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CIRANDA DOS SABORES: DA DO?ARIA PORTUGUESA ?S MESAS POPULARES

Alessandra Gomes Coutinho FERREIRA ? UFPB Beliza ?urea de Arruda MELLO ? PROLING/UFPB

"H? nos doces Horatius, coisas que n?o deduz tua v? filosofia". (C?mara Cascudo,Hist?ria da Alimenta??o no Brasil)

O sentido do termo escritura, segundo Paul Zumthor (1993), n?o ? homog?neo. Segundo ele, pode "referir-se a t?cnicas, atitudes e condutas diversas, conforme os tempos, os lugares e os contextos eventuais". Na Europa do ano 1000, o uso do termo escritura estava diretamente relacionada ao desenvolvimento do com?rcio e a sua difus?o se deu a partir da estreita rela??o que ela mantinha com a voz.

Este estudo pretende contribuir criticamente para o debate sobre o modo pelo qual as escrituras conventuais portuguesas se ressignificam nas culturas populares e como esses textos culin?rios emergem do estatuto da oralidade e legitimam a efemeridade do texto assegurando o triunfo da voz e da letra como uma mem?ria.

Ao analisar a escritura dos mais variados textos, percebe-se a rela??o triangular entre o autor, o int?rprete e as pessoas que recebem a escritura. Segundo Zumthor (1993, p. 98), "conforme as ?pocas, os lugares e as pessoas implicadas, o texto depende ?s vezes de uma oralidade que funciona em zona de escritura e ?s vezes de uma escritura que funciona como oralidade". Estes textos preservados sob a forma de escrituras testemunham a persist?ncia de uma tradi??o. De acordo com os estudos de C?mara Cascudo (2006), a persist?ncia pela oralidade ou pela escritura caracteriza as fontes de Literatura oral .

Ao descrever a t?cnica da escritura, Zumthor (1993, P. 99) afirma: "a t?cnica da escritura ? dif?cil de dominar e exige rara compet?ncia: composi??o da tinta, dimens?o do c?lamo ou da pena, prepara??o do suporte antes de tra?ar os caracteres". Estas t?cnicas descritas pelo estudioso podem ser observadas tamb?m ao se analisar os manuscritos culin?rios de freiras ou de donas de casa que tinham a necessidade de fixar suas receitas de cozinha. Receitas que delineiam o trajeto individual, familiar, de grupos sociais e de uma sociedade, a saber a sociedade paraibana do s?culo XX. Atrav?s das escrituras das receitas observa-se o poder social da voz que transmitiu ao longo dos anos receitas seculares.

A leitura desses manuscritos culin?rios revelam as atividades de mulheres religiosas ou leigas. A linguagem fixadas nesses manuscritos ? potencialmente a da comunica??o direta, e s?o as modalidades de escritura que condicionam a leitura dos manuscritos de cozinha.

As fun??es da escritura n?o s?o cumulativas, pontua Zumthor (1993, p. 108 e 109). A primeira fun??o da escritura "assegura com a tradi??o oral a transmiss?o de um texto"; e a segunda fun??o da escritura "assegura para um futuro indeterminado a conserva??o - o arquivamento e de algum modo, por esse meio, o enobrecimento" . Logo, a escritura atesta uma verdade, a totalidade do sentido: "? pela palavra, e somente por ela, que se manifesta plenamente o humano" (ZUMTHOR, 1993, p. 114).

Muitas receitas de doces preservados na escritura dos cadernos de receitas revelam a origem portuguesa das receitas. Doceria farta de a??car e ovos. A tradi??o portuguesa ? observada a partir de cl?ssicos dessa do?aria como arroz-doce, p?o-de-l?, aletria doce, bem-casados, fatias de Braga, toucinhos do c?u, Don Rodrigo, bala d'ovos, camafeus, trouxas d'ovos, amanteigados, ninhos, past?is de nata, queijinhos, compotas de ovos moles, entre outros.

C?mara Cascudo parafraseia a c?lebre frase de Hamlet - trag?dia da literatura inglesa - que afirma que "h? mais mist?rios entre o c?u e a terra do que sup?e a nossa v? filosofia" e compara este mist?rio filos?fico ingl?s ao mist?rio de tentar compreender a linguagem dos doces brasileiros. Os estudos de C?mara Cascudo remetem a origem do doce no Brasil ao cultivo da cana de a??car no nordeste do pa?s. E um estudo mais minucioso foi feito por Gilberto Freyre em seus livros "A??car" e " Nordeste". As pesquisas de C?mara Cascudo sobre a Hist?ria da Alimenta??o no Brasil (2004) evidenciam a import?ncia da alimenta??o como suporte da mem?ria. ? um estudo sociol?gico da

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alimenta??o com base na hist?ria e etnografia e explica como a alimenta??o humana transcende as necessidades fisiol?gicas. Ele faz um retrospecto da alimenta??o nas obras liter?rias e nos per?odos da hist?ria mostrando a sua intercomunica??o com as tradi??es. Assim, a comida ? uma quest?o cultural e por meio dela pode-se chegar ? mem?ria de um grupo porque seus valores simb?licos interagem com grupos diferentes.

E seguindo os mesmos pressuspostos dessa linha de pesquisa sobre a sociologia da alimenta??o, Gilberto Freyre, em seu livro A??car (1969) delineia a trajet?ria de como o a??car vai construindo a cultura do doce no Nordeste. Segundo ele, as prefer?ncias do paladar s?o condicionadas, nas suas express?es espec?ficas, pelas sociedades a que os sujeitos pertencem, pelas culturas de que participam e pelas ecologias em que vivem os anos decisivos da sua exist?ncia.

Ao partir da alimenta??o, mais precisamente dos doces fixados nos manuscritos culin?rios percebe-se o estilo e modos de express?o desses manuscritos e revelam v?rias faces s?cio-culturais escondidas sob uma escritura de anota??es sobre o dia-a-dia da cozinha. Os cadernos de receitas transp?em o tempo cronol?gico e fazem surgir ? mem?ria do tempo hist?rico a partir da din?mica entre fragmentos de uma escrita e sua rela??o com o mundo.

Os manuscritos culin?rios, vistos aqui como escrituras, por serem fixa??o da voz, (ZUMTHOR, 1993, p. 96), mostram tipos de mem?rias "subterr?neas", revelando hist?ria de experi?ncias, cren?as religiosas, trocas sociais, mem?rias e representa??es do passado atreladas ?s a??es cont?nuas e descont?nuas das obriga??es femininas que desempenham pap?is determinantes para se entender as diversas mem?rias fragmentadas, mas ideol?gicas e culturalmente mediadas pelos fatos hist?ricos.

Ao descrever as receitas contidas nos manuscritos de cozinha, constatou-se os doces como uma das maiores categorias descritas nos invent?rios acompanhado pelos registros de bolos e tortas. Os doces, bolos e tortas representam o prazer: a todos conquista na degusta??o coletiva.

Os manuscritos culin?rios possuem um significado que excede o conte?do das receitas porque s?o catalisadores de uma s?rie de reparti??es: hist?rica, sociol?gica que constitui o trajeto cotidiano, revelando de que modo categorias como a comida, definida na maioria das vezes como objeto da gastronomia, tem tamb?m a precis?o etnogr?fica, por partir de uma cultura particular. A comida est? ligada a um conjunto de tradi??es contra?das no decorrer dos s?culos, resultando em h?bitos alimentares muito pr?prios. As receitas culin?rias v?o al?m do car?ter nutricional.

Observa-se nos manuscritos culin?rios as conex?es entre os campos de interfer?ncia da voz e da escritura e seu papel na mem?ria dos costumes, do cotidiano e da vida cultural. Compreendem-se a presen?a da voz nos manuscritos culin?rios, a rela??o oralidade-escritura e sua enuncia??o nos cadernos de receitas. Os manuscritos s?o a fixa??o de um texto oral e, conseq?entemente, tem uma rela??o com a performance ? "emana??o do corpo no oral" ? e a recep??o. Porque "a performance e o conhecimento est?o ligados, assim, a performance modifica o conhecimento e o marca". (ZUMTHOR, 2000, p.37). Por isto, os cadernos de receitas s?o escrituras porque est?o em estreita rela??o com a voz, ou seja, s?o fixa??o, registros de uma oralidade.

Compreendendo a comida como uma escritura, percebe-se um jogo de t?cnicas, atitudes e condutas ao enunciar receitas culin?rias sinalizadoras de tempos e lugares. Ao investigar as escrituras conventuais portuguesas, C?mara Cascudo (2004) registrou os manjares com os quais se deliciavam os povoadores do Brasil - manjar branco, filh?s de manteiga, alfenim, sonhos, m?es-bentas, alf?loa, raivas, sonhos, suspiros, casadinhos, arroz doce, entre outros. E no Brasil n?o faltou quem continuasse a tradi??o dos conventos portugueses percebida atrav?s de receitas de doces brasileiros como papos de anjo e manjar do c?u.

Para compreender como se deu o processo de origem e fixa??o da do?aria portuguesa no Brasil Col?nia, os caminhos percorridos pelo a??car determina a ocupa??o e a forma??o s?cio-cultural do brasileiro.

Em seu livro A??car (1969), Gilberto Freyre retrata a sociologia do doce no Nordeste brasileiro e cita numerosas receitas raras de doces que eram servidas nas mais diversas mesas populares: das mais simples as mais sofisticadas; bem como receitas tradicionais portuguesas. Como o pr?prio Freyre (1969, p. 34) sinaliza, comer ? "um ato biol?gico indispens?vel e principalmente um ato simb?lico, que segue os padr?es da cultura". Freyre recolheu e valorizou as receitas regionais nordestinas que durante muito tempo foram preservadas em segredo pelas fam?lias. S?o doces vivos que tem hist?ria, isto ?, tem passado. ? na cozinha, na intimidade do lar que as receitas culin?rias

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revivem e "contam" suas hist?rias: das sobremesas de restaurantes populares aos h?bitos caseiros de comer e beber, no cotidiano, nas ruas e nos tempos das festas.

Ao estudar os doces e bolos - os triviais e os festivos - deve-se analisar todos os aspectos que envolvem a confec??o do papel-recortado, os segredos de senhoras e senhoritas que possuem o amplo cuidado de preservar seus valiosos segredos de cozinha. Doces que s?o verdadeiras obras de arte, exemplos da mem?ria portuguesa. H? tamb?m outros doces que n?o se adaptaram as condi??es clim?ticas brasileiras: eram doces que apareciam em festas solenes como o Natal ou para a Semana Santa.

A escritura dos doces pontua as classes sociais: doces pobres eram feitos por mulheres pobres; outros doces s? apareciam em ?pocas pr?-determinadas - doce seco, para festas noturnas; filh?s, pelo Carnaval; canjica, pelo S?o Jo?o. N?o digam que a produ??o do milho for?a sua entrada nas mesas. T?m-se milho quase o ano inteiro. Outros doces pontuam a coletividade, a democratiza??o do modo de confec??o artesanal dedicados ?s festas mais abastadas. S?o exemplos - beijos, raivas, sequilhos, alfenins, suspiros. Outros que vieram do povo, sem especiaria, como a cocada, cuscuz, farinha de castanha ou de milho, puxa-puxa feito de mel de engenho. Os ingredientes predominantes da do?aria nacional n?o eram potencialmente brasileiros. O coco era importado da ?sia e o a??car era importado das ilhas da Madeira em Portugal. Nem todas as frutas brasileiras foram aproveitadas. Foram as m?os da mulher portuguesa que deram formas e sabores aos nossos doces "narrativos".

S?o doces de predile??o secular, das mesas populares, saboreados por v?rias gera??es alfenim (oriundo do ?rabe e popular doce em Portugal desde o s?culo XV; doce fino que adquire diversas formas de animais, flores, objetos de uso, vasos, cachimbos, estrelas, entre outros; formado apenas por a??car e ?gua; de acordo com os estudos de C?mara Cascudo (2004, p. 12), "no Brasil ? guloseima em todas as festas religiosas, vendida nas ruas das cidades de v?rios estados brasileiros); melindrosos (fam?lia do alfenim devido a sua fragilidade, pertencia ? do?aria conventual); doce seco (doce t?pico de Noites de Festa como Natal, S?o Jo?o, S?o Pedro, Ano Novo); beijos (doce t?pico da do?aria conventual portuguesa); sequilho (doce portugu?s fidalgo; no Brasil se populariza, pois ? ignorado pelos paladares mais requintados); raiva (doce preferido de freiras portuguesas); filh?s (doce muito popular em Portugal; popular tamb?m no Brasil e tipicamente saboreado no carnaval); suspiro (doce portugu?s muito comum na do?aria conventual portuguesa e nos manuscritos culin?rios de freiras paraibanas; doce rom?ntico, sentimental); cocada (doce de coco com rapadura; doce mais popular do nordeste brasileiro); arroz doce ( importado de Portugal; muito popular na Europa e se populariza ao ser democratizado no Brasil).

O invent?rio dos doces portugueses presenciados nas mesas brasileiras - Fatias de Braga, Camafeus, trouxas d'ovos, trouxinhas de nozes, amanteigados, bem-casados, pastel de Santa Clara, Dom Rodrigo,Ninhos, Damasco, Queijinhos de Am?ndoa, Toucinho do c?u, caramelados (t?maras, ameixa, am?ndoas, nozes), merengues, am?ndoa, fatia Lulu, entre outros. Os doces eram preparados em pesados tachos de cobre, tradi??o herdada de Portugal. A experi?ncia e a sabedoria da t?cnica de produzir os mais deliciosos doces eram fun??o da mulher mais velha, com o seu olhar atento para que o doce nunca passe do ponto.

Eram bolos e doces com sabor de pecado como - beijos, suspiros, ci?mes, baba-de-mo?a, bolo dos namorados, engorda-marido, colch?o de noiva; doces e bolos criados por freiras como - manjar do c?u, papos de anjo. Bolo divino, beijos de freira entre outras receitas que remetem as fam?lias, aos fatos hist?ricos, as classes sociais, as comidas das festas sagradas e profanas.

Analisar as escrituras dos doces nos manuscritos culin?rios permite a evoca??o da oralidade natural de uma determinada cultura, isto ?, ? um conjunto heterog?neo e complexo de modalidades e condutas discursivas determinantes de um sistema de representa??es dos membros de um corpo social. O alcance da voz e da escritura refere-se a autoridade que comanda a pr?tica de um mundo. A interpreta??o das escrituras dos doces aproximam os leitores da escritura dos sujeitos que as produziram.

Zumthor (1993, p. 23 e 24) pontua que

? no ato de percep??o de um texto, mais claramente do que em seu modo de constitui??o, que se manifesta as oposi??es definidoras da vocalidade. O fato do texto ser recebido pela leitura individual direta ou pela audi??o e espet?culo

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modifica profundamente seu efeito sobre o receptor e, portanto, sobre sua signific?ncia.

Ao compreender o ato de percep??o dos textos nos dizeres de Zumthor que pontua que o conhecimento est? diretamente ligado ao ouvido, percebe-se nos estudos de Barthes (1971, p. 11) a preocupa??o com a fun??o da escritura. "A fun??o da escritura n?o ? mais comunicar ou exprimir apenas, mas impor um al?m da linguagem que ?, ao mesmo tempo, a Hist?ria e o partido que nela se toma" (BARTHES, 1971, p. 11). A assertiva de Barthes corrobora a assertiva de Zumthor sobre a rela??o entre percep??o e ouvido. O partido que se toma, depende do que se ouve, do como se ouve e do que se entende. Portanto o conhecimento est? al?m da linguagem ? Hist?ria sobretudo.

Para Barthes (1971), a fun??o da escritura ? demonstrar a rela??o existente entre a cria??o e a sociedade, isto ?, como uma linguagem ? transformada por sua destina??o social, logo, o registro das comidas conventuais portuguesas representam uma tradi??o secularmente transmitida. Por ser uma linguagem carregada de intencionalidade, as escrituras dos doces das culturas populares s?o testemunhos manifestos da continuidade da tradi??o portuguesa no nordeste do Brasil.

Chartier (1995, p. 181), "o destino da cultura popular ? ser sempre abafada, recalcada, arrasada, e, ao mesmo tempo, sempre renascer das cinzas". ? este renascer das cinzas que pretende-se revelar ao analisar as comidas populares nordestinas provenientes de uma tradi??o popular portuguesa. O que ? tido como "popular" para o referido autor "n?o est? contido em conjuntos de elementos que bastaria identificar, repertoriar e descrever. Ele qualifica, antes de mais nada, um tipo de rela??o, um modo de utilizar objetos ou normas que circulam na sociedade, mas que s?o recebidos, compreendidos e manipulados de diversas maneiras" (CHARTIER, 1995, p. 184). No cotidiano, os sabores das comidas que circulam s?o diversificadas - puxa-puxa, quebra-queixo, baba de mo?a, doce de leite, doce de ovos, alfenim, canjica, engorda marido, bolo de leite, bolo da mo?a ou bolo branco, entre outras. O registro dessas comidas sinalizam os saberes populares freq?entemente utilizados no cotidiano e nas ocasi?es especiais pelas diferentes categorias sociais. A culin?ria est? intimamente ligada a mem?ria dos tra?os culturais e as mudan?as s?cio-econ?micas; o qu? se come est? diretamente relacionado com as escolhas feitas pelos grupos sociais, logo a comida ? um "texto falante", ? a grande met?fora da autenticidade de uma sociedade. Sai do seu campo de atua??o - a cozinha - diretamente para as mesas populares; n?o ? apenas um elemento da gastronomia, ? o fio condutor do conv?vio humano.

As receitas dos doces portugueses e dos doces populares nordestinos inventariados indicam a hist?ria, as emo??es e os desejos das pessoas que as fixaram como doces preferidos e tradicionais, pois, as muta??es delicadas do ponto de cozimento, eleva??o da massa sob a cad?ncia do batedor representam nuan?as m?nimas dos gostos individuais permeado pelo gosto coletivo.

Pelo interior e nas capitais das prov?ncias as fam?lias forneciam-se reciprocamente os doces e bolos para as festas habituais. Ao correr do dia as bandejas aflu?ram, trazendo o necess?rio e o sup?rfluo para a noite jubilosa, abarrotando as mesas improvisadas. At? a primeira d?cada do s?culo XX rara seria a cidade possuindo uma confeitaria-pastelaria. Essa fun??o comunit?ria de uma sociedade, quase totalmente desaparecida, valorizava o conhecimento doceiro, desde a dona de casa ?s filhas menores que faziam, no m?nimo suspiros e beijos, recortando o papel de seda colorido. (CASCUDO, 2004, P.596).

A "quase" aus?ncia de confeitaria-pastelaria e o prazer feminino em fazer os bolos e doces e enunciar "fiz com minhas m?os!" mantiveram a "tradi??o dos bolos e doces de casa, primores das meninas, enlevo das velhas donas. Doces queridos como membros da fam?lia". (CASCUDO, 2004, P.597). Nos invent?rios dos doces, outra categoria que se destaca ? a dos bolos e tortas - Bolo Fantasia, Bolinhos de leite de coco,Bolo Financeiro, Bolo dos namorados, Bolo Pic-nic, Bolo magestoso, Bolo Avenida, Bolo Economico, M?e bentas especiais, Bolo Beb?, Bolo Pernambucano, Bolo Imperial, Bolo Feliz, Bolinhos de Yay?, Bolo Excelsior, Bolo Virtuoso, Bolo de Am?r, Bolo Setim, Bolo de Rosa, Bolo Cruz Vermelha, Bolo Fidalgo, Bolo de Amor, Bolo de Magdalena, Bolo Masgestoso, Bolo dos priminhos, Bolo do Momento, Bolinhos cri ? cri, B?lo Republicano, Bolo dos aliados, Bolinhos seccos (Engana rapaz), Sem medo (bolinhos), Bolo de Nozes, entre outras.

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A predomin?ncia destas receitas representa e justifica a influ?ncia portuguesa nas sele??es de receitas das mulheres destes cadernos, pois,

"O bolo possu?a uma fun??o social indispens?vel na vida portuguesa. Representava a solidariedade humana. Os inumer?veis tipos figuravam no noivado, casamento (o bolo da noiva), visita de parida, anivers?rios, convalescen?a, enfermidade, condol?ncias. Era a sauda??o mais profunda, significativa, insubstitu?vel. Oferta, lembran?a, pr?mio, homenagem, traduzia-se pela bandeja de doces. Ao rei, ao cardeal, aos pr?ncipes, fidalgos, compadres, vizinhos, conhecidos. O doce visitava, fazia amizades, carpia, festejava. N?o podia haver outra delega??o mais leg?tima na plenitude simb?lica da do?ura. Completava a liturgia sagrada e o cerimonial soberano". (CASCUDO, 2004, p.302).

E assim compreende-se como a tradi??o boleira de Portugal foi profundamente replantada no Brasil servindo-se dos elementos locais, reunindo-se aos recursos trazidos de Europa (farinha de trigo, ovos, especiarias), pois a mulher ao fazer estes bolos tinha o interesse em agradar o pai, o marido e os filhos pela do?ura. Assim, cada ?poca possui uma estreita rela??o entre os h?bitos, os desejos e o lugar ocupados por um determinado grupo. Pode-se apreender, a partir dos invent?rios dos doces e bolos demonstrados uma narrativa de uma voz que ultrapassa a palavra e que as emo??es suscitam murm?rios e gritos, vozes plenas de hist?rias com palavras que se enunciam como lembran?as, mem?ria de linguagem impens?vel sem a voz.

A partir dos invent?rios das comidas conventuais portuguesas e dos invent?rios das comidas populares de dois estados do nordeste brasileiro - Para?ba e Pernambuco - pretendeu-se mostrar o elo entre estas duas culturas a fim de revelar o car?ter simb?lico dessas escrituras de cozinha como uma mem?ria discursiva sinalizadora das festas e do cotidiano. Por ser sempre simb?lica, a escritura est? enraizada num al?m da linguagem, por isso ? "sempre introvertida, voltada para uma vertente secreta da linguagem" (BARTHES, 1971, p. 11), ao mesmo tempo que "manifesta uma ess?ncia e amea?a um segredo". Da do?aria portuguesa muitos dos conceitos, dos feitios e dos nomes t?m hoje nesses estados brasileiros continuidade de uso. Esses doces s?o verdadeiros documentos etnogr?ficos t?o precisos como uma exposi??o de arte.

Refer?ncias

BARTHES, Roland. O grau zero da escritura. Trad. Anne Arnichand e Alvaro Lorencini. S?o Paulo: Cultrix, 1971. CASCUDO, Luis da C?mara. Hist?ria da Alimenta??o no Brasil. S?o Paulo: Global, 2004. ______________. Literatura oral no Brasil. S?o Paulo: Global, 2006. CHARTIER, Roger. Cultura popular: revisitando um conceito historiogr?fico. In. Estudos Hist?ricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 16, 1995, p. 179-192. FREYRE, Gilberto. A??car: em t?rno da Etnografia, da Hist?ria, e da Sociologia do doce no Nordeste Canavieiro do Brasil. Cole??o Canavieira n 2. Divulga??o do Minist?rio da Ind?stria e do Com?rcio (Instituto do A??car e do ?lcool). Divis?o Administrativa, servi?o de documenta??o, 1969. SILVA, Antonio. Do?aria popular portuguesa. Texto Brasil, 2004. ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. Trad. Amalio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. S?o Paulo: Companhia das Letras, 1993. _____________. Performance, recep??o, leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Suely Fenerich. S?o Paulo: EDUC, 2000.

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