Revista da Faculdade de Letras 317

[Pages:38]317 Revista da Faculdade de Letras HIST?RIA Porto, III S?rie, vol. 8, 2007, pp. 317-354

ORDENAMENTO SANIT?RIO, PROFISS?ES DE SA?DE E CURSOS DE PARTEIRAS...

Marinha Carneiro2

Ordenamento sanit?rio, profiss?es de sa?de e cursos de parteiras no s?culo XIX1

R E S U M O

Integrando uma investiga??o mais ampla, o presente artigo aborda o ordenamento sanit?rio derivado do novo paradigma m?dico emergente no s?culo XIX e os seus efeitos sobre as diferentes profiss?es de sa?de, focalizando em particular a promo??o dos cursos de partos nas escolas m?dicas que vieram introduzir um novo modelo de forma??o para as parteiras.

O s?culo XIX foi o tempo da afirma??o da cirurgia em diversos dom?nios, eliminando-se gradualmente os tradicionais cirurgi?es pr?ticos que deram lugar a novos profissionais j? formados na d?ade cient?fica de ?medicina e cirurgia? que era reivindicada pelas novas posi??es intelectuais desde o s?culo XVIII. Para a afirma??o da cirurgia foi determinante a atitude de "corpo de of?cio" de alguns cirurgi?es mais ilustrados que organizaram associa??es e academias, divulgaram conhecimentos atrav?s de uma imprensa especializada por eles criada, apostaram no estudo da anatomia e arriscaram na amplitude da interven??o cir?rgica. E pressionaram, enfim, os poderes p?blicos para a cria??o de escolas que fossem al?m das tradicionais aulas de "pr?ticos" em hospitais e que pudessem integrar o esp?rito e os contributos da ci?ncia moderna. Na realidade, apesar da rivalidade com os m?dicos universit?rios, a cria??o de estudos superiores em cirurgia derivou muito da ac??o dos cirurgi?es, alguns dos quais, conscientes da necessidade de aprofundamento cient?fico, procuraram dar amplitude a esse sentimento, tentando transform?-lo em ac??o colectiva.

O conhecido higienista e professor Ricardo Jorge, num relat?rio sobre o ensino m?dicocir?rgico no Porto apresentado ao Conselho Superior de Instru??o P?blica em 1885, reconheceu esse papel hist?rico de destacados cirurgi?es na promo??o cient?fica, quando, ap?s evocar os rituais do exame de sangrador, que considerava deplor?veis, evocou a ac??o do cirurgi?o Manuel Gomes de Lima Bezerra, activo na segunda metade do s?culo XVIII, no Porto:

Dada esta picaresca pobreza de tiroc?nio escolar, ? para notar com certa admira??o que entre a chusma dos curandeiros diplomados, a impar de ignor?ncia e de imper?cia por mal da humanidade, se destacassem ainda, imaculados de tanta podrid?o, cirurgi?es de merecimento, alguns dos quais estamparam o seu nome nas p?ginas da medicina portuguesa.

1 Este texto corresponde a um cap?tulo da disserta??o de doutoramento "Ajudar a Nascer. Parteiras, saberes obst?tricos e modelos de forma??o (s?culos XV-XX), Porto, Faculdade de Psicologia e Ci?ncias da Educa??o da Universidade do Porto.

2 Professora Coordenadora da Escola Superior de Enfermagem do Porto. E-mail: marinha.c@clix.pt

318

MARINHA CARNEIRO

Quando se olvidar? o nome do erudito e prestante Manuel Gomes de Lima, que se empenhou em fornecer aos cirurgi?es do seu tempo os melhores conhecimentos da ?poca, publicando livros de m?rito e boa li??o? Homem de iniciativa rasgada e inteligente, muito acima da sua ?poca e do seu meio, inaugurava audaciosamente o jornalismo m?dico em Portugal e agremiava os mais distintos colegas portuenses na academia cir?rgica, criando ao mesmo tempo um cen?culo de discuss?es m?dicas, e um consult?rio gratuito de doentes para instru??es dos associados. Quem dir? que na ef?mera Academia cir?rgica prototypo-lusitana se desenhava o embri?o do ambulatorium e da policl?nica que opulentam hoje o ensino dos grandes centros alem?es?3

Ora, o progressivo conhecimento da anatomia e de outras ?reas cl?nicas, o dom?nio crescente de novos instrumentos cir?rgicos, os efeitos da liga??o medicina-cirurgia ao n?vel da pr?tica, tudo isso contribuiu para conferir um crescente relevo aos cirurgi?es, ajudando-os a equipararemse aos m?dicos em termos de reconhecimento profissional e social, criando-se escolas de cirurgia que procuraram posicionar-se ao n?vel universit?rio. Aos poucos chegavam a Portugal os reflexos do processo de cientifica??o da cirurgia e do lento despegar da obstetr?cia como especialidade m?dica, o que vai acontecendo com o estudo do mecanismo do trabalho de parto, com a pr?tica da vers?o pod?lica, com o aperfei?oamento da extrac??o pelo f?rceps, com a possibilidade de auscultar os batimentos card?acos do feto (desde 1818, com Mayer).

Esta visibilidade social e o reconhecimento de uma superioridade de tipo cient?fico dos cirurgi?es alastrou ? sua rela??o hier?rquica com as parteiras. Estas passaram a ser submetidas a um maior controlo: os cirurgi?es passaram a organizar cursos de parteiras no ?mbito das suas escolas, com o benepl?cito oficial. Se antes a parteira era essencialmente uma mulher com pr?tica de maternidade, que tinha vivido a experi?ncia do trabalho de parto e ampliava os conhecimentos por acompanhamento de outras parteiras, agora passou a ser uma mulher jovem, com grandes probabilidades de ser solteira e de raramente ter experi?ncia maternal ou de exerc?cio profissional, sem possibilidade de invocar um saber-fazer que lhe conferisse alguma autonomia junto do cirurgi?o. Jovem, inexperiente, de condi??o social humilde, logo submissa, mas sem deforma??es profissionais derivadas de uma pr?tica sem bases cient?ficas, eis algumas das caracter?sticas desej?veis pelos m?dicos para as novas parteiras que come?aram a sair dos cursos de partos criados no ?mbito das escolas m?dico-cir?rgicas: seriam as parteiras diplomadas ap?s um curso formal, de habilita??o profissional, e j? n?o as apenas ?examinadas? sobre os conhecimentos pr?ticos e muito menos as ?curiosas?, ainda que estes tr?s tipos coexistissem ainda durante largo tempo, com a mesma designa??o popular de parteira a cobrir realidades formativas diferentes e antag?nicas. Este quadro gen?rico que traz a parteira ?diplomada?, tribut?rio do que se verificou no ?mbito europeu4, irrompeu em Portugal ao longo do s?culo XIX, num processo cuja ilustra??o procuraremos desenvolver, tentando captar as principais linhas de for?a do seu contexto hist?rico.

3 JORGE, 1885: 106. 4 CARRICABURU, 1994 : 281-307. MACDONALD, 1995: 144 -149.

319

ORDENAMENTO SANIT?RIO, PROFISS?ES DE SA?DE E CURSOS DE PARTEIRAS...

Vintismo, sa?de p?blica e parteiras

Em 1820, uma revolu??o trouxe a Portugal o quadro pol?tico liberal que j? se aplicava noutros pa?ses europeus, introduzindo-se o modelo constitucional como pedra de toque na forma de governo. As Cortes reuniram-se, funcionando como ?rg?o legislativo e n?o deixariam de se fazer eco das quest?es sanit?rias (pouco antes, publicara-se, da autoria de Jo?o Pinheiro de Freitas Soares, um Tratado de Pol?cia M?dica, em 1818). Houve ent?o algumas repercuss?es sobre a quest?o sanit?ria e, mais especificamente, sobre as parteiras? Um estudo de Lu?sa Tiago de Oliveira5 fornece-nos as linhas de for?a da discuss?o sobre a sa?de p?blica no ?vintismo?, disponibilizandonos os documentos essenciais que basearam essa discuss?o em Cortes. O colapso pol?tico do liberalismo pouco depois, com o regresso durante mais alguns anos do absolutismo e de uma guerra civil (at? 1834), tornou, por?m, essa discuss?o pouco produtiva sob o ponto de vista de resultados, embora mais rica no debate de ideias.

Um dos documentos centrais desta discuss?o tinha como ponto de partida o ?Projecto do Regulamento Geral de Sa?de P?blica?6, apresentado nas Cortes por um grupo de deputados, revelando-se, deste modo, uma consci?ncia dos problemas sanit?rios existentes e da necessidade de definir objectivos e estruturar recursos. ?Um dos mais importantes objectos de qualquer governo ? conservar a sa?de p?blica dos povos, porque ? muito mais ?til prevenir a desenvolu??o das mol?stias, do que passar pelo penoso trabalho de as tratar a custa de muitos riscos, e despesas? assim se exprimia a comiss?o redactora do projecto, para, mais ? frente, depois de aludir ? dispers?o ainda existente neste dom?nio, reconhecer que ?a pol?cia m?dica do interior do Reino pode dizer-se com verdade, que n?o existia absolutamente?.

Pelo primeiro artigo da proposta, integrava-se no novo ordenamento a Junta da Sa?de P?blica como ?rg?o central administrativo, composta por cinco vogais (tr?s m?dicos, um cirurgi?o e um botic?rio), que assumiria todas as antigas fun??es, sendo-lhe atribu?das outras no sentido de policiar os problemas e profissionais da sa?de e de promover publica??es sobre mol?stias, opera??es cir?rgicas, estado dos estudos e de organiza??es de sa?de e assist?ncia. Criava-se, em cada comarca, um m?dico com o cargo de inspector da Junta, com o objectivo de fiscalizar ?todos os ramos da sa?de p?blica? da sua comarca, nomeadamente ?examinar se os m?dicos do partido das c?maras da sua comarca desempenham bem as suas obriga??es: se os cirurgi?es, longe de se excederem no exerc?cio da sua profiss?o, procuram exercer a dos m?dicos com detrimento dos povos; se as parteiras s?o capazes de ministrarem os socorros, que delas se esperam; se os botic?rios t?m as suas boticas providas de medicamentos suficientes, e saud?veis?.

Estabelecia-se que ?os empregados de sa?de s?o os m?dicos, cirurgi?es, botic?rios, e parteiras?, procurando-se ultrapassar a persist?ncia de outras artes de curar e fixar uma hierarquia que afinal j? se verificava, com a sobreviv?ncia das quatro ocupa??es que resistiram a um longo processo de transforma??es nas artes de curar. Nesta fase, os m?dicos s? seriam os formados pela Universidade de Coimbra (eventuais diplomados por universidade estrangeira teriam de prestar exame perante

5 OLIVEIRA, 1992. 6 OLIVEIRA, 1992: 65-88. O projecto ? datado de 12.10.1821.

320

MARINHA CARNEIRO

vogais da Junta de Sa?de P?blica). A outra novidade era a cria??o de duas escolas regulares de Cirurgia, uma em Lisboa e outra no Porto, mas, al?m disso, a Faculdade de Medicina seria reformada de modo a que na Universidade de Coimbra se pudesse ?fazer um estudo de Cirurgia completo?. Previa-se que, de futuro, s? os que tivessem carta de uma das tr?s escolas pudessem exercer cirurgia, embora, enquanto as escolas n?o se estabelecessem, pudessem continuar a verificarse os exames tradicionais (ou seja, habilita??o sob a forma de exame, ap?s tiroc?nio pr?tico, agora perante os delegados da Junta de Sa?de P?blica, como antes perante os do Cirurgi?o-Mor).

Relativamente ?s parteiras, as propostas passavam ainda pelas seguintes dimens?es: ? cria??o de cursos para parteiras, a concretizar da seguinte forma: nas comarcas onde houvesse algum cirurgi?o instru?do na arte de Obstetr?cia, a Junta conceder-lhe-ia licen?a para abrir um curso anual de partos ?s mulheres que se propusessem ser parteiras; ? a obriga??o das parteiras saberem ler e escrever, condi??o que permitiria ?imprimir umas breves instru??es sobre a sua arte, pelas quais ser?o examinadas por ordem do inspector da comarca?, tendo ainda de apresentar certid?o de terem praticado com parteira examinada; ? penaliza??es: parteira que exercitasse o seu of?cio, sem certid?o de exame, seria intimada pelo inspector de sa?de para se abster de o fazer, sendo penalizada, caso reincidisse, por uma multa que n?o deveria exceder dois mil r?is. Como se depreende do exposto, as propostas enunciadas pouco avan?avam face aos regulamentos anteriores ao liberalismo, no que se referia ? parteira, cristalizando algumas representa??es sobre a arte obst?trica veiculadas pela ?ptica dos cirurgi?es. Assim, tudo indica que, para m?dicos e cirurgi?es, a obstetr?cia era o ?problema?, a ?complica??o?, o ?transtorno? daquilo que era tendencialmente uma segrega??o da natureza, um ?acto natural? - o parto. Era este campo de normalidade no parto que ficava ? responsabilidade da parteira, pois para as complica??es haveria a ac??o cir?rgica. Na verdade, se o Estado j? assumia o ensino da medicina e se propunha agora instalar o de cirurgia, negligenciava completamente o da obstetr?cia na ?ptica da forma??o da parteira, nesta proposta vintista, embora reconhecendo uma vaga necessidade de cursos que remetia para a iniciativa particular de algum cirurgi?o. Mas como a f?rmula de certifica??o continuaria a ser o exame, ap?s prova de pr?tica com outra parteira examinada, a ideia de curso era aqui uma possibilidade flutuante, tanto poderia concretizar-se como n?o, era uma vaga equa??o deixada ao acaso, o que contrastava com o discurso de exig?ncia produzido para m?dicos e cirurgi?es. A hierarquiza??o das artes m?dicas impl?cita neste texto, tal como em legisla??o anterior, continuava a remeter a parteira para a base da pir?mide dos agora designados ?empregados da sa?de?, indiciando a sua subordina??o ao cirurgi?o, a categoria indicada pelo texto para lhe conferir forma??o. Embora prevendo penaliza??es para as parteiras n?o legalizadas, ao n?o incentivar-se a forma??o de novas parteiras permitia-se que as parturientes e suas fam?lias tivessem de recorrer ?s ?curiosas?, uma vez que as ?examinadas? eram poucas e, baseando a sua forma??o nas pr?ticas tradicionais, n?o se ajustariam aos novos padr?es de exig?ncia cient?fica que o liberalismo arrastava. Apesar dos novos ventos liberais, o parto e as parteiras continuavam a ser elementos de um mundo feminino, subalterno, ainda distante das preocupa??es dos governantes. Se procurarmos outro tipo de preocupa??es relativa ?s parteiras nesta documenta??o, apenas poderemos referenciar uma peti??o ?s Cortes de duas ?parteiras aprovadas? de Odivelas que,

321

ORDENAMENTO SANIT?RIO, PROFISS?ES DE SA?DE E CURSOS DE PARTEIRAS...

num texto assinado por um procurador, protestavam por o seu espa?o de ac??o estar a ser invadido por ?curiosas? n?o habilitadas que exerciam a arte com

imenso preju?zo de todos; porque, ou pelos meios da ignor?ncia, ou da afei??o se entregam partientes [sic] nas m?os de tais pessoas ignorantes, e resultam da falta de sabedoria perigos imensos; porque, caso possam pagar deve recair a dita paga em quem est? habilitado, pelo mesmo que gastou tempo no estudo, e na pr?tica, e o seu dinheiro nos seus exames, e n?o em quem nada disto tem satisfeito; e porque finalmente ? esc?ndalo p?blico o exercitar qualquer pessoa o que lhe n?o compete, contra as ordens, para isso estabelecidas, e at? contra a boa ordem da sociedade: requerem portanto a Vossa Majestade as suplicantes haja por bem que o competente Ju?zo fa?a sair a correi??o do cirurgi?o-mor do Reino, e castiguem os infractores da lei, a qual correi??o o regimento determina que saia uma vez cada ano, e ? j? h? muito tempo findo um sem que a dita correi??o tenha aparecido a cumprir os seus deveres.7

O efeito de legitima??o concedido pela licen?a, com base no exame, era cada vez mais universal, para se reivindicar o territ?rio profissional, ainda que pouco se saiba sobre o saber em causa e a peti??o tenha sido apresentada (e provavelmente redigida) por um procurador. O exame, como dispositivo legitimador introduzia conflitualidade para com a intromiss?o de ?curiosas? num territ?rio que estava social e legalmente delimitado para o grupo das ?parteiras examinadas?, com estas a usarem o mesmo argumento de outros grupos profissionais em situa??es id?nticas. O efeito de poder ancorado num ideal de superioridade de saber d? aqui plena aplica??o ao conceito de poder-saber, desenvolvido por Michel Foucault, revelando a natureza difusa do poder e a sua presen?a em todos os interst?cios da sociedade.

De qualquer forma, a elabora??o do ?Projecto do Regulamento Geral de Sa?de P?blica? mostra o despertar do novo poder pol?tico para a problem?tica de criar um sistema sanit?rio, coordenando a legisla??o antiga num novo formato, com algumas adapta??es e/ou inova??es em torno de v?rios problemas, em que avultavam os expostos, a sua cria??o e educa??o, os hospitais, a pol?cia m?dica (fiscaliza??o de g?neros, a sa?de nas terras, a vacina??o, os enterramentos e cemit?rios, servi?os de sa?de nos portos e lazaretos). Outra quest?o central enunciada e que era preciso ultrapassar radicava na necessidade de formar cirurgi?es em escolas pr?prias, propondose a sua cria??o em Lisboa e Porto e dotando a Universidade de Coimbra dessa val?ncia, de uma forma eficaz, na Faculdade de Medicina.

Por virtude das vicissitudes pol?ticas, estas propostas ficaram pelo caminho, com algumas delas a serem repescadas um pouco mais tarde: as R?gias Escolas de Cirurgia chegam logo em 1825.

As R?gias Escolas de Cirurgia

As diversas propostas para a cria??o de escolas oficiais de cirurgia, que podemos remontar j? a Ribeiro Sanches, demoraram ent?o a concretizar-se. Por isso, o ano de 1825 costuma ser apontado

7 OLIVEIRA, 1992: 141.

322

MARINHA CARNEIRO

como um momento assinal?vel na organiza??o do ensino m?dico em Portugal, pois correspondeu ? cria??o e ? inaugura??o oficial das novas Escolas de Cirurgia. O alvar? de 25 de Junho de 1825, reconhecendo o atraso portugu?s em rela??o a pa?ses estrangeiros, justificava assim a cria??o das ditas escolas:

sendo hum dos objectos mais importantes para a felicidade p?blica, e conserva??o da saude de Meus Povos, a educa??o de habeis Cirurgi?es, que, adquirindo os verdadeiros conhecimentos da sua arte, poss?o utilmente dedicar-se ao curativo respectivo, em que por ora se experimenta t?o sensivel atrazamento, supprindo-se a imper?cia dos que se consagr?o ao exercicio de t?o interessante ramo por exames superficiaes, e illusorios Documentos; faltando em grande parte as Disciplinas Elementares, methodicamente dirigidas, e encaminhadas por Mestres idoneos, que poss?o produzir habeis disc?pulos, e obter na importante Arte da Cirurgia o adiantamento e progresso, que em outros Pa?ses se tem avantajado t?o consideravelmente, e que tanto contribuem para a gloria, recupera??o, e conserva??o da sa?de de Meus Povos: Sou Servido, por todos estes respeitos, e por outros de muita pondera??o, que Me for?o propostos por pessoas muito inteligentes, verdadeiramente consagradas a Meu Servi?o, e consagradas ? utilidade p?blica (...).8

Foram, assim, criadas as R?gias Escolas de Cirurgia em Lisboa, no Hospital de S. Jos?, e no Porto, no Hospital da Miseric?rdia (Santo Ant?nio). Segundo o respectivo regulamento, anexo ao alvar?, os cursos eram de cinco anos lectivos, leccionando-se as seguintes cadeiras:

1? ano: Anatomia; Fisiologia; 2? ano: Repeti??o de Anatomia, Mat?ria M?dica, Farm?cia; 3? ano: Higiene, Patologia Externa e Cl?nica Cir?rgica; 4? ano: Medicina Operat?ria, Arte Obstetr?cia e Repeti??o de Cl?nica Cir?rgica; 5? ano: Patologia Interna e Cl?nica M?dica. Eram ainda fornecidas indica??es sum?rias para cada cadeira, embora remetendo para o ?corpo catedr?tico? as ?doutrinas? a seguir. Para a Arte Obstetr?cia davam-se apenas as seguintes instru??es: ?O lente de Arte Obstetr?cia comprehender? no seu Curso a parte Forense que lhe he concernente: ter? a seu cargo huma Enfermaria de mulheres gr?vidas, para os Alumnos adquirirem os conhecimentos pr?ticos deste ramo da Arte de curar?. N?o analisaremos aqui os enunciados regulamentares na sua diversidade, mas anotemos as seguintes curiosidades: a matr?cula para o curso de cirurgia estava aberta a alunos com mais de 14 anos (idade m?nima para ingresso), devendo estes apresentar certid?o de professor r?gio ou demonstrar por exame conhecimentos de Latim e L?gica; a passagem do 3? para 4? ano estava condicionada ? demonstra??o de saber uma l?ngua viva europeia, franc?s ou ingl?s (que teria de aprender exteriormente ? Escola). As l?nguas cl?ssicas e modernas eram agora indispens?veis ? componente de erudi??o que os novos cursos de cirurgia previam, quer para ler nos livros antigos, quer nos modernos comp?ndios que iam chegando dos pa?ses mais avan?ados da Europa. Sendo ainda bastante elementares, estes cursos representavam um claro avan?o face ?s antigas escolas hospitalares e aprofundavam mais a ?rea cir?rgica do que a forma??o m?dica desenvolvida na Universidade de Coimbra, pormenor que se tornou num argumento de disc?rdia entre estas

8 Colec??o de Legisla??o, 1825: 56.

323

ORDENAMENTO SANIT?RIO, PROFISS?ES DE SA?DE E CURSOS DE PARTEIRAS...

escolas e a universidade. Os cirurgi?es aprovados nestas escolas seriam preferidos nos lugares de ?partido? a outros cirurgi?es encartados por exame, bem como no Ex?rcito e na Armada, podendo ainda curar de medicina onde n?o houvessem m?dicos formados na Universidade de Coimbra ou em lugares em que estes manifestamente n?o chegassem para suprir as necessidades da popula??o.

Abriu a Escola de Lisboa a 27 de Setembro de 1825, repescando para o corpo docente os cirurgi?es que trabalhavam e ensinavam no Hospital de S. Jos?, alguns dos quais tinham estudado no estrangeiro. Celebrou-se o acto inaugural da R?gia Escola de Cirurgia do Porto em 25 de Novembro desse mesmo ano, nas instala??es do Hospital de Santo Ant?nio.

Com a cria??o destas escolas, o Estado assumiu uma participa??o directa na forma??o dos cirurgi?es, a par da ac??o que j? exercia em Medicina, desde que se reformara a Universidade de Coimbra, em 1772. Mas a Casa Real ainda ficava a lucrar com a cria??o das Escolas R?gias, pois o alvar? estabelecia que os ordenados de professores e empregados e mais despesas fossem pagos pela presta??o de 10 contos de r?is que ofereciam os Contratadores Gerais do Tabaco, a isso constrangidos, sem qualquer outra despesa, revertendo para a Real Fazenda a quantia de 1260$000 r?is que a Fazenda Real, at? essa altura, pagava pelas cadeiras avulsas que ent?o eram ensinadas no Hospital de S. Jos?. Esta situa??o ter-se-? mantido at? 1829.

No caso do Porto, a situa??o desta escola p?blica, organizada pelo Estado, assumia uma caracter?stica espec?fica (que, com o tempo, se revelou um handicap para o ensino m?dico), pois a iniciativa p?blica invadia um hospital particular, propriedade da Santa Casa da Miseric?rdia, hospital que passou a funcionar com uma Junta composta por tr?s membros - o director da Escola, um m?dico do hospital (e que geralmente integrava a escola) e um membro da Miseric?rdia, o que se justificava na altura pela anterioridade hist?rica na forma??o de cirurgi?es por esse hospital, por sua ?nica iniciativa e responsabilidade.

Na realidade, as escolas de Lisboa e Porto n?o surgiam por gera??o espont?nea. Estas medidas de institucionaliza??o do ensino cir?rgico, embora inovadoras pelo efeito legitimador assegurado pelo Estado, desenvolviam-se na linha de uma longa tradi??o de ensino em cursos rudimentares para praticantes de sangria e cirurgia existentes nos hospitais de Lisboa (S. Jos?, mantido pelo Estado) e do Porto (S. Ant?nio, mantido pela Miseric?rdia, que iniciou a constru??o deste hospital em 1770, para concentrar os servi?os de outros hospitais anteriores). No que se referia ao Porto, Ricardo Jorge n?o esqueceu esta genealogia:

? escola m?dico-cir?rgica do Porto ? vedado apregoar pergaminhos brazonados e fidalguias acad?micas; a sua ?rvore de costado entronca na m?sera oficina hospitalar que despachava a esmo sangradores e cirurgi?es ministrantes, nos tempos legend?rios em que uma lanceta brutal era serva prestante da navalha de barba.9

E na verdadeira hist?ria do ensino cir?rgico que o seu relat?rio constitui, Ricardo Jorge ironizou com os rituais dos antigos exames oficiais onde as diversas ignor?ncias se expunham publicamente, com os velhos m?todos e as v?rias artes. Exprime um vulgar sentimento de supremacia da ci?ncia do seu tempo sobre os saberes anteriores (tudo antes era bo?al, est?pido,

9 JORGE, 1885: 102.

324

MARINHA CARNEIRO

in?bil), num quadro t?pico de euforia positivista, corrente de que foi um dos divulgadores em Portugal.

Do ponto de vista simb?lico, esta ac??o do Estado recuperava algum do sentido formulado pelas propostas dos iluministas, veiculadas no caso portugu?s principalmente por Ribeiro Sanches. Como muito bem sintetizou Jo?o Rui Pita numa tese recente, trata-se de mostrar que as quest?es da sa?de, nomeadamente as de sa?de p?blica, tem ?uma dimens?o pedag?gica e pol?tica e n?o apenas especificamente m?dica?10.

Era uma preocupa??o que pairou sobre toda a legisla??o e empreendimentos m?dicos do s?culo XIX e que chegou aos nossos dias, envolvendo naturalmente quest?es de poder, pois aquilo que Ribeiro Sanches designava como ?medicina pol?tica? resultava agora na ?articula??o entre o poder cient?fico e t?cnico da medicina e o poder administrativo do Estado?. Na linha da ?pol?cia m?dica?, uma express?o tamb?m muito utilizada na altura, v?rios outros trabalhos se publicaram depois, teorizando o papel do Estado neste dom?nio e apontando solu??es11.

Face ? situa??o existente, a cria??o das Escolas R?gias de Cirurgia em Lisboa e no Porto representou, pois, um acto de inova??o e de ruptura, a v?rios n?veis. Desde logo, no campo tradicional das artes de curar, pois, como disse Hern?ni Monteiro, a cria??o das Escolas ?foi um golpe vibrado nos processos sum?rios ent?o em voga para passar cartas e diplomas de habilita??o a cirurgi?es, ministrantes de meia cirurgia, sangradores, dentistas, algebristas, botic?rios, parteiras e emplastradeiras, indiv?duos pela maior parte inexperientes, que, n?o tendo seguido nenhum curso oficial, se apresentavam simplesmente ao exame, reduzido, por vezes, a uma ilus?ria formalidade?12, princ?pios estes que o pre?mbulo do alvar? de cria??o explicitava, como vimos. Por outro lado, iniciava-se um golpe oficial contra o monop?lio da Universidade de Coimbra neste dom?nio, que atingira uma superioridade legal desde a reforma de 1772, e que a continuar? a conservar ainda, pois s? em 1866 os licenciados pelas Escolas de Lisboa e Porto ser?o oficialmente equiparados para efeitos de concurso p?blico, acabando-se com a superioridade dos formados pela Universidade. Mas estes eram em pequeno n?mero e n?o cobriam, de forma alguma, as necessidades do Pa?s, que, por essa raz?o, continuava a ser um vasto mercado (embora de fracos recursos) n?o s? para os cirurgi?es das novas escolas como para os vulgares profissionais das artes de curar.

Sublinhe-se que nada constava ainda sobre ?cursos para parteiras? nos regulamentos dados em 1825 ?s R?gias Escolas de Cirurgia. Indirectamente, no entanto, o caminho de valoriza??o da cirurgia, com a forma??o de cirurgi?es de um novo tipo, repercutiu-se inevitavelmente n?o s? sobre a actividade das parteiras como sobre todas as artes de curar. O ordenamento da ?rea da sa?de viveu, ent?o, um salto qualitativo, pois a cria??o das R?gias Escolas de Cirurgia trazia consigo as sementes da aplica??o do modelo moderno de forma??o m?dica, a da liga??o medicinacirurgia, h? muito reclamado em Portugal, a exemplo do que j? se fazia no estrangeiro. Mas faltava dar ainda o passo decisivo, a de consagrar institucionalmente essa liga??o disciplinar.

10 PITA, 1996: 437-457. 11 Para uma perspectiva de s?ntese sobre as pol?ticas preventivas da sa?de, FERRAZ, 1996: 123 -137. 12 MONTEIRO, 1926: II.

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download