IDENTIDADES CULINÁRIAS: OS LIVROS DE RECEITAS E A

ANPUH-Brasil - 30? SIMP?SIO NACIONAL DE HIST?RIA - Recife, 2019

IDENTIDADES CULIN?RIAS: OS LIVROS DE RECEITAS E A "FOLCLORIZA??O" DAS COZINHAS REGIONAIS NO BRASIL (1928-1967)

Viviane Soares Aguiar Doutoranda em Hist?ria Social na Universidade de S?o Paulo

vivsaguiar@usp.br

Embora sejam tratadas, no senso comum, como express?es "naturais" da realidade brasileira, a "cozinha mineira", a "cozinha baiana", a "cozinha paraense" e todas as outras cozinhas associadas a regi?es do pa?s integram o processo de constru??o da identidade nacional (DUTRA, 2004; D?RIA, 2014). Mais do que "sistemas culin?rios" estruturados pela inter-rela??o de elementos como os processos de obten??o, sele??o, preparo e apresenta??o de alimentos (GON?ALVES, 2007), as cozinhas regionais constituem (e s?o constitu?das a partir de) uma realidade simb?lica, formada e estabelecida em meio ? intelectualidade. Ao longo do s?culo XX, estiveram sob o foco de ensaios e publica??es que visavam configur?-las de acordo com certas receitas e certos ingredientes, mas tamb?m segundo narrativas identit?rias que desejavam consolidar.

Os livros de receitas regionais foram publica??es privilegiadas no sentido de constru??o pol?tica dessas identidades. No contexto franc?s, Julia Csergo (1998) observou que a emerg?ncia desse tipo de publica??o se deu, sobretudo, a partir de 1789, quando se percebeu a exist?ncia de uma "grande cozinha" em Paris, favorecida pela pompa da monarquia absolutista, em oposi??o ? culin?ria praticada pelo povo, nas zonas rurais, amparada pelas produ??es locais e at? ent?o pouco mencionada em livros e tratados de cozinha. A partir do movimento revolucion?rio, que redefiniu a rela??o entre Paris e as prov?ncias, "as cozinhas e as especialidades alimentares regionais se libertam dos limites geogr?ficos e sociais nos quais estavam mergulhadas, emergem como sinal distintivo da localidade e tornam-se um elemento not?vel da na??o em sua diversidade de representa??es" (CSERGO, 1998, p. 809). Estaria, portanto, em um marco pol?tico o in?cio de uma defini??o de quais seriam as cozinhas regionais francesas.

Tamb?m nos Estados Unidos, a historiadora Megan Elias (2017) percebeu um momento pol?tico como o impulsionador para a delimita??o da cozinha regional sulista, at? hoje identificada como um s?mbolo de fartura e do aut?ntico "sabor americano".

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Segundo ela, foi depois da Guerra de Secess?o (1861-1865) que surgiu uma prol?fica produ??o de livros de receitas dos estados do Sul, que, na condi??o de defensores do sistema de plantations e da conserva??o da m?o de obra escrava, haviam perdido o embate para os estados do Norte, marcados pela crescente industrializa??o e pela campanha abolicionista. Essas publica??es sulistas teriam aparecido, ent?o, como artimanhas para a revaloriza??o da regi?o perdedora, reposicionando-a em um lugar de destaque na hist?ria americana.

No cat?logo da Biblioteca do Congresso, Elias encontrou pelo menos doze livros de receitas sulistas publicados entre 1865 e 1885, todos com ensaios introdut?rios que evocavam a nostalgia por um passado recente em que a presen?a de in?meros escravos na cozinha viabilizava a realiza??o de longos preparos e o uso de ingredientes frescos, cultivados ou processados nas pr?prias fazendas. Para Elias, esses livros agiram na forma??o do imagin?rio da chamada "causa perdida" ("Lost Cause"), a hist?ria propagada pelos perdedores depois da guerra, centrada na ideia de que a verdadeira causa sulista n?o teria sido pol?tica nem econ?mica, mas moral. Era em favor dos valores do passado e das tradi??es que se havia lutado; com a derrota para o Norte progressista, por?m, tudo isso tenderia a se perder, inclusive a "boa" culin?ria, dando origem ao que a autora chamou de lenda da "cozinha perdida" ("Lost Cuisine").

This legend of Southern honor framed the War as a contest between the noble South, steeped in tradition and honoring relationships between people, and the brutal North, focused on technological progress and financial gain. Southern-themed cookbooks painted an amiable picture of slavery in the region's history and established their own legend of the "Lost Cuisine." (ELIAS, 2017, p. 24)

Foi dessa forma que, segundo a historiadora, se criou um discurso de "comida boa e farta" associada ? identidade sulista, que se repetiu e se reafirmou a cada novo livro de receitas. Assim como os derrotados da Guerra Civil Americana constru?ram a lenda da "cozinha perdida", que pode ser entendida como uma tentativa de recupera??o do prest?gio sulista anterior ao combate, no Brasil, a perda da hegemonia pol?tica do Nordeste para o poder olig?rquico de S?o Paulo e Minas Gerais na Primeira Rep?blica deu origem ao regionalismo que, da maneira como foi formulado por Gilberto Freyre, tamb?m se expressou pela ideia de uma "cozinha perdida".

Da temporada de estudos na Europa e nos Estados Unidos, o jovem Gilberto Freyre (1900-1987) trouxe a teoria culturalista de Franz Boas, mas tamb?m a influ?ncia

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das ideias regionalistas dos franceses Mistral e Maurras (FERREIRA, 2008) e de intelectuais sulistas americanos, como Francis Butler Simkins, estudioso da hist?ria da Carolina do Sul (FREYRE, 1996 [1952], p. 47), que certamente contribuiu para a forma??o de seu pensamento sobre o regionalismo e a culin?ria, al?m da motiva??o para publicar o segundo livro de receitas regionais do Brasil, A??car: algumas receitas de bolos e doces dos engenhos do Nordeste, em 1939. Antes dele, Manuel Querino (18511923) havia escrito no in?cio da d?cada de 1920 o pioneiro A arte culin?ria na Bahia (publicado postumamente, em 1928), alegando que procurava, ent?o, corrigir a maneira "errada" como havia encontrado certos pratos baianos fora da Bahia, seu estado de origem.

A publica??o de Querino deu in?cio a uma s?rie de livros de receitas sobre a cozinha baiana,1 que parece ter sido a primeira cozinha regional a atrair a aten??o dos intelectuais brasileiros. Este interesse estava muito atrelado ?s teorias raciais em debate ainda no in?cio do s?culo XX, que havia, inclusive, motivado o esfor?o do autor em exaltar a participa??o negra na forma??o de uma culin?ria e de uma identidade que n?o seriam apenas baianas, mas tamb?m brasileiras. Na introdu??o do livro de receitas, ele j? afirmava que "a Bahia encerra a superioridade, a excellencia, a primazia, na culin?ria do paiz" (QUERINO, 1928, p. 23) exatamente porque o elemento africano teria "alterado" as iguarias portuguesas e criado uma cozinha regional capaz de expressar tamb?m um car?ter nacional.

Esta continuidade entre regional e nacional, subentendida na obra de Manuel Querino, ? uma caracter?stica que, hoje, nos permite arriscar a aproxim?-lo de um ide?rio modernista que se desenvolvia naquela mesma d?cada de 1920 (D?RIA, 2006). Assim como o autor baiano, o paulista M?rio de Andrade (1893-1945) tamb?m tinha uma vis?o nacionalizante da cultura brasileira que se contrapunha ao regionalismo do pernambucano Gilberto Freyre, em que se percebia mais uma tens?o do que uma fluidez entre as ideias de regional e nacional.

Em 1939, Freyre publicou o j? referido A??car, que, embora tenha se tornado conhecido como uma an?lise sociol?gica da cozinha brasileira, foi lan?ado como um livro de receitas, com uma introdu??o de vi?s ensa?stico e uma se??o de receitas que ocupavam espa?os semelhantes. A publica??o foi, certamente, um produto do Manifesto

1 Em 1939, o jornalista Sodr? Vianna publicou Caderno de Xang?: 50 receitas da cosinha bahiana do litoral e do nordeste e, em 1948, foi a vez de Darwin Brand?o, com Cozinha baiana. Em 1955, a folclorista Hildegardes Vianna escreveu A cozinha bahiana: seu folclore, suas receitas, pouco antes da reedi??o da obra pioneira de Querino, A arte culin?ria na Bahia.

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regionalista de 1926,2 em que o autor havia usado a culin?ria como eixo de seu discurso em prol da retomada dos valores tradicionais que compunham uma identidade regional formada em meio ? sociedade patriarcal do per?odo colonial, quando o Nordeste prosperava com a economia a?ucareira e detinha a hegemonia em ?mbito nacional (NEEDELL, 1995). O Manifesto reivindicava uma "nova organiza??o do pa?s", que se daria por uma nova demarca??o de fronteiras da regi?o Nordeste, contornada pela exalta??o de suas tradi??es.

Na percep??o de Gilberto Freyre, a culin?ria era uma dessas tradi??es e parecia estar em processo de perda. Ele afirmava, em seu discurso, ter se espantado ao encontrar nos caf?s do Recife comidas afrancesadas no lugar de ?gua de coco, arroz-doce, mungunz? e tapioca. Nas palavras dele: "Toda essa tradi??o est? em decl?nio ou, pelo menos, em crise no Nordeste. E uma cozinha em crise significa uma civiliza??o inteira em perigo: o perigo de descaracterizar-se" (FREYRE, 1996 [1952], p. 67). Em A??car, ele reafirmou esse ide?rio da perda, considerando a "arte do doce e do bolo dos engenhos do Nordeste" como a "arte mais autenticamente brasileira", porque fundada em meio ? sociedade patriarcal dos ?ureos tempos. Para Freyre, assim como nos livros de receitas do Sul dos Estados Unidos calcados na ideia de uma "cozinha perdida", a forma??o dessa do?aria nordestina, que corria o risco de desaparecer, estava diretamente atrelada ? escravid?o.

Sem a escravid?o n?o se explica o desenvolvimento, no Brasil, de uma arte de doce, de uma t?cnica de confeitaria, de uma est?tica de mesa, de sobremesa e de tabuleiro t?o cheias de complica??es e at? de sutilezas e exigindo tanto vagar, tanto lazer, tanta demora, tanto trabalho no preparo e no enfeite dos doces, dos bolos, dos pratos, das toalhas e das mesas. S? o grande lazer das sinh?s ricas e o trabalho f?cil das negras e das molecas explicam as exig?ncias de certas receitas das antigas fam?lias das casas-grandes e dos sobrados; receitas quase imposs?veis para os dias de hoje. (FREYRE, 2007 [1939], p. 70)

Como j? havia destacado em trabalhos anteriores, a escravid?o tinha um peso decisivo na alimenta??o do sistema patriarcal que conformou a cozinha pernambucana, que seria, em sua vis?o, a mais equilibrada de todo o pa?s. A partir do entendimento de que "o conjunto das regi?es ? que forma verdadeiramente o Brasil" (1996 [1952], p.

2 Como a primeira publica??o do Manifesto se deu apenas em 1952, j? se discutiu, ? revelia do autor, se o discurso teria de fato sido escrito em 1926 ou se teria sido criado, com percep??es mais recentes, na ?poca de sua edi??o em livro. Cientes dessa possibilidade, consideramos informa??es do Manifesto que aparecem de forma semelhante em A??car, nossa principal fonte sobre a perspectiva culin?ria de Gilberto Freyre.

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50), Freyre considerava que tamb?m a cozinha brasileira seria formada pela somat?ria das diferentes cozinhas regionais, cada uma com caracter?sticas pr?prias, embasadas, sobretudo, em suas produ??es coloniais e nas diversas grada??es da mistura das "tr?s ra?as" em suas popula??es.

Nessa linha de racioc?nio, ele chegou a delinear um "mapa das varia??es de mesa" do Brasil, dividido nas seguintes regi?es: a do litoral da Bahia ao Maranh?o, marcada pela cultura da cana-de-a??car; a de S?o Paulo e Minas Gerais, "com seu lombo de porco, seu tutu, suas geleias, seus doces de leite, seus queijos"; a da Bahia "propriamente dita" que seria a mais opulenta de todas; a do extremo Norte; a do extremo Sul; a do Rio de Janeiro e a do Maranh?o. Dentre essas, elegeu as tr?s que seriam as mais ricas do pa?s: a da Bahia, com predom?nio da tradi??o africana; a do Par?, majoritariamente ind?gena; e a de Pernambuco, a mais equilibrada:

? verdade que a tradi??o da cozinha de Pernambuco parece representar menos um nativismo extremado ou um indianismo agressivo nos seus sabores agrestes e crus ? como o da cozinha no extremo Norte ? e, menos ainda, um africanismo oleoso, empapando tudo de azeite-de-dend?, como da cozinha afro-baiana, que o equil?brio das tr?s tradi??es: a portuguesa, a ind?gena e a africana. A medida, o equil?brio, a temperan?a, que Nabuco sentia no pr?prio ar de Pernambuco, parece exprimir-se no que a cozinha pernambucana tem de mais caracter?stico e de mais seu: na sua contemporiza??o quase perfeita da tradi??o europeia com a ind?gena e a africana. (FREYRE, 2007 [1939], p. 77)

No mapa culin?rio de Gilberto Freyre, a cozinha pernambucana se destacava em um programa de exalta??o de fronteiras pr?prio ? ideia mesma de "regionalismo". Como analisa Pierre Bourdieu, este termo se refere a certo "discurso performativo", que age de maneira a criar a realidade que postula ao mesmo tempo que se cria a partir dela, intentando "impor como leg?tima uma nova defini??o das fronteiras e dar a conhecer e fazer reconhecer a regi?o assim delimitada ? e, como tal, desconhecida ? contra a defini??o dominante, portanto, reconhecida e leg?tima, que a ignora" (1989, p. 116). Em outras palavras, ao elencar caracter?sticas que seriam pr?prias e ?nicas de uma determinada regi?o, definem-se novas fronteiras que se estabelecem de forma contr?ria a uma defini??o dominante. Assim, "isolar" a cozinha pernambucana seria tamb?m "construir" a pr?pria ideia de cozinha pernambucana em oposi??o ?quelas que seriam as demais cozinhas do pa?s e a pr?pria cozinha brasileira, em um processo que implica cont?nuas "lutas de classifica??o" pela defini??o de identidades regionais.

Esta maneira de encarar as cozinhas regionais brasileiras como cozinhas individualizadas, encerradas dentro de suas pr?prias caracter?sticas e muitas vezes em

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