A LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL - BVS

L ? N G U A S D O B R A S I L /A R T I G O S

A L?NGUA PORTUGUESA NO BRASIL

Eduardo Guimar?es

A l?ngua portuguesa formou-se como l?ngua espec?fica, na Europa, pela diferencia??o que o latim sofreu na Pen?nsula Ib?rica durante o processo de contatos entre povos e l?nguas que se deram a partir da chegada dos romanos no s?culo II a.C., por ocasi?o da segunda Guerra P?nica, no ano de 218 a.C(1). Na Pen?nsula Ib?rica o latim entrou em contato com l?nguas j? ali existentes. Depois houve o contato do latim j? transformado com as l?nguas germ?nicas, no per?odo de presen?a desses povos na pen?nsula (de 409 a 711 d.C). Em seguida, com a invas?o mul?umana (?rabes e berberes), esse latim modificado e j? em processo de divis?o entra em contato com o ?rabe. Na primeira fase do processo de reconquista da Pen?nsula Ib?rica pelos crist?os, que tinham resistido no norte, os romances (latim modificado por anos de contato com outros povos e l?nguas) tomaram uma fei??o espec?fica no oeste da pen?nsula, formando o galego-portugu?s e em seguida o portugu?s. Formou-se paralelamente o Condado Portugalense e, a partir dele, um novo pa?s, Portugal. Toma-se como data de independ?ncia do condado do reino de Castela e Le?o a batalha de S?o Mamede em 1128. Essa nova l?ngua, depois de um longo per?odo de mudan?as correspondente a todo o final da chamada Idade M?dia, ? transportada para o Brasil, assim como para outros continentes, no momento das grandes navega??es do final do s?culo XV e do s?culo XVI.

PORTUGU?S: L?NGUA OFICIAL E NACIONAL DO BRASIL Com o in?cio efetivo da coloniza??o portuguesa em 1532, a l?ngua portuguesa come?a a ser transportada para o Brasil. Aqui ela entra em rela??o, num novo espa?o-tempo, com povos que falavam outras l?nguas, as l?nguas ind?genas, e acaba por tornar-se, nessa nova geografia, a l?ngua oficial e nacional do Brasil. Podemos estabelecer para esta hist?ria quatro per?odos distintos, se consideramos como elemento definidor o modo de rela??o da l?ngua portuguesa com as demais l?nguas praticadas no Brasil (2) deste 1532 (3). O primeiro momento come?a com o in?cio da coloniza??o e vai at? a sa?da dos holandeses do Brasil, em 1654. Nesse per?odo o portugu?s convive, no territ?rio que ? hoje o Brasil, com as l?nguas ind?genas, com as l?nguas gerais e com o holand?s, esta ?ltima a l?ngua de um pa?s europeu e tamb?m colonizador. As l?nguas gerais eram l?nguas tupi faladas pela maioria da popula??o. Eram as l?nguas do contato entre ?ndios de diferentes tribos, entre ?ndios e portugueses e seus descendentes, assim como entre portugueses e seus descendentes. A l?ngua geral era assim uma l?ngua franca. O portugu?s, como l?ngua oficial do Estado portugu?s, era a l?ngua empregada em documentos oficiais e praticada por aqueles que estavam ligados ? administra??o da col?nia.

O segundo per?odo come?a com a sa?da dos holandeses do Brasil e vai at? a chegada da fam?lia real portuguesa no Rio de Janeiro, em 1808. A sa?da dos holandeses muda o quadro de rela??es entre l?nguas no Brasil na medida em que o portugu?s n?o tem mais a concorr?ncia de uma outra l?ngua de Estado (o holand?s). A rela??o passa a ser, fundamentalmente, entre o portugu?s, as l?nguas ind?genas, especialmente as l?nguas gerais, e as l?nguas africanas dos escravos. Esse per?odo caracteriza-se por ser aquele em que Portugal, dando andamento mais espec?fico ao processo de coloniza??o, toma tamb?m medidas diretas e indiretas que levam ao decl?nio das l?nguas gerais. A popula??o do Brasil, que era predominantemente de ?ndios, passa a receber um n?mero crescente de portugueses assim como de negros que vinham para o Brasil como escravos. Para se ter uma id?ia, no s?culo XVI foram trazidos para o Brasil 100 mil negros. Este n?mero salta para 600 mil no s?culo XVII e 1,3 milh?o no s?culo XVIII. O espa?o de l?nguas do Brasil passa a incluir tamb?m a rela??o das l?nguas africanas dos escravos e o portugu?s. Com o maior n?mero de portugueses cresce tamb?m o n?mero de falantes espec?ficos do portugu?s. E isto tem uma outra caracter?stica: os portugueses que v?m para o Brasil n?o v?m da mesma regi?o de Portugal. Desse modo, passam a conviver no Brasil, num mesmo espa?o e tempo, divis?es do portugu?s que, em Portugal, conviviam como dialetos de regi?es diferentes. Nesse per?odo, ainda, h? dois fatos de extrema import?ncia. O primeiro deles ? a a??o direta do imp?rio portugu?s que age para impedir o uso da l?ngua geral nas escolas. Esta a??o ? uma atitude direta de pol?tica de l?nguas de Portugal para tornar o portugu?s a l?ngua mais falada do Brasil. Uma dessas a??es mais conhecidas ? o estabelecimento do Diret?rio dos ?ndios (1757), por iniciativa do Marqu?s de Pombal, ministro de Dom Jos? I, que proibia o uso da l?ngua geral na col?nia. Assim, os ?ndios n?o poderiam mais usar nenhuma outra l?ngua que n?o a portuguesa. Essa a??o, junto com o aumento da popula??o portuguesa no Brasil, ter? um efeito espec?fico que ajuda a levar ao decl?nio definitivo da l?ngua geral no pa?s (4). O portugu?s que j? era a l?ngua oficial do Estado passa a ser a l?ngua mais falada no Brasil. O terceiro momento do portugu?s no Brasil come?a com a vinda da fam?lia real em 1808, como conseq??ncia da guerra com a Fran?a, e termina com a independ?ncia. Poder?amos utilizar, como data final desse per?odo, 1826, pois ? nesse ano que se formula a quest?o da l?ngua nacional do Brasil no parlamento brasileiro. A vinda da fam?lia real ter? dois efeitos importantes. O primeiro deles ? um aumento, em curto espa?o de tempo, da popula??o portuguesa no Brasil. Chegaram ao Rio de Janeiro em torno de 15 mil portugueses. O segundo ? a transforma??o do Rio de Janeiro em capital do Imp?rio que traz novos aspectos para as rela??es sociais em territ?rio brasileiro, e isto inclui tamb?m a quest?o da l?ngua. Logo de in?cio Dom Jo?o VI criou a imprensa no Brasil e fundou a Biblioteca Nacional, mudando o quadro da vida cultural brasileira, e dando ? l?ngua portuguesa aqui um instrumento direto de circula??o, a imprensa. Esses fatos produzem um certo efeito de unidade do portugu?s para o Brasil, enquanto l?ngua do rei e da corte.

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O quarto per?odo come?a em 1826. Nesse ano o deputado Jos? Cle- de l?nguas, diferentemente das l?nguas ind?genas e africanas. As l?n-

mente prop?s que os diplomas dos m?dicos no Brasil fossem redigi- guas dos imigrantes eram l?nguas de povos considerados civilizados,

dos em "linguagem brasileira". Em 1827 houve um grande n?mero em oposi??o ?s l?nguas ind?genas e africanas.

de discuss?es sobre o fato de que os professores deveriam ensinar a Enquanto l?ngua oficial e l?ngua nacional do Brasil, o portugu?s ?

ler e a escrever utilizando a gram?tica da l?ngua nacional. Ou seja, a uma l?ngua de uso em todo o territ?rio brasileiro, sendo tamb?m a

quest?o da l?ngua portuguesa no Brasil, que j? era l?ngua oficial do l?ngua dos atos oficiais, da lei, a l?ngua da escola e que convive, na

Estado, se p?e agora como uma forma de transform?-la de l?ngua do extens?o do territ?rio brasileiro, com um grande conjunto de outras

colonizador em l?ngua da na??o brasileira. Temos a? constitu?da a l?nguas (de um lado as l?nguas ind?genas e de outro as l?nguas de imi-

sobreposi??o da l?ngua oficial e da l?ngua nacional.

grantes). Por outro lado, enquanto l?ngua nacional, o portugu?s ?

Essas quest?es tomam espa?os importantes tanto na literatura significado como a l?ngua materna de todos os brasileiros, mesmo

quanto na constitui??o de um conhecimento brasileiro sobre o por- que um bom n?mero de brasileiros tenham como l?ngua materna

tugu?s no Brasil. ? dessa ?poca a literatura de Jos? de Alencar (5) que outras l?nguas, ou ind?genas ou de imigrantes.

tem debates importantes com escritores portugueses que n?o aceita-

vam o modo como ele escrevia. ? tamb?m dessa ?poca o processo CARACTER?STICAS DO PORTUGU?S DO BRASIL A vinda da l?ngua por-

pelo qual os brasileiros tiveram legitimadas suas gram?ticas para o tuguesa para o Brasil n?o se deu, como vimos, em um s? momento.

ensino de portugu?s e seus dicion?rios (6). Dessa maneira cria-se Ela se deu durante todo o per?odo de coloniza??o entrando em rela-

historicamente no Brasil o sentido de apropria??o do portugu?s ??o constante com outras l?nguas. Por outro lado, o povoamento do

enquanto uma l?ngua que tem as marcas de sua rela??o com as con- Brasil se fez com a vinda de portugueses de todas regi?es de Portu-

di??es brasileiras. Pela hist?ria de suas rela??es com outro espa?o de gal. Desse modo, sua vinda para o Brasil traz para esse novo espa?o

l?nguas, o portugu?s, ao funcionar em novas condi??es e nelas se as diversas variedades do portugu?s de Portugal. Estas variedades se

relacionar com l?nguas ind?genas, l?ngua geral, l?n-

instalar?o em lugares diferentes do Brasil mas, em

guas africanas, se modificou de modo espec?fico e os

muitos casos, elas convivem num mesmo espa?o,

gram?ticos e lexic?grafos brasileiros do final do

AS L?NGUAS

como no Rio de Janeiro, por exemplo.

s?culo XIX, junto com nossos escritores, trabalham o "sentimento" do portugu?s como l?ngua nacional do Brasil (7). Esse quarto per?odo, no qual o portugu?s j? se defi-

IND?GENAS E SEUS FALANTES

J? EXISTIAM

O portugu?s do Brasil vai, com o tempo, apresentar um conjunto de caracter?sticas n?o encontr?veis, em geral, no portugu?s de Portugal, da mesma maneira que o portugu?s, em diversas outras

nira como l?ngua oficial e nacional do Brasil, trar?

NO BRASIL

regi?es do mundo, ter? caracter?sticas tamb?m

uma outra novidade, o in?cio das rela??es entre o

QUANDO DA

espec?ficas, em virtude das condi??es novas em que

portugu?s e as l?nguas de imigrantes. Come?a em 1818/1820 o processo de imigra??o para o Brasil, com a vinda de alem?es para Ilh?us (1818) e Nova

CHEGADA DOS PORTUGUESES

a l?ngua passou a funcionar. H? que se considerar que, se levamos em conta a l?ngua escrita, vamos encontrar uma maior proximidade entre o portu-

Friburgo (1820). Esse processo de imigra??o ter?

gu?s do Brasil, assim como o de outras regi?es do

um momento muito particular na passagem do s?culo XIX para o mundo, com o portugu?s de Portugal, j? que a l?ngua escrita est?

XX (1880-1930). A partir desse momento entraram no Brasil, por mais sujeita ? normatiza??o da l?ngua efetivada atrav?s das gram?ti-

exemplo, falantes de alem?o, italiano, japon?s, coreano, holand?s, cas normativas, dicion?rios e outros instrumentos reguladores da

ingl?s. Deste modo o espa?o de enuncia??o do Brasil passa a ter, em l?ngua. Na l?ngua oral o processo de incorpora??o de caracter?sticas

torno da l?ngua oficial e nacional, duas rela??es significativamente espec?ficas se faz de modo mais r?pido.

distintas: de um lado as l?nguas ind?genas (e num certo sentido as Meu objetivo n?o ?, neste texto, discutir essas diferen?as internas, mas

l?nguas africanas dos descendentes de escravos) e de outro as l?nguas mostrar como o portugu?s do Brasil apresenta um conjunto impor-

de imigra??o.

tante de caracter?sticas espec?ficas. A seguir, vou apresentar um con-

Essa diferen?a n?o ? simplesmente uma diferen?a emp?rica do tipo: junto destas caracter?sticas encontr?veis no portugu?s do Brasil. Vou

as l?nguas ind?genas e seus falantes j? existiam no Brasil quando da me limitar a apresentar aqui o que chamarei de diferen?as gramaticais

chegada dos portugueses e as l?nguas de imigra??o vieram depois. A e lexicais (de vocabul?rio). Evidentemente que a caracteriza??o do

diferen?a ? de modo de rela??o. As l?nguas ind?genas e africanas portugu?s do Brasil envolve a considera??o efetiva das diversas divi-

entram na rela??o como l?nguas de povos considerados primitivos a s?es a que a l?ngua portuguesa est? sujeita no Brasil, tanto regionais

serem ou civilizados (no caso dos ?ndios) ou escravizados (no caso quanto sociais e hist?ricas (tal como mostram o artigo "Variedades do

dos negros). Ou seja, n?o h? lugar para essas l?nguas e seus falantes. portugu?s no mundo e no Brasil" de Em?lio Pagotto, para a quest?o

No caso da imigra??o, as l?nguas e seus falantes entram no Brasil por das diferen?as na l?ngua, e o artigo "L?ngua brasileira" de Eni Orlandi,

uma a??o de governo que procurava coopera??o para desenvolver o sobre os aspectos discursivos envolvidos nessa quest?o).

pa?s. E as l?nguas que v?m com os imigrantes eram, de algum modo, Nas caracter?sticas gramaticais podemos distinguir dois conjuntos

l?nguas nacionais ou oficiais nos pa?ses de origem dos imigrantes. de caracter?sticas: o das caracter?sticas fon?tico-fonol?gicas, o das

Essas l?nguas s?o l?nguas legitimadas no conjunto global das rela??es caracter?sticas morfol?gicas e sint?ticas.

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CARACTER?STICAS FON?TICO-FONOL?GICAS Neste n?vel, a grande especificidade do portugu?s do Brasil, se comparado ao de Portugal, considerando o que Pagotto nos mostra no seu texto, ? seu sistema de vogais. Para observar esse aspecto ? necess?rio distinguir, tal como nos mostrou C?mara (1953, 1970) a vogal na posi??o t?nica (da s?laba com acento de intensidade), a vogal na posi??o ?tona final (como o /a/ de fuga), e a vogal na posi??o pret?nica (como o /a/ de at?). a) Na posi??o t?nica, o portugu?s do Brasil apresenta 7 vogais: /a/ (entrada); /?/ (deve), /?/ (medo), /i/ (viga); /?/ (av?), /?/ (av?), /u/ (urubu). Note-se que a vogal /a/ ? pronunciada, com timbre aberto, com a l?ngua em repouso embaixo, na boca; que as vogais /?/, /?/, /i/ s?o anteriores, elas s?o pronunciadas com um movimento da l?ngua para frente; e as vogais /?/, /?/, /u/ s?o posteriores, pronunciadas com um movimento da l?ngua para tr?s. Em Portugal (8), al?m dessas vogais, h? tamb?m um /?/, que n?o ? aberto como o /a/. Este /?/ ? pronunciado com uma certa eleva??o da l?ngua, diferentemente do /a/ aberto pronunciado com l?ngua em repouso, embaixo na boca. Assim ? que, na l?ngua falada, se distingue /fal?mos/, presente do indicativo, de /falamos/ passado perfeito (9). b) Na posi??o ?tona final, no portugu?s do Brasil, de modo geral, h? tr?s vogais /a/ (casa), /i/ (barbante, pronunciado [barb?ti]), /u/ (menino, pronunciado [meninu] e mesmo [mininu]). Em Portugal s?o tamb?m tr?s vogais, /?/, /?/ e /u/. Assim diferentemente do Brasil, /?/ ? pronunciado com a l?ngua mais alta, com timbre mais fechado, /?/ ? pronunciado fechado, mas numa posi??o mais posterior do que o /?/ do Brasil. O /u/ tem as mesmas caracter?sticas fon?ticas do /u/ brasileiro. c) Na posi??o pret?nica, h? no portugu?s do Brasil, em geral, 5 vogais, /a/, /?/, /i/, /?/, /u/, enquanto que em Portugal mant?m-se as 8 vogais da posi??o t?nica, com a diferen?a de que o /?/ passa a /?/, numa pron?ncia mais central: /a/, /?/; /?/, /?/, /i/; /?/, /?/, e /u/.

CARACTER?STICAS MORFOL?GICAS E SINT?TICAS No n?vel sint?tico, uma primeira caracter?stica geral do portugu?s do Brasil ? que ele, no que toca ao funcionamento dos pronomes ?tonos (me, te, se, lhe, o, a, etc) tem uma coloca??o mais procl?tica, n?o sendo encontr?vel em Portugal, por exemplo, Jo?o se levantou, t?o comum no Brasil. Isto faz com que toda a coloca??o de pronomes ?tonos no Brasil seja bastante diferente da de Portugal. Este tipo de diferen?a tem muito a ver com o fato de que as diferen?as fon?tico-fonol?gicas, apontadas antes, levam a um outro ritmo da frase, assim como uma diferen?a de tonicidade nesses pronomes. Isto resulta em um outro modo de coloc?-los na frase, tal como j? nos mostrou Ali (1908). No Brasil ? tamb?m comum constru??es como est? escrevendo, com estar + ger?ndio, n?o comum em Portugal, onde se encontram express?es como est? a escrever, com estar a + infinitivo. ? tamb?m comum no Brasil express?es com a preposi??o em, que em Portugal s?o com a preposi??o a. Tem-se, comumente no Brasil, est? na janela, chegou no Brasil, quando em Portugal se tem est? ? janela, chegou ao Brasil. Segundo Galves (2002), a principal caracter?stica sint?tica do portugu?s do Brasil, ? que ele ? uma l?ngua de t?pico, diferentemente do portugu?s de Portugal e das demais l?nguas latinas (10). Esta posi??o se desenvolve a partir de uma formula??o de Pontes (1987) que mos-

trou como muitas constru??es do portugu?s no Brasil precisam ser entendidas como constru??es com t?pico. Para apresentar a formula??o de Galves usaremos as abrevia??es SN e V que significam sintagma nominal e verbo. Um sintagma ? um elemento ling??stico de n?vel inferior ao da frase e que possui na sua forma elementos ling??sticos de n?vel sint?tico ainda mais baixo, em geral ele combina pelo menos dois elementos. No caso do SN (sintagma nominal), o sintagma ? constitu?do pelo menos por um nome e tem geralmente pelo menos um determinante para este nome, como em o menino, onde menino ? o nome e o ? o determinante e o menino ? o SN. A no??o de verbo, para o que aqui nos interessa, ? a que usualmente conhecemos. Dito isto, para Galves, a frase do portugu?s do Brasil tem como estrutura SN [SN V (SN), diferentemente do portugu?s de Portugal e as l?nguas latinas em geral, que t?m como estrutura da frase SN [V (SN). O colchete separa o que se apresenta como o que se diz do primeiro SN. Para entender essa diferen?a, consideremos duas frases: Jo?o fez o trabalho e Jo?o, ele fez o trabalho. Na primeira, com a palavra Jo?o referese a algu?m (Jo?o) e predica-se dele algo, fez o trabalho. Neste caso, Jo?o que faz a refer?ncia a uma pessoa ? tamb?m o sujeito da frase. Na segunda frase, Jo?o refere algu?m, depois tem-se como sujeito o pronome ele, que retoma Jo?o (anaforiza Jo?o) do qual se predica fez o trabalho. Deste modo a seq??ncia sujeito+predicado (ele fez o trabalho) aparece no conjunto como dizendo algo de Jo?o, referido pela palavra Jo?o. Nesta segunda frase, Jo?o ? o t?pico, aquilo sobre o que se vai dizer algo. Diferentemente, na primeira frase, aquilo sobre o que se vai dizer algo ? diretamente o sujeito da frase. A tese de Galves ? que a estrutura sint?tica do portugu?s ? do tipo da segunda frase que aqui usamos como exemplo: Jo?o, ele fez o trabalho. Segundo a autora ? esta caracter?stica que explica um conjunto importante de aspectos pr?prios do portugu?s brasileiro, tal como os que seguem. a)uso do pronome ele como objeto Em Portugal esta ? uma constru??o inexistente. ? comum no Brasil frases como Encontrei ele ontem; esse rapaz, eu conheci ele no trem; esse rapaz a? que eu encontrei ele no trem. Nestas frases ele ? complemento da frase, diferentemente de Portugal onde esta constru??o, normalmente, n?o aparece. b)ele como sujeito O funcionamento do ele como sujeito ? diferente em Portugal e no Brasil. No Brasil temos, por exemplo, eu tinha uma empregada que ela respondia ao telefone e dizia..., enquanto em Portugal o que se encontra ? somente algo como eu tinha uma empregada que respondia ao telefone e dizia... Para Galves esta diferen?a diz respeito a que no portugu?s do Brasil o ele aparece preferencialmente ao sujeito nulo (que na escola conhecemos como sujeito oculto), diferentemente do portugu?s de Portugal, onde aparece preferencialmente o sujeito nulo e em que o ele aparece quando ? necess?rio marcar a concord?ncia, j? que a termina??o verbal ? a mesma entre a primeira e a terceira pessoa, ou para estabelecer um contraste. c)ele como objeto de preposi??o No Brasil ? comum frases como o Andr?, que eu gosto dele, ? mais bonito, enquanto em Portugal s? se encontram frases como o Andr? de quem

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eu gosto. Este aspecto est? diretamente relacionado com o funcionamento das relativas no portugu?s brasileiro. Tal funcionamento no Brasil se caracteriza por ter uma predomin?ncia de relativas com este pronome que retoma um nome da principal (chamado pronome lembrete, o ele (dele) do primeiro exemplo acima), e ? predominante quando a retomada est? em sintagma preposicional, conforme mostrou Tarallo (1996). Este funcionamento predominante no Brasil ? oposto ao predominante em Portugal, onde o mais comum ? o de constru??es como O Andr?, de quem eu gosto, ? mais bonito. Este aspecto est? ligado ao crescimento no portugu?s do Brasil de um outro funcionamento da relativa que se chama de relativa cortadora, como em ? uma pessoa que essas besteiras que a gente fica se preocupando, ela n?o fica esquentando a cabe?a. Em Portugal a constru??o encontr?vel seria ? uma pessoa que n?o fica esquentando a cabe?a com estas besteiras que nos preocupam. No portugu?s do Brasil hoje h? a predomin?ncia das constru??es relativas com pronome lembrete e relativas cortadoras. As an?lises de Tarallo (idem) mostram que essa diferen?a entre o funcionamento do portugu?s do Brasil e de Portugal j? est? instalada claramente em 1880 e se aprofunda a partir de ent?o. Assim hoje ? predominante o que no in?cio do s?culo XIX (1825, por exemplo) era o menos comum. Ao lado desses aspectos, Galves tamb?m considera uma outra caracter?stica muito interessante do portugu?s do Brasil: O funcionamento do pronome se. Para a autora, no portugu?s brasileiro o se pode n?o aparecer em frases com tempo (o verbo nas formas finitas), diferentemente do portugu?s europeu. No Brasil h? frases como Nos nossos dias, n?o usa mais saia; Esta camisa lava facilmente; Joana n?o matriculou ainda; Maria fez a lista dos convidados mas esqueceu de incluir ela; ? imposs?vel se achar lugar aqui, enquanto em Portugal s? h? frases como N?o se usa mais saia; Esta camisa lava-se facilmente; Joana n?o se matriculou ainda; Maria fez a lista dos convidados mas esqueceu de se incluir. Interessante para a ling?ista ? que, em contrapartida, em frases com infinitivo, no Brasil, aparece consistentemente a forma se para indeterminar, em oposi??o a Portugal onde este se n?o aparece da mesma maneira. Tem-se no Brasil ? imposs?vel se achar lugar aqui, enquanto em Portugal haveria somente ? imposs?vel achar lugar aqui. O que ? interessante nessa an?lise de Galves ? que ela n?o s? registra a exist?ncia de constru??es diferentes, que poderiam ser atribu?das a uma mera diferen?a de uso de uma ou outra pessoa, em uma ou outra situa??o, como mostra que essa diferen?a nas frases diz respeito a uma especificidade na estrutura mesma da sintaxe do portugu?s do Brasil, ter a estrutura SN [SN V (SN). Ser, portanto, uma l?ngua de t?pico. Ligada a essa diferen?a na estrutura sint?tica da frase, Galves nos mostra como ela est? ligada a um aspecto sem?ntico fundamental, o modo como o portugu?s do Brasil faz refer?ncia ?s coisas sobre ?s quais se fala. Observe que se tomamos a frase do portugu?s do Brasil Eu tinha uma empregada que ela respondia ao telefone e dizia... vemos que o ela retoma diretamente empregada, desfazendo o car?ter anaf?rico do que (relativo), diferentemente de, por exemplo, Eu tinha uma empregada que atendia o telefone e dizia..., na qual o que mant?m seu car?ter anaf?rico. Em cada caso o modo de referir ? empregada ? um.

Ou seja, o fato de o portugu?s ter uma estrutura de t?pico para suas frases diz respeito ao modo como no Brasil se faz refer?ncia ?s coisas, ou seja, diz respeito a como, num acontecimento enunciativo espec?fico, refere-se a algo. Em outras palavras, esta caracter?stica de estrutura da frase est? diretamente articulada a um modo de funcionamento sem?ntico-enunciativo, outros diriam sem?ntico-pragm?tico, do portugu?s no Brasil. Enfim, Galves nos mostra que o portugu?s do Brasil tem uma estrutura e funcionamento diversos do portugu?s de Portugal e das outras l?nguas latinas. E esta n?o deixa de ser uma quest?o a ser estudada no quadro do multiling?ismo brasileiro.

CARACTER?STICAS DO L?XICO Desde o in?cio do s?culo XIX, com o Marqu?s de Pedra Branca, se usa o estudo do l?xico para mostrar diferen?as entre o portugu?s do Brasil e o portugu?s de Portugal (11). Essas diferen?as dizem respeito ao fato de que, no Brasil, muitas palavras tomaram outros sentidos ou foram incorporadas ao portugu?s a partir das l?nguas ind?genas e africanas, com as quais o portugu?s esteve e est? em rela??o. Podemos observar palavras que t?m um sentido em Portugal e outro no Brasil, a partir de exemplos retirados de Teyssier (1997)

PORTUGAL comboio autocarro el?ctrico hospedeira caneta de tinta permanente corta-papeles fato metro

BRASIL trem ?nibus bonde aeromo?a caneta-tinteiro p?tula terno metr?

Por outro lado, h? no Brasil um conjunto importante de palavras de origem ind?gena, comumente o tupi, assim como de origem africana, os exemplos s?o tamb?m tirados de Teyssier (idem). Exemplos de palavras de origem ind?gena: capim, cupim, caatinga, curumim, guri, buriti, carna?ba, mandacaru, capivara, curi?, sucuri, piranha, urubu, mingau, moqueca, abacaxi, caju, Tijuca, etc. S?o, em geral, palavras relativas ? designa??o da flora, da fauna, de alimentos, assim como de lugares. Exemplos de palavras de origem africana: ca?ula, cafun?, molambo, moleque; orix?, vatap?, abar?, acaraj?; bang??; senzala, mocambo, maxixe, samba. S?o, em geral, palavras que designam elementos do candombl?, da cozinha de influ?ncia africana, do universo das planta??es de cana, do universo de vida dos escravos, e mesmo outros de aspecto mais geral. Grandes listas de palavras dessas l?nguas que se incorporaram ao portugu?s podem ser encontradas em diversos livros de ling??stica hist?rica do portugu?s como Silva Neto (1950), Bueno (1946, 1950) e Coutinho (1936).

CONSIDERA??ES FINAIS V?rias outras caracter?sticas podem ser atribu?das ao portugu?s do Brasil, mas a melhor forma de tratar disso ? observar o modo como o portugu?s se divide em falares regionais espec?ficos ou registros distintos de acordo com situa??es particula-

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res do funcionamento da l?ngua, como o formal ou o coloquial, o ?ntimo e o p?blico, etc. Por outro lado, fica claro que o estudo do portugu?s do Brasil indica para a necessidade de se aprofundarem pesquisas hist?ricas que d?em mais relevo ? quest?o das rela??es do portugu?s num espa?o multil?ng?e muito particular.

NOTAS

1. Gerras P?nicas foram as tr?s guerras entre Roma e Cartago (os fen?cios) que se deram entre 246 e 146 a.C.

2. Esta rela??o ? uma rela??o pol?tica e constitui espa?os de enuncia??o (Guimar?es 2002). Estes espa?os se caracterizam por distribu?rem as l?nguas para seus falantes. Nesta medida o falante ? uma categoria social e pol?tica determinada por estes espa?os de enuncia??o.

3. A hist?ria do portugu?s no Brasil tem sido objeto de bom n?mero de trabalhos. Um texto de refer?ncia sobre esse aspecto tem sido Introdu??o ao estudo da l?ngua portuguesa no Brasil (Silva Neto, 1950).

4. Sobre esta quest?o ver Mariani (2001) e Mariani (2004). 5. Jos? de Alencar (1829-1877) teve um debate particular com Pinheiro

Chagas sobre aspectos de l?ngua a prop?sito do livro Iracema (1865). 6. Sobre a autoria brasileira de gram?tica ver Orlandi (2000). 7. Uma discuss?o mais detalhada destses aspectos pode ser encon-

trada em Orlandi e Guimar?es (1998), Guimar?es (2004), Orlandi (2002) e Orlandi ? (org. 2001). 8. Ver a este respeito Teyssier (1967, p. 68-77). 9. Interessante notar que esta distin??o se d?, tamb?m, em algumas regi?es do Brasil. 10. As l?nguas latinas (ou rom?nicas) s?o as que t?m como origem a l?ngua latina: portugu?s, espanhol, catal?o, franc?s, italiano, r?tico, sardo, romeno. 11. Este aspecto do texto do marqu?s pode ser encontrado em Pinto (1978). Sobre o l?xico brasileiro ver Nunes e Petter (orgs. 2002).

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