A Justiça do Trabalho como vetor da Justiça Social
A Justi?a do Trabalho como vetor da Justi?a Social
Val¨¦ria Marques Lobo*
I
O Direito do Trabalho disp?e de um car¨¢ter civilizat¨®rio e democr¨¢tico. Sua presen?a,
qualidade e extens?o constituem importantes indicadores do patamar de cidadania e bem estar
alcan?ado por uma determinada sociedade. Referindo-se ao Direito do Trabalho, o jurista
Maur¨ªcio Godinho Delgado assinala que
Este ramo jur¨ªdico especializado tornou-se, na Hist¨®ria do Capitalismo Ocidental, um dos
instrumentos mais relevantes de inser??o na sociedade econ?mica de parte significativa dos
segmentos sociais despossu¨ªdos de riqueza material, e que, por isso mesmo, vivem do seu
pr¨®prio trabalho. Nesta linha, ele assumiu o papel, ao longo dos ¨²ltimos 150 anos, de ser um
dos principais mecanismos de controle e atenua??o das distor??es socioecon?micas inevit¨¢veis
do mercado e sistema capitalistas1.
Desta forma, ao introduzir dispositivos de prote??o ao ¡°economicamente
desfavorecido¡±, o Direito do Trabalho, nos termos de Luiz Werneck Vianna, ¡°infiltrou no
campo do direito um argumento de justi?a¡±, emprestando ao direito privado cl¨¢ssico ¡°um
novo significado, pondo-o tamb¨¦m a servi?o da justi?a social¡±2. No caso brasileiro, a Justi?a
do Trabalho ¨¦ a institui??o destinada a assegurar aos trabalhadores a frui??o de direitos
sempre que os empregadores evadem-se da lei. Tendo em vista que essa postura ¨¦ comum e
freq¨¹ente nos meios empresariais brasileiros, o judici¨¢rio trabalhista ganha proemin¨ºncia,
assumindo um papel de relevo na promo??o da justi?a social, imprimindo um car¨¢ter, por
assim dizer, mais civilizado e democr¨¢tico no capitalismo brasileiro. ? sobre essa institui??o
que pretendo discutir nesta comunica??o.
A Justi?a do Trabalho foi institu¨ªda no Brasil por meio da legisla??o trabalhista fixada
no pa¨ªs durante o Primeiro Governo Vargas. O objetivo do governo ao regulamentar o direito
do trabalho e estabelecer uma institui??o destinada a intermediar as rela??es de trabalho era
promover colabora??o de classes e, por conseguinte, a paz social considerada necess¨¢ria ao
*
Professora Associada da Universidade Federal de Juiz de Fora. A pesquisa foi financiada pelo CNPq e
parcialmente realizada no ?mbito do est¨¢gio p¨®s-doutoral junto ¨¤ LSE-UK e ao CEDEPLAR/UFMG.
desenvolvimento urbano e industrial do pa¨ªs. Essa inten??o ¨¦ n¨ªtida em diversos
pronunciamentos de Vargas, a exemplo do que se segue:
o melhor meio de garanti-lo [o capital] est¨¢, justamente, em transformar o proletariado numa
for?a org?nica de coopera??o com o Estado, e n?o o deixar, pelo abandono da lei, entregue ¨¤
a??o dissolvente de elementos perturbadores3.
Tal objetivo, ilustrado pelo discurso acima, ¨¦ reconhecido pela quase totalidade da
literatura referente ao tema. Contudo, se h¨¢ consenso nas abordagens acerca do per¨ªodo
quanto ¨¤s raz?es que motivaram o Governo Vargas a criar um minist¨¦rio do trabalho, uma
legisla??o trabalhista extremamente detalhada e uma institui??o destinada a mediar as
rela??es de trabalho, transferindo o conflito de classes da esfera do mercado para o ?mbito do
Estado, o mesmo n?o se pode afirmar em rela??o aos efeitos que essas medidas efetivamente
produziram sobre os trabalhadores e as rela??es industriais ao longo da hist¨®ria. No caso
espec¨ªfico da Justi?a do Trabalho, pouco se sabe acerca do papel desempenhado ao longo de
sua trajet¨®ria por essa que ¨¦ uma das mais longevas e s¨®lidas institui??es do pa¨ªs. Embora a
hist¨®ria do judici¨¢rio trabalhista venha despertando o interesse dos historiadores nos ¨²ltimos
anos, h¨¢ ainda muitas indaga??es acerca de aspectos diversos que envolvem a hist¨®ria da
Justi?a do Trabalho no pa¨ªs.
Visando contribuir para elucidar a hist¨®ria do judici¨¢rio trabalhista no Brasil, este
cap¨ªtulo traz o resultado de um estudo de caso que investigou o comportamento junto ¨¤
Justi?a do Trabalho de trabalhadores t¨ºxteis e metal¨²rgicos no munic¨ªpio de Juiz de Fora,
entre as d¨¦cadas de 1940 e 1960. O objetivo da pesquisa consistiu em relacionar as diferen?as
que se observam nas a??es dessas duas categorias junto ¨¤ Justi?a do Trabalho com a situa??o
da ind¨²stria t¨ºxtil e metal¨²rgica no munic¨ªpio durante o per¨ªodo indicado. A hip¨®tese que
orientou a investiga??o ¨¦ que as particularidades de cada ramo industrial se refletem nas
rela??es de trabalho e que as caracter¨ªsticas que marcam as rela??es de trabalho em cada um
dos ramos repercutem nas demandas que os trabalhadores de ambas as categorias
encaminham ¨¤ Justi?a do Trabalho. Trata-se, pois, de proceder a uma an¨¢lise quantitativa do
uso da Justi?a do Trabalho pelas categorias mencionadas, na tentativa de compreender se e em
que medida as especificidades de cada ramo se refletem no uso que os trabalhadores das
distintas categorias fazem do judici¨¢rio trabalhista. A pesquisa que deu origem a esta an¨¢lise
apoiou-se em um grande volume de processos trabalhistas que comportam a??es impetradas ¨¤
Junta de Concilia??o e Julgamento de Juiz de Fora, posteriormente Vara do Trabalho, durante
o per¨ªodo compreendido entre a instala??o da Junta no munic¨ªpio, em 1944, e o Golpe de
1964.
II
Na contram?o da vertente predominante at¨¦ os 70, que via nas institui??es criadas sob
a ¨¦gide getulista meros instrumentos de controle sobre os trabalhadores, induzindo-os ¨¤
passividade, estudos produzidos a partir dos anos 80, ao direcionarem suas lentes para a a??o
dos trabalhadores nas ruas, nos bairros, nas f¨¢bricas, nos sindicatos e tamb¨¦m junto ¨¤s
institui??es, t¨ºm permitido, por exemplo, formular a hip¨®tese de que, ao contr¨¢rio do que se
acreditava, tais institui??es podem ter sido, na realidade, instrumentalizadas pelos
trabalhadores. Nesse sentido, o acervo do judici¨¢rio trabalhista, que nos ¨²ltimos anos tem
subsidiado um volume crescente de pesquisas, revela um potencial imensur¨¢vel para elucidar
o conflito capital/trabalho que marca os ¨²ltimos 70 anos da hist¨®ria da rep¨²blica brasileira. ?
desse acervo que extra¨ªmos as fontes para a pesquisa que resultou nesta se??o, cujo objetivo
consiste em analisar o uso da Justi?a do Trabalho por t¨ºxteis e metal¨²rgicos em Juiz de Fora
entre as d¨¦cadas de 1940 e 1960.
Antes de passar ¨¤ an¨¢lise, cumpre esclarecer que a escolha desse per¨ªodo como foco da
an¨¢lise e das categorias t¨ºxtil e metal¨²rgica como objeto de estudo justifica-se em face dos
seguintes fatores. 1- Trata-se de um contexto em que o movimento sindical encontra-se em
grande atividade e no qual, dada a presen?a de um sistema pol¨ªtico aberto, sobretudo a partir
de 1945, a a??o sindical ganha visibilidade; 2- por outro lado, esse ¨¦ um momento de
transi??o da industrializa??o brasileira, marcado pela passagem da industrializa??o restringida
para a industrializa??o pesada, processo que se reflete em Juiz de Fora, n?o obstante as
peculiaridades da evolu??o da economia local. De todo modo, essa transi??o tem impacto
sobre a configura??o da estrutura ocupacional da sociedade brasileira e sobre o mercado de
trabalho de Juiz de Fora, bem como sobre a composi??o das categorias profissionais
analisadas4.
Nesse per¨ªodo, a ind¨²stria t¨ºxtil sofre um processo de reestrutura??o, com a
introdu??o, em alguns casos, de tecnologia poupadora de m?o de obra 5 . Ao passo que a
ind¨²stria metal¨²rgica, que adquire crescente import?ncia no cen¨¢rio econ?mico do per¨ªodo,
baseia-se desde cedo no uso do capital intensivo e numa for?a-de-trabalho mais especializada
e, portanto, mais escassa, de mais dif¨ªcil substitui??o6. Tais fatores, se n?o chegam a reduzir o
desequil¨ªbrio na correla??o de for?as entre Capital e Trabalho nessa categoria, em contraste
com a categoria t¨ºxtil -- contribuindo, hipoteticamente, para o aumento do poder sindical e
para a redu??o da tend¨ºncia patronal a evadir-se da norma --, no m¨ªnimo afeta o
comportamento dos atores e condiciona o empregador do ramo metal¨²rgico a adotar uma
postura particular diante da legisla??o, repercutindo, assim, no uso que o trabalhador faz da
Justi?a do Trabalho.
Por outras palavras, a constata??o de que as rela??es de trabalho s?o distintas
conforme o setor de produ??o, e que essas diferen?as s?o caudat¨¢rias da pr¨®pria posi??o que
os trabalhadores de cada categoria profissional ocupam na estrutura produtiva do pa¨ªs, nos
permite formular a hip¨®tese de que t¨ºxteis e metal¨²rgicos fazem uso distinto do judici¨¢rio
trabalhista. Em boa medida isso decorre da pr¨®pria posi??o que os empregadores assumem
diante da legisla??o trabalhista. Isto ¨¦, a an¨¢lise dos processos sugere que os empres¨¢rios do
ramo t¨ºxtil tendem a burlar com mais freq¨¹¨ºncia as leis relacionadas ¨¤ remunera??o do
trabalho, ao passo que os empres¨¢rios da ind¨²stria metal¨²rgica parecem evadir-se com mais
freq¨¹¨ºncia das normas referentes ao tempo de trabalho.
Nos par¨¢grafos seguintes, busca-se responder a indaga??es tais como as que se
seguem: Qual o tipo de reclama??o mais freq¨¹ente; qual o tipo de reclama??o mais freq¨¹ente
segundo a categoria do reclamante; qual ¨¦ a situa??o mais freq¨¹ente do reclamante (ativo ou
demitido); qual ¨¦ a situa??o mais freq¨¹ente do reclamante segundo a categoria; qual ¨¦ o tipo
de reclama??o mais freq¨¹ente segundo a situa??o do reclamante; qual o resultado mais
freq¨¹ente; qual o resultado mais frequente segundo a categoria do reclamante; qual ¨¦ o tipo de
a??o mais freq¨¹ente (coletiva ou individual); qual ¨¦ o tipo de a??o mais freq¨¹ente segundo a
categoria; qual a reclama??o mais freq¨¹ente segundo o tipo de a??o; qual ¨¦ o resultado mais
freq¨¹ente segundo o tipo de a??o.
Conforme sugerimos, a estrutura ocupacional se reflete no comportamento de
empres¨¢rios e empregados em cada ramo industrial e isso tende a repercutir no conte¨²do das
demandas encaminhadas ¨¤ Justi?a do Trabalho. As an¨¢lises processadas nesta se??o, embora
n?o encerrem as quest?es que levantamos anteriormente, indicam tend¨ºncias importantes, as
quais, contudo, ficam na depend¨ºncia de pesquisas futuras para que sejam testadas.
Considerando a totalidade dos registros, as quest?es relacionadas ¨¤ remunera??o do
trabalho s?o mais freq¨¹entes para o conjunto dos trabalhadores, independente da categoria em
que est?o inseridos. Se agrupadas as reclama??es por pagamento de abono salarial, adicional
noturno, comiss?es, descontos indevidos, diferen?a salarial, gratifica??es, redu??o salarial,
sal¨¢rio retido, observa-se que 47% do total de reclama??es enquadram-se nestes tipos de
a??o. Se consideradas apenas reclama??es por diferen?a salarial, verifica-se que 33,74% do
total de a??es constituem reclama??es por sal¨¢rios.
Contudo, a desagrega??o dos dados por categoria profissional permite constatar que a
quest?o salarial desencadeia com mais freq¨¹¨ºncia reclama??es entre os t¨ºxteis, em contraste
com os metal¨²rgicos. Se consideradas as reclama??es por pagamento de abono salarial,
adicional noturno, comiss?es, descontos indevidos, diferen?a salarial, gratifica??es, redu??o
salarial e sal¨¢rio retido constata-se que 48% dos processos impetrados por t¨ºxteis s?o
motivados por fatores de ordem salarial, ao passo que entre os metal¨²rgicos o ¨ªndice ¨¦ de
34%. Se considerarmos apenas reclama??es por diferen?a salarial o contraste ¨¦ ainda mais
n¨ªtido, com 34,82% para os t¨ºxteis contra apenas 11,34% para os metal¨²rgicos.
Isso nos permite inferir, de antem?o, que, em contraste com o empresariado do ramo
metal¨²rgico, os propriet¨¢rios de ind¨²strias t¨ºxteis tinham uma maior tend¨ºncia a pagar
sal¨¢rios menores e a burlar com mais freq¨¹¨ºncia a legisla??o referente ¨¤ remunera??o do
trabalho. A remunera??o parece ser, pois, uma componente mais importante da
superexplora??o do trabalho no ramo t¨ºxtil do que no metal¨²rgico.
Em contraste, os metal¨²rgicos demandavam com mais freq¨¹¨ºncia a redu??o das horas
de trabalho. De modo que, se tomarmos exclusivamente os dados relacionados ¨¤s reclama??es
feitas ¨¤ Justi?a do Trabalho, podemos inferir que o ritmo de trabalho era mais intenso entre os
metal¨²rgicos que entre os t¨ºxteis. Isso pode ser constatado a partir das reclama??es reunidas
nas seguintes categorias: descanso semanal, feriados, f¨¦rias retidas, horas-extras,
insalubridade e redu??o de horas de trabalho. Em todos esses casos h¨¢ significativa
¡°vantagem¡± para os metal¨²rgicos. No conjunto, a??es deste tipo somam 49,31% do total de
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