UMA BREVE ANÁLISE DA IMPRENSA MOÇAMBICANA

[Pages:12]UMA BREVE AN?LISE DA IMPRENSA MO?AMBICANA

S?rgio Chichava | Jonas Pohlmann

Usada para veicular informa??o e propaganda, capaz de fazer cair governos, decidir uma elei??o e at? incitar guerras, a imprensa ? um elemento central nas sociedades contempor?neas. Nas ?ltimas d?cadas, com o crescimento e expans?o da imprensa escrita, da r?dio e da televis?o, e com o surgimento de novos meios de comunica??o, com destaque para a Internet, o impacto social da imprensa aumentou exponencialmente. Neste per?odo, ganhou tamb?m for?a a ideia de que ? fun??o da imprensa, para al?m de informar e transmitir uma vis?o imparcial dos eventos, a fiscaliza??o da actua??o governamental, velando pela boa gest?o da coisa p?blica e oferecendo um contrapeso ao poder p?blico, o qual, sem o devido controlo social, pode ser abusado para fins privados e partid?rios. Para muitos, a imprensa ter-se-ia tornado numa esp?cie de quarto poder republicano, actuando ao lado dos poderes executivo, legislativo e judici?rio. Em Mo?ambique, uma das primeiras medidas tomadas pela Frelimo logo ap?s assumir o poder, a 25 de Junho de 1975, foi controlar a imprensa. Num contexto em que acabava de se sair de uma guerra contra o colonialismo, na qual certa imprensa, sobretudo a mais importante (Not?cias de Louren?o Marques e Not?cias da Beira, Tempo, Di?rio de Mo?ambique, Voz Africana, s? para citar alguns exemplos), era controlada por grandes capitalistas hostis ? Frelimo e pr?ximos ao poder colonial, o controlo da imprensa era visto como essencial ? defesa dos interesses nacionais do rec?m-independente Mo?ambique. Tamb?m, a imprensa era vista pelos l?deres da Frelimo como um importante instrumento para transmitir as ideias e ideais do novo regime, desencorajar ou controlar sectores hostis ou considerados como tal, e consolidar a unidade nacional. A reuni?o de Macomia, prov?ncia de Cabo Delgado, realizada de 26 a 30 de Novembro de 1975, iria discutir e definir as linhas gerais pelas quais a imprensa devia doravante guiar as suas actividades, as quais deveriam centrar-se em "informar, educar, mobilizar e organizar" a popula??o (Machel, 1977). No III Congresso da Frelimo, em 1977, o partido e, consequentemente, o governo de Mo?ambique, aderem ? ideologia socialista na sua vertente marxista-leninista, e acentua-se a percep??o de que a imprensa deveria ser um instrumento do Partido-Estado, um instrumento da alian?a oper?rio-camponesa e do seu partido de vanguarda ao servi?o da revolu??o, um importante elemento na luta contra o capitalismo e o imperialismo e na constru??o do "homem

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novo". Em 1977, no 1.? Semin?rio Nacional de Informa??o, assim se manifestou Samora Machel, primeiro presidente do Mo?ambique independente:

(...) n?o h? terreno neutro na luta de classes (...) A origem pequeno-burguesa da maioria dos jornalistas, a educa??o colonial que receberam, os m?todos e conceitos de informa??o burguesa cuja influ?ncia transportam at? hoje, constituem factores que facilitam e favorecem a ac??o de retorno das ideias erradas, dos h?bitos velhos. (...) O jornalista deve assumir a consci?ncia de que ocupa um posto de combatente na frente ideol?gica da luta das massas trabalhadoras. Deve assumir integralmente os interesses e as aspira??es dos oper?rios e camponeses. O seu modelo deve ser o oper?rio de vanguarda. Os seus deveres correspondem aos dos membros do Partido.

(...) A informa??o deve desempenhar um papel fundamental na cria??o do Homem Novo e s? pode faz?-lo se os trabalhadores da informa??o se engajarem na sua pr?pria transforma??o, assumindo ao n?vel das ideias, do trabalho, da vida e do comportamento, os valores novos, os valores do homem socialista. Isto significa tamb?m que o Partido deve dar uma aten??o particular ao enquadramento pol?tico dos jornalistas. Neste sentido, intensificaremos a implanta??o das estruturas do Partido nos ?rg?os de informa??o. (...) Al?m disso, ? necess?rio efectuar o enquadramento pol?tico dos jornalistas no seu conjunto, atrav?s duma estrutura pr?pria. Uma estrutura que promova a unidade de pensamento e de ac??o dos jornalistas (...) (Machel, 1977)

Foi neste contexto que certos jornais foram encerrados e outros nacionalizados, o mesmo acontecendo com a r?dio. Neste ?ltimo caso, foi criada a R?dio Mo?ambique (doravante ?nica esta??o de r?dio no pa?s e com cobertura nacional), ap?s o encerramento das r?dios da era colonial, nomeadamente a R?dio Clube de Mo?ambique, a R?dio Pax e o emissor Aeroclube da Beira. De forma breve, pode-se dizer que, durante quinze anos (1975-1990), ou seja, durante a vig?ncia do regime monopartid?rio, o cen?rio da imprensa em Mo?ambique foi marcado pelo controlo da imprensa pelo Partido, pela censura e autocensura. A imprensa era um instrumento do governo na busca de certos objectivos, e a liberdade de express?o e de imprensa eram vistas como meras ilus?es burguesas, amea?as ao ideal socialista e revolucion?rio: fora do Partido-Estado, o destino da imprensa n?o seria a independ?ncia e a liberdade de express?o, mas o controlo por interesses capitalistas e contra-revolucion?rios. No contexto de transi??o para a democracia multipartid?ria, com a promulga??o da constitui??o pluralista e liberal de 1990 (Artigo 74) e da Lei de Imprensa (Lei n.o 18/91), uma s?rie de liberdades e garantias individuais antes vistas como burguesas foram estendidas aos mo?ambicanos, de entre elas a possibilidade de se exprimirem livremente e de criarem uma imprensa independente, n?o mais sujeita ?s interpreta??es do Partido no poder, garantias estas que foram consolidadas e reafirmadas com a Constitui??o de 2004. Para regular o funcionamento da

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imprensa, a Lei de Imprensa tamb?m criou o Conselho Superior de Comunica??o Social (CSCS), ?rg?o que se pretende independente, aut?nomo administrativa e financeiramente, e que tamb?m recebeu status constitucional na Constitui??o de 2004 (art. 50). As principais fun??es do CSCS s?o assegurar a independ?ncia dos meios de comunica??o social no exerc?cio dos direitos ? informa??o, ? liberdade de imprensa, bem como dos direitos de antena e de resposta. A abertura pol?tica permitiu a emerg?ncia de muitos jornais, r?dios e televis?es independentes do Estado, os quais, mesmo se concentrados em Maputo e acess?veis apenas a uma pequena "elite" urbana, renovaram em muitos a esperan?a de um debate p?blico mais aberto e construtivo, e de uma imprensa mais empenhada na busca e divulga??o dos factos e suas vers?es, e n?o mais apenas na divulga??o de uma ?nica vers?o dos factos. Desde ent?o, muito se debateu em rela??o ? independ?ncia dos meios de comunica??o, p?blicos e privados, em rela??o aos interesses partid?rios e do Estado, aspecto importante na edifica??o de uma sociedade livre e democr?tica. Os debates acerca da imprensa s?o importantes para a democracia por v?rias raz?es, com destaque para o seu papel na socializa??o pol?tica, ou seja, no inculcamento nos cidad?os de valores e cren?as relativas ao poder e seu funcionamento. Como diz Philippe Braud (1998:241), a imprensa joga um importante papel na constru??o de representa??es pol?ticas, pois: "Para muitas pessoas, a televis?o [sobretudo] e a imprensa escrita s?o as ?nicas formas de saber quem s?o seus representantes, o que eles cr?em (ou ? suposto crerem), o que eles afirmam, o que eles vivem. A classe pol?tica n?o existe sen?o atrav?s delas [da televis?o e da imprensa escrita]." Para al?m disto, acrescenta Braud, os m?dia t?m um papel importante ao n?vel de integra??o social, "ao consagrar um grande espa?o ? actualidade, eles contribuem para construir uma hist?ria e mem?rias comuns (ibidem)". Para al?m de ater-se ? quest?o do relacionamento da imprensa com o poder pol?tico, interessante ? ver at? que ponto a multiplica??o de ?rg?os de informa??o e comunica??o privados permitiu a emerg?ncia de uma imprensa investigativa e profissional. Ou seja, ter? isso contribu?do para a melhoria da qualidade do jornalismo praticado em Mo?ambique? Se ? ineg?vel que a diversidade em termos de informa??o ? uma realidade, d?vidas persistem quanto ? emerg?ncia de um jornalismo investigativo, s?rio e profissional, exceptuando alguns casos. Quais as raz?es disso?

BREVE PANORAMA GERAL DA IMPRENSA MO?AMBICANA1

As principais li??es que devem ser tiradas da apresenta??o e caracteriza??o sucinta dos meios de comunica??o social actualmente existentes em Mo?ambique referem-se ao facto de serem eminentemente urbanos e de estarem concentrados em Maputo.

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Actualmente, existem sete esta??es de televis?o com sinal livre: duas p?blicas e seis privadas. No primeiro grupo, encontramos a 1) Televis?o de Mo?ambique (TVM) e 2) a R?dio e Transmiss?o de Portugal para ?frica (RTP-?frica), de origem portuguesa e difundida a partir da antiga metr?pole para todas as antigas col?nias portuguesas. De entre as privadas, encontramos: 1) a STV, pertencente ? Sociedade Independente de Comunica??o (SOICO), de empres?rios mo?ambicanos e fundada em 2002. Esta televis?o cobre oito das onze prov?ncias do pa?s, nomeadamente Maputo (cidade e prov?ncia), Gaza e Inhambane, no Sul, Manica, Tete e Zamb?zia, no Centro, e Nampula, no Norte;2 2) A Televis?o Independente de Mo?ambique (TIM), criada em 2006 por empres?rios mo?ambicanos, que, para al?m de Maputo, emite em Tete, Cabo Delgado, Beira e Quelimane; 3) TV Miramar, propriedade da Igreja Universal do Reino de Deus; 4) a SIRT-TV, criada em 2002 e com sede na cidade de Tete -- portanto, a ?nica com sede fora da capital --, pertencente a Ant?nio Marcelino de Mello3; a 5) KTV, descendente da antiga R?dio e Televis?o Klint (RTK), a primeira esta??o televisiva privada criada em Mo?ambique, ent?o criada por Carlos Klint, antigo militante da Frelimo. A KTV possui uma esta??o de r?dio, a KFM, que tamb?m emite em FM; 6) a TV Man?, com sede em Maputo, de propriedade da Associa??o Man? Igreja Crist?. Em termos de radiodifus?o, para al?m da R?dio Mo?ambique, a ?nica r?dio com cobertura nacional e a ?nica r?dio p?blica do pa?s, existem v?rias outras esta??es de r?dio privadas. Entretanto, para al?m de estarem concentradas em Maputo, estas r?dios, que emitem em FM, tem um raio de cobertura bastante pequeno. A Frelimo tamb?m tem a sua r?dio, a R?dio ?ndico (propriedade da Associa??o dos Combatentes da Luta de Liberta??o Nacional, uma das organiza??es sociais da FRELIMO). A Renamo tamb?m tinha a sua r?dio, a R?dio Terra Verde, entretanto cedida em 2008 a uma empresa privada, a empresa Nova Difus?o (Secretariado do Conselho de Ministros, 14 de Outubro de 2008).4 Para se alcan?ar o maior n?mero de mo?ambicanos, foram criadas v?rias r?dios comunit?rias nas zonas rurais, as quais veiculam informa??o em l?nguas locais. A grande maioria destas r?dios contou com forte apoio inicial (1998-2006) da UNESCO e do PNUD, sendo que outras foram criadas pelo Instituto de Comunica??o Social (ICS), uma entidade estatal. Desde Abril de 2004, a maioria das r?dios comunit?rias sem v?nculo com o Estado trabalha em conjunto por meio do F?rum Nacional de R?dios Comunit?rias (FORCOM), uma iniciativa de trabalho em rede para consolidar e auxiliar as r?dios comunit?rias no seu trabalho. No que toca ? imprensa escrita, existem tr?s jornais di?rios, todos de circula??o nacional: o Not?cias, o Di?rio de Mo?ambique e O Pa?s (antigo seman?rio, transformado em di?rio em 2008). Os dois primeiros pertencem ? Sociedade Not?cias SARL, uma empresa organizada como sociedade an?nima mas cujos principais accionistas s?o entidades estatais ou com participa??o maiorit?ria do Estado mo?ambicano: o Banco de Mo?ambique (o banco central do pa?s), a EMOSE (a companhia de seguros do Estado, que, se actua sob o formato de sociedade an?-

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nima, ? do Estado a propriedade da maioria das suas ac??es) e a PETROMOC (companhia de distribui??o de derivados de petr?leo, que actua sob formato de sociedade an?nima mas cujas ac??es s?o na maioria subscritas pelo Estado). O jornal O Pa?s ? privado e pertence ao grupo SOICO, propriet?rio da esta??o de televis?o STV. Com 30 mil exemplares, ? o di?rio com maior tiragem, ultrapassando de longe o Not?cias e o Di?rio de Mo?ambique. O Di?rio de Mo?ambique ? o ?nico quotidiano publicado fora da capital, mais propriamente na cidade da Beira. De entre os seman?rios, circulam hoje (meados de 2009) nove jornais: Zambeze (8000 exemplares), Magazine Independente (7000 exemplares), Canal de Mo?ambique (5000 exemplares), Savana (entre 12 000 e 15 000 exemplares), Domingo (10 000 exemplares), P?blico (3000 exemplares), Escorpi?o (5000 exemplares), A Verdade (50 000 exemplares) e Desafio (12 000 exemplares). De entre estes, o seman?rio Domingo, o mais antigo, e o jornal Desafio, dedicado ao desporto, pertencem ? Sociedade Not?cias SARL, sendo os restantes estritamente privados, sem rela??o com empresas estatais ou com participa??o do Estado. O Desafio ? o ?nico jornal desportivo em Mo?ambique, pois o jornal O Campe?o, uma iniciativa de alguns jornalistas desportivos mo?ambicanos, n?o conseguiu singrar no mercado. Sublinhar, tamb?m, que o seman?rio A Verdade, criado em 2008, para al?m de ser o seman?rio privado com maior tiragem e de ser o ?nico impresso fora de Mo?ambique (? impresso na ?frica do Sul), ? o primeiro e ?nico jornal de distribui??o gratuita que o pa?s possui. Finalmente, tamb?m entre os m?dia escritos, destaca-se a Ag?ncia de Informa??o de Mo?ambique (AIM), que ? uma entidade estatal e divulga informa??es em ingl?s e portugu?s, sendo uma das principais fontes de informa??o sobre Mo?ambique para os m?dia estrangeiros.

ENTRE DEPEND?NCIA E INDEPEND?NCIA

A abertura pol?tica possibilitou a emerg?ncia de uma imprensa independente, investigativa, s?ria e combativa, n?o mais ao servi?o dos interesses do partido, mas livre para reportar a sua interpreta??o dos factos. Liderada por indiv?duos como Carlos Cardoso -- fundador, com outros jornalistas em torno do grupo Mediacoop, do primeiro jornal fax de Mo?ambique, o MediaFax, e do primeiro seman?rio independente, o Savana -- esta imprensa, para al?m de Informar o cidad?o sobre os seus direitos e colaborar na edifica??o de um Estado democr?tico, tem exercido o papel fiscalizador do poder p?blico que lhe havia sido retirado no regime monopartid?rio, denunciando, assim, os abusos dos recursos do Estado pelos pol?ticos e os efeitos negativos de algumas pol?ticas do Estado mo?ambicano, assim como das institui??es de Bretton Woods. No que diz respeito aos abusos dos pol?ticos, o destaque vai para a den?ncia do desfalque de dois antigos bancos comerciais, o Banco Comercial de Mo?ambique e o Banco Austral, considera-

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dos como os maiores esc?ndalos financeiros do Mo?ambique independente, e, segundo c?rculos, protagonizados por indiv?duos directa ou indirectamente ligados ? elite no poder. Pode-se destacar, tamb?m, a den?ncia da incompet?ncia e impot?ncia de Manuel Ant?nio, ent?o ministro do Interior, em lidar com a criminalidade, obrigando o tamb?m ent?o presidente Joaquim Chissano a demiti-lo em 1996, um caso sem precedentes na hist?ria de Mo?ambique. Em rela??o ?s institui??es de Bretton Woods (Banco Mundial e Fundo Monet?rio Internacional), o destaque vai, sem d?vida, para a den?ncia dos efeitos nefastos que as pol?ticas destas institui??es tiveram na ind?stria da castanha de caju. Mo?ambique exporta tanto castanha de caju em estado bruto como ap?s o seu processamento. Por anos, a ind?stria de processamento da castanha do caju foi das mais importantes em Mo?ambique, apesar de ter passado por s?rias dificuldades em v?rios momentos. Em meados da d?cada de 1990, por press?o das institui??es de Bretton Woods, a comercializa??o da castanha de caju em estado bruto foi liberalizada (de entre outras medidas, foi reduzida a taxa de exporta??o), com o que se procurava aumentar a competi??o entre os exportadores e, consequentemente, o pre?o pago aos produtores. Contudo, o principal impacto da liberaliza??o foi a quase total destrui??o da ind?stria de processamento do caju, uma vez que o caju passou a ser exportado antes de ser processado. Carlos Cardoso, que, como mencionado acima, era o mais destacado dos jornalistas independentes, tamb?m se destacou por se ter posicionado contra a escolha de Armando Guebuza, actual presidente de Mo?ambique, para suceder a Joaquim Chissano na presid?ncia da Frelimo e, consequentemente, apresentar-se como candidato presidencial (Cardoso, 15 de Julho de 1997). A imprensa independente, contudo, teve o seu desenvolvimento freado pelo assassinato brutal de Carlos Cardoso a 22 de Novembro de 2000. ? ?poca, Cardoso investigava casos de corrup??o em que estariam envolvidos pol?ticos ao mais alto n?vel das estruturas do Estado e da Frelimo, e a sua morte foi vista por muitos como um aviso aos jornalistas para que n?o se envolvessem com casos deste porte. A morte de Carlos Cardoso pode ajudar a entender, portanto, o quase desaparecimento de um jornalismo investigativo dos desmandos do poder pol?tico no pa?s, uma vez que suscitou temores n?o s? no seio dos jornalistas mas na sociedade em geral, como mostra este testemunho do Centro de Integridade P?blica (CIP):

[...] Esse jornalismo ? que teve o seu expoente m?ximo em Carlos Cardoso, que o elevou ? fasquia mais alta do seu papel em democracia, construtivo e atento, engajado na defesa do bem p?blico e livre ? est? doente. Depois do seu assassinato, deixou de se fazer investiga??o jornal?stica em Mo?ambique. H? quem possa pensar que, actualmente, e pelo volume de esc?ndalos de corrup??o publicados, temos hoje mais investiga??o nos Media. Mas o que acontece ? que os esc?ndalos s?o apenas divulgados e n?o investigados; temos um jornalismo de den?ncia que n?o faz o seguimento permanente dos casos que denuncia. (CIP: 27 de Outubro de 2006)

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Outro aspecto importante e preocupante em rela??o ? imprensa diz respeito ? sua parcialidade e ?s inclina??es partid?rias dos ?rg?os de comunica??o social, principalmente em per?odos eleitorais. A imprensa p?blica, estatal e aquela vinculada ao Estado, ? acusada de favorecer o partido no poder, a Frelimo. Mesmo se nas elei??es gerais de 2004, observadores internacionais reconheceram algumas melhorias em rela??o ao passado, mormente no que toca ? R?dio Mo?ambique, a sua conclus?o ? de que os ?rg?os de comunica??o estatal e com participa??o estatal ainda brilham pela sua parcialidade (EISA: 2006; Carter Center: 2005). No seu relat?rio consagrado ? observa??o das elei??es de 2004, a miss?o de observa??o da Uni?o Europeia mostrou que a cobertura dos meios de comunica??o vinculados ao Estado era claramente favor?vel ao partido Frelimo: O Not?cias deu 57% da sua cobertura ao governo e ? Frelimo, 19% ? Renamo e apenas 10% ao Partido de Democracia e Desenvolvimento (PDD) (Awepa, 15 de Julho de 2005). Mas tamb?m fora do per?odo eleitoral percebe-se grande parcialidade na actua??o dos meios de comunica??o social p?blicos e vinculados ao Estado. Aquando da realiza??o da reuni?o da Frelimo em Abril de 2008, a TVM e a RM interromperam a cobertura em directo do informe do procurador-geral da Rep?blica na Assembleia da Rep?blica para reportarem em directo a reuni?o dos antigos combatentes da Frelimo. Em Abril de 2009, agastado com a actua??o da RM a favor da Frelimo, sobretudo em ano eleitoral, Machado da Gra?a, um dos jornalistas mais conceituados de Mo?ambique, apelidou esta r?dio de "R?dio Frelimo" (M. da Gra?a, 29 de Abril de 2009). Tamb?m, em Fevereiro de 2008, quando centenas de pessoas foram ?s ruas para se manifestarem contra o aumento dos pre?os dos transportes privados semicolectivos, os chapas, a imprensa p?blica foi reticente na cobertura dos acontecimentos, tendo o MISA-Mo?ambique e o Centro de Integridade P?blica publicado uma nota de imprensa na qual criticaram a exist?ncia de controlo governamental sobre o sector (Nota de Imprensa, publicada no Magazine Independente, 13 Fevereiro 2008). O CSCS ? que como j? disse ? a entidade reguladora do exerc?cio da imprensa assim como do acesso ? informa??o e ?, legalmente, um ?rg?o independente ? ainda n?o ? um ?rg?o com aprova??o consensual, sendo acusado em v?rios c?rculos de favorecer nas suas decis?es o partido no poder. Por exemplo, aquando da discuss?o do pacote eleitoral em 2006, a FRELIMO defendia que os membros da Comiss?o Nacional de Elei??es deviam, de entre outras possibilidades, ser escolhidos entre os funcion?rios do CSCS. Ora, esta proposta foi recusada pela Renamo, para quem o CSCS n?o passava de um mero prolongamento da Frelimo. Esta contesta??o da Renamo baseava-se no facto de o presidente e o vice-presidente do CSCS serem indicados pelo Presidente da Rep?blica, num contexto em que a desconfian?a entre as principais for?as pol?ticas no pa?s ainda ? bastante forte e, sobretudo, no qual a obedi?ncia pol?tica continua a ser a condi??o b?sica para ser nomeado ou para se manter no cargo. ? excep??o dos jornais com vincula??o ao Estado, devido ? sua situa??o socioecon?mica prec?ria, os jornalistas s?o alvos f?ceis dos pol?ticos e homens de neg?cios. Por exemplo, aquando da

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sua visita ? prov?ncia de Nampula, em 2008, na companhia do presidente da Frelimo, o chefe do grupo parlamentar deste partido, Manuel Tom?, afirmou que, em virtude do apoio que os jornalistas desta prov?ncia tem concedido ? Frelimo, esta iria lhes oferecer casas no quadro do programa estatal Fundo para o Fomento de Habita??o (FFH) (Canal de Mo?ambique, 24 de Junho de 2008). Igualmente, a exiguidade de meios faz com que as viagens de trabalho de alguns jornalistas sejam financiadas pelas pessoas a quem a not?cia diz respeito, o que, logo ? partida, retira a credibilidade do trabalho do jornalista. Em 2006, Osvaldo Tembe, jornalista do Zambeze foi expulso deste seman?rio, por ter cobrado 35 mil meticais a uma fam?lia a fim de n?o publicar uma not?cia pondo em causa a idoneidade de um membro dessa fam?lia, acto denunciado por esta ? pol?cia (Zambeze, 16 de Mar?o de 2006). ? excep??o dos jornais com participa??o do Estado (Not?cias, Domingo, Di?rio de Mo?ambique, Desafio) e do grupo SOICO, propriet?rio da S-Graphics, onde s?o impressos alguns jornais privados (Escorpi?o, Magazine Independente, Canal de Mo?ambique), nenhum outro jornal privado possui gr?fica pr?pria. Para al?m destas gr?ficas, a outra capaz de imprimir jornais com uma certa qualidade e em quantidades aceit?veis, a CEGRAF, para al?m das ac??es detidas pelo Estado mo?ambicano, tamb?m ? dirigida por pessoas ligadas ao partido Frelimo, de entre as quais est?o o actual Chefe de Estado e o deputado Hermenegildo Gamito, colocando os m?dia por vezes ? merc? da boa vontade dos propriet?rios. Por exemplo, a edi??o de 2 de Novembro de 2006 do jornal Savana teve de ser impressa nas instala??es da Sociedade Not?cias, porque a CEGRAF alegava uma d?vida de 14 mil d?lares da parte da Mediacoop, grupo propriet?rio do Savana (Not?cias Lus?fonas, 4 de Novembro de 2006; Jone, 2008:502). Contudo, o Mediafax (3 de Novembro de 2006), tamb?m propriedade da Mediacoop, viu nesta situa??o um sinal de censura da parte da CEGRAF, isto porque esta edi??o do Savana trazia reportagens pouco abonat?rias ao partido no poder. O Mediafax adiantava ainda que n?o era a primeira vez que isto acontecia, porque o jornal Demos j? passara pela mesma situa??o em 2002. Para al?m das dificuldades acima anunciadas, o elevado custo das telecomunica??es, electricidade, papel e transporte, faz parte dos principais obst?culos ao desenvolvimento da imprensa em Mo?ambique. O n?mero de jornais encerrados (152 de entre os 177 criados desde 1990) confirma as dificuldades pelas quais passa a imprensa, fundamentalmente, a privada. Jornais que j? tinham cr?ditos firmados na pra?a, como Demos e Embondeiro, foram v?timas desta situa??o. Para equilibrar suas contas, os jornais poderiam contar com as receitas publicit?rias. Contudo, num mercado publicit?rio em que o Estado e as empresas p?blicas s?o grandes clientes, o risco de uma atribui??o selectiva e arbitr?ria ? maior, dando lugar ? concentra??o em apenas alguns ?rg?os de comunica??o social, sobretudo os p?blicos e com participa??o estatal. A condi??o para um acesso maior ? publicidade estatal por parte da imprensa independente pode ser a exig?ncia de serem menos cr?ticos em rela??o ao Estado e seus titulares.

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