empresa.

Essa relação entre o jornalismo e o capital, potencializando a transformação dos jornais em empresas para vender espaços e notícias, só aconteceu de modo sistematizado no Rio Grande do Sul na década de 1940. Portanto, é significativo que O Nacional, um jornal do interior do estado, tenha adotado tal prática já em 1925. Talvez, por isso, seja o jornal mais antigo em circulação no município.

Referências

DORNELLES, Beatriz. Trajetória da Imprensa Gaúcha. Congresso Latino-Americano de Ciências da Comunicação, da Associação Latino-americana de Pesquisadores em Comunicação (ALAIC), Faculdad de Periodismo y Comunicación da Universidad Nacional de La Plata, Argentina, de 11 a 16 de outubro de 2004.

D’OUTRORA, J. A imprensa em Passo Fundo. O Nacional. n. 8, jul. 1925, p. 2.

FERNANDES, Francisco. Dicionário brasileiro contemporâneo. Porto Alegre: Globo, 1967.

GOMES, Neusa Demartini. Formas persuasivas de comunicação política: propaganda política e publicidade eleitoral. Porto Alegre: 2004.

GUS, M. G. Centenário da imigração judaica no Rio Grande do Sul. Acesso em: 12 dez. 2005. Disponível em: .

O NACIONAL. Jornal publicado pela Livraria Nacional em Passo Fundo, em 1925. Nº 01 a 20, entre os dias 19 de junho e 05 de setembro de 1925. Exemplares disponíveis no Arquivo Histórico Regional da Universidade de Passo Fundo.

RÜDIGER, Francisco. Tendências do jornalismo. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2 ed, 1998.

RIBAS, D. A evolução urbana da avenida Sete de Setembro: uma contribuição para a organização do espaço passo-fundense. In: SILVA et al. Estudos de geografia regional. Passo Fundo: UPF Editora, 2004.

RICHARDSON, Roberto Jarry. Pesquisa social: métodos e técnicas. São Paulo: Atlas, 1999.

RODIGHERI, M e outros. As transformações espaciais do território do município de Passo Fundo – 1857-1992. In: SILVA et al.  Estudos de geografia regional. Passo Fundo: UPF Editora, 2004.

SANTAELLA, Lucia. Comunicação e pesquisa: projetos para mestrado e doutorado. São Paulo: Hacker, 2001.

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[1] Acadêmicos do Programa de Pós-Graduação em Comunicação – PPGCOM – da PUCRS.

[2] Autores ou redatores de pasquim; difamadores (FERNANDES, 1967).

[3] Em outras notícias publicadas no mesmo jornal, Passo Fundo aparece como uma das cidades que integram a região serrana: “vamos hoje informar a nossos leitores o que nos afigura oportuno dizer com respeito a esta questão que muito interessa a nossa região serrana, cujos principais mercados, mórmente para madeira, são Montevidéu e Buenos Aires” (O Nacional, nº 13, capa).

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