Psicanálise é trabalho de fazer falar, e fazer ouvir 1

Psican?lise ? trabalho de fazer falar, e fazer ouvir 1

Luiz Augusto Celes

Resumo

Tendo por objetivo caracterizar a psican?lise em seu sentido origin?rio e fundamental de trabalho de tratamento, o presente artigo prop?e entend?-la como trabalho de "fazer falar, e fazer ouvir". O entendimento assim formulado ? apresentado como resultado de uma conquista da an?lise dos tr?s principais modos com os quais Freud compreende a tarefa psicanal?tica, quais sejam, vencer resist?ncias, interpreta??o e constru??o. As rela??es de depend?ncia e suplementariedade entre falar e ouvir tamb?m s?o estabelecidas, em articula??o com as posi??es de analista e analisando, como condi??o para o tratamento psicanal?tico e sua realiza??o.

Unitermos

Sentido da psican?lise; falar e ouvir em psican?lise; associa??o livre; resist?ncias; interpreta??o; constru??es em an?lise; posi??o do analista.

A bordar o sentido da psican?lise comporta ou suporta diversas facetas. Desde h? alguns anos nossa investiga??o tem privilegiado sua origem e fundamento, o trabalho de tratamento inicialmente da neurose. Tendo em outro texto2 circunscrito o sentido origin?rio e fundamental da psican?lise como trabalho, cabe ainda salientar, antes de lan?ar nova quest?o, que embora diversas sejam as possibilidades das abordagens ao sentido da psican?lise, sua indica??o como trabalho n?o ? uma escolha arbitr?ria. Ela n?o somente prop?e entender a origem efetiva da psican?lise a partir de sua primeira caracteriza??o como talking cure, mas tamb?m sugerir sua "ess?ncia" ou sua "verdadeira" natureza, aquela que seja capaz de justificar e dar sustenta??o a seus diversos desdobramentos (pr?ticos e te?ricos), inclusive desdobramentos ou desenvolvimentos hist?ricos. Isso tamb?m significa dizer que o sentido origin?rio e fundamental da psican?lise permite sua delimita??o. Pois bem, esse sentido como o de um trabalho ? trabalho de tratamento ? responde de imediato ? consabida compreens?o de que n?o h? psican?lise sem an?lise.

Psych? -- Ano IX -- n? 16 -- S?o Paulo -- jul-dez/2005 -- p. 25-48

26 | Luiz Augusto Celes

Essa abordagem origin?ria e fundamental n?o dispensa aproxima??es diversas (e sucessivas), pois exige n?o somente sua caracteriza??o como tratamento, mas tamb?m como investiga??o e conhecimento, aspectos que por v?rias vezes Freud deu ? psican?lise. Entre as diversas aproxima??es, nesse momento interessa caracterizar concretamente o trabalho que ? a psican?lise.

1. Psican?lise ? trabalho de falar ... e ouvir apropriadamente

Para se caracterizar o trabalho psican?lise de maneira concreta, recorrese a um epis?dio da experi?ncia de Freud com Charcot, o qual n?o teve origem em um tratamento psicanal?tico propriamente falando, mas que pode revelar o que significa esse trabalho.

Como se sabe, em 1885 Freud esteve em Paris por seis semanas para estudos com Charcot, m?dico que se dedicava a um trabalho de car?ter inusitado com hist?ricas com a utiliza??o da hipnose. Ao mesmo tempo que realizava experi?ncias hipn?ticas com hist?ricas, Charcot mantinha o Laborat?rio Patol?gico, onde Freud realizou pesquisas microsc?picas de c?rebros infantis, em uma preocupa??o pela anatomia cerebral. Freud votava grande respeito e admira??o por Charcot, tomando-o como grande mestre3. Muitos anos depois, Freud recorda-se e conta, em Hist?ria do movimento psicanal?tico, um epis?dio que se transcreve inteiro, devido ? riqueza de seus detalhes:

(...) participava eu de um desses saraus que dava Charcot; encontrava-me perto do venerado mestre, a quem Brouardel, pelo que parecia, contava uma muito interessante hist?ria do trabalho daquele dia. Ouvi no come?o de maneira imprecisa, e pouco a pouco o relato foi cativando minha aten??o: um jovem casal de terras distantes do Oriente, a mulher com um padecimento grave (neurose) e o homem impotente ou de todo in?bil. "T?chez donc" ouvi que Charcot repetia, "je vous assure, vous y arriverez". Brouardel, que falava em voz mais baixa, devia ter expresso ent?o seu assombro pelo fato de que em tais circunst?ncias se apresentaram sintomas como os da mulher. E Charcot pronunciou imediatamente, com brio, as seguintes palavras: "Mais dans des cas pareils c'est toujours la chose g?nitale, toujours... toujours... toujours!". E dizendo-o cruzou os bra?os sobre o peito e se vergou v?rias vezes dos p?s ? cabe?a com a vivacidade que lhe era peculiar. Sei que por um instante se apoderou de mim um assombro quase paralisante e me disse: "Se ele o sabe, por que nunca o disse?". Mas essa impress?o logo foi esquecida; a anatomia cerebral e a produ??o experimental de paralisia hist?rica absorviam todo o meu interesse (Freud, 1914d, AE, p. 13; SB, p. 23-4)4.

Psych? -- Ano IX -- n? 16 -- S?o Paulo -- jul-dez/2005 -- p. 25-48

Psican?lise ? trabalho de fazer falar, e fazer ouvir | 27

Assoun (1993, p. 89-93) discute esse epis?dio a fim de revelar a "cena primitiva", que marca as investiga??es freudianas sobre a histeria como determinante da compreens?o da fun??o da sexualidade na constitui??o e na determina??o da histeria, muito antes de Freud tematiz?-la de maneira apropriada. A seguir, acompanha-se a an?lise de Assoun, n?o com o objetivo de mostrar a "coisa" sexual na origem da psican?lise, como faz o autor, mas para buscar o car?ter pr?prio ao trabalho psican?lise.

No epis?dio enfocado, quando se toma a surpresa de Freud expressa na frase "se ele o sabe, por que n?o o disse?", percebe-se que Freud queixa-se de Charcot n?o dizer o que precisamente acabou de dizer. O que, ent?o, Freud est? lamentando em espec?fico, j? que o que foi explicitamente dito n?o justificaria a queixa?

Primeiramente, sob uma ?tica mais ?bvia, podemos compreender que Freud lastima o fato de Charcot n?o dizer em p?blico o que disse a Brouardel reservadamente, ou seja, de n?o dar publicidade ao que falou, sendo a publicidade uma das condi??es, como se sabe, de se fazer ci?ncia. Ao contr?rio, Charcot pronunciou-se na intimidade de seu lar, por ocasi?o de uma festa, que n?o obstante agrupar nomes not?rios da medicina de Paris da ?poca, n?o constitu?a ambiente pr?prio ? divulga??o do conhecimento ou da ci?ncia. A queixa de Freud pode ser entendida pelo fato de Charcot dizer o que disse como quem somente emite uma opini?o, e dela tira satisfa??o, diante de um c?rculo social restrito, em vez de se pronunciar como cientista. A surpresa de Freud justifica-se, ent?o, pelo contraste entre o que Charcot ensinava publicamente sobre a histeria em suas confer?ncias na Salp?tri?re e nas pesquisas de anatomia patol?gica em seu laborat?rio, e aquilo que intimamente parecia compreender da histeria. Freud pergunta-se, portanto, por que Charcot n?o toma em sua devida conseq??ncia o que disse, ou por que o diz irresponsavelmente. ? de uma certa "maneira de dizer" que carece o dizer de Charcot. Segundo Freud, ele n?o o disse verdadeiramente ? essa ? a interpreta??o de Assoun (1993, p. 89) ?, n?o revelando nem mostrando apropriadamente o fator fundamental da sexualidade na determina??o da histeria. Utilizando-se uma express?o de feitio lacaniano, talvez possa-se entender a fala de Charcot no epis?dio narrado como "fala vazia", n?o se importando com a verdade. Isso significa dizer que a fala de Charcot est? determinada pelo efeito de gozo que provoca (sobre Brouardel e os outros do c?rculo). N?o se trata, nesse caso, dele ter proferido uma fala reveladora, mas sim uma fala mediadora ?mediadora de sua frui??o, como acontece nos chistes.

Psych? -- Ano IX -- n? 16 -- S?o Paulo -- jul-dez/2005 -- p. 25-48

28 | Luiz Augusto Celes

No entanto, o que torna a fala de Charcot n?o reveladora, dado que ele disse o que era para dizer, a ponto de despertar a surpresa de Freud?

Sob ?tica diversa da acima exposta, a queixa de Freud pode ter outro lastro de motiva??es. ? not?vel que Freud imediatamente tenha se esquecido do epis?dio, voltando seu interesse ? anatomia do c?rebro e ? indu??o experimental de paralisias hist?ricas. Outra coisa, que n?o a "coisa" dita por Charcot, ocupava o interesse de Freud. Dois aspectos se revelam, ent?o:

1. Assoun, na obra citada, sugere que Freud esqueceu do epis?dio precisamente por sua submiss?o ao mestre que tanto o fascinava, querendo dizer que Freud o teria esquecido pois seu mestre tamb?m o fizera. Tamb?m Charcot, tal como Freud, tinha sua preocupa??o voltada para outro interesse ? nesse caso, tinha o mesmo interesse que fez Freud esquecer o que ouviu de Charcot. Assim, a queixa de Freud por Charcot n?o ter se pronunciado pode ser conseq?entemente entendida como censura por Charcot, tendo "esquecido" o que disse, n?o ter "ouvido" o que ele mesmo falou. Mas por que Charcot n?o "ouve" o que de modo t?o claro e determinante disse? A partir desse ponto vai se privilegiar um caminho de elabora??o distinto do que segue Assoun na obra citada. Isso porque aqui interessa caracterizar o trabalho psican?lise, a partir do que esse epis?dio entre Freud e Charcot figura, e n?o apontar a natureza sexual do que foi dito por Charcot, a qual teria sido o motivo de seu esquecimento, caminho privilegiado por Assoun.

2. Freud est? dizendo que ele esqueceu do que Charcot proferira; portanto, o pr?prio Freud n?o "ouviu" conseq?entemente o que Charcot disse, tampouco o fez qualquer outra pessoa do c?rculo de participantes da conversa. N?o existiu um "ouvir" verdadeiro. O "ouvir" de Freud ou de outra pessoa seria exatamente a condi??o para que Charcot, tamb?m ele, ouvisse em toda a sua conseq??ncia o que falou. No caso de Freud seu "ouvir" somente se deu posteriormente, quando se lembrou do que ent?o ouviu, e a? o narrou em Hist?ria do movimento psicanal?tico. N?o o narrou de maneira descomprometida, note-se, como simplesmente algu?m conta um caso, mas integrando o acontecido ? hist?ria da psican?lise, da qual o epis?dio constitui cena origin?ria. Ao assim proceder, Freud efetivamente "ouve", mas quando Charcot j? n?o podia, por meio desse ouvir de Freud, ouvir ele tamb?m o que dissera.

Psych? -- Ano IX -- n? 16 -- S?o Paulo -- jul-dez/2005 -- p. 25-48

Psican?lise ? trabalho de fazer falar, e fazer ouvir | 29

O epis?dio e a interpreta??o dele proposta servem de exemplo ? no sentido psicanal?tico do termo (o exemplo ? a coisa) ? do significado da aten??o ? fala do neur?tico que Freud dizia caracterizar a psican?lise. Se h? refer?ncia a uma aten??o ? fala ? porque trata-se, no trabalho psican?lise, de "falar", mas um "falar" que corresponde exatamente a um "ouvir" ? este, por sua vez, respons?vel pelo "ouvir" daquele que fala. Poder-se-ia dizer que no trabalho psican?lise tratase de o analisando "falar" o que foi esquecido, sob a condi??o do "ouvir" espec?fico do analista para que o analisando tamb?m "ou?a" o que fala. Tomando-se a interpreta??o do exemplo de Freud com Charcot como figurativo do acontecer psicanal?tico, compreende-se que mais do que condi??o, o ouvir do analista faz o analisando ouvir (como o ouvir de Freud teria feito Charcot ouvir o que ele pr?prio disse); nesse caso, ouvir constitui um ato, n?o simplesmente uma percep??o. O processo de psican?lise assim resumido nomeia-se na regra t?cnica da associa??o livre, convite expl?cito para que o analisando fale de modo espec?fico e da abstin?ncia, condi??o imposta ao analista de que n?o tenha outro ouvido, sen?o aquele voltado ao modo da aten??o flutuante para a fala do analisando.

A sugest?o de que "falar e ouvir" caracterizam o trabalho que se aproxima do sentido concreto de psican?lise surgiu a partir de uma situa??o outra que n?o uma psican?lise: o epis?dio de Freud com Charcot. Resta verificar se essa sugest?o mostra-se como entendimento adequado do trabalho psican?lise propriamente dito, regido pela regra t?cnica fundamental e por suas regras derivadas.

2. Tr?s perspectivas da psican?lise como trabalho de fazer falar ...e fazer ouvir apropriadamente:

vencer resist?ncias, interpreta??o e constru??o

a) "Vencer resist?ncias" revela a psican?lise como trabalho de fazer falar

Freud reconhece que o tratamento de Bertha Pappenheim (nome real de Anna O.) realizado por Breuer deu in?cio ? psican?lise entendida como trabalho de fazer a hist?rica falar o que foi esquecido. Assim Freud retoma as palavras de Breuer:

Descobrimos com efeito, no in?cio para nossa m?xima surpresa, que os sintomas hist?ricos individuais desapareciam em seguida e sem retornar quando se conseguia despertar claramente a lembran?a do processo ocasionador, convocando ao mesmo

Psych? -- Ano IX -- n? 16 -- S?o Paulo -- jul-dez/2005 -- p. 25-48

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download