Biologia molecular - Oswaldo Cruz Foundation

[Pages:53]Cap?tulo 2

Biologia molecular

Emanuele Amorim Alves Daniel Santos Souza

2.1 Hist?ria da biologia molecular

2.1.1 A descoberta do DNA

Em muitos aspectos a hist?ria da biologia molecular se confunde com a descoberta do ?cido desoxirribonucleico (DNA) e de sua import?ncia na transmiss?o de informa??es entre gera??es. N?o ? de hoje que os cientistas tentam entender as diferentes caracter?sticas de cada esp?cie. A enorme variedade de seres, desde indiv?duos min?sculos at? animais de grandes dimens?es, tem intrigado e maravilhado muitos pesquisadores. Por?m o mundo cient?fico teve de esperar at? 1858 para que Charles Darwin (18091882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913) descrevessem, separada e concomitantemente, suas teorias da evolu??o das esp?cies. Essas teorias concebem a evolu??o das esp?cies como um processo pelo qual o indiv?duo mais adaptado ao meio sobrevive, e aquele que n?o consegue se adaptar a

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determinada mudan?a do ambiente termina por se extinguir. Tais mudan?as seriam geradas por muta??es adaptativas?

Somente ap?s a segunda metade do s?culo XIX surgiram as primeiras conclus?es sobre a perpetua??o das caracter?sticas heredit?rias dos seres, baseadas no estudo desenvolvido pelo monge austr?aco Gregor Mendel (1822-1884). Suas teorias evolutivas, resultado de estudos realizados com ervilhas, constituem o marco inicial da gen?tica, e seus conceitos s?o at? hoje estudados. Mendel introduziu o conceito de genes ? chamados por ele de fatores ? e a ideia de que eles eram herdados em pares: um gene materno e outro paterno, sendo as caracter?sticas da prole recessivas ou dominantes em rela??o ?s caracter?sticas dos pais.

Anos mais tarde, Friedrich Miescher (1844-1895) isolou um tipo de mol?cula encontrada no n?cleo de linf?citos, ao qual denominou nucle?na. A nucle?na tinha caracter?sticas ?cidas e era sol?vel em solu??es alcalinas dilu?das. Miescher tamb?m determinou a composi??o qu?mica dessa mol?cula, que seria rica em oxig?nio, nitrog?nio e f?sforo. Mais tarde, a natureza ?cida da nucle?na serviria de base para a denomina??o ?cidos nucleicos.

Entre 1882 e 1885, Walther Flemming (1843-1905) e Eduard Strasburger (1844-1912), em estudos sobre estruturas celulares, descobriram estruturas em forma de bast?o no n?cleo das c?lulas e as chamaram de cromossomos, pois eram estruturas intensamente coradas. Poucos anos mais tarde, Theodor Boveri (1862-1915) observou que o n?mero de cromossomos das c?lulas germinativas, em determinado estado de sua matura??o, era reduzido ? metade. Essa observa??o permitiu elucidar o fen?meno de uni?o dos gametas para criarem uma c?lula som?tica do organismo em forma??o, refor?ando ainda mais a teoria de Mendel.

Em 1909, o termo gene foi introduzido por Wilhelm Johannsen (18571927) para designar a unidade mendeliana antes conhecida como fator, designando os termos gen?tipo para as caracter?sticas gen?ticas do indiv?duo e fen?tipo para se referir ao seu aspecto externo.

Baseado no estudo que fez com a mosca-das-frutas (Drosophila melanogaster), o pesquisador Thomas Hunt Morgan (1866-1945) publicou, em 1915, o livro O mecanismo da hereditariedade mendeliana, em que afirmava

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representarem os genes regi?es dos cromossomos respons?veis pelas caracter?sticas inatas do indiv?duo. Curiosamente, esse trabalho teve o aux?lio de Alfred Sturtevant (1891-1970), um aluno de Morgan que, ao ler os trabalhos de Mendel, inicialmente n?o lhes dera muito cr?dito. A partir do trabalho de Thomas Hunt Morgan, passou-se a aceitar que os cromossomos estocavam muitos genes, e que os genes guardavam as informa??es passadas ? prog?nie.

Em 1923, Robert Feulgen (1884-1955) demonstrou, por meio de t?cnicas de colora??o espec?ficas para o DNA, que o mesmo estava ligado intimamente aos cromossomos. Contudo, at? ent?o n?o se sabia da import?ncia da mol?cula do DNA na transmiss?o das informa??es de um indiv?duo para outro.

At? o in?cio do s?culo XX, as biomol?culas mais estudadas foram as prote?nas, pois seu isolamento era mais simples do que o de outras biomol?culas, e a cada ano eram obtidas mais informa??es sobre prote?nas do que sobre qualquer outra biomol?cula existente na c?lula. Por isso, era de se esperar que a transmiss?o de informa??es de pais para filho, processo muito importante para a manuten??o da esp?cie, fosse feita por meio dessas mol?culas t?o complexas, as prote?nas.

Esse paradigma s? foi quebrado em 1928, quando Frederick Griffith (18791941) introduziu o conceito de transforma??o com base em seus experimentos com pneumococos, bact?rias causadoras da pneumonia. Nesse experimento, Griffith utilizou dois tipos de bact?rias: o Pneumococcus do tipo S (do ingl?s smooth, que significa liso), que possui superf?cie lisa em decorr?ncia de uma cobertura de polissacar?deo ? o que o torna extremamente virulento ?, e o Pneumococcus do tipo R, assim chamado por possuir a superf?cie rugosa (rough em ingl?s) e n?o ter cobertura polissacar?dica, n?o sendo virulento.

Ao inocular a bact?ria R viva e a bact?ria S morta, o camundongo morria. Griffith concluiu ent?o que havia algum fator na bact?ria S que "transformava" a bact?ria R em S. Essa conclus?o foi confirmada quando Griffith observou, nos camundongos mortos, a presen?a de col?nias de bact?rias S vivas. Como elas eram mortas por meio do uso de calor, que desnatura prote?nas, era l?gico supor que o material que transmitia essa informa??o n?o era uma prote?na. Pesquisadores contempor?neos de Griffith conclu?ram que a subst?ncia capaz de estimular essa "transforma??o" devia ser o material gen?tico dos Pneumococci do tipo S, que readquiriam a sua virul?ncia.

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Alguns anos ap?s o experimento de Griffith, pesquisadores repetiram os seus experimentos utilizando separa??es que continham apenas DNA, carboidratos, prote?nas ou lip?dios. Constatou-se que somente a por??o com DNA era capaz de transformar as bact?rias, e que o DNA perdia essa capacidade quando tratado com enzimas DNAses. Tais experimentos confirmaram a teoria de Griffith e deram grande credibilidade aos seus experimentos.

Em 1931, Phoebus Aaron Theodor Levene (1869-1940) identificou que bases nitrogenadas, a??car e fosfato formavam as estruturas b?sicas dos ?cidos nucleicos, afirmando que esses ?cidos eram pol?meros. Foi ele tamb?m que descreveu as diferen?as entre o ?cido ribonucleico (RNA) e o DNA, sendo essa nomenclatura amplamente utilizada ap?s suas pesquisas.

Em 1952, Alfred Hershey (1908-1997) e Martha Chase (1927-2003) estavam utilizando em seus experimentos um tipo de v?rus, denominado fago, capaz de infectar bact?rias. No experimento, que ficou conhecido como "experimento do liquidificador", eles marcaram duas culturas de fagos. Uma delas foi marcada com enxofre radioativo, que se incorporou ?s prote?nas, e a outra, com f?sforo radioativo, que se incorporou ao DNA. Posteriormente, incubaram culturas de Escherichia coli com os fagos para que as bact?rias se contaminassem com os v?rus; em seguida, liberaram os v?rus das c?lulas bacterianas, utilizando um liquidificador. Com isso, as c?psulas virais, por serem mais leves, localizavam-se no sobrenadante e as bact?rias, no precipitado. Hershey e Chase perceberam que grande parte do f?sforo se encontrava no precipitado e que a maior parte do enxofre estava no sobrenadante, e conclu?ram que o material infectante era o DNA do v?rus injetado dentro das c?lulas bacterianas. Ap?s esse experimento, houve uma grande "corrida cient?fica" para descobrir a estrutura do DNA.

Utilizando a t?cnica de cromatografia, Erwin Chargaff (1905-2002) verificou que havia uma rela??o quantitativa entre as bases nitrogenadas do DNA: a quantidade de adenina era proporcional ? quantidade de timina (T), assim como a de citosina (C), ? de guanina (G). Esses dados foram posteriormente denominados postulados de Chargaff e seriam muito importantes na descoberta da estrutura do DNA.

Em 1953, os pesquisadores James Dewey Watson (1928) e Francis Harry Compton Crick (1916-2004) publicaram trabalho em que elucidaram

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a estrutura do DNA, utilizando para isso dados das pesquisas de Rosalind Franklin (1920-1958) e Linus Pauling (1901-1994). Por meio da difra??o de raios X, Rosalind obteve excelentes imagens do DNA que mostravam com grande precis?o as dimens?es da mol?cula: a estrutura era formada por uma espiral de 20 A, a dist?ncia entre as bases dispostas paralelamente ao eixo helicoidal era de 3,4 A e o valor da altura de um giro da espiral cristalizada era de 34 A. Pauling descreveu inicialmente um modelo para o DNA no qual as bases nitrogenadas estavam voltadas para o lado externo da mol?cula e os fosfatos, voltados para o interior da espiral.

Watson e Crick viram que o DNA era uma espiral, mas as bases n?o poderiam ser externas ? mol?cula por proporcionar caracter?sticas b?sicas ao DNA. Al?m disso, se os grupos fosfato estivessem t?o pr?ximos uns dos outros no interior da estrutura seriam repelidos, fazendo-a inst?vel.

Utilizando essas informa??es, Watson e Crick descreveram a mol?cula de DNA como uma espiral na qual as bases nitrogenadas s?o ligadas entre si internamente (timina com adenina e citosina com guanina) e os grupos fosfato, carregados negativamente, est?o voltados para fora da mol?cula. O corpo da mol?cula ? constitu?do por pol?meros de base nitrogenada a??car-fosfato, e as liga??es entre eles, denominadas liga??es fosfodi?ster, ocorrem na dire??o 3'-5'.

A elucida??o da estrutura do DNA representou um marco na biologia, sendo respons?vel pelo surgimento da biologia molecular. Originada na bioqu?mica e na gen?tica, a biologia molecular, principal ferramenta na atualidade para a elucida??o e o aperfei?oamento da vida, ? a ci?ncia do s?culo XXI e seguramente ainda tem potencial para auxiliar o ser humano.

2.1.2 A estrutura dos ?cidos nucleicos

O DNA, assim como o RNA, ? um pol?mero formado por v?rios nucleot?deos ligados entre si. Os nucleot?deos s?o formados por uma base nitrogenada, um a??car e um radical de ?cido fosf?rico (fig. 2.1). Gra?as ao ?cido fosf?rico, os ?cidos nucleicos t?m propriedades ?cidas e possuem carga negativa quando em pH neutro ou alcalino.

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Figura 2.1. Esquema da estrutura de um nucleot?deo.

As bases nitrogenadas podem ser purinas ? adenina e guanina ? e pirimidinas ? citosina, timina e uracila (presente somente no RNA). A estrutura das bases nitrogenadas encontra-se na figura 2.2.

Figura 2.2. Estrutura das bases nitrogenadas do DNA e do RNA: a mol?cula de DNA apresenta as bases adenina, timina, citosina e guanina; o RNA cont?m adenina,

uracila, citosina e guanina.

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Os nucleot?deos se ligam por meio de liga??es fosfodi?ster que ocorrem entre a hidroxila do carbono 5' da pentose e a hidroxila do carbono 3' do nucleot?deo seguinte.

O DNA ? formado por duas fitas de nucleot?deos; j? o RNA ? formado por uma ?nica fita. Existe intera??o entre as duas fitas de DNA: por interm?dio de pontes de hidrog?nio entre as bases e por intera??es hidrof?bicas. As pontes de hidrog?nio ocorrem entre as bases timina (T) e adenina (A) e entre a citosina (C) e a guanina (G). Entre a timina e a adenina, existem duas pontes de hidrog?nio; entre a citosina e a guanina existem tr?s. Essas liga??es ocorrem por causa das dimens?es moleculares das bases nitrogenadas e de seus radicais, assim como em decorr?ncia do posicionamento dos grupos que formam as pontes de hidrog?nio. Isso significa que as duas fitas de DNA s?o complementares entre si, sendo esse fato importante no momento da transmiss?o de informa??o. Outra forma de intera??o ocorre por meio das intera??es hidrof?bicas entre os an?is heteroc?clicos das bases. Essa intera??o faz que a parte interna das fitas seja apolar e, em um ambiente aquoso, ela favorece a intera??o entre a dupla fita.

Figura 2.3. Esquema simplificado das intera??es de hidrog?nio que ocorrem entre as bases nitrogenadas do DNA. Em (a), as duas pontes que ocorrem entre a timina e a

adenina; em (b), as tr?s pontes de hidrog?nio entre a guanina e a citosina.

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A espiral formada pelas fitas de DNA tamb?m possui outras caracter?sticas. Seu formato favorece a forma??o de duas reentr?ncias, denominadas sulco menor e sulco maior, que auxiliam a intera??o entre as prote?nas e a mol?cula do DNA. A espiral do DNA tamb?m apresenta mais duas conforma??es, que s?o varia??es e dependem da composi??o de bases e do meio em que o DNA se encontra. Essas formas foram analisadas por meio de estudos de cristalografia.

A espiral descrita por Watson e Crick ? denominada forma B do DNA. Essa ? a forma mais abundante nas condi??es fisiol?gicas e em solu??es de baixa for?a i?nica. Ainda existem as formas A e Z. A forma A ? mais curta e mais grossa do que a forma B, e ? encontrada em meios de baixo conte?do salino. A forma Z ? mais longa e fina do que a forma B. N?o se conhecem ainda as vantagens da estrutura Z, mas ? fato que h? convers?o entre B e Z no organismo.

Figura 2.4. Representa??o esquem?tica da mol?cula dupla fita de DNA.

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