SOBRE A CONCORDÂNCIA DE NÚMERO NO PORTUGUÊS FALADO DO BRASIL 1. INTRODUÇÃO

SCHERRE, M. M. P. & NARO, A. J. Sobre a concord?ncia de n¨²mero no

portugu¨ºs falado do Brasil. In Ruffino, Giovanni (org.) Dialettologia,

geolinguistica, sociolinguistica.(Atti del XXI Congresso Internazionale di

Linguistica e Filologia Romanza) Centro di Studi Filologici e Linguistici

Siciliani, Universit¨¢ di Palermo. T¨¹bingen: Max Niemeyer Verlag, 5:509523, 1998.

SOBRE A CONCORD?NCIA DE N?MERO NO PORTUGU?S FALADO DO

BRASIL

Maria Marta Pereira Scherre (UFRJ/UnB)

e

Anthony Julius Naro (UFRJ)

1. INTRODU??O

Diferentemente do portugu¨ºs de Portugal, o portugu¨ºs vernacular do Brasil

apresenta varia??o sistem¨¢tica nos processos de concord?ncia de n¨²mero,

exibindo variantes expl¨ªcitas e variantes zero (0) de plural em elementos

verbais e nominais, conforme ilustramos abaixo.

1) CONCORD?NCIA VERBO /SUJEITO

... eles GANHAM demais da conta (variante expl¨ªcita);

... eles GANHA0 demais (variante zero).

2) CONCORD?NCIA ENTRE OS ELEMENTOS DO SINTAGMA NOMINAL

- oS freguesES; aS boaS a? ?ES; essaS coisaS todaS (variantes expl¨ªcitas);

- essaS estradaS nova0; do0 meuS paiS (variantes expl¨ªcitas e variantes zero);

- aS codorna0; a S porta0 aberta0 (variantes expl¨ªcitas e variantes zero).

3)CONCORD?NCIA NOS PREDICATIVOS E PARTIC?PIOS PASSIVOS

... as coisas t?o muito CARAS, n¨¦? ... (variante expl¨ªcita);

... que as coisa0 t¨¢0 CARA0, num d¨¢ mesmo ... (variante zero);

... os meus filhos foram AMAMENTADOS ... (variante expl¨ªcita);

... os meus filhos foram ALFABETIZADO0 ... (variante zero).

A varia??o apresentada acima configura-se como um caso de varia??o

inerente (cf. Labov, 1975a, p.183-259), e tem sido amplamente documentada

por estudiosos diversos (cf., por exemplo, Lemle & Naro, 1977; Braga &

Scherre, 1976; Naro, 1981; Guy, 1981; Scherre, 1988;1994). Portanto, constitui

nosso principal objetivo neste trabalho mostrar claramente que os processos

vari¨¢veis de concord?ncia de n¨²mero do portugu¨ºs vernacular do Brasil

2

evidenciam um sistema perfeito, correlacionado a vari¨¢veis ling¨¹¨ªsticas e

sociais.

Na an¨¢lise propriamente dita, vamos discutir, em primeiro lugar, resultados

da concord?ncia de n¨²mero nos fen?menos supracitados, focalizando duas

vari¨¢veis ling¨¹¨ªsticas importantes para o entendimento da varia??o: sali¨ºncia

f?nica e posi??o, com dados de todos os falantes de nossa amostra e, tamb¨¦m,

com os dados subdividos em termos dos anos de escolariza??o dos falantes.

Em segundo lugar, vamos focalizar a influ¨ºncia de tr¨ºs vari¨¢veis sociais

convencionais: anos de escolariza??o, sexo e faixa et¨¢ria. E, em terceiro,

vamos apresentar algumas considera??es sobre a varia??o da concord?ncia

de n¨²mero na escrita padr?o.

2. FONTE DOS DADOS ANALISADOS

As constru??es que analisamos foram extra¨ªdas do banco de dados do

Corpus Censo do Programa de Estudos sobre o Uso da L¨ªngua (PEUL), grupo

de pesquisa sediado no Departamento de Ling¨¹¨ªstica e Filologia da Faculdade

de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Este banco de dados ¨¦

constitu¨ªdo por 64 grava??es de 60 minutos cada com 64 falantes,

estratificados em fun??o dos anos de escolariza??o (1 a 4 anos, 5 a 8; 9 a 11),

da faixa et¨¢ria (7/14 anos; 15/26; 26/49 e acima de 49), e do sexo (feminino e

masculino) (cf. Silva & Scherre, no prelo).

Extra¨ªmos da amostra todos os dados relativos aos tr¨ºs fen?menos

analisados, pass¨ªveis de varia??o n?o prevista pela tradi??o gramatical

brasileira. A an¨¢lise que vamos apresentar envolve um total de 4632

constru??es de concord?ncia verbal, 13100 de concord?ncia nos elementos

dos sintagma nominais (aproximadamente 7000 sintagmas nominais) e 759

constru??es de concord?ncia nos predicativos e partic¨ªpios passivos.

3. PRESSUPOSTOS TE?RICOS E METODOL?GICOS DA AN?LISE

A an¨¢lise foi feita com base nos princ¨ªpios te¨®ricos da teoria da varia??o (cf.

Cedergren & Sankoff, 1974; Labov, 1975a;1975b; Sankoff, 1988a). Para o

tratamento

quantitativo dos dados, usamos um conjunto de

programas

computacionais apropriados (Sankoff, 1988b; Pintzuk, 1988), que fornecem,

3

como produto final, pesos relativos associados aos diversos fatores dos grupos

de fatores ou vari¨¢veis independentes consideradas, bem como a sele??o

destes grupos em fun??o de sua relev?ncia para a varia??o do fen?meno

analisado. Os pesos relativos atribu¨ªdos indicam o efeito que cada um dos

fatores tem sobre as variantes do fen?meno ling¨¹¨ªstico analisado (a vari¨¢vel

dependente), no caso em quest?o sobre a variante expl¨ªcita de plural.

4. AN?LISE DA SALI?NCIA F?NICA

4.1 CONCORD?NCIA NO SINTAGMA VERBAL

Estudos anteriores, com amostras de fala de falantes analfabetos, t¨ºm

evidenciado que o aumento da sali¨ºncia do material f?nico na oposi??o

singular/plural dos verbos analisados aumenta as chances concord?ncia verbal

(cf., Naro & Lemle, 1976; Lemle & Naro, 1977; Naro, 1981;), ou seja, aumenta

as chances da variante expl¨ªcita de plural. Segundo Naro (1981, p.73-78), a

hierarquia da sali¨ºncia deve ser estabelecida em fun??o de dois crit¨¦rios: (1)

presen?a ou aus¨ºncia de acento na desin¨ºncia e (2) quantidade de material

f?nico que diferencia a forma singular da forma do plural. Tendo em vista o

primeiro crit¨¦rio, estabelecem-se dois n¨ªveis de sali¨ºncia e, dentro de cada

n¨ªvel, distinguem-se tr¨ºs categorias que refletem a diferencia??o material f?nica

da rela??o singular/plural, resultando uma escala de seis n¨ªveis.

Apresentamos a seguir uma s¨ªntese dos seis n¨ªveis da escala da sali¨ºncia

assim proposta com seus respectivos exemplos.

N¨ªvel 1 (oposi??o n?o acentuada): "cont¨¦m os pares nos quais os

segmentos fon¨¦ticos que estabelecem a oposi??o s?o N?O ACENTUADOS em

ambos os membros" (Naro, 1981, p.74).

1a: n?o envolve mudan?a na qualidade da vogal na forma plural

- Eles conhece0 Roma. Conhece Paris (MOR45MC51/2470)1

- Ceys conheceM? (NAD36FG57/1119)

1b: envolve mudan?a na qualidade da vogal na forma plural

- Eles ganha0 demais po que eles fayz (CAB02MP16/ 0026)

- Eles ganhaM demais da conta (CAB02MP16/0012)

1c: envolve acr¨¦scimo de segmentos na forma plural

- Eles tamb¨¦m n?o diz0 (LAU28FC43/2601)

- Eles dizEM : "chutei tudo" (HEL34FG62/1887)

N¨ªvel 2 (oposi??o acentuada): "o segundo n¨ªvel cont¨¦m aqueles pares nos

quais [os segmentos fon¨¦ticos que estabelecem a oposi??o] s?o

ACENTUADOS em pelo menos um membro da oposi??o" (Naro, 1981, p.74).

4

2a: envolve apenas mudan?a na qualidade da vogal na forma plural

- Os filho t¨¢0 pedindo dinhero (LEI04FP25/0055)

- Eles t?O bem intencionados (JOS35FP59/0962)

2b: envolve acr¨¦scimo de segmentos sem mudan?as voc¨¢licas na

forma plural; inclui o par foi/foram que perde a semivogal

- A¨ª bateu0 dois senhores na porta (NIL12FP45/0646)

- (eles) bateRU sete chapa da cabe?a dele (LEI04FP25/0084)

2c: envolve acr¨¦scimos de segmentos e mudan?as diversas na forma

plural: mudan?as voc¨¢licas na desin¨ºncia, mudan?as na raiz, e at¨¦

mudan?as completas.

- A¨ª, veio0 aqueles cara correno atr¨¢s de (ALE55MG13/0555)

- vIERAM os ladr?es, quatro, hum? (ARI30FG43/1665)

- Agora, os vizinho daqui ¨¦0 ¨®timo (EDP13MP62/0758)

- Mesmo aqueles que S?O sinceros (EDB07MP41/0334)

Na tabela 1 apresentamos os resultados obtidos com base nos dados de

nossa amostra, comparando-os aos resultados obtidos por Naro (1981).

Tabela 1

Marcas expl¨ªcitas de plural nos verbos em fun??o da vari¨¢vel sali¨ºncia

f?nica na oposi??o singular/plural

Fatores

N¨ªvel 1

1a.

1b.

1c.

N¨ªvel 2

2a.

2b.

2c.

Total

Nossos resultados

Naro (1981)

Freq¨¹¨ºncia

Pesos

Freq¨¹¨ºncia

Pesos

202/463 =44%

1159/1766=66%

188/267 =70%

0,16

0,37

0,38

110/755 =15%

763/2540=30%

99/273 =36%

0,11

0,26

0,35

585/718 =81%

212/260 =82%

1023/1158=88%

0,64

0,66

0,75

604/927 =65%

266/365 =73%

1160/1450=80%

0,68

0,78

0,85

3369/4632=73%

3002/6310=48

Como podemos ver na tabela 1, os resultados dos dois estudos s?o

extremamente semelhantes: os n¨ªveis mais baixos da hierarquia da sali¨ºncia

favorecem a concord?ncia menos do que os n¨ªveis mais altos. Relembramos

que os resultados de Naro (1981) se referem a dados de analfabetos e que os

nossos envolvem dados de falantes com 1 a 11 anos de escolariza??o, o que

faz com que estes resultados sejam particularmente not¨¢veis.

Todavia, os resultados da an¨¢lise de Naro (1981) evidenciam uma amplitude

de varia??o maior, apresentando uma separa??o mais n¨ªtida entre as diversas

categorias de cada um dos n¨ªveis. Sabemos que as duas an¨¢lises envolvem

5

diferen?as com rela??o a outras vari¨¢veis analisadas. Sendo assim,

consideramos oportuno apresentar uma outra etapa de an¨¢lise que separa os

informantes em termos dos anos de escolariza??o: 1 a 4; 5 a 8 e 9 a 11, a fim

de se procurar verificar se a nitidez da escala da sali¨ºncia tem alguma rela??o

com os n¨ªveis de escolariza??o dos falantes de nossa amostra. Vejamos estes

resultados na tabela 2.

Com base nos resultados obtidos, dois aspectos bem gerais merecem ser

destacados:

1) a regularidade absoluta que se verifica no efeito da sali¨ºncia f?nica na

sua primeira dimens?o: oposi??o n?o acentuada, desfavorecendo a

concord?ncia, vs. oposi??o acentuada, favorecendo a concord?ncia,

independentemente dos anos de escolariza??o do falante;

2) a separa??o n¨ªtida entre a primeira categoria da oposi??o n?o acentuada

(0,15; 0,18; 0,13 e 0, 11) e as outras duas categorias (0,35/0,40; 0,37/0,35;

0,39/0,36 e 0,26/0,35) para os quatros grupos de falantes.

Tabela 2

Marcas expl¨ªcitas de plural nos verbos em fun??o da vari¨¢vel sali¨ºncia f?nica na oposi??o singular/plural por anos de

escolariza??o dos falantes

Nossos resultados por anos de escolariza??o

1-4 anos de esc5-8 anos de esc.

9-11 anos de esc.

Freq¨¹¨ºncia

Pesos

Freq¨¹¨ºncia

Pesos

Freq¨¹¨ºncia

Naro (1981)

Pesos

Freq¨¹¨ºncia

Pesos

N1

1a. 58/192=30%

1b. 393/725=54%

1c. 64/110=58%

0,15

0,36

0,40

77/142=54%

466/652=71%

69/ 90=77%

0,18

0,37

0,35

67/129=52% 0,13

300/389=77% 0,39

55/ 67=82% 0,36

110/ 755=15% 0,11

763/2540=30% 0,26

99/ 273=36% 0,35

N2

2a. 161/227=71%

2b. 63/ 81=78%

2c. 386/452=85%

0,64

0,68

0,80

236/290=81%

108/132=82%

402/446=90%

0,58

0,64

0,74

188/201=94% 0,77

41/ 47=87% 0,67

235/260=90% 0,67

604/ 927=65% 0,68

266/ 365=73% 0,78

1160/1450=80% 0,85

886/1093=81

3002/6310=48%

1125/1787=63%

1358/1752=78%

Com rela??o ¨¤ influ¨ºncia da sali¨ºncia em termos escalares, podemos

observar que, para a concord?ncia verbal, a escala da sali¨ºncia ¨¦ mais n¨ªtida

nos dados dos falantes com menos anos de escolariza??o: a que Naro (1981)

apresenta para os falantes analfabetos. Observando os nossos resultados,

verificamos que os dados dos falantes que t¨ºm de 1 a 4 anos de escolariza??o

e de 5 a 8 apresentam tamb¨¦m uma escala de sali¨ºncia mais n¨ªtida do que os

dados dos falantes de 9 a 11 anos de escolariza??o. Al¨¦m disso, ¨¦ exatamente

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