J G de Araújo Jorge



José Guilherme de Araújo Jorge

Antologia Poética

Volume 2

[pic]

(1978)

A geladeira

Os capitalistas, os donos do mundo

não conhecerão esta pura alegria.

Esperar a geladeira nova

e a geladeira nova chegar.

O caminhão que para, o vulto branco que desce,

o cuidado do homem rude que nunca a possuirá,

uma faísca de sol nos metais de fecho de abrir,

os meninos que param em roda do caminhão, assistindo,

e eu, de camarote, da sacada do apartamento

assistindo.

Os capitalistas não conhecerão esta pura alegria:

esperar a geladeira

a geladeira de sete pés, branca e iluminada

que afinal chegou.

Agora haverá coca-cola, crush, e água gelada pra visita

e pavê de chocolate, e quanta coisa gostosa

que o frio preservará com seu sopro imortal.

O dial da geladeira  não faz jorrar música

mas fala inglês: “defrost, fast, freese, box”;

Gosto de abrir a geladeira, ela se acende toda quando eu a toco,

fica festiva, bela e alegre, na sua brancura imaculada

e nos seus metais rebrilhando.

Sinto o hálito frio que me envolve o rosto

me apanha as mãos,

e uma emoção primária de conforto me dissolve

quando ela se abre para mim, feliz e sortida

nas suas entranhas burguesas.

Esta pura alegria, esta higiênica alegria

não sentirão os capitalistas,

é privilégio dos que vem de baixo, escalando a vida como alpinistas,

para encontrar a neve e o frio das alturas

na sua geladeira branca e cheia de sol!

À Rodrigo

(Pergunta sem resposta ao Senhor)

À Gadelha e Magna

Parábola cortada

pela mão

de Deus.

Por que no instante da chegada

não o viva! a saudação,

mas, inexplicavelmente,

o adeus?

(Afinal, que mistério se encobre

na infinita Onisciência

que escapa à nossa pobre

e humana

contingência? )

Puro acalanto.

Cabia num ninho.

Tenra haste, sem botão

nem flor.

Por que levar seu canto?

Seu choro sem dor

enrolar seu caminho?

Quem adivinharia seu curso,

seu rumo

desfeito?

Do rio, contido na pedra,

as curvas do leito?

Por que, de repente,

antes da terra, da água no chão

a engatinhar,

a presença engolfante,

a imensidão

do mar?

Vejo-o,

asas fechadas

(parênteses guardando

sobre o peito

o gesto de um vôo

sem defeito).

Que razão – ninguém a previu –

fez do barro macio e forte

que apenas se formara

o fluido evanescente

que o vento esvaiu

na manhã clara?

Súbito, sumiu

tão cedo,

antes de tudo - do sofrimento, da tristeza,

do pensamento

da beleza

tão pequenino,

sem medo,

apenas menino,

desarvorado astronauta

do Destino.

Esperança.

Guardei seu semblante

vidente,

o olhar percuciente

adulto,

em seus olhos de criança,

mas sem ondas a escolhos...

Por isso na amargura de meus olhos

- mar de sombras e abrolhos -

essa lembrança constante:

como um barquinho balouçante

a vela do seu vulto.

Ah, os anjos são crianças

neste feio mundo

sem bonanças

(não sabem dizer adeus).

Entretanto, cintilou um segundo

como se não fora esse o seu mundo

pura estrela cadente

recolhida por Deus.

Asteróide

a levar seu segredo

não para a noite, que amanhecia,

(e tentar entender será tentativa

incrível,

vã )

em verdade, quem diria?

fez-se luz, invisível

na luz da manha.

E fica a pergunta sem resposta

do coração que não aceita

o pesadelo medonho:

Que enigma, Senhor, se encerra afinal,

impenetrável

em sua partida,

antes que o Sonho

imensurável

se tornasse Vida ?

Angústia

Há uma estranha beleza na noite!...  Há uma estranha beleza...

Oh, a transcendente poesia

que verso algum traduz...

- A via-látea inteiramente acesa

parece a fotografia

de um tufão de luz!

(Quem seria,

quem seria

que pregou lá no céu aquela imensa cruz?!)

Que infinita serenidade!... Que infinita serenidade

misteriosa,

nesse infinito azul dos céus e em tudo mais:

- nos telhados, nas ruas, na cidade...

(Só os gatos gritam na noite silenciosa

sensualíssimos ais!)

Meu Deus, que noite calma! E aquela trepadeira

feminina e ligeira

veio abrir bem na minha janela

uma flor, - como uma boca rubra e bela

que eu não terei,

- e ainda sinto nos lábios um travo nauseante

do amor, que, faz bem pouco, há apenas um instante,

paguei...

E o céu azul assim!... E essa serenidade!

Silêncio.  A noite, o luar tão claro o luar lá fora...

Juraria que há alguém não sei onde que chora...

Ob, a angústia invencível que me prostra,

invade

e me devora...

As duas mãos...

À noite, sob os lençóis, nossas mãos cegas se encontram

e um diálogo de ternura e de silêncio

independe de nós.

Mãos insones, que surpreendemos ainda juntas, num diálogo

de ternura e silêncio,

quando a manhã nos expulsa do sonho...

Como Deus expulsou Adão e Eva

do Paraíso...

Balada aos teus encantos

 

Há no teu corpo coleios

de serpente pelo chão...

Quem sabe, pois, se os teus seios

são serpentes enroscadas,

em sensuais emboscadas,

 - escondidos como estão?

São tão belos os teus seios,

redondos, vivos e cheios,

cheios, como luas cheias

e brancos como as areias,

- irrequietos como o mar...

As vezes, quando te agitas,

palpitam trêmulos no ar,

-  são  duas  aves  aflitas

presas de ânsias infinitas

mas que não podem voar...

São duas aves esquivas

irrequietas e lascivas

que quando escapam do ninho

erguem seus bicos ao céu;

 - aves sem asas, cativas,

em posições agressivas

crescendo em tua nudez,

- nos bicos cor de uva e mel

têm duas gotas de vinho,

de um doce vinho, de um vinho

de uma infinita embriaguez.

Sentinelas avançadas

de tuas formas ousadas,

não se rendem com certeza

guardando a tua beleza,

e embora caia o teu corpo

e entregues tua alma até,

- teus seios, esses teus seios,

redondos, belos e cheios,

erguem-se mais, sem receios!

- ainda estão vivos, de pé!

Quando se atiram no ataque

enfrento-os com o meu desejo!

- não há forca que os aplaque,

não   há   carícia, nem  beijo,

se os tento em vão dominar...

Que eles assim me entontecem:

- sou como o vento! E eles crescem:

- são   como   as  ondas  do  mar!

Roubaste ao mar duas ondas

são duas ondas redondas.

que ostentam pérolas raras,

pérolas cor de cereja

que o meu desejo deseja

no teu corpo de águas claras...

- são duas ondas redondas

que espraiam contra o meu peito

quando em teu corpo perfeito

- no oceano - que é o nosso leito,

sou como um barco no mar...

 

Roubaste ao mar duas ondas

são duas ondas redondas

onde me vou naufragar...

Balada da chuva

A tarde se embaça: - um pingo, outro pingo

respinga um respingo de encontro à vidraça;

um pingo, outro pingo, e a chuva aumentando

e eu nada distingo,- respinga um respingo

tinindo, cantando de encontro à vidraça

A noite esta baça e a chuva enervante

batendo, batendo, constante, cantante

de encontro à vidraça

A terra se alaga o céu se nevoa,

e a chuva é uma vaga fininha, descendo,

parece garoa!

parece fumaça!

- e as águas subindo e as poças subindo

e a chuva descendo e a chuva não passa!

O dia surgindo, manhã turva e baça.

A chuva fininha miudinha, miudinha,

parece farinha lá fora caindo,

através da vidraça.

A tarde está escura, a noite está baça,

e as brumas de um tédio

de um tédio sem cura

talvez sem remédio

minha alma esfumaça:

- um dia, outro dia e os dias passando

em lenta agonia segunda a domingo;

um pingo, outro pingo, respinga um respingo,

batendo, cantando, mil dedos tocando

de encontro à vidraça...

- que chuva! que chuva!

e a chuva não passa!

Constante, cantante caindo distante

nas folhas molhadas,

nas poças paradas despidas e nuas,

e murmurejante rolando nas ruas;

- um pingo, outro pingo

na lata cantando goteira se abrindo

pingando, pingando

batendo, batendo

tinindo, tinindo

parece um tinido, de taça com taça,

e a chuva chovendo

e a chuva não passa!

O vento nas folhas de leve perpassa,

e as gotas nos fios rolando, escorrendo

lá fora estou vendo através da vidraça,

- que dias sem alma!

- que noites um graça!

e a chuva, que calma!

chovendo, chovendo

não passa! não passa!

A terra está envolta nas brumas de um véu,

de um véu de viúva que o dia escurece,

e a noite enfumaça.

- E' a chuva que chove, e do alto se solta

descendo, descendo, rolando, escorrendo

nos olhos do céu...

Nos olhos do céu e no olhar da vidraça!

- que chuva! que chuva! parece um dilúvio,

quem sabe? - parece que a chuva não passa!

Balada embalando Maria...

Odor de folhas verdes perturbando,

punhais de luz ferindo a ramaria...

- é o teu corpo cheiroso me estonteando!

- são teu olhos, Maria!

Rumor na mata de água inquieta e fria,

bicos de ave no ninho quente e brando...

- é a tua voz feliz cantarolando

- são teus seios, Maria!

 

Sombra de noite que vai baixando

caju mostrando a polpa cor do dia...

- são teus cabelos me chamando

- são tem lábios, Maria!

Fruto maduro abrindo a mataria,

gestos de gaivotas no ar bailando...

- é o teu riso medroso me tentando!

- são tuas mãos, Maria!

 Vento que sopra leve, acariciando,

Mel que canta na boca e que inebria...

- é o teu carinho morno me prostrando!

- são teus beijos, Maria!

Raio de sol dançando de alegria,

cipós que ao meu redor se vão fechando

- é a tua alma de criança madrugando!

- são teus braços, Maria!

Rima que eu quis rimar com fantasia,

trecho de céu que ao longe vai clareando...

- é o teu nome que eu vivo soletrando!

- são teus sonhos, Maria!

Girassol sempre a luz acompanhando,

levada aos ventos, erradia...

É o meu amor por ti, louco, sonhando!

É o teu amor, Maria!

Bandeira do Brasil

(Aos que a hastearam vitoriosa na

Itália na luta contra o fascismo)

Bandeira do Brasil, colorida e festiva,

alegre como a Paz, vibrante como um hino.

Desfraldada nos céus, mais pareces um “viva!”

erguido em saudação à Pátria e ao seu destino!

Bandeira do Brasil!  Simbolizas a terra,

a terra e o mar, o sol e o céu, a história e o povo! 

Alegre e juvenil teu colorido encerra

a beleza e a expressão de um continente novo!

Outra não sei que seja assim tão viva e bela,

atraente ao olhar e ao coração mais nobre;

teu amarelo é sol, e teu azul se estrela

tal como o céu azul sereno que nos cobre.

Bandeira do Brasil!  Irmã de outras bandeiras. 

Tua alma para mim tem somente uma cor:

mesmo sobrepairando as lutas e as trincheiras

és branca como a Paz e pura como o Amor!

Bandeira do Brasil, - alma de todos nós! 

Hino de cores no ar saudando a humanidade! 

Que depois de enxugar o sangue dos heróis

possas secar em paz ao sol da liberdade!

Bandeira

Hei de sustentar a palavra como uma bandeira

a cada novo dia,

disposta a ir na frente, mesmo sem companhia.

Os que nasceram prendados, nunca compreenderão

os que estão soterrados, presos até os ombros

numa revolta inconsciente, numa angústia muda,

sem movimentos, sem braços

de olhos turvos e baços

sem um gesto de ajuda.

Os que nasceram confortáveis, nunca compreenderão

os que pisam pedras, asperezas, e trazem o destino

do próprio chão:

ser pisado,

e dar flores e frutos, sempre ignorado!

Os que nasceram felizes, nunca compreenderão

o sofrimento de milhões de seres conscientes

escravos das galés, as mãos remando incansáveis

até a exaustão,

sem, verem o mar., sem verem a terra,

- a terra da promissão!

Hei de sustentar a palavra como uma bandeira

a acenar novo dia,

disposta a ir na frente, mesmo sem companhia.

Ver um homem morrer todos os dias dentro de si mesmo

sem meios, aniquilado,

vê-lo debater-se como náufrago, sem um socorro sequer,

com um coração que canta, nervos que criam, forças que elevam,

enquanto tantos inúteis jogam e se divertem,

ao seu lado...

Ver um homem morrer sem armas para lutar

ser esbofeteado, manietado dos pés à cabeça;

desejar, quando o desejo é um privilégio fora de seu alcance,

querer ser, e reconhecer inútil e impotente

que não é nem será – por quantas gerações?

- por mais que lute, e se canse...

A consciência desta injustiça às vezes me sufoca.

Que hei de fazer senão içar a palavra como uma bandeira

e ir à frente, até chegar, até cair exangue,

diante da flor de ouro indiferente e provocadora

Besouro

Bato as asas, quero fugir como um besouro

estonteado de luz,

à procura do céu incendiado de ouro

que o seduz!

Esvoaço, tonteio, em vão... Em vão minha alma esvoaça!

Ouço um zumbido surdo, atordoante, crescendo,

das minhas asas sôfregas batendo

numa invisível vidraça!

Lá fora é tudo tão verde! Lá fora a terra é tão bela!

Tudo chama e convida

para a vida,

- e nem uma alma bondoso e distraída

vem abrir a janela!

Bom dia, amigo Sol!

Bom dia, amigo Sol! A casa é tua!

As bandas da janela abre e escancara,

- deixa que entre a manhã sonora e clara

que anda lá fora alegre pela rua!

Entre! Vem surpreendê-la quase nua,

doura-lhe  as formas  de beleza rara...

Na intimidade em que a deixei, repara

Que a sua carne é branca como a Lua!

Bom dia, amigo Sol! É esse o meu ninho...

Que não repares no seu desalinho

nem  no ar  cheio de sombras, de cansaços...

Entra! Só tu possuis esse direito,

- de surpreendê-la, quente dos meus braços,

no aconchego feliz do nosso leito!...

Cabocla

Cabocla, em teus olhos há estranhos desejos,

mistérios de noite,

clarões de luar...

Tua boca, é uma fruta madura, vermelha,

madura de beijos, de beijos maduros que eu quero apanhar!

Tua boca é uma fruta gostosa, será

assim como um bago branquinho,

branquinho,

e doce de ingá!

Teu riso, Cabocla, é tão fresco, tão bom,

que há nele um murmúrio de fontes, e o som

das águas rolando na mata fechada...

Teu riso, Cabocla, parece a alvorada,

parece na sombra o clarão do caminho,

- teu riso parece esse sulco branquinho

que se abre na pele macia e corada

de um doce caju!

E eu penso em teu corpo, molhado, cheiroso,

(Meu deus, se te apanho!)

- teu corpo tão fresco, tão bom

tão gostoso,

saindo do banho

teu corpo ainda nu!

Teu corpo dengoso, roliço, moreno,

de carne tão rija, tão cheia de vida,

é assim como a flor que tem mel e veneno

por entre as ramagens tentando, escondida!

Teus seios, nem sei... os teus seios redondos

rompendo o decote sem medo nenhum,

já trazem dois alvos pros lábios da gente

nas pontas ousadas da cor do urucum!

Cabocla,

minha alma está doida, está louca,

daria a minha alma ao diabo, Cabocla,

nas noites de lua

pra ter-te em meus braços, despir o teu corpo,

- assim como o sol entreabrindo um botão...

Mordendo os teus lábios, sentindo-te nua,

matando os teus beijos brotando na boca

vivendo em teu corpo plantado no chão!

Cabocla! Cabocla! eu me mato, eu me acabo!

Mulher do diabo!

Mulher tentação!

Cântico dos Cânticos - I

Senhor!

A minha alma é pagã e eu sou ateu!

Sou aquele no entanto que te compreendeu

no sentido profundo dos ensinamentos

que espalhaste no mundo.

Eu prego os sentimentos

por que um dia morreste entre ladrões na cruz!

Falo de paz e amor, de pensamento e luz,

e a palavra que escrevo em seu âmago encerra

um protesto à violência, ao despotismo, à guerra,

e aos vis e sempre vis mercadores do templo!

O teu vulto sereno e esplendido contemplo

com o mesmo olhar consciente, simples e sincero,

com que leio Platão, com que admiro Homero,

com esse olhar que demoro sempre sobre o vulto

De um Sócrates ou um Nietzsche!

É eterno este meu culto

pelos que têm luz própria, e são astros, são sóis,

e dão rumos na sombra tal como os faróis;

pelos que foram grandes, pelos que são grandes,

os que marcam na história os relevos dos Andes

sobre as planícies chãs, os desertos vazios;

pelos que, gigantescos como os grandes rios,

passam por muitas terras sem olhar fronteiras

e unem povos e raças sem erguer bandeiras;

pelos que, como os céus infinitos, profundos,

na imensidão do azul contêm todos os mundos,

e os que afinal criaram para os pigmeus

o cabresto da fé e o chicote de um deus!

E é por esta razão, Senhor, e só por isto

que não creio em Jesus mas falo em Jesus Cristo!

Cântico dos Cânticos - II

Não preciso pensar em punições supremas

para que seja um bom, nem ponho entre dilemas

a minha ação moral; faço o bem pelo bem,

sem recear a deuses, sem temer ninguém,

porque tanto a esse Deus dos visionários temo

como ao fogo do inferno e às caretas de um demo!

Sem esperar por prêmios ou temer castigos

vou praticando o bem; chamo aos homens de amigos,

e se a razão que tenho é certa e não me engana

afirmo que é excelente a natureza humana

e é para a sua fonte.

Essa água da nascente

é a água milagrosa que está em nós latente,

- nela fui encontrar a origem da moral.

Bebendo-a, é que instintivamente vejo o mal

e o bem. Por isso prego sem temer, não minto:

mais moral do que um deus é a pureza do Instinto!

Um deus se abastardiza, um deus pode afinal

render-se ao poderio louro do metal

quando aqueles que são os apóstolos bons

vão mudando de timbre as suas pregações

na sociedade de hoje onde tudo se vende!

O Instinto, não! O instinto puro não se rende.

Dentro do homem mais torpe, vil e corrompido,

se retrai; em si mesmo se fecha, escondido,

mas vive sempre, e pode afinal, de repente,

como a flor que rompeu de invisível semente

vir abrir suas pétalas brancas e puras

sobre a lama, - que é lama o ser dessas criaturas!

Creio e este há de ser talvez nosso trabalho,

colher por entre a lama, as pedras e o cascalho,

- as almas (porque uma alma, tal como um diamante,

precisa ser polida para ser brilhante),

e depois descobrir essa oculta pureza

que é o cristal interior de nossa natureza!

Livrando assim da ganga mística e lodosa

os Seres, e polindo-os todos, afinal,

- havemos de encontrar muita pedra preciosa

guardando na aparência bruta e desgraciosa

quanta cintilação sonora de cristal!

Cântico dos Cânticos - III

Senhor!

Eu sou aquele que não reconhece

no homem que hoje a teus pés ergue uma falsa prece

um discípulo teu!... Conheço a tua história;

sei que tu fostes pobre, e para a tua glória

não nasceste em palácios cravejados de ouro

como nascem os reis!

O teu grande tesouro

trouxeste-o no teu peito como nós, e os lábios

ao balbucio humilde e suave dos teus lábios

quedavam-se em silêncio... E se história não falha,

o teu berço, Jesus, era feito de palha,

e descerraste o olhar na tosca manjedoura

que aumenta a tua glória e que em nada desdoura

o teu grande destino!... Os pobres, os pequenos,

tiveram sempre a luz dos teus olhos serenos

e ouvindo a tua voz tão cheia de conforto

propagaram até que deste vida a um morto,

- e assim ficou na história o Lázaro da lenda!

E desde então, Senhor, há essa eterna contenda

entre os que vêm em ti um sonhador humano

deixando-se morrer no estóico desengano

de um Sócrates, que ergueu a taça de cicuta

e sem tremer morreu; e os que, na tua face,

serena ante a impiedade hostil da força bruta

(como se nela um halo de luz se estampasse)

chamaram-te de Deus!

Não importa, Senhor,

importa é que morreste pelo nosso amor!

Cântico dos Cânticos - IV

As eras que em sua ânsia incontida consomem

vidas, seres e coisas, como um deus ou um homem,

hão de sempre guardar aquela trajetória

que os teus passos marcaram na alma e na memória

do mundo, - na ascensão do Calvário e da Dor!

Não sei se tu me escutas ou me vês, Senhor!

Minha voz é pagã, meu coração é ateu,

no entanto ela te exalta, e ele te compreendeu!

Não entro nem visito a imensa catedral

que não é sua casa! - E nem comungo o mal

dos judas que hoje ainda rondam tua mesa

e querem te trair!

Nasceste num presepe

e essa cruz que se ostenta eu vesti-a de crepe,

- para mim já morreu!

Já não diz da beleza

da obra que tu pregaste e da grande verdade

dessa filosofia eterna de igualdade

que fizeste brotar do coração humano!

Compreendi-te, Jesus, por isso não me engano

com os que trazem teu nome à boca, - todos são

os judas em que em teu templo vendem a oração

que ontem por entre os pobres, como um lenitivo,

davas o coração mais morto do que vivo

sem cobrar um ceitil...

Senhor! A água da fonte,

que tão pura nasceu entre as pedras do monte

pequenina e escondida, e que era clara e doce,

hoje é turva e pesada, é amarga e envenenou-se!

Cântico dos Cânticos - V

Eu não creio, Senhor, mas se é verdade e é certo

que tu ressuscitaste, e com o teu peito aberto

pelas lanças romanas te elevaste aos céus,

ouve o aviso que solto nestes versos meus:

- que não te lembres nunca de voltar aqui,

porque o que hoje te adora, o que fala de ti,

diante da exprobração do teu desgosto imenso

sobre uma nova cruz deixar-te-ia suspenso

e da tua palavra ainda faria pouco!

E outros te chamariam de demente e louco

e outros te chamariam comunista e ateu!

Se ao entrares na igreja dos vitrais, como eu

apontasses o luxo, a riqueza, o exagero;

se sentisses profundo e amargo desespero

ouvindo citações em teu nome; se enfim

voltasses a este mundo, ao encontrá-lo assim

tu não compreenderias mais o teu idioma

nem mandarias Pedro retornar a Roma!

Cobririas teu rosto, e ante a trágica idéia

de espalhares a luz; talvez, como em Pompéia,

atirasses também o fogo, e o próprio mundo

sepultasses aos pés de um vulcão num segundo!

Ou quem sabe, Senhor, se em silêncio choravas

e ao invés de jogares sobre os homens, lavas,

com a grandeza infinita do teu coração

ofertasses ainda um último perdão,

- e ante a inutilidade do teu sacrifício

rolasses do Calvário para um precipício!?

Cântico dos Cânticos - V

Eu não creio, Senhor, mas se é verdade e é certo

que tu ressuscitaste, e com o teu peito aberto

pelas lanças romanas te elevaste aos céus,

ouve o aviso que solto nestes versos meus:

- que não te lembres nunca de voltar aqui,

porque o que hoje te adora, o que fala de ti,

diante da exprobração do teu desgosto imenso

sobre uma nova cruz deixar-te-ia suspenso

e da tua palavra ainda faria pouco!

E outros te chamariam de demente e louco

e outros te chamariam comunista e ateu!

Se ao entrares na igreja dos vitrais, como eu

apontasses o luxo, a riqueza, o exagero;

se sentisses profundo e amargo desespero

ouvindo citações em teu nome; se enfim

voltasses a este mundo, ao encontrá-lo assim

tu não compreenderias mais o teu idioma

nem mandarias Pedro retornar a Roma!

Cobririas teu rosto, e ante a trágica idéia

de espalhares a luz; talvez, como em Pompéia,

atirasses também o fogo, e o próprio mundo

sepultasses aos pés de um vulcão num segundo!

Ou quem sabe, Senhor, se em silêncio choravas

e ao invés de jogares sobre os homens, lavas,

com a grandeza infinita do teu coração

ofertasses ainda um último perdão,

- e ante a inutilidade do teu sacrifício

rolasses do Calvário para um precipício!?

Cântico dos Cânticos - VII

Dos jornais: “Os sinos das igrejas romanas repicaram em festa, por ordem

do Papa, à vitória de Mussolini sobre a Abissínia.”

Senhor!

A tua história que ficou no meio

leio-a com tal ardor e convicção, que odeio

os que com a tua efígie esplêndida e sublime

perpetram e repetem pela Terra o crime

que Roma se imputou - .

E é por isso talvez

que combato o romano eu se fez burguês,

e para que afinal o mundo me ouça e veja

quebro as imagens falsas de uma falsa igreja!

Não entôo com eles cânticos ou hinos,

renego as suas cruzes, desconheço os sinos

que hoje soltam no espaço o metal dos seus sons!

os sinos que aplaudindo o ensangüentar das terras

entusiasmam servis para o pasto das guerras

e se fundem depois no bronze dos canhões!

Que dirias, Senhor, se visses a epopéia

daquela multidão de negros da Eritréia,

indefesos e nus como os cristãos de outrora,

dando carne às metralhas famintas de agora

e em contorções morrendo inflamados ao gás?!

Que dirias, Senhor, se ao longe, por detrás

deste quadros de sangue (onde a Roma de Nero

ressurgiu com mais tinto esplendor, mais esmero

na maldade feroz) ouvisses como um bando

de loucos, os teus sinos soltos, badalando,

no alto das catedrais que ostentam tua cruz?!

Acredito, Senhor, - por consolo supus

que num rasgo de dor dilacerante e intenso,

dissesses para o mundo o que eu sinto e o que eu penso,

e arrancando um por um os sinos que bateram,

e fechando os portões das ricas catedrais

gritasses:

estes sinos todos já morreram!

- e estas igrejas todas já não vivem mais!

Cântico dos Cânticos - VIII

Que dirias, Senhor, se a tua fé sublime,

a que te fez sofrer e ainda hoje nos redime,

encontrasses assim deturpada em seus fins?

O teu templo de outrora é a casa dos festins

onde a atua figura, em púrpuras vestida,

sem sentido e sem alma, e aos poucos pervertida

fala uma língua morta a um mundo fariseu,

- porque a tua palavra há mil anos morreu!

Um dia tu quiseste igualar os destinos

dos homens, e chamaste os pobres pequeninos,

crianças que sem ninguém te cercavam nas ruas...

Que dirias, Senhor, se hoje as igrejas tuas

inacabadas sempre por fora, e por dentro

vestidas de outro, apenas servissem de centro

aos que vendem no altar os teus restos finais,

entre baixos sermões e enormes castiçais?

Senhor, ouso indagar-te: - que dirias, tu,

morto sem teres nada, o corpo quase nu,

se te visses envolto nessa liturgia

que um Midas ambicioso certo não teria?!

Acredito que entrasses mesmo, sem notar

que essa era tua casa... e aquele, o teu altar!

Cântico dos Cânticos - IX

A minha alma é pagã, Senhor, e eu sou ateu!

Sou aquele no entanto que te compreendeu,

e propaga as belezas dos ensinamentos

por cujos sãos princípios tantos sofrimentos

tivestes que curtir; sou aquele que ainda hoje

muito embora da vida e dos homens se enoje

continua na crença de que cedo ou tarde

chegaremos a ti...

É que no mundo ainda arde

a chama que acendeste, - a chama rubra e ardente,

que em muitos corações crepita intimamente!

Não é minha nem tua, a falsa religião

das sacras barbarias de uma Inquisição,

que se antepondo à ciência inutiliza as ânsias

do progresso, a embuçá-la em sombras e ignorâncias;

e ainda aplaude a nação senil que os filhos seus

incita ao ódio e o crime em nome de algum deus!

Tu disseste, Senhor: “Não matarás!...” Parece

que escuto a tua voz como um rumor de prece

e penetro o sentido do teu misticismo!

Hoje, tu lutarias contra o imperialismo

que reduz certos povos como os de outras eras,

às condições de vida em que vivem as feras!

Teu gesto se ergueria contra a prepotência,

pelo direito ao lar, ao pão, pela existência,

e pelo bem maior que encontramos na vida:

- a nossa liberdade... E a tua voz perdida

seria igual à minha, a falar para o caos,

ao silêncio dos vis, e à incompreensão dos maus!

Cântico dos Cânticos - X

Tenho um ódio de morte a qualquer tirania!

Amo a terra, amo o sol, amo o clarão do dia

que ilumina e que aquece os homens em comum

sem preterir ninguém, sem desprezar nenhum!

Afirmo que é sagrada a liberdade humana;

a justiça, imortal; e eterna, e soberana,

a razão que elucida o cérebro fecundo

dos que vêm de longe construindo o mundo!

Tenho um ódio de morte a césares e reis,

que esquecem no poder a força ideal das leis

e cegos, - na expansão de ambições sangüinárias

exploram sem piedade o trabalho dos párias,

e ao toque de clarins e em bárbaros festejos

satisfazem a ferro e fogo os seus desejos!

Tenho um ódio de morte aos homens das boléias

que atrelam aos seus carros multidões plebéias

e de chicote em punho, a açoitar os seus povos,

arrastam, com a mentira, a impaciência dos novos!

Aos déspotas sem lei, aos tiranos e os vis,

aos que armam sobre a força hedionda dos fuzis

os palanques vistosos de um poder nefasto

e preparam com a morte o sangüíneo repasto

que não lhes mata a fome de domínio!... Odeio

os que para seus fins engendram qualquer meio,

e jogam contra o fogo, e à ceifa da metralha

(tal como se atirassem vãos montões de palha),

nações inteiras, povos jovens e felizes,

enchendo-lhes o peito e a alma de cicatrizes!

Cântico dos Cânticos - XI

Eu não sei porque vim e não sei por que falo,

sei que não tenha à fronte, a aureolar-me , um halo

de luz, para iludir, com retoques grosseiros

os que são meus irmãos, irmãos e companheiros...

Minha palavra é clara e nua, desconhece

os cicios suspeitos que se dizem prece,

não a digo entre falsos clarins e trombetas

dos que falam grifando a voz com as baionetas!

Falo de Paz, sem crer no entanto em Utopias,

porque creio na Paz e creio em novos dias.

A humanidade sofre (eis a verdade atroz)

da indigestão de deuses e ilusões de heróis:

obedece a fantasmas e adora visões,

confunde cores, formas, e mistura sons,

e folheia de bronze as imagens tacanhas

dando a montes de barro o nome de montanhas!

Cântico dos Cânticos - XII

Imagem do infinito e do eterno - resumo

da própria humanidade, e invisível rumo

que preside o destino dos homens na terra,

- quanta humilde beleza a tua história encerra!

Que importa se violentam teus ensinamentos

e se atiram  pelo ar, e se soltam aos ventos

os conselhos que deste há mil anos, em vão?

No vazio dos céus puseste um coração !

Antes de Ti a terra, era terra sem céu,

como a flor era flor, sem perfume e sem mel,

e a vida, a luta esteril que afinal reduz

a alma a um gesto de sombra sem ideal nem luz !

Tu puzeste calor e luz na selva bruta

do humano coração, escuro coo a gruta

onde o ar rarefeaz e onde não chega o sol.

Em verdade, deixaste a cruz sobre um paiol

Cântico dos Cânticos XIII

Eles querem que eu cale, Senhor, é o receio

pela voz que se eleva e desconhece freio

de qualquer interesse, e arranca a hipocrisia

que cheira a bastidos de altar, a sacristia,

e diz alto, e dizendo bem alto de tudo,

dá-lhes certo a impressão de quem ficou desnudo

ante um olhar estranho... Odeiam-me por isso

Pouco importa! Sou livre e não nasci submisso!

E se um pouco afinal a mim mesmo conheço,

sei que não trago ao peito pendurado um preço

nem nunca o meu ideal joguei no lixo; quem dá mais;

nem vendo a minha fé, e nem serei capaz

de ergue-la em meu sentir sobre o alicerce indigno

da exploração alheia!

É em vão! Não me resigno

ao silêncio! E talvez, imprevidente e incauto,

cada grito que solto é cada vez mais alto!

E se me ouves, Senhor, se escutas este grito

lá da distância azul, na ilusão do Infinito,

tu que encarnaste um dia a perfeição e o Todo

e sentiste o maligno efervescer do lodo

da incógnita criação, - por certo não te assombras

- pois matou-te esse horror que tem a luz as sombras!

Caminho; sigo à frente, - e me embaraço e perco,

tonto da odor que sobe do estagnado esterco,

mas ainda encontro forças, ao fitar tranqüilo,

o sol rompendo a nuvem que tentou encobri-lo

e apagá-lo dos céus.

O sol que, triunfante

desaparece aqui para surgir adiante!

Sigo à frente, Senhor, e hei de avançar assim

já que sinto esta chama acesa dentro de mim,

e se tal como tu, for vencido na luta,

com pena da planície onde há sangue e onde há pus,

erguerei sem tremer a taça de cicuta

ou buscarei eu mesmo os braços de uma cruz!...

Canto de ontem

Vamos, põe teu braço no meu braço, vamos recordar

os velhos tempos

do nosso amor.

Passeávamos assim, e que frias eram as tuas mãos

no momento do encontro,

e que dóceis teus lábios depois da rendição.

Muitas vezes perdi-me em teus lábios e não soube voltar.

Que era o mundo senão um punhado de perspectivas

que saíam do ponto coração

e se perdiam nos teus olhos?

Tanta cousa esperamos e alguma cousa colhemos

mas que triste, amor, este todo-o-dia matando

o que esperávamos jamais ser tocado pelo tempo.

Tu me queres ainda, eu sei que te aninhas, por habito ou por frio

junto ao meu corpo, e esperas.

E eu te quero ainda, muito mais pelo que deixaste

nas raízes mergulhadas

e pelo que representas nas nuvens que se acumulam

do que pelo momento de tédio e ternura, elementos

do nosso coquetel cotidiano...

Vamos, põe teu braço no meu braço, como antigamente,

entrega-me docilmente os teus lábios, e pensa

que eu te beijo há mil anos, num tempo em que seremos

sempre os mesmos

e o nosso amor imortal.

Canto do amor sem tempo

“Porque nunca te estreitei contra mim

é que nunca te afastas.”

(Apontamentos de Malte Laurids Brigge.

Rainer Maria Rilke.)

Cresces no pensamento quanto mais te afastas,

nunca te afastas, nunca, se afinal ressurges

em cada vivo instante - ó flor sem estações,

numa árvore que tem mil profundas raízes!

Para mim, és aquela intangível presença

que construí com o meu louco desejo impossível.

Se não posso tocar-te, hás de acenar-me sempre:

loura estrela que a mão não apaga dos olhos.

Mais alem do desejo - essa fera em tocaia -,

da ternura - esse dote veneno que embriaga -,

paira o amor, e eis o amor, longe de nossas forças,

fruto de ouro da lenda que criamos juntos.

Ah! pudesse eu tocar-te e talvez esboroasses

como um gesto de areia ao abraço das vagas...

Ah! pudesses ser minha, e talvez percebesses

que então, já nunca mais poderias ser minha!

Ah! o amor, como nós o afastamos, no instante

em que julgamos, tontos, loucos, celebrá-lo.

Só depois que o possuímos é que compreendemos

que possui-lo é afinal parti-lo e mutila-lo.

Quem diria? A conquista é o “requiem” do amor,

e o que devera ser eterno e indivisível,

vai sendo mutilado toda vez que um golpe

de prazer, fere e atinge a substancia do sonho.

Só - como estas, assim, estou sempre ao teu lado,

sempre comigo estas -, assim só, como estou.

Que faríamos nós para salvar o amor

se eu pudesse planta-lo em teu corpo, a enraizar-me?

Ah! os braços são alças do esquife imprevisto,

colhem flor sem raiz, colhem astros sem céu.

o meu amor, só tu cintilas em meu sonho

porque enquanto me buscas eu jamais to alcanço!

O destino do eterno atraiçoou nossos planos.

Nossa conspiração frustrada nos endeusa.

E esse amor, que eu quisera estrangular de beijos

sobe como uma chama angelizada no ar!

Canto integral do amor

Cegos os olhos, continuarias de qualquer forma, presente,

surdos os ouvidos, e tua voz seria ainda a minha música,

e eu mudo, ainda assim, seriam tuas as minhas palavras.

Sem pés, te alcançaria a arrastar-me como as águas,

sem braços, te envolveria invisível, como a aragem,

sem sentidos, te sentiria recolhida ao coração

como o rumor do oceano nas grutas e nas conchas.

Sem coração, circularias como a cor em meu sangue,

e sem corpo, estarias nas formas do pensamento

como o perfume no ar.

E eu morto, ainda assim por certo te encontrarias

no arbusto que tivesse suas raízes em meu ser,

- e a flor que desabrochasse murmuraria teu nome.

Capitalização

É preciso juntar, irmão

para que sobrenades...

Não converteremos o mundo, não chegaremos ao governo,

não salvaremos o povo...

Aderimos

ao nosso modo.

É preciso juntar, irmão

pedra com pedra, mesmo que seja pedrinha,

fazer sua própria trincheira

ou lá que nome queiras das

- até mesmo alicerces...

Nada esperes da piedade, esta chantagista

que não vacila em humilhar

desde que haja fotógrafos,

nada esperes do mundo, dos governos, nem de ti mesmo

parcela ínfima de povo,

nada esperes de ninguém...

Não há dúvida de que viraram do avesso a palavra de Cristo

e douraram a dialética de Marx,

nada esperes, irmão...

É preciso juntar, juntar de qualquer forma,

chamemos assim,

e inventa tua vingança se e sentires capaz...

Carta cinzenta

As palavras amargas que te escrevo

são aquelas que pensas mas não dizes,

e esta, - é a carta cinzenta onde me atrevo

a despertar o nosso falso enlevo

e a confessar que somos infelizes...

Esta é a carta cinzenta que põe termo

ao sofrimento que te suplicia...

Meu amor, pobre amor! - vacila enfermo...

Teu amor, falso amor! - já nasceu ermo

como uma noite longa de invertia...

Onde o antigo calor do teu carinho?

Onde o esplendor dos teus olhos castanhos?

Segues só, ao meu lado... Eu, vou sozinho...

- como dois vultos por um só caminho

um do outro perto, e totalmente estranhos...

Não aceito o teu tolo sacrifício

que eu não nasci para inspirar piedade.

Essa carta cinzenta é o precipício

onde atiro esse amor... E marca o início

da tua mais completa liberdade!

Não deve haver passado entre nós dois...

Esquece o que já fui e o que te digo,

o Destino entre nós tudo interpôs

e assim, pelo que fui... nunca depois

por consolo me chames teu amigo!

Se eu cruzar o teu passo, volta o rosto!

Devo ser menos que um desconhecido,

- se eu era o teu Senhor e fui deposto

que no exílio final do meu desgosto

guarde a ilusão de ao menos já haver sido!

Juro por esse deus em quem não creio

em quem tu crês, - que em minha dor imensa

só desejo ficar de tudo alheio,

- não receio por mim, eu só receio

que ainda me negues tua indiferença!

E que um dia, quem sabe? não compreendas

as palavras de fel que hoje te digo,

- receio que mais tarde não me atendas

e queiras debruar talvez de rendas

o desespero que guardei comigo!

Uma coisa, no entanto, me conforta

depois que por teu bem tudo desfiz,

- é que enfim minha vida já está morta,

e, afinal, minha vida pouco importa

quando se trata de te ver feliz!

.......................................................................

Bem. Paremos aqui. Daqui por diante

seguirás o teu rumo e eu sigo o meu...

Hás de ser mais feliz se mais constante,

e que ao menos te lembres, certo instante,

de quem nunca um instante te esqueceu...

É o fim... Mas sem lamúrias nem piedade.

Guarda a piedade, - eu já fiquei com a dor... -

Quem pode mais do que a fatalidade?

Se o Destino assim quis, fique a saudade

florindo triste sobre o nosso amor!...

Cigarra morta

Vês... É uma cigarra morta, assas douradas

completamente roídas e estragadas,

levada pelas formigas...

Olhaste-me e eu te pude compreender...

Não diga nada, meu irmão, não digas,

- os poetas... as cigarras

não deviam morrer...

Confissão

O que me impede de ser comunista

é essa alegria festiva, irreprimível

de qualquer posse.

São meus desejos, - quem sabe se meu egoísmo?

É esse prazer ingênuo de pensar que é meu

este pedaço de terra,

sem mesmo me lembrar de meus filhos

ou de meus inimigos.

É esse inútil pensamento de supor que tenho direito

de escolher meu destino

e até de não escolher nenhum.

A impressão de que talvez seja mais tolerável um mundo

onde subsiste a miséria, apesar de nossa luta,

do que um outro onde não subsista a liberdade

nem se possa lutar por ela.

Convalescença

Toda vez que escrevo convalesço, estou nascendo

outra vez dentro de mim.

Convalescença

de uma longa enfermidade em que fiquei paralítico

dentro de mim mesmo.

E de repente, posso andar, posso sair, - que misterioso médico –

indicou-me a liberdade e reconciliou-me com a claridade da manhã

e os caminhos que são sinuosos convites acenando?

Estou descendo invisíveis degraus de uma branca escadaria

que dá para um grande parque onde as árvores e os homens dialogam

e brincam como as crianças,

e fazem roda em torno das heras de velhos poetas

escondendo faunos

nas pupilas de bronze.

A criação é uma convalescença, uma janela de hospital que se abre,

dois braços que respiram abarcando o espaço

e dois olhos que começam a cantar como os pássaros

Estes cantos são apenas o ritmo elementar da respiração desopressa

o latejar do sangue nas veias, que arremeda

as águas que estão rolando em algum lugar do mistério.

Fora da arte e da poesia

a vida é uma longa enfermidade, um tédio branco

de hospital, sem esperança.

Dedicatória 1

Este meu livro é todo teu, repara

que ele traduz em sua humilde glória

verso por verso, a estranha trajetória

desta nossa afeição ciumenta e rara!

Beijos! Saudades! Sonhos! Nem notara

tanta cousa afinal na nossa história...

E este verso – é a feliz dedicatória...

onde a minha alma inteira se declara...

Abre este livro... E encontrarás então

teu coração, de amor, rindo e cantando,

cantando e rindo com o meu coração...

E se o leres mais alto, quando a sós,

é como se estivesses me escutando

falar de amor com a tua própria voz!

Dedicatória...

(1944)

Dedico  este  livro  aos  irmãos  da   América   e  do   Mundo,

não importa que cruzem as pernas nos “pagodes” exóticos

ou sigam a palavra de Confúcio no templo de papel e de bambu;

que subam aos minaretes, se curvem beijando a terra,

ou simplesmente se ajoelhem no palácio de vitrais e incensos;

que dispam a palavra de Cristo de púrpuras e de ouros,

ou que sigam sem Deus, a procurá-lo nos livros...

Dedico este meu livro a todos os irmãos da América e do Mundo,

negros  ou  brancos,  amarelos  ou  vermelhos,  azuis   ou  roxos,

altos ou baixos, gordos ou magros, louros ou castanhos;

nos que ainda não morreram e aos que ainda poderão vir;

aos das planícies e dos campos, aos das florestas e das montanhas,

aos dos gelos e dos desertos,

aos das aldeias e das cidades,

aos dos faróis e aos da solidão,

aos dos navios, dos aviões ou dos subterrâneos,

a todos os homens, sem a menor distinção,

basta que creiam ainda na Vida e em nós mesmos.

Por isso escrevi este livro

como se abrisse uma veia, para o sangue aliviar o coração;

como se colhesse um fruto para o desejo inábil;

como se trouxesse água na mão, para a boca sedenta e empoeirada;

como se escrevesse sem palavras, e pudesse chegar a todos os ouvidos

e a todas as consciências

sem tradução...

Por isso escrevi este livro. Como quem acende uma lanterna

para descobrir que não está perdido...

Não se admirem irmãos, se as suas letras tiverem a cor do meu sangue,

porque elas são o meu sangue que vos ofereço,

são uma doação que faço aos que ainda crêem que vivem,

mesmo aos que não poderão se refazer,

porque nunca sabemos os que resistirão...

               

Que este livro, pois, possa ao menos ser útil como o sangue,

como o ar, ou como o pão,

e possa prolongar algumas esperanças

confortar alguns momentos finais

e salvar alguns desesperos...

Que ao menos, chegue a tempo, para alguns...

Desejos... na manhã de Sol

Na manhã de sol

bela e serena,

depois de um dia de chuva

depois que à noite ventou,

- tive desejos de apanhar aquela mulher morena

que passou...

Devia ter na boca rubra

um gosto de uva

um gosto bom de vinho,

e quando ela me olhou,

- pensei na fruta madura que o vento da noite derrubou

à margem do caminho...

Ah! o garoto que fui!  Ah! o garoto que sou!

Na inquietação da minha vida,

nas voltas do meu caminho,

sempre a vontade incontida

de desejar as frutas do quintal vizinho!

Na manhã de sol

bela e serena,

- depois de um dia de chuva,

- ah! o garoto que sou!

tive desejos de apanhar aquela mulher morena

que passou!

Duas máquinas

Altas horas, no silêncio da minha rua sem ônibus

sem bondes,

ouço distante uma máquina que escreve.

Será sofrimento, será alegria, será apenas trabalho

esta música que vem de dentro da noite

de um apartamento, em que andar?

Paro de escrever e escuto, e escuto o seu bater nervoso

telegrafando ao meu pensamento.,

como se respondesse, num misterioso código, às minhas mensagens.

Que coisas dirão aquelas teclas batendo, batendo ininterruptamente

como um coração assustado?

A quem se dirigirão, nessa ansiedade estranha de  S. O. Ss. emitidos

para vazio mar, sem resposta e esperança?

No silêncio da noite, altas horas, bato as teclas da minha máquina,

como quem responde a alguma mensagem,

como quem dá esperança a um apelo ignorado.

No mistério deste diálogo sem palavras, inarticulado,

- fiandeiras misteriosas estão tecendo poesia as duas máquinas,

estão semeando, estão enchendo à noite de sugestões,

estão vivendo.

Que importa se seus S. O. Ss. se perderão na noite alta e vazia,

onde navegam como cargueiros, pesados sonos burgueses.

Que importa? se elas fazem poesia.

Enquanto

  

Enquanto olhares para a companheira que te ajuda na luta

e a morte te amedrontar, mais pelo destino dela

que pelo teu próprio.

Enquanto vires teus filhos brincando e te lembrares que o seu futuro

depende do cada dia do teu esforço

e que se fraquejares

talvez não cheguem mesmo a ser homens.

Enquanto temeres a doença como um espantalho, e vires no remédio

um pedaço de pão a menos em tua mesa;

e sentires a segurança do teu trabalho muitas vezes

condicionada à renúncia de tua própria personalidade.

Enquanto tiveres por distração as amargas preocupações

de tua vida cotidiana, entre o choro de um filho

e o aumento do feijão.

Enquanto não perceberes teu presente, renegares teu passado

e receares teu futuro

como quem recomeça a vida a cada dia;

enquanto não puderes chegar mais tarde ao teu trabalho

até com justificado motivo

sem que te humilhe o olhar do chefe ou a palavra do patrão,

- não é tua a tua vida, não é teu, o teu destino,

ou por outras palavras: não és livre, irmão.

Esperança

Ainda resta afinal intacto o coração

e puro o sonho que como a flor singular e misteriosa

fizeste nascer da pedra lisa.

E ainda podemos como os marinheiros nos mirantes

colocar a mão sobre os olhos para atingir a distancia maior

dos horizontes.

Quando há coração e há caminhos

ainda resta a esperança para o amor.

Essa

Essa, que hoje se entrega aos meus braços escrava

olhos tontos de amor que aos poucos me farto,

ontem... era a mulher ideal que eu procurava

que enchia a minha insônia a rondar meu quarto...

Essa, que ao meu olhar parado e indiferente

há pouco se despiu - divinamente nua -,

já me ouviu murmurar em êxtase fremente:

- Sou teu!... E já me disse, a delirar: - Sou tua!

Essa, que encheu meus sonhos, meus receios vãos,

num tempo que eram vãos meus sonhos, meus receios,

já transbordou de vida a ânsia das minhas mãos

com a beleza estonteante e morna de seus seios!

Essa, que se vestiu... que saiu dos meus braços

e se foi... - para vir, quem sabe? uma outra vez,

- segui-a... e eu era a sombra de seus próprios passos...

amei-a... e eu era um louco quando a amei talvez...

Hoje, seu corpo é um livro aberto aos meus sentido

já não guarda as surpresas de antes para mim...

( não importa se há livros muitas vezes relidos

importa... que afinal, todos eles tem fim)

Essa, a que julguei ter tanta afeição sincera

e hoje não enche mais a minha solidão,

simboliza a mulher que sempre a gente espera...

mas que chega e se vai como todas se vão

Estranho remorso...

Às vezes, quando escrevo feliz uma poesia,

me assalta um estranho remorso, incompreensível

que não sei de onde vem:

“Quem sabe? pode ser que esse meu canto de alegria

faça mal a alguém...”

Meu irmão triste, meu irmão doente,

perdoem-me a cantiga frívola e contente,

que me fugiu dos lábios na manhã alvissareira

de verão

Ela brotou sem querer da minha felicidade!

- é  que eu trago uma cigarra cantadeira

e imprudente

dentro do coração!

Não é por mal, não é por mal...

Quem pode condenar a alegria da cigarra

em seu sonho

estival ?

- a estridular distraída e tagarela

e a dizer que a vida é bela,

- na árvore verde que há no pátio tristonho

do hospital ?

Estudo N.º 8

Olho a plantinha verde no vaso, tão infeliz,

no seu trágico destino decorativo.

Olho as árvores, longe, no moro, desenvoltas,

assustadas com a cidade, ainda livres.

Vou colocar no vaso flores de papel.

Eu... e Arvers

Hás de ler estes versos algum dia

e mais ou menos pensarás assim:

“- ele ainda sofre muito, e esta poesia

escreveu-a, bem sei, pensando em mim...

Sou a mulher que a inspira e que a anima,

pensava em mim no instante em que compôs,

e na incógnita sutil de cada rima

há um pedaço da história de nós dois...

Sinto-me em cada verso, em cada frase,

e as palavras que leio são as minhas...

- Sou eu essa mulher!... Vejo-me quase

na expressiva mudez das entrelinhas...”

E sorrirás... Eu sei que sorrirás

ante a certeza do meu sofrimento,

- é o teu prazer, sorrir desse tormento

que me causaste... e que não finda mais...

Ah! Feliz foi Arvers, bem mais do que eu!

Ao menos, essa a quem ele escrevia,

perguntou certa vez depois que o leu:

- “que mulher será essa...”

E não sorria... 

Exaltação ao amor

 Sofro, bem sei... Mas se preciso for

sofrer mais, mal maior, extraordinário,

sofrerei tudo o quanto necessário

para a estrela alcançar... colher a flor...

Que seja imenso o sofrimento, e vário!

Que eu tenha que lutar com força e ardor!

Como um louco, talvez, ou um visionário

hei de alcançar o amor... com o meu Amor!

Nada me impedirá que seja meu,

se é fogo que em meu peito se acendeu,

e lavra, e cresce, e me consome o Ser...

Deus o pôs... Ninguém mais há de dispor...

Se esse amor não puder ser meu viver,

há de ser meu para eu morrer de Amor!

Fácil, a gente ter mãe

Fácil, a gente ter mãe,

nem se percebe que tem,

mas só saber que ela existe,

que podemos encontrá-la

à hora que desejarmos,

que seus olhos sorrirão,

cheios de amor e bondade,

ao ver a nossa aflição;

que a seu lado - ela que é fraca-

nos sentimos tão fortes

confiantes no futuro,

o coração tão seguro

e o mundo todo tão bom,

como se fosse verdade,

só isto vale ter mãe,

e é uma felicidade.

Fácil, a gente ter mãe

- quase todo mundo tem -

mãe é uma coisa tão bela!

Pena é ver que há pela vida

os que só sabem que há mãe

porque ouviram falar nela,

só a conhecem de nome,

às vezes mesmo, nem isto.

Mãe é uma simples palavra

como uma nuvem ao vento,

um vazio pensamento.

Fácil, a gente ter mãe,

nem se percebe que tem

no todo dia a seu lado

quando se tem a certeza

e se sabe onde ela está,

pra dividirmos com ela

uma alegria, um revés,

que basta só querer vê-la.

Assim, é fácil ter mãe.

Difícil, sim, é perdê-la,

é ter que aceitar a idéia

de que no lugar de sempre

ela não se encontra mais.

Não adianta abrir a porta;

não passeia na varanda,

a cadeira está vazia,

na cama não tem ninguém.

E aquela voz que conforta,

que nos dava tanta paz,

que era um bem que não tem preço,

que era o nosso maior bem;

não ouviremos, calou-se,

é que ela agora mudou-se

pra um lugar sem endereço

onde Deus mora, no Além.

Ah, difícil é perdê-la,

nunca mais poder achá-la,

nos sentarmos a seu lado,

passearmos na varanda,

vê-la no quarto ou na sala,

que partiu, sem ter mais volta,

que pra nós nunca mais vem!

e, indefesos e sozinhos,

termos que aceitar a sorte

por desolados caminhos,

inconformados com a morte,

todos perdidos também.

Fácil, é a gente ter mãe,

mãe é assim como uma estrela,

estrela-guia que a gente

traz dentro de nós guardada ;

difícil, sim, é perdê-la

como uma estrela cadente

que de repente se apaga...

E, oh, meu Deus, eu a perdi.

Brasília, Dia das Mães, 11 de maio de 1975

Fidelidade

Eu sou a tua sombra

a que pisas todos os dias sem sentir,

e acompanha os teus passos sempre

revelada na luz

ou na sombra retraída...

Não me olhas, não me vez, não sabes que te sigo,

andas ébrio da vida,

e invisíveis clarins transbordam teus ouvidos

com os acordes de um hino,

- e a luz que alboreja o céu e de longe te acena

é o ímã que escraviza teus olhos atônitos

e traça o teu destino!

Corre!... Tonto com a luz que o fósforo da Vida

acendeu na substância abstrata dos teus sonhos,

e em mim não pensarás...

Eu sou a sombra humilde, a tua própria sombra,

que te acompanha os passos em silêncio,

e segue- e que eram apenas janelas,

atrás....

E como hás de seguir sempre buscando a luz

nunca me encontrarás...

.................................................................................

No entanto, no último dia, quando a luz  fugir

até dos teus próprios olhos, e ficares sozinho,

e desceres sozinho ao derradeiro abrigo,

- Quando a Vida te abandonar, sou eu que te seguirei

e em teu corpo gelado me recolherei

e irei contigo...

Filosofando

 Interessante!... Aquele passarinho

que pelo espaço imenso, incerto, adeja

não tem nada

porque nada deseja,

e no entanto tem tudo:

a terra verde é sua...

o céu azul é seu...

............................................................................

Interessante!... Aquele passarinho

tem muito mais que eu!

Fim...

Nem foi mesmo preciso que você falasse,

era um pressentimento antigo dentro de mim,

há muito, na expressão que havia em sua face

via que o nosso amor ia chegando ao fim...

Hoje, para encontrá-la, eu quase que não vim...

Era o medo covarde deste desenlace...

E tudo terminou... e foi melhor assim

talvez, para você, que tudo terminasse...

Nosso amor, - e ninguém há de saber por que,

morreu (bem que o sentimos pelo nosso olhar),

e não somos culpados nem eu, nem você...

E o que é estranho afinal é que tudo acabasse,

sem que nenhum de nós falasse em terminar,

- e assim como se tudo ainda continuasse...

Fracasso

  

Compreendo irmão, teu desespero sem limites,

na hora da trágica e inadiável compreensão...

A eterna expectativa, a oportunidade que deveria chegar

e se transferiu indefinidamente, a cada nova etapa,

a cada passo ansioso

na irrealidade...

Os dias que eram dias se passando, os meses que eram meses,

os anos que eram anos,

e a tua se consumindo, encurtando, atirando-te

contra ti mesmo

sem nenhuma revelação.

Os planos transferidos, amanhã, talvez mais tarde, algum dia,

mas quando?

mas quando, se tuas forças vão fugindo, se teus filhos cresceram,

se tua cabeça pendeu

se tua mulher te olha da sala com o mesmo peso nos olhos....

Tudo seria leve um dia, alto, leve e alto, estarias lá

no país dos homens felizes, confortáveis,

teus filhos iriam de automóvel para a escolar, e estudariam

sem responsabilidades

esperando a tua herança;

tua mulher poderia mesmo ler romances,

se preocupar com o destino dos humildes

nos fotogênicos chás de caridade;

usarias smoking, às vezes, e farias discursos, muitos discursos,

conhecerias apenas de nome a grande família da fome do infortúnio

prolífico e irremediável casal...

Compreendo irmão, teu desespero sem limites:

perceber de repente que já seguiu o bastante

para que não haja muito,

e sem nada ter gasto e sem nada ter vivido

ter vazia mão, a casa, os bolsos, a cabeça,

vazio o coração...

Gata Angorá

Sobre a almofada rica e em veludo estofada

caprichosa e indolente como uma odalisca

ela estira seu corpo de pelúcia, - e risca

um estranho bordado ao centro da almofada...

Mal eu chego, ela vem... (nunca a encontrei arisca)

- sempre essa ar de amorosa; a cauda abandonada

como uma pluma solta, pelo chão deixada,

e o olhar, feito uma brasa acesa que faísca!

Mal eu chego, ela vem... lânguida, preguiçosa,

Roçar pelos meus pés a pelúcia prata,

como a implorar carícias, tímida e medrosa...

E tem tal expressão, e um tal jeito qualquer,

- que às vezes, chego mesmo a pensar que essa gata

traz no corpo escondida uma alma de mulher!

Gotas

Na ponta de uma folha há uma gota indecisa,

vai crescendo, redonda, pequenina,

límpida e cristalina

como o esquife de um raio de luz...

De repente

a aragem tênue que passou

tremulou,

caiu...

E a gota pequenina sobre a terra fofa

desapareceu,

e o esquife de cristal partiu-se, e pelo espaço

livre, o raio de luz ressuscitou...

fugiu...

..............................................................................

Eu conheço outra gota parecida:

a vida...

Humanismo

(A Romain Rolland - 1939)  

   

Fale ele italiano, russo ou japonês,

alemão

ou chinês,

se lhe estenderes franca e livremente a mão:

- será teu irmão!

Fale ele português, inglês ou castelhano,

tenha nascido na Ásia, África, Oceania

ou seja americano,

se ao seu lado estiveres na hora do perigo:

- será teu amigo!

Fale ele italiano, russo ou japonês,

francês

ou o idioma que for,

se a tomares nos braços e beijar-lhe a boca:

- será teu amor!

Mas... pode ele nascer até na tua casa,

ter teu sangue nas veias

morar mesmo contigo

partilhando uma herança ou disputando um bem:

será teu inimigo!

............................................................................................

Volta, pois, para o teu lar, para o teu campo,

teu escritório ou tua oficina,

e larga essa arma assassina

que te trará remorsos, ou quem sabe? - horror

- e vive em paz com o teu trabalho, com teus amigos,

com o teu amor!

E vê se agora não erras ...

Tens a chave que explica o segredo de todas

as guerras!

Improviso Nº 3

Os poetas são os eternos marinheiro

que do alto dos mastros

sondando os horizontes,

descobrem, antes que todos, os sinais primeiros

dos mundo novos:

pelas aves do céu, a posição dos astros,

pela cor dos oceanos,

- profetizam na vida os destinos humanos

- antevêem na história o destino dos povos!

Também tenho o meu posto e o meu lugar

no alto do mastro, de onde sonho os sem-fins

do mar...

E cada vez que componho um novo poema

e a vibrar termino,

é como se avistasse, ao longe, a despontar

o ponto pequenino

- da coma verde de uma ilha que o azul descerra!

E grito então lá do alto, para o meu Destino:

- Terra! Terra!

Liberdade

(A Galdino do Vale Filho - 1941)

   

A liberdade é o meu clarim de guerra

e eu sou, no meu viver amplo e sem véus,

- como os caminhos soltos pela terra!

- como os pássaros livres pelos céus.

Ela é o sol dos caminhos! Ela é o ar

que os enche os pulmões! É o movimento!

Traz num corpo irrequieto como o mar

uma alma errante e boêmia como o vento!

Minha crença, meu Deus, minha bandeira!

Razão mesma de ser do meu destino!

- Há de ser a palavra derradeira

que há de aflorar-me aos lábios como um hino!

Liberdade ! Alavanca de montanhas!

Aureolada de louros ou de espinhos

há de cingir-me a fronte nas campanhas!

- há de ferir-me os pés pelos caminhos!

Sinto-a viva em meu sangue palpitando

seja utopia ou seja ideal, - que importa?

- quero viver por esse ideal lutando!

- quero morrer, - se essa utopia é morta!

Luta de classes em uma cena

Querer subir

chegar ao altiplano capitalista da liberdade.

Desamarrar os punhos, os tornozelos, respirar como um homem

embora sem coragem de olhar para baixo

para não sofrer, para não apiedar-se de si próprio,

para não sentir remorsos,

evitando o olhar do seu semelhante.

Querer viver, realizar-se plenamente, sem transigências,

tocar corneta, fazer sorvete, dirigir bonde, lançar a ponte

pintar o quadro, compor o hino,

arrancar a lei, da necessidade evidente,

arrancar o dente,

perguntar pela urina, olhar a língua suja,

salvar a alma ou a esperança,

se este for o destino.

E então sentir que o trabalho é um canto

que a vida é música

e o destino, uma direção nítida e pura.

..........................................................................................................

Querer libertar-se, e sentir dia a dia mais emaranhados os pés

mais pesadas as mãos, mais nublados os olhos.

As crianças não cantam, as crianças são sombras

que amassam os ombros.

E ir transigindo lentamente, e descobrir que vai descendo

sem tocar corneta, sem lançar a ponte, sem arrancar o dente,

sem pintar o quadro, sem compor o hino

para não trancar o futuro aos que virão depois e esperam melhor destino.

Perceber então que nunca existiu realmente, que apenas vai seguindo

a colher o necessário, sem direito à palavra

sem direito a escolher.

E um dia, num surdo desespero, perceber que já é tarde

e que os filhos ficarão de pés emaranhados,

as mãos pesadas caídas, os olhos cegos abertos,

tal como ele, num destino que não muda

diante da mesma escalada,

- sem um degrau de ajuda...

Maquis

(Aos que ontem, e aos que hoje ainda, na França,

ou em qualquer parte do mundo lutam

contra as mais diversas formas de opressão)

Quando a morte chegou com seu hálito ardente

secando a terra, e enchendo a terra de terror

no recesso dos chãos, vigilante e impotente,

enterraste contigo o teu ódio criador!

Lá em cima, era o inimigo... o bárbaro invasor...

a massacrar teu poco impiedosamente!

E tu, vivo, a sofrer, como a raiz que sente

o golpe que mutila  e mata a flor!

A flor da liberdade em mil golpes ferida

renascendo ao milagre da força e da vida

e a se multiplicar, - primavera de horror!

Desafiando imortal a fúria e a prepotência

a ensangüentar, florindo, os chãos da “resistência”

do “humus” do ódio gerando as árvores do amor!

Marcha fúnebre

(No dia em que Paris se

entregou sem luta - 1940)

   

O silêncio acusará... só o silêncio terá voz!

Em silêncio protestarão os bronzes das estátuas

de todos os heróis

- dos poetas, dos pensadores,

que impotentes assistirão á passagem triunfal

dos invasores!

E as ruas desertas... e as portas fechadas... e as casas

e as janelas cerradas

na mudez das fachadas;

e as cidades sem alma, ermas e frias,

e o olhar ausente das estátuas de órbitas vazias

- receberão o invasor

com o silêncio emocional da sua imensa dor

e das suas agonias!

E o ruído dos cascos nas pedras dos caminhos

violados

e nos campos abandonados,

e a algazarra triunfal,

- percutirão na alma da França como um dobre de finados

num funeral!

O negro asfalto do solo parecerá o luto

com que se cobrem as ruas e avenidas

humilhadas e ofendidas!

E a noite envolta em crepes, e a noite em luto intenso   

não ostentará a feerie luminosa das estrelas distantes   

nem os colares das luzes e os diademas brilhantes   

dos letreiros iluminados!

E de luto estarão todos os olhos nublados

e sem esperança,   

e os retratos velados   

escondendo a visão de todos os gigantes

tombados pela França!

E de luto estarão as bandeiras em todos os mastros

e as árvores, e os pássaros, e os rios, e os astros,

e os mares, e as montanhas de granito

vestidas em densos véus,

- e os pirilampos na terra, e as estrelas no infinito

dos céus!

As hordas passarão... passarão... passarão...

E dias e noites, os ecos dos cascos, ecoarão... ecoarão... ecoarão...

nas solidões distantes...

- no silêncio sepulcral das cidades destruídas,

e nas almas, e nas feridas,

e nas ruínas fumegastes!

Que silêncio, meu Deus!... A França emudeceu!

No alto dos céus, o Sol estrangulado e exangue

num lago imenso de sangue,

tombou... e morreu!

Marinha nº. 1

Desmancha os meus cabelos, como fazes

quando estamos os dois calmos e em paz,

em vazio colóquio - quando estamos

como dois barcos quietos... junto ao cais...

Quando deixamos para trás o mar,

mar de impulsos, de sonhos e desejos,

quando o teu corpo é um barco ao meu comando

sacudido de ventos e de harpejos...

Já vencemos, os dois, cantos e vagas,

na aventura das horas dionisíacas,

deslumbrados com os próprios temporais...

Desmancha agora, amor, os meus cabelos,

como fazes nas horas de bonança,

quando somos dois barcos, junto ao cais...

Marinha nº. 2

Em teus braços, sou como um barco

desarvorado,

por roteiros perdidos...

E o meu desejo é este vento

que levanta procelas

em teus sentidos...

Ah! Morrer assim

como um marinheiro,

e mergulhar, e me afogar...

... e encontrar meu destino e meu fim

em teu corpo de mar...

Marinha nº. 3

Para mim, as ruas, as longas ruas,

são negros conveses imóveis

de um navio encalhado

num estagnado porto

Eu, sou um marinheiro morto.

Mascarados

Mascarados os dois. Eu, mascarado

na hipocrisia com que levo a vida,

tu, na aparência inútil e fingida

que usas na rua com o maior cuidado...

Passas por mim e segues ao meu lado

como outra qualquer desconhecida,

- quem há de imaginar nosso passado

e a intimidade entre nós dois perdida?...

Ninguém... Certo ninguém pensa e adivinha

porque eu não digo e porque tu não dizes

Que eu já fui teu... e que tu foste minha...

Mas, quantas vezes, amargurado penso

em como nos sentimos infelizes

no Carnaval do nosso orgulho imenso!

Meu céu interior

Se esses teus olhos, no meu livro, imersos,

encontrarem diversas emoções,

- não tentes decifrar... – mil corações

nós os temos num só, todos diversos...

Os meus poemas aqui, vivem dispersos,

como as estrelas... e as constelações...

- no céu das minhas íntimas visões,

no “meu céu interior...” cheio de versos.

Não procures o poeta compreender...

- Os versos que umas cousas nos desnudam,

Outras cousas, ocultam, sem querer...

Uns, são felizes... Outros, ao contrário...

- No rosário da vida, as contas mudam,

e os versos são contas de um rosário!...

Meu Mundo

Toda tarde digo para mim mesmo:

afinal, eis o meu mundo.

O mesmo beijo, o mesmo quarto claro, com seu assoalho brilhando

refletindo o meu passo;

as mesmas paredes brancas me envolvendo com afáveis gestos de paz;

o mesmo rádio silencioso, entre livros empilhados, a mesma estante fechada

que a um gesto meu descobre tesouros como velha mala de pirata.

Afinal, eis o meu mundo.

A mesma insubstitutível companhia, a mesma presença até quando longe dos olhos,

a mesma voz perguntando, a mesma voz respondendo,

o mesmo odor suave da janta, do tempero cozinhando,

a mesma impressão de quem chega de ombros nus e veste ajudado

um macio agasalho.

Afinal, eis o meu mundo.

Como o pescador solitário, diante do primeiro ramo:

- afinal, eis a terra!

Naufrágio

  

Estou burguês, estou cansado, estou aflito,

vou morrendo sem socorro, inconsciente

como um marinho bêbedo.

Miserável regime que no primeiro porto

Me fez levar minh'alma ao mercado e a oferecer

em troca de uma passagem de volta.

Noite 

Há na expressão do céu um mágico esplendor

e em êxtase sensual, a terra está vencida...

- deixa enlaçar-te toda... A sombra nos convida,

e uma noite como esta é feita para o amor...

Assim... - Fica em meus braços, trêmula e esquecida,

e dá-me do teu corpo esse estranho calor,

-  ao pólen que dá vida, em fruto faz-se a flor,

e o teu corpo é uma flor que não conhece a vida...

Há sussurros pelo ar... Há sombras nos caminhos...

E à indiscrição da Lua, em seu alto mirante,

encolhem-se aos casais, os pássaros nos ninhos...

Astros fogem no céu... ninguém mais pode vê-los...

procuram, para amar, a noite mais distante,

e eu, para amar, procuro a noite em teus cabelos!...

O Sábio

(1939)

Em meio da algazarra atordoante das partidas,

e a zoeira das alegrias

dos risos

dos foguetes,

dos trens transbordantes de quepes,

dos navios com canhões e mastros embandeirados,

ele conteve nos olhos uma lágrima grande

e brilhante...

Se perguntassem ao homem sozinho porque estava chorando

ele havia de dizer:

- estes que riem e cantam ainda estão partindo!

Eu... já estou voltando...

Oh! Não será isto a alegria?

Numa hora calma, sentar-se a sós, tomar um livro de páginas fechadas

cujo conteúdo pressentimos, pelo autor, nosso velho conhecido,

e abrirmos página por página, levantando aqui e ali

sem nos contermos, curiosos, uma palavra, como um véu sobre a beleza ignorada,

a beleza que desponta, como o sol que irradia.

Oh! não será isto a alegria?

Receber uma carta, uma carta simples, de uma desconhecida

num, domingo de manhã, e antes do jornal, abri-la conjecturando,

e encontrar uma alma irmã, ardente e solitária

que nos faz confidências e amplia nossos limites

numa imprevista harmonia.

Oh! não será isto a alegria?

Esperar alguma noite, um amigo que não perturbará a nossa intimidade

que beberá conosco o mesmo vinho, ouvirá a mesma música

cuja cadeira o destino colocou ao nosso lado na mesma mesa do passado

com quem partilharemos nossos planos e nossas esperanças

e a quem gostaríamos de chamar de irmão

numa hora de Paz ou de agonia...

Oh! não será isto a alegria?

Despertar sobressaltado, voltar o rosto e encontrar

ao seu lado, sereno e confiante, o rosto da companheira que dorme,

pousar nossa mão sobre a sua, e adormecer sem remorsos

numa profunda poesia..

Oh! não será isto a alegria?

Trazer o corpo vencido, os nervos doídos, exaustos,

e aberta a porta, encontrar as coisas nos mesmos lugares:

nossa cama, a nossa mesa, os nossos livros, a nossa companheira,

tudo no mesmo lugar, em paz, fielmente à nossa espera

todo dia...

Oh! não será isto a alegria?

Manhã clara de primavera, calção de banho, o sol no peito,

sem dívidas e pecados, invejas ou remorsos,

encher de ar os pulmões diante da praia iluminada,

e atirarmo-nos de encontro às ondas e nadar contra o horizonte

de um novo dia. . .

Oh! não será isto a alegria?

Oito Poemetos

Alegria

Há um canto de pássaros no raio de luz

que pousou na janela.

Brinde

Sirvamos na taça

a palavra e a música

Canto

Um pássaro pousou na palavra e deu asas

ao coração...

Carícia

Foram tuas mãos... ou apenas o sol que saiu de uma nuvem

para tocar-me...

Esperança

A face impassível e lúcida do espelho

ainda se turva...

Inquietação

Não são as ondas, não são os ventos...

Nos rios subterrâneos de meu sangue

há velas brancas, desesperadas...

Pessimismo

Há estrelas no céu, há vermes na terra,

há algas no mar...

Só eu nasci homem...

Sensual

Eram dois bicos, como dois bicos de aves,

só que tremiam sob o teu vestido...

Orgulho e renúncia

Não penses que a mentira me consola:

parte em silêncio, será bem melhor...

Se tudo terminou a tua esmola

meu sofrimento ainda fará maior...

Não te condeno nem te recrimino

ninguém tem culpa do que aconteceu...

Nem posso contrariar o meu destino

nem tu podias contrariar o teu!

Sofro, que importa? mas não te censuro,

o inevitável quando chega é assim,

- se esse amor não devia Ter futuro

foi bem melhor precipitar seu fim...

Não te condeno nem te recrimino

tinha que ser! Tudo passou, morreu!

Cada qual traz do berço seu destino

e esse afinal, bem doloroso, é o meu!

Estranho, é que a afeição quando se acabe

traga inútil consolo ao nosso fim

quando penso que ainda ontem, - quem o sabe?

tenha sentido algum amor por mim...

Não procures mentir. Compreendo tudo.

Tudo por si justificado está:

- não tens culpa se te amo... se me iludo,

se a vida para mim é que foi má...

Vês? Meus olhos chorando estão contentes!

Não fales nada. Vai! Ninguém te obriga

a dizeres aquilo que não sentes,

nem eu preciso disto minha amiga...

Parte. E que nunca sofrer alguém te faça

o que sofri com o teu ingênuo amor;

- pensa que tudo morre, tudo passa,

que hei de esquecer-te, seja como for...

Pensa que tudo foi uma tolice...

Só mais tarde, bem sei, - compreenderás

as palavras de dor que não te disse

e outras, de amor... que não direi jamais!

Orgulho

(A Sócrates Dinis - 1944 )

Quando todos começarmos do chão como as sementes

como as árvores fortes, como as árvores úteis,

e não houver parasitos dos ramos alheios;

quando a terra pertencer aos homens, como aos rios

que a fecundam sem ver cercados nem fronteiras;

e tudo o que existir e o que for encontrado,

a água pura, o petróleo, o ouro, o fruto agreste,

não tiver donos também, como as auroras e os crepúsculos,

como as estrelas e a noite, como as nuvens e o sol;

quando houver sempre um teto sobre todas as cabeças

resguardando-as das chuvas, protegendo-as dos ventos,

como há sempre sobre nós o côncavo dos céus:

quando todos tiverem jardins, flores e pássaros,

ou crianças barulhentas, sadias e tagarelas,

e tiverem a horas certas, na mesa branca, o pão,

e a horas incertas, no leito, o remédio necessário;

quando o trabalho for leve alegre como a música

nas horas de prazer e despreocupação,

e em verdade, for a alegria e a música da vida;

quando a boca que se abre pela primeira vez

tiver um seio farto e o cuidado da ciência;

e a infância, liberdade, brinquedos e recreios,

e a juventude, livros, planos e companheiras,

e os homens todos, os mesmos meios de conquista,

e já não existir medo do mundo nem da vida

porque a vida e o mundo estarão ao nosso alcance;

quando a velhice não tiver mais receio do tempo

porque o tempo a levará em segurança ao fim;

quando já não houver trabalhos dignos e indignos

porque todas as parcelas estarão na mesma soma,

e o sábio e o operário, o artista e o camponês,

seguirem, paralelamente, os seus caminhos,

sem nunca se encontrar, mas sem humilhações;

quando as gramáticas e as raças não separarem os homens

porque todos se entenderão sem raças nem gramáticas,

e verão que mais além das cores e dos idiomas está o Homem,

- e só por isso, somos iguais e irmãos;

quando nossos filhos crescerem sem a angústia do futuro

e nós vivermos em paz sem as incertezas do presente,

e já não restar vestígios do ódio perdido no passado;

quando todos os templos erguerem sobre a terra

suas torres minaretes, cruzes ou abóbadas,

e sobre eles mais alto o céu se desdobrar

para que todos os olhos se encontrem e se compreendam;

quando todos começarmos do chão como as sementes

embora os galhos se elevem às mais várias alturas

e façam sobre o solo as sombras mais diversas;

e todos forem donos de seus próprios pés

e todos forem donos de suas próprias mãos,

e do seu pensamento, e do seu coração;

quando enfim, nos tornarmos Senhores de nós mesmos,

e não houver falsas leis servindo aos poderosos

e a justiça socorrer, na rua, aos homens todos;

quando chegar o momento em que a força será inútil

porque todos seremos fortes e nada nos vencerá,

e não houver grades nos olhos, e não houver ferros nos pulsos,

nem morais absurdas que nos deformem e domem:

- então, sim, bendirei o instante em que nasci

e sentirei o orgulho imenso de ser homem!

Os versos que te dou

Ouve estes versos que te dou, eu

os fiz hoje que sinto o coração contente

enquanto teu amor for meu somente,

- eu farei versos...e serei feliz...

E hei de faze-los pela vida afora,

versos de sonho e de amor, e hei depois

relembrar o passado de nós dois...

- esse passado que começa agora...

Estes versos repletos de ternura são

versos meus, mas que são teus, também...

Sozinha, hás de escuta-los - sem ninguém que

possa perturbar vossa ventura...

......................................................................................

Quando o tempo branquear os teus cabelos

hás de um dia mais tarde, revive-los nas

lembranças que a vida não desfez...

E ao lê-los...com saudade em tua dor...

- hás de rever, chorando, o nosso amor,

- hás de lembrar, também, de quem os fez...

Se nesse tempo eu já tiver partido e

outros versos quiseres - teu pedido deixa

ao lado da cruz para onde eu vou...

Quando lá, novamente, então tu fores,

pode colher do chão todas as flores, pois

são os versos de amor que ainda te dou!...

Palavras ao homem cético

(A Monteiro Lobato - 1943)

   

Não troques (tu que realmente tão pouco tens de teu,

tu que não tens nada além do ar que respiras,

do sol que te aquece, das estrelas do céu,)

- não troques por nada deste mundo

oh! meu irmão,

o teu direito de sofrer, de lutar e de morrer,

pelo teu pensamento

e pela tua convicção!

Por em verdade te digo, que nada vale mais

do que esse sofrimento amplo e profundo,

que nada vale mais que a tua liberdade

não importa que esteja sujeita aos rigores da vida

ou à intempérie do mundo!

Vive por ela, sofre por ela, morre por ela,

e terás para a tua vida, ou para a tua morte

a mais sublime razão,

e por pior que a tua vida tenha sido,

terá sido uma Vida, e terás sido um Homem! oh! meu irmão!

Não troques jamais os percalços e os sofrimentos,

as incertezas e os perigos

da tua independência,

nem tolhas a ousadia da tua consciência

e as ânsias do teu coração,

- por esse bem-estar da subserviência

ou pelo comodismo humilhante e bastardo

de qualquer escravidão!

Que te bastem, se preciso, o ar, o sol, as estrelas,

as alvoradas e os crepúsculos, o mar e o céu,

que não são de ninguém,

mas não vendas tua alma por um pouco de ouro

nem troques teu destino por uma migalha

que ao te matar a fome

te destrói também!

Que te bastem, se preciso, os caminhos do mundo

que nunca tiveram dono

desde a mais remota idade,

e que num mundo a seguir, em rebanhos, tocado,

pejas tu, o animal indócil, desgarrado!

- da liberdade!

Não traias teu ideal por fraqueza e impaciência,

antes vela o silêncio digno, e atento, aguarda

o instante em que terás de lutar por aquilo

que é de todos os homens, e portanto, é teu!

Que, às vezes, como o sol, a liberdade tarda

mas como o sol também, ela não falha nunca ,

e será tanto mais bela

quanto mais negra a noite que a antecedeu!

.......................................................................................................

e mil vezes bendito serás, na tua espera ansiosa, na tua revolta,

e no teu viril insubordinamento,

porque então compreendeste o silêncio da nossa dor

e a beleza heróica

do nosso sofrimento!

Paraíso perdido

Penso isto: penso que devemos fugir para nos mesmos.

Não são apenas os amigos que nos levam sem reação,

são os cinemas, os teatros, as horas que perdemos nas ruas

quando nosso quarto se fecha silencioso, sem tempo

e esperanças.

Não são apenas as horas que o trabalho me rouba

inapelavelmente, e que não me serão devolvidas.

É a nossa vida, feita sem tempo e de desencontros,

sem pausa para a criação, sem paz para o recolhimento,

sem silêncio para o pensamento, sempre ininterrupta,

passando por nós, enquanto nos deixamos ficar sem alcançá-la...

Penso isto : só a fuga para nos mesmos seria a salvação.

Conheço um amigo pintor que se encontrou em Itatiaia

e ouve o canto dos pássaros e das águas junto às Agulhas Negras.

Meu amor: sinto que vamos chegando à hora em que

devemos voltar ao Paraíso,

ou jamais o reconquistaremos.

Pausa

Tinha vontade de nesta curva, parar um pouco e te dizer:

vamos olhar para trás, vamos ver a paisagem que possuímos,

o caminho que fugiu de nossos pés

e na pausa, retocar o quadro que parece se esvair

se não lhe dermos novas tintas com as nossas lembranças.

Temos andado demais, despercebidos de nos mesmos e de tudo,

desprezamos as emoções que já, encheram tantas horas

e uma sensação de vazio nos vai tomando pelas mãos

e vai chegando ao coração

como um hálito frio.

Vamos para de conversar. Tenho certeza de que

ao falarmos sobre nós mesmos

revolveremos o calor que permanece e reencontraremos

o prazer

que nos tem abandonado, neste mundo tão cheio de gente

desnecessária e prejudicial ao nosso sonho.

Quem como nós tanto andou e de tão longe vem

repartindo o mesmo sonho

traz certamente no coração o destino da eternidade.

Penitência

Às vezes, me envergonho

de alguma ajuda recebida

quando sei que há tantos homens mais necessitados,

sem um gesto de apoio ou de acolhida.

Me envergonho de gozar meu reduzido conforto

quando sei que há tantos homens inteiramente desabrigados,

sem destino nem porto...

Me envergonho de meu egoísmo a se chamar de altruísmo

quando dou uma esmola e continuo para a minha sessão de cinema.

Me envergonho do pouco que afinal tenho conseguido

(embora eu bem reconheça meu esforço e resistência),

quando sei que há tantos homens inteiramente exaustos,

sem uma recompensa nas mãos asperamente feridas.

Me envergonho de meu nome, - única herança recebida,

do meu plano, - conquistado lentamente do chão,

mas enfim, conquistado,

quando sei que há tantos homens surgindo do anonimato

vindos de profundezas abaixo do nível do mar

num esforço desesperado!

Me envergonho de meu otimismo transparente em meu canto

de cada dia,

quando sei que tantas vidas serão humilhadas com isto

e tantos ouvidos serão afrontados pela minha alegria.

Me envergonho de minha saúde tão bem protegida, ostensiva,

quando sei que há tantos homens se arrastando vencidos

e tantas crianças que nem mesmo hão de chegar a ser homens.

Me envergonho do meu prazer, do meu entusiasmo de posse

do meu orgulho inútil,

quando sei que há tantos homens tristes, aniquilados,

e há outros tantos, superiores, que se entusiasmam na renúncia.

Às vezes, me envergonho de mim mesmo, nessa impressão

de que devia saber ser mais útil, mais humano,

como fazer alguma coisa, de algum modo que deve existir,

para que todos sejamos melhores e para que nada nos envergonhe.

Pequeno canto do dia burguês

No apartamento pequeno que comprei com o meu trabalho,

(Oh! A angústia das letras que se venciam inexoravelmente

cobrando juros de mora)

- olho uma nesga de mar.

Acompanho atrás dos altos edifícios retalhos de sol-posto

e largos pedaços de sombra vão caindo nas ruas.

Lá embaixo, por entre as árvores imóveis

passam banhistas retardatários e ouço seus risos despreocupados.

Sentei-me aqui, esqueço o corpo, enquanto a tarde envolve as coisas

tecendo véus imponderáveis.

Na parede, nos vasos vermelhos, dois ramos pequenos

timidamente ensaiam suas folhas verdes em decoração.

Oh! O egoísmo desse momento da volta, dessa paz burguesa

sem remorsos

explicando-se em compensações,

quando os limites do mundo cabem num pequeno apartamento

nesta varanda, nestas cadeiras, neste jarro da mesa,

neste momento de abandono.

Ainda sinto no corpo a ducha forte do chuveiro.

Meu pijama leve não me deixa pensar senão coisas leves,

e tenho os pés livres, puros e primitivos, como pés gregos

em sandálias olímpicas.

Longe ficaram agora a algazarra da cidade, o esforço despendido,

o trabalho inútil que rende, que cansou e venceu...

Sentar-se e respirar... Sentar-se um pouco, em silêncio

sem ligar o rádio, sem abrir o jornal, sem pronunciar uma palavra.

- para que mais?

Poema nº 12

(Mãos cosmopolitas)

Minhas mãos

cosmopolitas,

minhas mãos aflitas,

acenam sempre lenços brancos de adeus

invisíveis

para invisíveis cais;

- meus pés

vagabundos,

nostálgicos dos caminhos

de todos os mundos,

recalcam fugas impossíveis

e querem seguir mais

sempre mais,

aonde os levem meus desejos;

meus olhos querem partir

à procura de sonhos!

- meus lábios querem se abrir

à procura de beijos!

Poema nº 13

(Alma Poliglota)

Minha alma desejaria ser a maleta poliglota, cuja  epiderme ficou tatuada

com os prospectos dos mais distantes hotéis,

dos mais diversos lugares...

- oh, o tédio de não conhecer  azáfama das malas  que se fecham,

que sempre se fecham na antevisão de itinerários

extraordinários,

por céus, por terras e mares...

Minha alma desejaria ser o desabrigado convés das torres  de comando

e dos mirantes

no alto dos  mastros,

onde cantam os ventos de todos os quadrantes

e onde batem todos os sóis,

- para sondar, lá do alto, os mistérios dos horizontes  distantes,

e as estrelas, e os astros,

e sentir-se em colóquio infinito com o mar

inteiramente a sós!

Poema nº 15

A vida

Já está nos nossos olhos refletida

desde o primeiro instante em que os abrimos,

- é essa paisagem que encontramos

e penduramos

na parede do quarto onde dormimos...

A vida

vive escondida sob um véu,

no meu olhar de sonho ardente e vago...

- é um mesmo trecho de céu

no fundo de um mesmo lago...

Poema  Nº 16

(Pobre Alma Triste)

Quero abrir a minha alma inteiramente ao sol,

(pobre alma triste e encardida)

- para ver se ela perde esse cheiro de mofo

que se impregnou em minha vida ...

Alma ao sol, para quarar,

- alma ao sol-

como ao sopro do vento à beira de um caminho

a acenar, numa corda, estendido e seguro,

um branco lençol

de linho,

alvinitente e puro!

Poema do Cotidiano

Ouço a moça que estuda piano no apartamento defronte

e outra que há um ano sobe e desce intermináveis escalas.

Ouço o choro de quatro meses da criança que brotou ao lado

num tempo ainda virgem, sem relógios.

Ouço o pregão dos garrafeiros,

a algazarra dos meninos na rua,

a mãe que chama o filho há milênios

e continuará chamando pelos séculos afora.

Ouço a buzina - sinal, do carro último tipo, elegante

que parou à espera do último pedaço de novela.

Ouço um chiado de frigideira, um rumor de água batendo

uma voz que faz pão de trigo e música.

Acima de tudo, ouço pela madrugada

esse canto do mar que transfigura as coisas, enche a noite, e leva

sobre as vagas, imagens, como restos de um naufrágio.

Poema para a mulher que passou...

Quando ela passou por mim, indiferente

e distraída,

surpreendi-me a pensar, sem querer, de repente

em minha vida ...

Fiquei a imaginar que se lhe acompanhasse

os passos,

num lindo dia como o de hoje,

cheio de sugestões para os nossos desejos,

- talvez ela acabasse por me olhar, sorrindo,

e mais tarde talvez me desse as suas mãos,

e algum dia ficasse abrigada em meus braços

e quisesse os meus beijos...

Se eu a seguisse, ela que nunca me viu,

[e passou distraída

como se eu nem a visse,

se eu a seguisse

pela rua

em meio a tanta gente,

- talvez se transformasse toda a minha vida,

e ao encontro da sua,

minha estrada tomasse um rumo diferente...

No entanto ela se foi... E enquanto eu me deixava

a pensar,

quem sabe se não levou a metade dessa alma

que seria talvez a única metade

capaz de me completar?

Naquele segundo, - pressentimento estranho,

intuição fugaz,

- quis correr, ir buscá-la...

Corri! ... Fui procurá-la

e era tarde demais...

Acaso já pensaste, na grandeza trágica desse segundo

irremediavelmente perdido?

Quem há de nos dizer se ele encerrava um mundo,

esse mundo por nós sonhado há tanto tempo

e há tanto tempo esperado

e querido?

Quem há de nos dizer algum dia, se ele era

a única oportunidade,

que o Destino avarento e impiedoso nos dera

para a felicidade?

Ninguém! ... E ele passou!... Pensa um momento na grandeza

desse segundo atroz,

e terás a intuição dolorosa, a certeza

de que é precisamente num segundo desses

que a felicidade

passa por nós!

Queres correr, é em vão!

Hoje estou certo

que nessa angústia eterna ficarás talvez,

- porque a felicidade que passou tão perto

da tua mão

só passa uma vez!

Posição

Se chegares a um pais estranho, e encontrares

a mocidade e o povo nas ruas,

os políticos discutindo, os generais

em reunião...

Se quiseres saber com quem está a verdade

pergunta: - de que lado estão os trabalhadores

e os estudantes,

de que lado eles estão?

Precipitação

(1943)

   

Não, não te julgues superior ao mundo

porque há alguém que te estende humildemente

a mão,   

e porque podes chamar de vagabundo

a um teu longínquo irmão...   

Pára um momento e pensa, - pensa no que tu és:        

tu tens coberta a cabeça, ele, tem nus os pés...

- pensa no que teria sido aquele vagabundo       

se lhe dessem os mesmos meios que tiveste

para enfrentar o mundo

Pensa, e verás,

que os papéis se inverteriam de repente:

- ele, estaria onde estás,

e tu, estenderias tua mão vazia       

a toda gente...

..................................................................................................

       

Não, não te julgues superior, com precipitação, -

pode ser ignorância, ou talvez inconsciência, meu irmão...

Prédica inútil

(A Lima Brandão- 1944)

E porque os homens falaram do céu   

e esqueceram a terra

falaram em vão...

   

E porque os homens quiseram santos e deuses

em lugar de homens,   

não tiveram nem santos, nem deuses, nem homens...

Em cima há o céu

mas em baixo há a terra;   

o essencial é que em baixo há a terra ,   

a terra que tudo dá, a terra que tudo encerra,   

a riqueza e a poesia, -   

- a terra onde há pés e arados, onde há rios e árvores,

a terra de onde viemos e para onde voltaremos

um dia ...

O essencial é que os nossos passos estão na terra,

e na terra é que corre a água do céu, e da terra é que sobe

a água do céu;

e da terra é que sobe a ave do céu, e na terra é que pousa

a ave do céu;

e da terra é que crescem as sementes, os galhos, as flores

e os frutos;

e na terra é que se ergue o teto; na terra é que oscilam os berços

e os ninhos;

e da terra é que sobe o fumo! - porque tudo é a terra

porque tudo é da terra,

e porque nela se perdem todos os caminhos...

E porque os homens falam do céu

há quase dois mil anos

e esquecem a terra

- não atingiram o céu

nem conquistaram a terra...

Lembrai-vos, oh meus irmãos, de que se esquecerdes a terra,

a terra que tudo dá,

- ela que é boa e farta - há de ser sempre amarga

há de ser sempre ma, -

os homens, famintos, comerão todos os deuses

e nada restará...

Procura

Vou seguindo meu caminho

a procurar-me.

Estarei na estrela?  Na vaga do mar? 

Atrás da montanha?  Na água que corre

estarei?

Na rua, no avião, no pássaro livre

no gesto do galho, na gota de chuva,

na rosa vermelha, no canto da criança

estarei?

Difícil é achar-me

disperso me encontro

na face das coisas

que chegam, que passam

Um olho no rio, um pé no caminho,

o sangue na aurora, as mãos pelo mar,

quem sabe onde estou?

Talvez passe junto a mim mesmo, quem sabe? 

Me olho nos olhos, me toco nas mãos,

me falo e respondo

não me reconheço.

Vou seguindo meu caminho

a procurar-me.

Pureza

Vinde, ó mulheres puras!

Trazei a vossa beleza cheia de gestos ingênuos, ternuras

e recatos,

e vossa carne adolescente que desconhece contatos,

e vossos lábios cerrados que não provaram beijos

e vossos olhos claros nunca turvados pela sombra dos desejos!

Trazei-vos a vós mesmas, afinal,

nos vossos corpos virgens, nos vossos braços,

para a tatuagem sentimental

dos meus desejos

e dos meus abraços!

Trazei as vossas formas desconhecidas, para a curiosidade e as loucuras

das minhas mãos,

e os livros de páginas fechadas dos vossos corpos inéditos

para os meus olhos que se cansaram de relidas

e estragadas

brochuras,

- vinde! trazei as vossas ânsias irreveladas

e as vossas vidas,

ó mulheres puras!

Trazei à noite dos meus sentidos perdidos em brumas

a alegria dos vossos contornos cheios de ondas e espumas

e das vossas carnes mornas e enluaradas...

- vossos olhos serão estrelas num trecho azul da noite

entre nuvens serenas,

e eu já não seguirei entre sombras apenas

e lampiões de olheiras roxas e viciadas!

Deixai que eu me purifique em vossos braços

e mergulhe a cabeça em vossos seios

e desmanche com as mãos vossos cabelos!

Ensinai-me orações, pra que eu as possa dizer

aos vossos ouvidos,

orações de amor puro, feitas de anseios

e desvelos!

- deixai que purifique os meus sentidos

encardidos!

Que eu quero a pureza,

quero a beleza,

quero a luz,

quero o sol,

quero o calor!

- dos vossos lábios puros,

dos vossos corpos nus,

do vosso imenso amor!

......................................................

Vinde! E as minhas mãos despertarão em vossos sentidos

as melodias ignoradas dos vossos instintos,

e acenderão em vossas carnes adolescentes

lampejos

ardentes,

E os vossos lábios sangrarão retintos

aos meus desejos,

e os vossos seios florirão aos meus lábios famintos

de beijos!

As minhas mãos “virtuosas”, onde tumultuam tantos sentimentos

e tantos seres

acordarão em vossas formas suaves

cheias de gestos de aves,

e em vossa carnes rijas e macias

as alegrias do amor, as supremas alegrias

de todos os prazeres!

Acordarão em vossos corpos todas as indizíveis delícias,

e meus dedos nervosos saberão compor

“prelúdios” de carícias

e “noturnos” de amor!

Vinde! E eu improvisarei sobre o teclado branco desses instrumentos,

nos mais delirantes momentos,

os mais delirantes motivos

de amor,

e ficará ressoando nos infinitos mundos

obscuros

dos vossos ventres fecundos

e puros

a melodia imortal do meu sêmen criador!

Quando

Quando o pano das pálpebras cair

sobre o palco fechado das retinas

que já não podem ver,

e onde passaram todos os bonecos

e fantoches, que em vida me ajudaram

na pantomima estranha do meu Ser...

Quando as últimas luzes se extinguirem

após os derradeiros obstáculos,

e ficarem vazias minhas órbitas

como os grandes anfiteatros silenciosos

depois dos espetáculos...

Quando sobre o meu peito as minhas mãos de cera

gélidas se entrelaçarem

já sem vida,

como que se despedindo mutuamente

na última despedida...

Quando dentro da rocha do meu peito

o coração morrer... não pulsar mais,

e ficar enterrado no meu corpo

como os diamantes no interior da terra,

- trocando a sua vida humana e triste

pela vida feliz dos minerais...

Quando sobre os meus lábios entreabertos

ficar sorrindo um último sorriso,

- esse mesmo sorriso das estátuas

e dos corpos que uma alma já não tem...

Que ninguém chore ao meu redor!... Ninguém!

Mais razões haveria para o pranto

no instante em que no mundo despertei!...

E quem chorou? Ninguém chorou!

- no entanto

que ridículas festas me fizeram,

até parece que nascia um rei!

Que ao vir portanto o derradeiro dia,

o fim do meu penoso despertar,

- que haja música, risos e alegria

e que eu, apenas eu, tenha o direito

de, ao deixá-los na vida, interiormente

no meu sorriso à morte,

soluçar...

Relance

Seus cabelos enchendo o vento de ritmos e reflexos

no ônibus em disparada

era poesia.

E um pensamento: quem beijará o seu pescoço branco?

Quem colherá os seus cabelos, quem?

Resposta ao Poeta Itabirano

(De um pronunciamento na Câmara dos Deputados por ocasião do 50.º aniversário de sua atividade literária)

À Carlos Drummond de Andrade

Sim, triste, orgulhoso, de ferro,

em sua poesia; entre tímido e terno

em seu próprio embaraço;

mas ferro que não enferruja

que o tempo desafia com um brilho eterno

de aço.

É triste, mas com uma tristeza mansa,

contida,

sem razão,

que envolve como uma nuvem, um xale, uma lembrança

querida

e torna menos frio o nosso mundo

e menos só a nossa solidão.

É orgulhoso, talvez, um orgulho guardado

humilde, com medo de se mostrar,

mas que todo se derrama em palavras, tornando

poesia,

e desabrocha puro - que alegria!

como uma flor no ar.

O resto, Poeta, é o tempo, impassível moinho

que em sua mó (parece mentira)

tudo mói!

E diante dela, a vida, uma outra fotografia de

Itabira

na parede.

Tem razão:

como dói!

Retrato da infância (dez anos)

(Em Rio Branco, no Acre)

O “velho” pigarreando

de chinela, de pijama,

despacha papéis na sala. 

O anspeçada no alpendre,

o milharal com penachos

as saúvas carregando

como fardos, grãos de milho;

arma o tempo, baixa o tempo,

barrica cheia entornando

cantando em baixo da calha.

Que bom o banho na chuva! 

Chuva boa, chuva forte,

veio andando na floresta

fazendo que nem besouro,

abriu cacimba na rua

que virou igarapé;

o milharal se sacode

como galinha no pó,

sacode as folhas molhadas,

cada espiga, - que indecência!

sai da braguilha do pé

potente, como órgão macho.

Junta de boi arrastando

madeira pra serraria,

moleque trepa nos toros

como garça, rio abaixo

no tronco da castanheira;

o carro de boi passando

rodas, gingam, rodas gemem,

tocando harmônica triste

que nem aquela da venda

quando a solidão entorna

saudade no seu Manuel.

O “velho”, sem ordenança,

afunda na rede, ronca,

os punhos rangem nos ganchos

as franjas sujam no chão. 

Só bem mais tarde, à tardinha,

os amigos vão chegando:

o promotor, o juiz,

o comandante da força,

seqüência, trinca, risada,

janta chegou à cozinha

café quente queima a língua,

gargalhada, palavrão.

- “cuidado que a D. Zilda

está na sala de jantar.”

-”Menino corre no Juca

(uf! que calor danado!)

traz “pega pinto” pra todos

faz bem aos rins, sim,senhor!”

O rio verde engordou

com o repiquete que desce,

parece cobra jibóia

entupida com o repasto. 

A cobra foi beber leite

a vaca morreu inchada

bezerro ficou mugindo

noite toda no curral,

O carneiro branco, forte,

(presente de aniversário)

leva o Guilherme a passear,

tem cabresto, arreios, tudo,

de repente dá marrada

no carneirinho do Chico.

Tempo bom!  Engenho rude,

boi rodando, boi rodando,

- que pena no olhar do boi! 

Moenda geme sozinha,

garapa sempre escorrendo

tachada de mel virando

rapadura se fazendo,

cana raspada prontinha,

“alfim” branquinho, puro

que nem o sonho de Eudóxia.

Festa no Grupo Escolar:

eu apache, ela duquesa,

pulseirinha feito cobra

que o preso fez na cadeia

- tem meu nome, o nome dela;

coloco no braço dela,    

- primeira algema de amor.

Santinho passado na aula

castigo da professora,

coisas que a gente não diz

atrás do pano do palco.

Caruso estica o pescoço

no gramofone da escola,

canta, canta, toda a vida

a voz não toma xarope.

Sanhaçu voa na mata

baladeira estica, estica,

pedra parte não vem mais. 

Banho no rio, barulho

de cascavel chocalhando,

a roupa ficou perdida

na canarana da beira,

- correia enrola na carne

molhadinha, como dói!

Friagem entra na noite

arrepia o rio todo

como corpo de caboclo

que impaludismo pegou,

treme a noite, sua frio

na cobertura de zinco,

soalho fica molhado

goteira pinga na sombra.

Manhã.  No alpendre vazio

caiu passarinho morto.

Luz da Usina, candieiro,

o mosquiteiro parece

pano de circo esticado,

carapanã vai e vem. 

Nova sessão no “Casino”

fumaceira, gargalhada,

o Distrito Federal fica

a dois meses dali.

Bicho do pé, mucuim,

melão S. João Caetano,

cajazeiro leva pedra

manhã cedo na floresta,

cajá salpicou de ouro

o chão molhado, da noite. 

Bago de ingá desafiando

queda na cerca de arame,

sangue na perna, - que susto

na cara de D. Zilda

antes da surra chegar.

Lição de coisas: o touro

e a vaca pastam no campo;

o cavalo e a égua cruzam

nos terrenos da Intendência

à vista de D. Zefa

e do padre Bernardeli. 

A molecada faz roda

seu padre faz que não vê.

Manhã cedo no Mercado

o saco de açúcar preto

boca aberta, rindo, rindo;

paneiro, farinha d'água,

e vem o filho do chefe:

mão mexendo, corre, pula,

ninguém prende, ninguém toca,

- “molecada descarada!”

Em cada rua um quintal

mangueiras pesadas, cheias

de sombras, -frutos vermelhos,

manga espada, manga rosa,

manguita doce, tão doce,

como o alfinim da engenhoca;

cajueiro carregado

D. Zilda faz saquinho,

- surpresa do passarinho,-

voou pro quintal do lado.

Bandeirinha de papel

coreto armado na rua,

a banda passa tocando

sargento Zeca, - que pose!

a garotada, - lá vai!

Sino tocando, tocando,

foguete no ar estalando,

vestido novo de seda,

“chata” trouxe de Manaus;

cara pintada, cabelo

com fita grande, parece

que borboleta pousou

na cabeça da Nininha.

Roupa branca, meia branca.

camisa branca, sapato

branco, tudo branco,

parece até comunhão.

mas não é, - é festa só

Catraias brincam no rio

“gaiola” apita, regata,

barranco vermelho, cheio

com a sarna da roupa branca.

 - pessoal enfarpelado.

Olho d'água bem debaixo

da casa de meu avô.

Meu Deus, quanta coisa, quanta

coisa mesmo se passou.

Será que isto tudo é meu

ou foi alguém que contou?

Revelação

Meço a profundidade infinita dos céus

quando encontro o seu olhar azul

no meu olhar...

... e sinto o peso morto de meu próprio corpo

como as velas abertas devem sentir o peso

dos barcos sobre o mar...

Se...

Se eu pudesse parar a minha vida

e dar eternidade a um só momento,

se eu não tivesse o meu destino preso

ao destino das coisas nos espaços...

Se eu pudesse destruir todas as leis

e dentro do Universo que se move

para meu mundo:

havia de escolher esse segundo

em que Você estivesse nos meus braços!

Silenciosamente

Seguimos assim, juntos, felizes,

Juntos, felizes, pela vida a fora...

- Tu, no silêncio em que mais coisas dizes!

- Eu, no silêncio em que me encontro agora!

Meu passo há de seguir por onde pises!

E a tua mão, que em minha mão demora,

há de, com o tempo, até criar raízes,

unindo vida a vida, hora por hora...

Seguiremos assim, como bem poucos,

bendizendo na nossa trajetória

os que souberam como nós ser loucos...

Loucos de amor, ébrios de amor - seguindo

para um mundo de sonhos, para a glória

do silêncio que vamos repartindo!

Sobre a alegria

  

(Deliciosa ironia!

Acaso alguma vez também já te espantaste

quando riste?)

Pois bem, minha alegria

é às vezes exótica maneira

de ser triste!

 

Tédio...

Vontade preguiçosa de apanhar meus nervos

e fazer uma rede para me deitar...

e fechar os meus olhos, como que cansado

de olhar...

e dormir, mas dormir esse sono das pedra

que não podem sonhar...

ser folha, folha morta, caindo

embalada pelo ar...

barco solto, sem  leme,  sem velas, sem nada

ao sabor inconstante do mar

a boiar...

Vontade preguiçosa de encostar a vida

num canto,

para descansar... .

E soltar-me em mim mesmo, e soltar-me, e cair

e deixar-me ficar,

sem ter vontade ao menos para bocejar...

Ah!...

Vontade preguiçosa de não terminar

estes versos morrendo em ar... em ar... em ar

Tragédia

Deveríamos ter dito - há quantos anos?

- agora que nos amamos, podemos separar-nos

para que subsista o amor.

Mas não poderíamos adivinhar que fracionaríamos o amor

toda vez que nossas mãos se encontrassem,

e que o mutilaríamos, ao juntar nossas bocas,

e realmente o abateríamos a pouco e pouco, a cada síncope de prazer

no delírio da posse.

Deveríamos ter dito um ao outro - há quantos anos?

- agora que encontramos o amor, permaneçamos em solidão

anjos da guarda de nosso sonho -

e que ninguém o toque, nem nós mesmos, pois nossos desejos perdulários

e nossas ânsias dionisíacas

o levarão à perdição.

Tivemos um Paraíso - há quantos anos?

Hoje caminhamos indecisos, com um gosto amargo nos lábios,

- acidulou-se o fruto que era mel -

E a solução talvez seja um canto e um balaio gregos

em que o amor será uma oferenda, imolado

aos deuses

por nossas próprias mãos!

Triste

Eu hoje acordei triste, - há certos dias

em que sinto esta mesma sensação...

E não sei explicar, qual a razão

porque as mãos com que escrevo estão tão frias...

E pergunto a mim mesmo: - tu não rias

ainda ontem tão feliz... diz-me então

por que sentes pulsar teu coração

destoando das humanas alegrias?...

E, nem eu sei dizer por que estou triste...

Quem me olha não calcula com certeza,

o imenso caos que no meu peito existe...

A tristeza que eu sinto ninguém vê...

- E a maior das tristezas é a tristeza

que a gente sente sem saber por quê!...

Uma resposta...

Não sabes a alegria em que fiquei

ao ler o que escreveste - o teu cartão

veio um pouco aquecer meu coração,

que de há muito na sombra sepultei...

A tristeza tornou-se-me uma lei

neste estranho pais da solidão...

- já nem sei como vais, nem como vão

aqueles que há mil anos já deixei...

Não penses mais em mim... Sou como um monge,

- não voltarei jamais para a cidade

e o tempo em que me falas vai bem longe...

Fizeste bem em não me acompanhar...

Tinhas toda razão... Felicidade

só eu mesmo encontrei neste lugar!...

Variações sobre o Mangue

(1941)

   

 

Mangue, navio encalhado

de altos mastros para o céu,

- os mastros, são as palmeiras

mastros de tantas bandeiras

que até parece que o mangue

quarda em seu bojo os destroços

de uma torre de Babel...

Desaguadouro da sífilis,

oh! purgatório da raça,

porto cristão da desgraça,

onde se confraternizam

francesas, russas, polacas,

e mulatas nacionais...

Niveladouro dos homens,

vazante de mil desejos   

do oceano das multidões,

Democracia do sexo

no subsolo da vida,

sepulcro anônimo e triste

de infinitas gerações,

todos ali são iguais,

marinheiros ou sargentos,

choferes ou condutores,   

mulatos, pretos ou brancos,

comerciantes ou caixeiros,

estudantes ou doutores,

todos ali são iguais...

Todos se amam, ninguém ama,

é mal que ninguém reclama

Mangue - és apenas a cama,

o pasto ralo, sem grama,

dos instintos nacionais!

Mangue, navio encalhado

já sem destino nem porto,

encalhado num “mar-morto”

com penachos de palmeiras

que são círios ou bandeiras

em festas ou funerais...

Desaguadouro da sífilis

cano de esgoto da raça,

vergonha da juventude

por ti quanta gente passa

e diz que não lembra mais,

- pedaço sujo de praia

no fundo de uma enseada

onde as ondas levam restos

que os próprios peixes não comem,

(e, entretanto, são restos

que alimentam muito homem... )

De quanta gente se sabe

que a sua vida constrói

à beira da praia suja

onde as ondas levam restos

que o próprio mas não destrói,

restos jogados às vagas

por mil navios diversos

de mil países talvez:

dois seios murchos, polacos,

dois olhos russos, doentes,

e adiante, um ventre francês!

De quanta gente se diz

que vive à beira da praia

onde os restos vão boiar,

onde restos jogados ao mar

por um navio feliz

ou, quem sabe se infeliz?

que seguiu a viajar

pro seu distante país...

Mangue, enseada de restos

de restos que vêm da praia,

de restos que vêm do mar,

país de restos perdidos

que entre si se entredevoram

para outros restos deixar...

Mangue, Utopia ao avesso   

humanismo na desgraça

reverso da obra sonhada

com destroços erigida

no cristianismo da dor.

Mangue, um símbolo que passa,

refúgio de órfãos do sexo

dos que sofrem sem carinho

num mundo injusto e perverso,

dos que vivem sem amor...

Trecho da Bíblia arrancado

sem permissão do Senhor...

Quando o teu lodo secar

Mangue velho, velho Mangue,

do teu chão há de se abrir

a flor mais bela e mais pura

que um dia o céu vai cobrir...

Flor livre do amor, sem peias,

de alvas pétalas tão brancas

como o clarão das areias

cheias de sol e de luz,

flor livre do amor humano

sem correntes, sem tirano,

sem sacrifício, sem cruz...

E só então redimida

a tua vida de agora

a gente te esquecerá

na vergonha do que foste

num mundo como hoje está!

.........................................................................................

País de restos perdidos

que ficam boiando n´água

com as marés que vão e vem

num eterno leva-e-traz,

- rude país, deletério,

presídio de imenso império,

“selva selvagem” dos homens,

- menos homens, que animais...

Velho Mangue, cemitério

dos instintos nacionais.

Vergonha

Num mundo em que há migalhas e desperdícios

pratos cheios de restos enfastiados

e bocas a salivar sem ter pão;

e em que há crianças tristes, maltrapilhas,

que não terão nem livros nem recreios

nem mesmo infância no seu coração,

num mundo onde os enfermos são tratados

com a caridade irônica dos homens

proprietários dos próprios hospitais;

onde alguns já nasceram infelizes

e hão de viver sem segurança e paz

sem meios de lutar, abandonados;

e outros, trazem do berço as regalias

que hão de inutilizar, despreocupados;

num mundo onde há mãos cheias, trasbordantes,

e há mendigando, pobres mãos vazias;

onde há mãos duras, ásperas , cansadas,

e suaves mãos, inúteis e macias;

onde uns tem casa grande, com jardins,

e outros, quartos estreitos, sem paisagem;

num mundo onde os artistas, prisioneiros,

fazem “roda” nos mesmos  quarteirões

sonhando sempre uma impossível viagem;

e há homens displicentes nos navios

carregando kodaks distraídas

que tem mais alma que seus olhos frios;

num mundo, onde os que podem, não tem filhos,

e os que tem filhos, quase sempre lutam

porque não podem construir um lar;

num mundo onde o mais leve olhar humano

vê-se que não há nada em seu lugar,

e onde no entanto fala-se em Direito,

em Justiça, em Razão, em Liberdade;

num mundo, onde os que plantam, pouco colhem,

e os que colhem, não sabem, na verdade,

de onde vem as colheitas que consomem;

num mundo, onde uns jejuam muitos dias

e outros, por vício, muitas vezes comem...

- sinto a angústia fatal de ter nascido

e a suprema vergonha de ser homem!

Versos a um canhão

Em meio às baionetas rebrilhantes, nuas,

aos toques de tambor, ao fremir das cornetas,

e à algazarra febril que se espalha nas ruas

arrastam-te em silêncio, em pesadas carretas

Ao seguires assim, pensativo e calado,

em meio à multidão que ansiosa se comprime,

lembras, a passo lento, um pobre condenado

levado ao cadafalso onde expiar seu crime!

Talvez tenhas noção do crime que praticas

se o perpetras distante, onde não chegue o olhar,

- atiras teu projétil, num rompante! e ficas

de joelhos como um monge em penitência, a orar...

Tanto remorso há em ti. talvez, dai culpas tuas,

e do mal que na terra entre os homens, espalhas,

que após cada estampido, assombrado recues

e ouves da retaguarda os gritos das batalhas!

Lá adiante, os homens lutam loucos e inconscientes,

e de vê-lo a lutar não te sentes capaz,

- como que te acovarda o entrechoque das “frentes”,

e te deixas ficar sozinho, para trás!

Gerou-te a desumana perversão da ciência

ninguém pode sentar-te no banco dos réus!

Tens “alma”, - mas ter alma não é ter consciência

e teu dedo para o ar, é uma apóstrofe aos céus!

Deus sem templo e sem fé, a castigar as terras,

teu culto tem mais fiéis que o de outro qualquer deus,

- vives para o esplendor litúrgico das guerras

e dos vis interesses de cristãos e ateus!

Bem outro poderia ser o teu destino:

- uma estátua, talvez, a um sábio consagrada;

mais humano serias continuando um sino

ou mais nobre, talvez, se apenas uma enxada!

Modelaram-te inteiro, - o corpo e a alma de aço -

que culpa então terás, se o próprio coração,

ao lançares no azul como a buscar o espaço

em ruínas faz o mundo ao deflagrar no chão?!

Defendo-te por isso, - tu, que após o estrondo

tens reflexos de horror ouvindo o próprio grito!

Pareces confessar tão alto o crime hediondo

na esperança falaz de acordar o infinito!

Te arrependes talvez... mas sempre muito tarde,

- e se chego a perdoar-te a inconsciência fatal

não perdoarei o engenho pérfido e covarde

daquele que te fez como um gênio do mal!

Bradas! Em vão têm sido os rudes brados teus!

E quem sabe se inúteis sempre o não serão?

E hás de ficar na terra, a apontar para Deus

numa paradoxal e ousada acusação!

Moderno Prometeu! No teu suplício atroz

no teu gesto impotente inteiro te redimes,

- que ao falares, é em vão! ninguém te escuta a voz!

nem sei de juiz capaz de bem julgar teus crimes!

Deus escravo aos cordéis da tragédia da guerra

os homens que te movem, seguir-te-ão também,

para depois com as mãos sujas de sangue e terra

recuarem como tu... tarde demais, porém!

.....................................................................................

Melhor fosses a estátua ou a pena de um poeta,

a ferramenta humilde de um trabalhador,

o sino de um colégio, o dardo de um atleta,

ou um símbolo qualquer de paz, trabalho e amor!

Vício...

Tu nunca bates no meu pensamento à hora de entrar.

Chegas de repente, invade tudo, e é impossível te expulsar

por  que já sou eu que te procuro.

Não escolhes momento. É na hora séria ou na hora triste,

na hora romântica, ou na hora de tédio

por mais que me encontres fechado em mim mesmo

entras pelo pensamento, - clara fresta, vulnerável

às lembranças do teu desejo.

E quando chegas assim, estremeço até regiões ignoradas

e me levanto, e saio, sonâmbulo, a te buscar

e a caminhar a esmo...

Chegas - como uma crise a um asmático, - e então

preciso de ti

como preciso de ar,

e tenho a impressão de que se não te alcanço, se não

te encontro,

vou morrer, miserável, como um transeunte nas ruas,

antes que o socorro chegue para salvá-lo...

Depois que consegues atingir meu pensamento

tua posse é uma obsessão,

alcançar-te é um suplício...

Teu amor para mim - é humilhante a confissão.

não é amor, é vício...

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download